A Illustre Casa de Ramires - 17
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quem se considerava «_vassalla_». Mas para a mais novinha e a mais
fraquinha não se arranjava amparo solido. A Rosa lembrára então--«que
certamente a Snr.^a D. Maria da Graça recolheria a creaturinha...»
Gonçalo rosnára com seccura:--«Oh! por uma côdea mais de pão não se
necessita encommodar a _cidade d'Oliveira_!» Rosa, porém, enlevada na
obra, desejando para pequerrucha tão franzina e loira o agasalho d'uma
senhora, escrevera a Gracinha, pela esmerada lettra do Bento, uma
verbosa carta com o pedido, e toda a historia lamentosa da Crispola, e
louvores devotos á caridade do Snr. Doutor. E era a resposta de
Gracinha, demorada mas enternecida, com a recommendação «de lhe mandarem
logo a pobre creança»--que impacientava o Fidalgo.
Por que, desde a tarde abominavel do Mirante, estranhamente se apoderára
d'elle uma repugnancia quasi pudica em communicar com os Cunhaes! Era
como se esse Mirante e a torpeza abrigada dentro das suas paredes côr de
rosa empestassem o jardim, o palacete, o Largo d'El-Rei, toda a cidade
d'Oliveira, e elle agora, por aceio moral, recuasse ante essa região
empestada onde o seu coração e o seu orgulho suffocavam... Logo depois
da sua fuga recebera do bom Barrôlo uma carta espantada:--«Que têlha foi
essa? Porque não esperaste? Eu, quando voltei á noite da quinta do
Marges, até fiquei com cuidado. E não imaginas como a Gracinha anda
nervosa! Soubemos da partida, por acaso, por um cocheiro do Maciel. Já
hoje comemos os pêcegos, mas não comprehendemos!...»--Gonçalo respondeu
seccamente n'um bilhete:--«Negocios». Depois recordou que deixára na
gaveta do seu quarto o manuscripto da Novella: e mandou um moço da
quinta, de madrugada, com um recado quasi secreto ao Padre Sueiro, «para
que entregasse a pasta ao portador, bem embrulhada, sem contar aos
senhores...» Entre a Torre e os Cunhaes só desejava separação e
silencio.
E nos encerrados dias que passou na Torre (sem se arriscar a
Villa-Clara, no terror de que a vergonha do seu nome já andasse rosnada
pelo estanco do Simões ou pelo armazem do Ramos) não cessou de vibrar
n'uma colera espalhada que a todos varava... Colera contra a irmã que,
calcando pudor, altivez de raça, receio dos escarneos d'Oliveira, tão
facil e estouvadamente como se calcam as flôres desbotadas d'um tapete,
correra ao Mirante, ao macho da bigodeira, apenas elle lhe acenára com o
lenço almiscarado! Colera contra o Barrôlo, o bochechudo bacôco, que
empregava os seus bacôcos dias celebrando o Cavalleiro, arrastando o
Cavalleiro para o Largo d'El-Rei, escolhendo na adega os vinhos mais
finos para que o Cavalleiro aquecesse o sangue, ageitando as almofadas
de todos os camapés para que o Cavalleiro saboreasse estiradamente o seu
charuto e a graça presente de Gracinha! Emfim colera contra si, que,
pela baixa cubiça de uma cadeira em S. Bento, abatera a unica muralha
segura entre a irmã e o homem da marrafa lusente--que era a sua
inimizade, aquella escarpada inimizade, sempre, desde Coimbra, tão
rijamente reforçada e recaiada!... Ah! todos tres horrendamente
culpados!
Depois uma tarde, enfastiado da solidão, ousou um passeio por
Villa-Clara. E reconheceu que na Assembleia, no estanco do Simões, na
loja do Ramos, os amores de Gracinha eram certamente tão ignorados como
se passassem nas profundidades da Tartaria. Immediatamente a sua alma
doce, agora socegada, se abandonou á doçura de tecer desculpas subtis
para todos os culpados d'aquella queda triste... Gracinha, coitada, sem
filhos, com tão mollengo e ensosso marido, alheia a todos os interesses
da intelligencia, indolente mesmo para uma costura ou bordado--cedêra,
que mulher não cederia? á credula e primitiva paixão que lhe brotára na
alma, n'ella se enraizára, lhe déra as suas unicas alegrias do mundo e
(influencia ainda mais poderosa!) lhe arrancára as suas unicas lagrimas!
O Barrôlo, coitado, era o Bacôco--e como o «pilriteiro» da cantiga,
incapaz de mais nobres fructos, só produzia os «pilritos» da sua
Bacoquice. E elle, coitado d'elle, pobre, ignorado, irresistivelmente se
rendera á fatal Lei d'Accrescentamento, que o levára, como a todos leva
na ancia de fama e fortuna, a furar precipitadamente pela porta casual
que se abre, sem reparar na estrumeira que atravanca os humbraes... Ah
realmente todos bem pouco culpados deante de Deus que nos creou tão
variaveis, tão frageis, tão dependentes de forças por nós ainda menos
governadas do que o Vento ou do que o Sol!
Não, irremissivelmente culpado,--só o outro, o malandro da grenha
ondeada! Esse, em toda a sua conducta com Gracinha, desde estudante,
mostrára sempre um egoismo atrevido, só punivel como puniam os antigos
Ramires, com a morte depois dos tormentos, e a carcassa posta aos
corvos. Em quanto lhe agradou, na ociosidade dos longos estios, um
namoro bocolico sob os arvoredos da Torre--namorára. Quando considerou
que uma mulher e filhos lhe atravancariam a vida ligeira--trahira. Logo
que a antiga bem amada pertenceu a outro homem--recomeçára o cerco
languido para colher, sem os encargos da paternidade, as emoções do
sentimento. E apenas esse marido lhe entreabre a sua porta--não se
demora, fende brutamente sobre a preza! Ah como o avô Tructesindo
trataria villão de tal villania! Certamente o assava n'uma rugidora
fogueira deante das barbacans--ou, nas masmoras da Alcaçova, lhe entupia
as guellas falsas com bom chumbo derretido...
Pois elle, neto de Tructesindo, nem sequer podia, quando encontrasse o
Cavalleiro nas ruas d'Oliveira, carregar o chapeu sobre a testa e
passar! A menor diminuição n'essa intimidade tão desastradamente
reatada--seria como a revelação da torpeza ainda abafada nas paredes do
Mirante! Toda Oliveira cochicharia, riria.--«Olha o Fidalgo da Torre!
Mette o Cavalleiro nos Cunhaes com a irmã, e logo, passadas semanas,
rompe de novo com o Cavalleiro! Houve escandalo, e gordo!»--Que delicia
para as Lousadas! Não, ao contrario! agora devia ostentar pelo
Cavalleiro uma fraternidade tão larga e tão ruidosa--que, pela sua
largueza e o seu ruido, inteiramente tapasse e abafasse o sujo enredo
que por traz latejava. Fingimento torturante--e imposto pela honra do
nome! O sujo enredo bem guardado entre os mais densos arvoredos do
jardim, na mais cerrada penumbra do Mirante!--e por fóra, ao sol, nas
praças d'Oliveira elle sempre com o braço carinhosamente enlaçado no
braço do Cavalleiro!
