A Illustre Casa de Ramires - 24
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Bravaes, cresceu apressado, marchando:--n'algum cabeço, depois
lentamente se afastou, esmoreceu, logo sumido, em arvoredos ou no valle
mais fundo.
João Gouveia, que se recostára no canto do largo assento de pedra, com o
seu côco sobre os joelhos, acenou para o lado dos Bravaes:
--Estou a lembrar aquella passagem do romance do Gonçalo, quando os
Ramires se preparam para soccorrer as Infantas, andam a reunir a
mesnada. É assim, a estas horas da tarde, com tambores: e por sitios...
«Na frescura do valle...» Não! «Pelo valle de Craquêde...» Tambem não!
Esperem vocês, que eu tenho boa memoria... Ah! «E por todo o fresco
valle até Santa Maria de Craquêde, os atambores mouriscos abafados no
arvoredo, tararam! tararam! ou mais vivos nos cerros ralatam! ralatam!
convocavam á mesnada dos Ramires, na doçura da tarde...» E lindo!
Por sobre as costas do Titó que, debruçado, riscava pensativamente com o
bengalão a poeira da estrada, Videirinha adeantou para o seu chefe a
face estendida, com um sorriso de finura:
--Oh Snr. Administrador, olhe que talvez seja ainda mais bonito, quando
os Ramires largam a perseguir o Bastardo! Cá para mim, tem mais poesia.
Quando o velho faz aquella jura com a espada e depois lá na Torre, muito
devagar, começa a tocar a finados... É d'appetite!
Á borda do assento, encolhido contra o Titó, para que o Snr.
Administrador se alastrasse confortavelmente, Padre Sueiro, com as mãos
no cabo do seu guarda-sol, concordou:
--Com certesa! são lances interessantes... Com certesa! N'aquella
novella ha imaginação rica, muito rica: e ha saber, ha verdade.
O Titó, que depois de _Simão de Nantua_, em pequeno, não abrira mais as
folhas d'um livro, e não lêra a _Torre de D. Ramires_, murmurou, com um
risco mais largo na poeira:
--Extraordinario, aquelle Gonçalo!
O Videirinha não findára o seu enlevado sorriso:
--Tem muito talento... Ah! o Snr. Doutor tem muito talento.
--Tem muita raça! exclamou o Titó, levantando a cabeça. E é o que o
salva dos defeitos... Eu sou um amigo de Gonçalo, e dos firmes. Mas não
o escondo, nem a elle... Sobretudo a elle. Muito leviano, muito
incoherente... Mas tem a raça que o salva.
--E a bondade, Snr. Antonio Villalobos! atalhou docemente Padre Sueiro.
A bondade, sobretudo como a do Snr. Gonçalo, tambem salva... Olhe, ás
vezes ha um homem muito serio, muito puro, muito austero, um Catão que
nunca cumpriu senão o dever e a lei... E todavia ninguem gosta d'elle,
nem o procura. Por que? Por que nunca deu, nunca perdoou, nunca
acarinhou, nunca serviu. E ao lado outro leviano, descuidado, que tem
defeitos, que tem culpas, que esqueceu mesmo o dever, que offendeu mesmo
a lei... Mas quê? É amoravel, generoso, dedicado, serviçal, sempre com
uma palavra doce, sempre com um rasgo carinhoso... E por isso todos o
amam, e não sei mesmo, Deus me perdôe, se Deus tambem o não prefere...
A curta mão que acenára para o ceu, recahiu sobre o cabo d'osso do
guarda-sol. Depois, e córado com a temeridade de pensamento tão
espiritual acudiu cautelosamente:
--Que esta não é propriamente doutrina da Egreja!... Mas anda nas almas;
anda já em muitas almas.
Então João Gouveia abandonou o recosto do banco de pedra e teso na
estrada, com o côco á banda, reabotoando a sobrecasaca, como sempre que
estabelecia um resumo:
--Pois eu tenho estudado muito o nosso amigo Gonçalo Mendes. E sabem
vocês, sabe o Snr. Padre Sueiro quem elle me lembra?