Os dias rolavam--e no espirito de Gonçalo não se estabelecia serenidade.
E sobretudo o amargurava sentir que era forçado a essa intimidade
vistosa com o Cavalleiro--tanto pelo cuidado do seu nome, como pela
conveniencia da sua Eleição. Toda a sua altivez por vezes se
revoltava:--«Que me importa a Eleição! Que valor tem uma encardida
cadeira em S. Bento?...» Mas logo a secca Realidade o emmudecia. A
Eleição era a unica fenda por onde elle lograria escapar do seu buraco
rural; e, se rompesse com o Cavalleiro, esse villão, vezeiro a
villanias, immediatamente, com o appoio da horda intrigante de Lisboa,
improvisaria outro Candidato por Villa-Clara... Desgraçadamente elle era
um d'esses seres vergados que _dependem_. E a triste dependencia d'onde
provinha? Da pobreza--d'essa escassa renda de duas quintas, abastança
para um simples, mas pobreza para elle, com a sua educação, os seus
gostos, os seus deveres de fidalguia, o seu espirito de sociabilidade.
E estes pensamentos lenta e capciosamente o empurraram a outro
pensamento--á D. Anna Lucena, aos seus duzentos contos... Até que uma
manhã encarou corajosamente uma possibilidade perturbadora:--casar com a
D. Anna!--Por que não? Ella claramente lhe mostrára inclinação, quasi
consentimento... Por que não casaria com a D. Anna?
Sim! o pae carniceiro, o irmão assassino... Mas tambem elle, entre
tantos avós até aos Suevos ferozes, descortinaria algum avô carniceiro;
e a occupação dos Ramires, atravez dos seculos heroicos, consistira
realmente em assassinar. De resto o carniceiro e o assassino, ambos
mortos, sombras remotas, pertenciam a uma Lenda que se apagava. D. Anna,
pelo casamento, subira da Populaça para a Burguesia. Elle não a
encontrava no talho do pae, nem no velhacouto do irmão--mas na quinta da
_Feitosa_, já Rica-Dona, com procurador, com capellão, com lacaios, como
uma antiga Ramires. Ah! sinceramente, toda a hesitação era pueril--desde
que esses duzentos contos, de dinheiro muito limpo, de bom dinheiro
rural, os trazia com o seu corpo, mulher tão formosa e séria. Com esse
puro ouro, e o seu nome, e o seu talento, não necessitaria para dominar
na Politica a refalsada mão do Cavalleiro... E depois que vida nobre e
completa! A sua velha Torre restituida ao esplendor sobrio d'outras
eras; uma lavoura de luxo no historico torrão de Treixedo; as viagens
fecundas ás terras que educam!... E a mulher que fornecia estes regalos
não lhes amargava o goso, como em tantos casamentos ricos, com a sua
fealdade, os seus agudos ossos, ou a sua pelle relentada... Não! Depois
do brilho social do dia não o esperava na alcova um mostrengo--mas
Venus.
E assim, lentamente trabalhado por estas tentações, mandou uma tarde um
bilhete á prima Maria, á _Feitosa_, pedindo--«para se encontrarem, sós,
n'algum passeio dos arredores, por que desejava ter com ella uma
_conversasinha_ séria e intima...» Mas tres immensos dias se
arrastaram--e não appareceu a almejada carta da _Feitosa_. Gonçalo
concluiu que a prima Maria, tão esperta, farejando a natureza da
_conversasinha_ e sem uma certeza para o alegrar, retardava, se
recusava. Atravessou então uma desolada semana, remoendo a melancolia
d'uma vida que sentia ôca e toda feita d'incertezas. O orgulho, um pudor
complicado, não lhe consentiam voltar a Oliveira, ao quarto d'onde
implacavelmente avistaria, por sobre o arvoredo, a cupula do Mirante com
o seu gordo Cupido:--e quasi o arrepiava a idéa de beijar a irmã na face
que o outro babujára! Sobre a Eleição descera um silencio de abobada--e
outra repugnancia, mais acerba, lhe vedava escrever ao Cavalleiro. João
Gouveia gozava as suas férias na Costa, de sapatos brancos, apanhando
conchinhas na praia. E Villa-Clara não se tolerava n'esse meado ardente
de Septembro--com o Titó no Alemtejo onde o levára uma doença do velho
Morgado de Cidadelhe, o Manoel Duarte na quinta da mãe dirigindo as
vindimas, e a Assembleia deserta e adormecida sob o innumeravel susurro
das moscas...
* * * * *
Para se occupar e atulhar as horas, mais que por dever ou gosto d'Arte,
retomou a sua Novella. Mas sem fervor, sem veia agil. Agora era a
sanhuda arrancada de Tructesindo e dos seus cavalleiros, correndo sobre
o Bastardo de Bayão. Lance difficultoso--reclamando fragor, um
rebrilhante colorido Medieval. E elle tão molle e tão apagado!...
Felizmente, no seu Poemeto, o Tio Duarte recheára esse violento trecho
de bem apinceladas paisagens, d'interessantes rasgos de guerra.
Logo na Ribeira do Coice, Tructesindo encontrava cortada a machado a
decrepita ponte, cujos rotos barrotes e taboões carcomidos entulhavam no
fundo a corrente escassa. Na sua fuga o Bastardo acautelladamente a
desmantelára para deter a cavalgada vingadora. Então a pesada hoste de
Santa Ireneia avançou pela esguia ourela, ladeando os renques de choupos
em demanda do vau do Espigal... Mas que tardança! Quando as derradeiras
mulas de carga choutaram na terra d'além-ribeira já a tarde se adoçava,
e nas poças d'agua, entre as poldras, o brilho esmorecia, umas ainda
d'ouro pallido, outras apenas rosadas. Immediatamente Dom Garcia Viegas,
o _Sabedor_, aconselhou que a mesnada se dividisse:--a peonagem e a
carga avançando para Montemor, esgueirada e callada, para esquivar
recontros; os senhores de lança e os besteiros de cavallo arrancando em
dura carreira para colher o Bastardo. Todos louvaram o ardil do
_Sabedor_: e a cavalgada, aligeirada das filas tardas de archeiros e
fundibularios, largou, soltas as rédeas, atravez de terras ermas, depois
por entre barrocaes, até aos _Tres-Caminhos_, desolada chan onde se
ergue solitariamente aquelle carvalho velhissimo que outr'ora, antes
d'exorcisado por S. Froalengo, abrigava no sabbado mais negro de
Janeiro, ao clarão d'archotes enxofrados, a Grande Ronda de todas as
bruchas de Portugal. Junto do carvalho Tructesindo sopeou a arrancada:
e, alçado nos estribos, farejava as tres sendas que se trifurcam e se
encovam entre asperos, lobregos cerros de bravio e de tojo. Passára ahi
o Bastardo malvado?... Ah! por certo passára e toda a sua
maldade--porque no respaldo d'uma fraga, junto a tres cabras magras
retouçando o matto, jazia, com os braços abertos, um pobre pastorinho
morto, varado por uma frecha! Para que o triste cabreiro não soprasse
novas da gente de Bayão--uma bruta setta lhe atravessára o peito
escarnado de fome, mal coberto de trapos. Mas por qual das sendas se
embrenhára o malvado? Na terra solta, raspada pelo vento suão que rolava
d'entre-montes, não appareciam pegadas revoltas de tropel fugindo. E, em
tal solidão, nem choça ou palhoça d'onde villão ou velha alapada
espreitassem a levada do bando... Então, ao mando do Alferes Affonso
Gomes, tres almogavres despediram pelos tres caminhos á descoberta--em
quanto os Cavalleiros, sem desmontar, desafivelavam os morriões para
limpar nas faces barbudas o suor que os alagava, ou abeiravam os ginetes
d'um sumido fio d'agua que á orla da chan se arrastava entre ralo
caniçal. Tructesindo não se arredou de sob a ramada do carvalho de S.
Froalengo, immovel sobre o murzello immovel, todo cerrado no ferro da
sua negra armadura, as mãos juntas sobre a sella e o elmo pesadamente
inclinado como em magua e oração. E ao lado, com as colleiras errissadas
de prégos, as sangrentas linguas penduradas, arquejavam, estirados, os
seus dous mastins.
Já no emtanto a espera se alongava, inquieta, enfadonha--quando o
almogavre que mettera pela senda de Nascente reappareceu n'um rolo de
poeira, atirando logo o alarde de longe, com a ascuma alta. A hora
escassa de carreira avistára num cabeço uma hoste acampada, em arraial
seguro, rodeado d'estaca e valla!...
--Que pendão?
--As treze arruellas.
--Deus louvado! gritou Tructesindo, que estremeceu como acordando. É D.
Pedro de Castro, _o Castellão_, que entrou com os Leonezes e vem pelas
senhoras Infantas!
Por esse caminho pois não se atrevera o Bastardo!... Mas já pela senda
de Poente recolhia outro almogavre contando que entre-cerros, n'um
pinhal, topára um bando de bufarinheiros genovezes, retardados desde
alva, por que um d'elles esmorecera com mal de febres. E
então?...--Então, pela borda do pinheiral apenas passára em todo o dia
(no jurar dos genovezes) uma companhia de truões voltando da feira de
Grajelos. Só restava pois o trilho do meio, pedregoso e esbarrancado
como o leito enxuto d'uma torrente. E por elle, a um brado de
Tructesindo, tropeou a cavalgada. Mas já o crepusculo tristissimo
descia--e sempre o caminho se estirava, agreste, soturno, infindavel,
entre os cerros de urze e rocha, sem uma cabana, um muro, uma sebe,
rasto de rez ou homem. Ao longe, mais ao longe, emfim, enchergaram a
campina arida, coberta de solidão e penumbra, dilatada na sua mudez até
a um ceu remoto, onde já se apagava uma derradeira tira de poente côr de
cobre e côr de sangue. Então Tructesindo deteve a abalada, rente
d'espinheiros que se torciam nas lufadas mais rijas do suão:
--Por Deus, senhores, que corremos em pressa vã e sem esperança!... Que
pensaes, Garcia Viegas?
Todo o bando se apinhára: e uma fumarada subia dos ginetes arquejantes
sob as coberturas de malha. O _Sabedor_ estendeu o braço:
--Senhores! O Bastardo, antes de nós, galgou d'escapada essa campina
além, e metteu a Valle-Murtinho para pernoitar na Honra de Agredel, que
é bem afortalezada e parenta de Bayão...
--E nós, pois, D. Garcia?
--Nós, senhores e amigos, só nos resta tambem pernoitar. Voltemos aos
_Tres-Caminhos_. E de lá, em boa avença, ao arraial do Snr. D. Pedro de
Castro, a pedir agasalho... A par de tamanho senhor encontraremos mais
fartamente que nos nossos alforges o que todos, christãos e brutos,
vamos necessitando, cevada, um naco de vianda, e de vinhos tres golpes
rijos...
Todos bradaram com alvoroço:--«Bem traçado! bem traçado!...»--E de novo,
pelo barranco pedregoso, a cavalgada trotou pezadamente para os
_Tres-Caminhos_--onde já dous corvos se encarniçavam sobre o corpo do
pastorinho morto.
Em breve, ao cabo do caminho do Nascente, no cabeço alto, alvejaram as
tendas do arraial, ao clarão das fogueiras que por todo elle fumegavam.
O Adail de Santa Ireneia arrancou da bosina tres sons lentos annunciando
Filho-d'Algo. Logo de dentro da estacada outras businas soaram, claras e
acolhedoras. Então o Adail galopou até ao vallado, a annunciar ás
atalaias postadas nas barreiras, entre luzentes fogos d'almenara, a
mesnada amiga dos Ramires. Tructesindo parára no corrego escuro, que o
pinheiral cerrado mais escurecia movendo e gemendo no vento. Dous
cavalleiros, de sobreveste negra e capuz, logo correram pelo pendor do
outeiro--bradando que o Snr. D. Pedro de Castro esperava o nobre senhor
de Santa Ireneia e muito se prazia para todo seu regalo e serviço!
Silenciosamente Tructesindo desmontou; e com D. Garcia Viegas, e Leonel
de Çamora e Mendo de Briteiros e outros parentes de solar, todos sem
lança ou broquel, descalçados os guantes, galgaram o cabeço até á
estacada, cujas cancellas se escancararam, mostrando na claridade
incerta dos fogareus sombrios magotes de peões--onde, por entre os
bassinetes de ferro, surdiam toucas amarellas de mancebas e gorros
enguisalhados de jograes. Apenas o velho assomou aos barrotes dous
infanções, sacudindo a espada, bradaram:
--Honra! honra! aos Ricos-Homens de Portugal!
As trompas misturavam o clangor rispido aos rufos lassos dos tambores. E
por entre a turba, que calladamente recuára em alas lentas, avançou,
precedido por quatro cavalleiros que erguiam archotes accesos, o velho
D. Pedro de Castro, _o Castellão_, o homem das longas guerras e dos
vastos senhorios. Um corselete d'anta com lavores de prata cinjia o seu
peito já curvado, como consumido por tamanhas fadigas de pelejar e
tamanhas cubiças de reinar. Sem elmo, sem armas, appoiava a mão
cabelluda de rijas veias a um bastão de marfim. E os olhos encovados
faiscavam, com affavel curiosidade, na requeimada magreza da face, de
nariz mais recurvo que o bico d'um falcão, repuxada a um lado por um
fundo gilvaz que se sumia na barba crespa, aguda e quasi branca.
Deante do senhor de Santa Ireneia alargou vagarosamente os braços. E com
um grave riso que mais lhe recurvou, sobre a barba espetada, o nariz de
rapina:
--Viva Deus! Grande é a noite que vos traz, primo e amigo! Que não a
esperava eu de tanta honra, nem sequer de tanto gosto!...