--Quem?
--Talvez se riam. Mas eu sustento a semelhança. Aquelle todo de Gonçalo,
a franqueza, a doçura, a bondade, a immensa bondade, que notou o Snr.
Padre Sueiro... Os fogachos e enthusiasmos, que acabam logo em fumo, e
juntamente muita persistencia, muito aferro quando se fila á sua
ideia... A generosidade, o desleixo, a constante trapalhada nos
negocios, e sentimentos de muita honra, uns escrupulos, quasi pueris,
não é verdade?... A imaginação que o leva sempre a exaggerar até á
mentira, e ao mesmo tempo um espirito pratico, sempre attento á
realidade util. A viveza, a facilidade em comprehender, em apanhar... A
esperança constante n'algum milagre, no velho milagre d'Ourique, que
sanará todas as difficuldades... A vaidade, o gosto de se arrebicar, de
luzir, e uma simplicidade tão grande, que dá na rua o braço a um
mendigo... Um fundo de melancolia, apesar de tão palrador, tão sociavel.
A desconfiança terrivel de si mesmo, que o acobarda, o encolhe, até que
um dia se decide, e apparece um heroe, que tudo arrasa... Até aquella
antiguidade de raça, aqui pegada á sua velha Torre, ha mil annos... Até
agora aquelle arranque para a Africa... Assim todo completo, com o bem,
com o mal, sabem vocês quem elle me lembra?
--Quem?...
--Portugal.
Os tres amigos retomaram o caminho de Villa-Clara. No ceu branco uma
estrellinha tremeluzia sobre Santa Maria de Craquêde. E Padre Sueiro,
com o seu guarda-sol sob o braço, recolheu á Torre vagarosamente, no
silencio e doçura da tarde, resando as suas Avè-Marias, e pedindo a paz
de Deus para Gonçalo, para todos os homens, para campos e casaes
adormecidos, e para a terra formosa de Portugal, tão cheia de graça
amoravel, que sempre bemdita fosse entre as terras.
FIM
lentamente se afastou, esmoreceu, logo sumido, em arvoredos ou no valle
mais fundo.
João Gouveia, que se recostára no canto do largo assento de pedra, com o
seu côco sobre os joelhos, acenou para o lado dos Bravaes:
--Estou a lembrar aquella passagem do romance do Gonçalo, quando os
Ramires se preparam para soccorrer as Infantas, andam a reunir a
mesnada. É assim, a estas horas da tarde, com tambores: e por sitios...
«Na frescura do valle...» Não! «Pelo valle de Craquêde...» Tambem não!
Esperem vocês, que eu tenho boa memoria... Ah! «E por todo o fresco
valle até Santa Maria de Craquêde, os atambores mouriscos abafados no
arvoredo, tararam! tararam! ou mais vivos nos cerros ralatam! ralatam!
convocavam á mesnada dos Ramires, na doçura da tarde...» E lindo!
Por sobre as costas do Titó que, debruçado, riscava pensativamente com o
bengalão a poeira da estrada, Videirinha adeantou para o seu chefe a
face estendida, com um sorriso de finura:
--Oh Snr. Administrador, olhe que talvez seja ainda mais bonito, quando
os Ramires largam a perseguir o Bastardo! Cá para mim, tem mais poesia.
Quando o velho faz aquella jura com a espada e depois lá na Torre, muito
devagar, começa a tocar a finados... É d'appetite!
Á borda do assento, encolhido contra o Titó, para que o Snr.
Administrador se alastrasse confortavelmente, Padre Sueiro, com as mãos
no cabo do seu guarda-sol, concordou:
--Com certesa! são lances interessantes... Com certesa! N'aquella
novella ha imaginação rica, muito rica: e ha saber, ha verdade.
O Titó, que depois de _Simão de Nantua_, em pequeno, não abrira mais as
folhas d'um livro, e não lêra a _Torre de D. Ramires_, murmurou, com um
risco mais largo na poeira:
--Extraordinario, aquelle Gonçalo!