* * * * *
Ao rematar este duro Capitulo, depois de tres manhãs de trabalho,
Gonçalo arrojou a penna com um suspiro de cansaço. Ah! já lhe entrava a
fartura d'essa interminavel Novella, desenrolada como um novello
solto--sem que elle lhe podesse encurtar os fios, tão cerradamente os
emmaranhára no seu denso Poema o Tio Duarte que elle seguia gemendo! E
depois nem o consolava a certeza de construir obra forte. Esses
Tructesindos, esses Bastardos, esses Castros, esses _Sabedores_, eram
realmente varões Affonsinos, de solida substancia historica?... Talvez
apenas oucos titeres, mal engonçados em erradas armaduras, povoando
inveridicos arraiaes e castellos, sem um gesto ou dizer que datassem das
velhas edades!
E ao outro dia não reuniu em todo o seu ser coragem para retomar aquella
sofrega correria dos de Santa Ireneia sobre o bando escapadiço de Bayão.
De resto já remettera tres Capitulos da Novella--já calmára as ancias do
Castanheiro. Mas a ociosidade mais lhe pesou n'essa semana, arrastada
pelos canapés ou por entre os buxos do jardim, fumando e tristemente
sentindo que a Vida lhe fugia em fumo. Para o enervar accrescia um
aborrecimento de dinheiro--uma lettra de seiscentos mil réis, do
derradeiro anno de Coimbra, sempre reformada, sempre avolumada, e que
agora o emprestador, um certo Leite, d'Oliveira, reclamava com dureza. O
seu alfaiate de Lisboa tambem o importunava com uma conta pavorosa,
atulhando duas laudas. Mas sobretudo o desolava a solidão da Torre.
Todos os alegres amigos dispersos pela beira-mar ou nas quintas. A
Eleição encalhada como uma barca no lodo. A irmã de certo com o _outro_
no Mirante. Até a prima Maria desattendendo ingratamente o seu timido
pedido d'uma «conversasinha.» E elle no seu quente casarão, sem energia,
immobilisado n'uma inercia crescente, como se cordas o travassem, cada
dia mais apertadas--e d'homem se volvesse em fardo.
Uma tarde no seu quarto, vagaroso e sombrio, sem mesmo parolar com o
Bento, acabava de se vestir para montar a cavallo, espairecer n'um
galope pelos caminhos de Valverde--quando o pequeno da Crispola (já
estabelecido na Torre como pagem, de fardeta de botões amarellos) bateu
esbaforidamente á porta.--Era uma senhora que parára ao portão, dentro
d'uma carruagem, pedia ao Fidalgo para descer...
--Não disse o nome?
--Não, senhor. É uma senhora magra, puxada a dous cavallos, com redes...
A prima Maria! Com que alvoroço correu, agarrando no cabide do corredor
um velho chapeu de palha! E em baixo foi como se contemplasse a Deusa da
Fortuna na sua roda ligeira.
--Oh prima Maria, que surpreza!... Que felicidade!
Debruçada da portinhola da carruagem (a caleche azul da _Feitosa_), D.
Maria Mendonça, com um chapeu novo enramalhetado de lilazes, desculpou
atrapalhadamente e rindo o seu silencio. Recebera a carta do primo muito
atrasada... Sempre o fatal carteiro, tropego e bebedo... Depois uns dias
muito atarefados em Oliveira com a Annica, que preparava para o inverno
a casa da rua das Vellas.
--E finalmente, como devia uma visita em Villa-Clara á pobre Venancia
Rios, que tem estado doente, achei mais simples e mais completo parar na
Torre... E então?
Gonçalo sorria, embaraçado:
--Então, nada de grave, mas... É que desejava conversar comsigo... Por
que não entra?
Abrira a portinhola. Ella preferia passear na estrada. E ambos
s'encaminharam para o velho banco de pedra que os alamos abrigavam em
frente ao portão da Torre. Gonçalo sacudiu com o lenço a ponta do banco.
--Pois, prima Maria, eu desejava conversar... Mas é difficil, tão
difficil!... Talvez o melhor seja atacar a questão brutalmente.
--Ataque.
--Então lá vae!... A prima acha que eu perco o meu tempo se me dedicar á
sua amiga D. Anna?
Pousada de leve á borda do banco, enrolando attentamente a seda preta do
guardasolinho, Maria Mendonça tardou, murmurou:
--Não, acho que o primo não perde o seu tempo...
--Ah! acha?
Ella considerava Gonçalo, gozando a sua perturbação e anciedade.
--Jesus, prima!... Diga alguma cousa mais!
--Mas que quer que lhe diga mais? Já lhe declarei em Oliveira. Ainda sou
muito nova para andar com recadinhos de sentimento. Mas acho que a
Annica é bonita, é rica, é viuva...
Gonçalo arrancou do banco, erguendo os braços, em desolação. E, como D.
Maria tambem se erguera, ambos seguiram pela tira de relva que orla os
alamos. Elle quasi gemia, desconsolado:
--Ora bonita, viuva, rica... Para conhecer esses grandes segredos não a
incommodava eu, prima!... Que diabo! seja boa rapariga, seja franca! A
prima sabe, de certo já ambas conversaram... Seja franca. Ella tem por
mim alguma sympathia?
D. Maria parou, murmurou, riscando com a ponta do guardasolinho o trilho
amarellado da relva:
--Pois está claro que tem...
--Bravo! Então, se d'aqui a um tempo, passados estes primeiros mezes de
luto, eu me declarasse, me...
Ella dardejou a Gonçalo os espertos olhos:
--Santo Deus, como o primo por ahi vae, a galope... Então é uma paixão?
Gonçalo tirou o seu velho chapeu de palha, passou lentamente os dedos
pelos cabellos. E n'um immenso e triste desabafo:
--Olhe, prima! É sobretudo a necessidade de me accommodar na vida! Pois
não lhe parece?
--Tanto me parece que lhe indiquei o bom poizo... E agora adeus, passa
das cinco horas. Não me quero demorar por causa dos creados.
Gonçalo protestou, supplicou:
--Mais um bocadinho!... É tão cedo! Só outra cousa, com franqueza. Ella
é boa rapariga?
D. Maria voltára, ao cabo do renque d'alamos, recolhendo á caleche:
--Uma pontinha de genio, para animar a existencia. Mas muito boa
rapariga... E uma dona de casa admiravel! O primo não imagina como anda
a _Feitosa_. A ordem, o acceio, a regularidade, a disciplina... Ella
olha por tudo, até pela adega, até pela cocheira!
Gonçalo esfregou radiantemente as mãos:
--Pois se d'aqui a um anno se realisar o grande acontecimento hei de
gritar por toda a parte que foi a prima Maria que salvou a casa de
Ramires!
--Por isso eu trabalho, para servir o brazão e o nome! exclamou ella,
saltando ligeiramente para a caleche, como se fugisse, arremessada
aquella clara confissão.
O trintanario trepára á almofada. E em quanto os cavallos folgados
largavam, aos corcovos, D. Maria ainda gritou:
--Sabe quem encontrei em Villa Clara? O Titó!
--O Titó?...
--Chegou do Alemtejo, vem jantar comsigo. Eu não o trouxe na carruagem
por decencia, para o não comprometter...
E a caleche rolou--entre os risos e os doces acenos com que ambos se
afagavam, n'aquella nova concordancia mais calorosa d'uma conspiração
sentimental.