O Videirinha não findára o seu enlevado sorriso:
--Tem muito talento... Ah! o Snr. Doutor tem muito talento.
--Tem muita raça! exclamou o Titó, levantando a cabeça. E é o que o
salva dos defeitos... Eu sou um amigo de Gonçalo, e dos firmes. Mas não
o escondo, nem a elle... Sobretudo a elle. Muito leviano, muito
incoherente... Mas tem a raça que o salva.
--E a bondade, Snr. Antonio Villalobos! atalhou docemente Padre Sueiro.
A bondade, sobretudo como a do Snr. Gonçalo, tambem salva... Olhe, ás
vezes ha um homem muito serio, muito puro, muito austero, um Catão que
nunca cumpriu senão o dever e a lei... E todavia ninguem gosta d'elle,
nem o procura. Por que? Por que nunca deu, nunca perdoou, nunca
acarinhou, nunca serviu. E ao lado outro leviano, descuidado, que tem
defeitos, que tem culpas, que esqueceu mesmo o dever, que offendeu mesmo
a lei... Mas quê? É amoravel, generoso, dedicado, serviçal, sempre com
uma palavra doce, sempre com um rasgo carinhoso... E por isso todos o
amam, e não sei mesmo, Deus me perdôe, se Deus tambem o não prefere...
A curta mão que acenára para o ceu, recahiu sobre o cabo d'osso do
guarda-sol. Depois, e córado com a temeridade de pensamento tão
espiritual acudiu cautelosamente:
--Que esta não é propriamente doutrina da Egreja!... Mas anda nas almas;
anda já em muitas almas.
Então João Gouveia abandonou o recosto do banco de pedra e teso na
estrada, com o côco á banda, reabotoando a sobrecasaca, como sempre que
estabelecia um resumo:
--Pois eu tenho estudado muito o nosso amigo Gonçalo Mendes. E sabem
vocês, sabe o Snr. Padre Sueiro quem elle me lembra?
--Quem?
--Talvez se riam. Mas eu sustento a semelhança. Aquelle todo de Gonçalo,
a franqueza, a doçura, a bondade, a immensa bondade, que notou o Snr.
Padre Sueiro... Os fogachos e enthusiasmos, que acabam logo em fumo, e
juntamente muita persistencia, muito aferro quando se fila á sua
ideia... A generosidade, o desleixo, a constante trapalhada nos
negocios, e sentimentos de muita honra, uns escrupulos, quasi pueris,
não é verdade?... A imaginação que o leva sempre a exaggerar até á
mentira, e ao mesmo tempo um espirito pratico, sempre attento á
realidade util. A viveza, a facilidade em comprehender, em apanhar... A
esperança constante n'algum milagre, no velho milagre d'Ourique, que
sanará todas as difficuldades... A vaidade, o gosto de se arrebicar, de
luzir, e uma simplicidade tão grande, que dá na rua o braço a um
mendigo... Um fundo de melancolia, apesar de tão palrador, tão sociavel.
A desconfiança terrivel de si mesmo, que o acobarda, o encolhe, até que
um dia se decide, e apparece um heroe, que tudo arrasa... Até aquella
antiguidade de raça, aqui pegada á sua velha Torre, ha mil annos... Até
agora aquelle arranque para a Africa... Assim todo completo, com o bem,
com o mal, sabem vocês quem elle me lembra?
--Quem?...
--Portugal.
Os tres amigos retomaram o caminho de Villa-Clara. No ceu branco uma
estrellinha tremeluzia sobre Santa Maria de Craquêde. E Padre Sueiro,
com o seu guarda-sol sob o braço, recolheu á Torre vagarosamente, no
silencio e doçura da tarde, resando as suas Avè-Marias, e pedindo a paz
de Deus para Gonçalo, para todos os homens, para campos e casaes
adormecidos, e para a terra formosa de Portugal, tão cheia de graça
amoravel, que sempre bemdita fosse entre as terras.
FIM
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