Gonçalo largou logo alegremente para Villa-Clara, ao encontro do Titó. E
já o alvoroçava a idéa de colher do Titó, intimo da _Feitosa_,
informações sobre a D. Anna, o seu genio, os seus modos. A prima Maria,
por amor dos Ramires (sobretudo, coitada, para proveito dos Mendonças!),
idealisava a noiva. Mas o Titó, o homem mais veridico do Reino, amando a
Verdade com a antiga devoção de Epaminondas, apresentaria D. Anna sem um
enfeite nem um desenfeite. E o Titó... Ah! sob o seu vozeirão troante, a
sua indolencia bovina, o Titó possuia um espirito muito attento, muito
penetrante.
Logo á Portella os dous amigos s'encontraram. E, apesar de separação tão
curta, o abraço foi estrondoso.
--Oh sô Gonçalão!...
--Oh Titósinho querido! tens feito cá uma falta enorme!... E teu irmão?
O mano melhor, mas arrasado. Muito cartapacio e muito fêmea para velho
de sessenta annos. E elle lá o avisára:--«Mano João, mano João! olhe que
assim sempre agarrado aos papeis velhos e ás cachopas novas, o mano
rebenta!»
--E por cá? Essa eleição?
--A eleição agora para outubro, nos começos d'outubro... De resto,
semsaboria universal. Gouveia na Costa, Manoel Duarte na vindima... Eu
seccadote, murchote, sem veia, até sem appetite.
--Olha que eu venho jantar e convidei o Videirinha.
--Bem sei, já me disse a prima Maria, que parou um bocado na Torre...
Ella está na _Feitosa_ com a D. Anna.
Durante um momento repisou sobre a intimidade da prima Maria na
_Feitosa_, com a tentação de desabafar, logo alli na estrada, sobre o
inesperado romance que desabrochára. Mas não ousou! Era um angustiado
acanhamento, como a vergonha de cubiçar assim todos os restos do pobre
Lucena--o Circulo e a viuva.
Então, conversando do Alemtejo e do mano João (que contára muitas
antigualhas massadoras sobre a genealogia dos Ramires), desceram da
Portella á Torre, com tenção de estirar o passeio até aos Bravaes. Mas,
na Torre, Gonçalo desejou avisar a Rosa dos dous convivas inesperados,
senhores de tão poderoso garfo. Entraram pela porta do pomar onde um fio
lento d'agoa s'atardava nos regueiros. Aos brados galhofeiros do Fidalgo
a Rosa accudio, limpando as mãos ao avental. O que! dous convidados!
Mesmo quatro, e mais valentes, que graças a Deus nosso Senhor o
jantarinho sobrava! Ainda de tarde comprára a uma mulher da Costa um
cesto de sardinhas, graudas e gordas que regalavam!... O Titó reclamou
logo uma fritada tremenda de sardinha e ovos. E os dois amigos
atravessavam o pateo--quando Gonçalo reparou no Bento, escarranchado no
banco da latada, deante d'uma tigella, e areando com enthusiasmo um
fraquinha não se arranjava amparo solido. A Rosa lembrára então--«que
certamente a Snr.^a D. Maria da Graça recolheria a creaturinha...»
Gonçalo rosnára com seccura:--«Oh! por uma côdea mais de pão não se
necessita encommodar a _cidade d'Oliveira_!» Rosa, porém, enlevada na
obra, desejando para pequerrucha tão franzina e loira o agasalho d'uma
senhora, escrevera a Gracinha, pela esmerada lettra do Bento, uma
verbosa carta com o pedido, e toda a historia lamentosa da Crispola, e
louvores devotos á caridade do Snr. Doutor. E era a resposta de
Gracinha, demorada mas enternecida, com a recommendação «de lhe mandarem
logo a pobre creança»--que impacientava o Fidalgo.
Por que, desde a tarde abominavel do Mirante, estranhamente se apoderára
d'elle uma repugnancia quasi pudica em communicar com os Cunhaes! Era
como se esse Mirante e a torpeza abrigada dentro das suas paredes côr de
rosa empestassem o jardim, o palacete, o Largo d'El-Rei, toda a cidade
d'Oliveira, e elle agora, por aceio moral, recuasse ante essa região
empestada onde o seu coração e o seu orgulho suffocavam... Logo depois
da sua fuga recebera do bom Barrôlo uma carta espantada:--«Que têlha foi
essa? Porque não esperaste? Eu, quando voltei á noite da quinta do
Marges, até fiquei com cuidado. E não imaginas como a Gracinha anda
nervosa! Soubemos da partida, por acaso, por um cocheiro do Maciel. Já
hoje comemos os pêcegos, mas não comprehendemos!...»--Gonçalo respondeu
seccamente n'um bilhete:--«Negocios». Depois recordou que deixára na
gaveta do seu quarto o manuscripto da Novella: e mandou um moço da
quinta, de madrugada, com um recado quasi secreto ao Padre Sueiro, «para
que entregasse a pasta ao portador, bem embrulhada, sem contar aos
senhores...» Entre a Torre e os Cunhaes só desejava separação e
silencio.
E nos encerrados dias que passou na Torre (sem se arriscar a
Villa-Clara, no terror de que a vergonha do seu nome já andasse rosnada
pelo estanco do Simões ou pelo armazem do Ramos) não cessou de vibrar
n'uma colera espalhada que a todos varava... Colera contra a irmã que,
calcando pudor, altivez de raça, receio dos escarneos d'Oliveira, tão
facil e estouvadamente como se calcam as flôres desbotadas d'um tapete,
correra ao Mirante, ao macho da bigodeira, apenas elle lhe acenára com o
lenço almiscarado! Colera contra o Barrôlo, o bochechudo bacôco, que
empregava os seus bacôcos dias celebrando o Cavalleiro, arrastando o
Cavalleiro para o Largo d'El-Rei, escolhendo na adega os vinhos mais
finos para que o Cavalleiro aquecesse o sangue, ageitando as almofadas
de todos os camapés para que o Cavalleiro saboreasse estiradamente o seu
charuto e a graça presente de Gracinha! Emfim colera contra si, que,
pela baixa cubiça de uma cadeira em S. Bento, abatera a unica muralha
segura entre a irmã e o homem da marrafa lusente--que era a sua
inimizade, aquella escarpada inimizade, sempre, desde Coimbra, tão
rijamente reforçada e recaiada!... Ah! todos tres horrendamente
culpados!
Depois uma tarde, enfastiado da solidão, ousou um passeio por
Villa-Clara. E reconheceu que na Assembleia, no estanco do Simões, na
loja do Ramos, os amores de Gracinha eram certamente tão ignorados como
se passassem nas profundidades da Tartaria. Immediatamente a sua alma
doce, agora socegada, se abandonou á doçura de tecer desculpas subtis
para todos os culpados d'aquella queda triste... Gracinha, coitada, sem
filhos, com tão mollengo e ensosso marido, alheia a todos os interesses
da intelligencia, indolente mesmo para uma costura ou bordado--cedêra,
que mulher não cederia? á credula e primitiva paixão que lhe brotára na
alma, n'ella se enraizára, lhe déra as suas unicas alegrias do mundo e
(influencia ainda mais poderosa!) lhe arrancára as suas unicas lagrimas!
O Barrôlo, coitado, era o Bacôco--e como o «pilriteiro» da cantiga,
incapaz de mais nobres fructos, só produzia os «pilritos» da sua
Bacoquice. E elle, coitado d'elle, pobre, ignorado, irresistivelmente se
rendera á fatal Lei d'Accrescentamento, que o levára, como a todos leva
na ancia de fama e fortuna, a furar precipitadamente pela porta casual
que se abre, sem reparar na estrumeira que atravanca os humbraes... Ah
realmente todos bem pouco culpados deante de Deus que nos creou tão
variaveis, tão frageis, tão dependentes de forças por nós ainda menos
governadas do que o Vento ou do que o Sol!
Não, irremissivelmente culpado,--só o outro, o malandro da grenha
ondeada! Esse, em toda a sua conducta com Gracinha, desde estudante,
mostrára sempre um egoismo atrevido, só punivel como puniam os antigos
Ramires, com a morte depois dos tormentos, e a carcassa posta aos
corvos. Em quanto lhe agradou, na ociosidade dos longos estios, um
namoro bocolico sob os arvoredos da Torre--namorára. Quando considerou
que uma mulher e filhos lhe atravancariam a vida ligeira--trahira. Logo
que a antiga bem amada pertenceu a outro homem--recomeçára o cerco
languido para colher, sem os encargos da paternidade, as emoções do
sentimento. E apenas esse marido lhe entreabre a sua porta--não se
demora, fende brutamente sobre a preza! Ah como o avô Tructesindo
trataria villão de tal villania! Certamente o assava n'uma rugidora
fogueira deante das barbacans--ou, nas masmoras da Alcaçova, lhe entupia
as guellas falsas com bom chumbo derretido...
Pois elle, neto de Tructesindo, nem sequer podia, quando encontrasse o
Cavalleiro nas ruas d'Oliveira, carregar o chapeu sobre a testa e
passar! A menor diminuição n'essa intimidade tão desastradamente
reatada--seria como a revelação da torpeza ainda abafada nas paredes do
Mirante! Toda Oliveira cochicharia, riria.--«Olha o Fidalgo da Torre!
Mette o Cavalleiro nos Cunhaes com a irmã, e logo, passadas semanas,
rompe de novo com o Cavalleiro! Houve escandalo, e gordo!»--Que delicia
para as Lousadas! Não, ao contrario! agora devia ostentar pelo
Cavalleiro uma fraternidade tão larga e tão ruidosa--que, pela sua
largueza e o seu ruido, inteiramente tapasse e abafasse o sujo enredo
que por traz latejava. Fingimento torturante--e imposto pela honra do
nome! O sujo enredo bem guardado entre os mais densos arvoredos do
jardim, na mais cerrada penumbra do Mirante!--e por fóra, ao sol, nas
praças d'Oliveira elle sempre com o braço carinhosamente enlaçado no
braço do Cavalleiro!
Os dias rolavam--e no espirito de Gonçalo não se estabelecia serenidade.
E sobretudo o amargurava sentir que era forçado a essa intimidade
vistosa com o Cavalleiro--tanto pelo cuidado do seu nome, como pela
conveniencia da sua Eleição. Toda a sua altivez por vezes se
revoltava:--«Que me importa a Eleição! Que valor tem uma encardida
cadeira em S. Bento?...» Mas logo a secca Realidade o emmudecia. A
Eleição era a unica fenda por onde elle lograria escapar do seu buraco
rural; e, se rompesse com o Cavalleiro, esse villão, vezeiro a
villanias, immediatamente, com o appoio da horda intrigante de Lisboa,
improvisaria outro Candidato por Villa-Clara... Desgraçadamente elle era
um d'esses seres vergados que _dependem_. E a triste dependencia d'onde
provinha? Da pobreza--d'essa escassa renda de duas quintas, abastança
para um simples, mas pobreza para elle, com a sua educação, os seus
gostos, os seus deveres de fidalguia, o seu espirito de sociabilidade.
E estes pensamentos lenta e capciosamente o empurraram a outro
pensamento--á D. Anna Lucena, aos seus duzentos contos... Até que uma
manhã encarou corajosamente uma possibilidade perturbadora:--casar com a
D. Anna!--Por que não? Ella claramente lhe mostrára inclinação, quasi
consentimento... Por que não casaria com a D. Anna?
Sim! o pae carniceiro, o irmão assassino... Mas tambem elle, entre
tantos avós até aos Suevos ferozes, descortinaria algum avô carniceiro;
e a occupação dos Ramires, atravez dos seculos heroicos, consistira
realmente em assassinar. De resto o carniceiro e o assassino, ambos
mortos, sombras remotas, pertenciam a uma Lenda que se apagava. D. Anna,
pelo casamento, subira da Populaça para a Burguesia. Elle não a
encontrava no talho do pae, nem no velhacouto do irmão--mas na quinta da
_Feitosa_, já Rica-Dona, com procurador, com capellão, com lacaios, como
uma antiga Ramires. Ah! sinceramente, toda a hesitação era pueril--desde
que esses duzentos contos, de dinheiro muito limpo, de bom dinheiro
rural, os trazia com o seu corpo, mulher tão formosa e séria. Com esse
puro ouro, e o seu nome, e o seu talento, não necessitaria para dominar
na Politica a refalsada mão do Cavalleiro... E depois que vida nobre e
completa! A sua velha Torre restituida ao esplendor sobrio d'outras
eras; uma lavoura de luxo no historico torrão de Treixedo; as viagens
fecundas ás terras que educam!... E a mulher que fornecia estes regalos
não lhes amargava o goso, como em tantos casamentos ricos, com a sua
fealdade, os seus agudos ossos, ou a sua pelle relentada... Não! Depois
do brilho social do dia não o esperava na alcova um mostrengo--mas
Venus.
E assim, lentamente trabalhado por estas tentações, mandou uma tarde um
bilhete á prima Maria, á _Feitosa_, pedindo--«para se encontrarem, sós,
n'algum passeio dos arredores, por que desejava ter com ella uma
_conversasinha_ séria e intima...» Mas tres immensos dias se
arrastaram--e não appareceu a almejada carta da _Feitosa_. Gonçalo
concluiu que a prima Maria, tão esperta, farejando a natureza da
_conversasinha_ e sem uma certeza para o alegrar, retardava, se
recusava. Atravessou então uma desolada semana, remoendo a melancolia
d'uma vida que sentia ôca e toda feita d'incertezas. O orgulho, um pudor
complicado, não lhe consentiam voltar a Oliveira, ao quarto d'onde
implacavelmente avistaria, por sobre o arvoredo, a cupula do Mirante com
o seu gordo Cupido:--e quasi o arrepiava a idéa de beijar a irmã na face
que o outro babujára! Sobre a Eleição descera um silencio de abobada--e
outra repugnancia, mais acerba, lhe vedava escrever ao Cavalleiro. João
Gouveia gozava as suas férias na Costa, de sapatos brancos, apanhando
conchinhas na praia. E Villa-Clara não se tolerava n'esse meado ardente
de Septembro--com o Titó no Alemtejo onde o levára uma doença do velho
Morgado de Cidadelhe, o Manoel Duarte na quinta da mãe dirigindo as
vindimas, e a Assembleia deserta e adormecida sob o innumeravel susurro
das moscas...
* * * * *
Para se occupar e atulhar as horas, mais que por dever ou gosto d'Arte,
retomou a sua Novella. Mas sem fervor, sem veia agil. Agora era a
sanhuda arrancada de Tructesindo e dos seus cavalleiros, correndo sobre
o Bastardo de Bayão. Lance difficultoso--reclamando fragor, um
rebrilhante colorido Medieval. E elle tão molle e tão apagado!...
Felizmente, no seu Poemeto, o Tio Duarte recheára esse violento trecho
de bem apinceladas paisagens, d'interessantes rasgos de guerra.
Logo na Ribeira do Coice, Tructesindo encontrava cortada a machado a
decrepita ponte, cujos rotos barrotes e taboões carcomidos entulhavam no
fundo a corrente escassa. Na sua fuga o Bastardo acautelladamente a
desmantelára para deter a cavalgada vingadora. Então a pesada hoste de
Santa Ireneia avançou pela esguia ourela, ladeando os renques de choupos
em demanda do vau do Espigal... Mas que tardança! Quando as derradeiras
mulas de carga choutaram na terra d'além-ribeira já a tarde se adoçava,
e nas poças d'agua, entre as poldras, o brilho esmorecia, umas ainda
d'ouro pallido, outras apenas rosadas. Immediatamente Dom Garcia Viegas,
o _Sabedor_, aconselhou que a mesnada se dividisse:--a peonagem e a
carga avançando para Montemor, esgueirada e callada, para esquivar
recontros; os senhores de lança e os besteiros de cavallo arrancando em
dura carreira para colher o Bastardo. Todos louvaram o ardil do
_Sabedor_: e a cavalgada, aligeirada das filas tardas de archeiros e
fundibularios, largou, soltas as rédeas, atravez de terras ermas, depois
por entre barrocaes, até aos _Tres-Caminhos_, desolada chan onde se
ergue solitariamente aquelle carvalho velhissimo que outr'ora, antes
d'exorcisado por S. Froalengo, abrigava no sabbado mais negro de
Janeiro, ao clarão d'archotes enxofrados, a Grande Ronda de todas as
bruchas de Portugal. Junto do carvalho Tructesindo sopeou a arrancada:
e, alçado nos estribos, farejava as tres sendas que se trifurcam e se
encovam entre asperos, lobregos cerros de bravio e de tojo. Passára ahi
o Bastardo malvado?... Ah! por certo passára e toda a sua
maldade--porque no respaldo d'uma fraga, junto a tres cabras magras
retouçando o matto, jazia, com os braços abertos, um pobre pastorinho
morto, varado por uma frecha! Para que o triste cabreiro não soprasse
novas da gente de Bayão--uma bruta setta lhe atravessára o peito
escarnado de fome, mal coberto de trapos. Mas por qual das sendas se
embrenhára o malvado? Na terra solta, raspada pelo vento suão que rolava
d'entre-montes, não appareciam pegadas revoltas de tropel fugindo. E, em
tal solidão, nem choça ou palhoça d'onde villão ou velha alapada
espreitassem a levada do bando... Então, ao mando do Alferes Affonso
Gomes, tres almogavres despediram pelos tres caminhos á descoberta--em
quanto os Cavalleiros, sem desmontar, desafivelavam os morriões para
limpar nas faces barbudas o suor que os alagava, ou abeiravam os ginetes
d'um sumido fio d'agua que á orla da chan se arrastava entre ralo
caniçal. Tructesindo não se arredou de sob a ramada do carvalho de S.
Froalengo, immovel sobre o murzello immovel, todo cerrado no ferro da
sua negra armadura, as mãos juntas sobre a sella e o elmo pesadamente
inclinado como em magua e oração. E ao lado, com as colleiras errissadas
de prégos, as sangrentas linguas penduradas, arquejavam, estirados, os
seus dous mastins.
Já no emtanto a espera se alongava, inquieta, enfadonha--quando o
almogavre que mettera pela senda de Nascente reappareceu n'um rolo de
poeira, atirando logo o alarde de longe, com a ascuma alta. A hora
escassa de carreira avistára num cabeço uma hoste acampada, em arraial
seguro, rodeado d'estaca e valla!...
--Que pendão?
--As treze arruellas.
--Deus louvado! gritou Tructesindo, que estremeceu como acordando. É D.
Pedro de Castro, _o Castellão_, que entrou com os Leonezes e vem pelas
senhoras Infantas!
Por esse caminho pois não se atrevera o Bastardo!... Mas já pela senda
de Poente recolhia outro almogavre contando que entre-cerros, n'um
pinhal, topára um bando de bufarinheiros genovezes, retardados desde
alva, por que um d'elles esmorecera com mal de febres. E
então?...--Então, pela borda do pinheiral apenas passára em todo o dia
(no jurar dos genovezes) uma companhia de truões voltando da feira de
Grajelos. Só restava pois o trilho do meio, pedregoso e esbarrancado
como o leito enxuto d'uma torrente. E por elle, a um brado de
Tructesindo, tropeou a cavalgada. Mas já o crepusculo tristissimo
descia--e sempre o caminho se estirava, agreste, soturno, infindavel,
entre os cerros de urze e rocha, sem uma cabana, um muro, uma sebe,
rasto de rez ou homem. Ao longe, mais ao longe, emfim, enchergaram a
campina arida, coberta de solidão e penumbra, dilatada na sua mudez até
a um ceu remoto, onde já se apagava uma derradeira tira de poente côr de
cobre e côr de sangue. Então Tructesindo deteve a abalada, rente
d'espinheiros que se torciam nas lufadas mais rijas do suão:
--Por Deus, senhores, que corremos em pressa vã e sem esperança!... Que
pensaes, Garcia Viegas?
Todo o bando se apinhára: e uma fumarada subia dos ginetes arquejantes
sob as coberturas de malha. O _Sabedor_ estendeu o braço:
--Senhores! O Bastardo, antes de nós, galgou d'escapada essa campina
além, e metteu a Valle-Murtinho para pernoitar na Honra de Agredel, que
é bem afortalezada e parenta de Bayão...
--E nós, pois, D. Garcia?
--Nós, senhores e amigos, só nos resta tambem pernoitar. Voltemos aos
_Tres-Caminhos_. E de lá, em boa avença, ao arraial do Snr. D. Pedro de
Castro, a pedir agasalho... A par de tamanho senhor encontraremos mais
fartamente que nos nossos alforges o que todos, christãos e brutos,
vamos necessitando, cevada, um naco de vianda, e de vinhos tres golpes
rijos...
Todos bradaram com alvoroço:--«Bem traçado! bem traçado!...»--E de novo,
pelo barranco pedregoso, a cavalgada trotou pezadamente para os
_Tres-Caminhos_--onde já dous corvos se encarniçavam sobre o corpo do
pastorinho morto.
Em breve, ao cabo do caminho do Nascente, no cabeço alto, alvejaram as
tendas do arraial, ao clarão das fogueiras que por todo elle fumegavam.
O Adail de Santa Ireneia arrancou da bosina tres sons lentos annunciando
Filho-d'Algo. Logo de dentro da estacada outras businas soaram, claras e
acolhedoras. Então o Adail galopou até ao vallado, a annunciar ás
atalaias postadas nas barreiras, entre luzentes fogos d'almenara, a
mesnada amiga dos Ramires. Tructesindo parára no corrego escuro, que o
pinheiral cerrado mais escurecia movendo e gemendo no vento. Dous
cavalleiros, de sobreveste negra e capuz, logo correram pelo pendor do
outeiro--bradando que o Snr. D. Pedro de Castro esperava o nobre senhor
de Santa Ireneia e muito se prazia para todo seu regalo e serviço!
Silenciosamente Tructesindo desmontou; e com D. Garcia Viegas, e Leonel
de Çamora e Mendo de Briteiros e outros parentes de solar, todos sem
lança ou broquel, descalçados os guantes, galgaram o cabeço até á
estacada, cujas cancellas se escancararam, mostrando na claridade
incerta dos fogareus sombrios magotes de peões--onde, por entre os
bassinetes de ferro, surdiam toucas amarellas de mancebas e gorros
enguisalhados de jograes. Apenas o velho assomou aos barrotes dous
infanções, sacudindo a espada, bradaram:
--Honra! honra! aos Ricos-Homens de Portugal!
As trompas misturavam o clangor rispido aos rufos lassos dos tambores. E
por entre a turba, que calladamente recuára em alas lentas, avançou,
precedido por quatro cavalleiros que erguiam archotes accesos, o velho
D. Pedro de Castro, _o Castellão_, o homem das longas guerras e dos
vastos senhorios. Um corselete d'anta com lavores de prata cinjia o seu
peito já curvado, como consumido por tamanhas fadigas de pelejar e
tamanhas cubiças de reinar. Sem elmo, sem armas, appoiava a mão
cabelluda de rijas veias a um bastão de marfim. E os olhos encovados
faiscavam, com affavel curiosidade, na requeimada magreza da face, de
nariz mais recurvo que o bico d'um falcão, repuxada a um lado por um
fundo gilvaz que se sumia na barba crespa, aguda e quasi branca.
Deante do senhor de Santa Ireneia alargou vagarosamente os braços. E com
um grave riso que mais lhe recurvou, sobre a barba espetada, o nariz de
rapina:
--Viva Deus! Grande é a noite que vos traz, primo e amigo! Que não a
esperava eu de tanta honra, nem sequer de tanto gosto!...
* * * * *
Ao rematar este duro Capitulo, depois de tres manhãs de trabalho,
Gonçalo arrojou a penna com um suspiro de cansaço. Ah! já lhe entrava a
fartura d'essa interminavel Novella, desenrolada como um novello
solto--sem que elle lhe podesse encurtar os fios, tão cerradamente os
emmaranhára no seu denso Poema o Tio Duarte que elle seguia gemendo! E
depois nem o consolava a certeza de construir obra forte. Esses
Tructesindos, esses Bastardos, esses Castros, esses _Sabedores_, eram
realmente varões Affonsinos, de solida substancia historica?... Talvez
apenas oucos titeres, mal engonçados em erradas armaduras, povoando
inveridicos arraiaes e castellos, sem um gesto ou dizer que datassem das
velhas edades!
E ao outro dia não reuniu em todo o seu ser coragem para retomar aquella
sofrega correria dos de Santa Ireneia sobre o bando escapadiço de Bayão.
De resto já remettera tres Capitulos da Novella--já calmára as ancias do
Castanheiro. Mas a ociosidade mais lhe pesou n'essa semana, arrastada
pelos canapés ou por entre os buxos do jardim, fumando e tristemente
sentindo que a Vida lhe fugia em fumo. Para o enervar accrescia um
aborrecimento de dinheiro--uma lettra de seiscentos mil réis, do
derradeiro anno de Coimbra, sempre reformada, sempre avolumada, e que
agora o emprestador, um certo Leite, d'Oliveira, reclamava com dureza. O
seu alfaiate de Lisboa tambem o importunava com uma conta pavorosa,
atulhando duas laudas. Mas sobretudo o desolava a solidão da Torre.
Todos os alegres amigos dispersos pela beira-mar ou nas quintas. A
Eleição encalhada como uma barca no lodo. A irmã de certo com o _outro_
no Mirante. Até a prima Maria desattendendo ingratamente o seu timido
pedido d'uma «conversasinha.» E elle no seu quente casarão, sem energia,
immobilisado n'uma inercia crescente, como se cordas o travassem, cada
dia mais apertadas--e d'homem se volvesse em fardo.
Uma tarde no seu quarto, vagaroso e sombrio, sem mesmo parolar com o
Bento, acabava de se vestir para montar a cavallo, espairecer n'um
galope pelos caminhos de Valverde--quando o pequeno da Crispola (já
estabelecido na Torre como pagem, de fardeta de botões amarellos) bateu
esbaforidamente á porta.--Era uma senhora que parára ao portão, dentro
d'uma carruagem, pedia ao Fidalgo para descer...
--Não disse o nome?
--Não, senhor. É uma senhora magra, puxada a dous cavallos, com redes...
A prima Maria! Com que alvoroço correu, agarrando no cabide do corredor
um velho chapeu de palha! E em baixo foi como se contemplasse a Deusa da
Fortuna na sua roda ligeira.
--Oh prima Maria, que surpreza!... Que felicidade!
Debruçada da portinhola da carruagem (a caleche azul da _Feitosa_), D.
Maria Mendonça, com um chapeu novo enramalhetado de lilazes, desculpou
atrapalhadamente e rindo o seu silencio. Recebera a carta do primo muito
atrasada... Sempre o fatal carteiro, tropego e bebedo... Depois uns dias
muito atarefados em Oliveira com a Annica, que preparava para o inverno
a casa da rua das Vellas.
--E finalmente, como devia uma visita em Villa-Clara á pobre Venancia
Rios, que tem estado doente, achei mais simples e mais completo parar na
Torre... E então?
Gonçalo sorria, embaraçado:
--Então, nada de grave, mas... É que desejava conversar comsigo... Por
que não entra?
Abrira a portinhola. Ella preferia passear na estrada. E ambos
s'encaminharam para o velho banco de pedra que os alamos abrigavam em
frente ao portão da Torre. Gonçalo sacudiu com o lenço a ponta do banco.
--Pois, prima Maria, eu desejava conversar... Mas é difficil, tão
difficil!... Talvez o melhor seja atacar a questão brutalmente.
--Ataque.
--Então lá vae!... A prima acha que eu perco o meu tempo se me dedicar á
sua amiga D. Anna?
Pousada de leve á borda do banco, enrolando attentamente a seda preta do
guardasolinho, Maria Mendonça tardou, murmurou:
--Não, acho que o primo não perde o seu tempo...
--Ah! acha?
Ella considerava Gonçalo, gozando a sua perturbação e anciedade.
--Jesus, prima!... Diga alguma cousa mais!
--Mas que quer que lhe diga mais? Já lhe declarei em Oliveira. Ainda sou
muito nova para andar com recadinhos de sentimento. Mas acho que a
Annica é bonita, é rica, é viuva...
Gonçalo arrancou do banco, erguendo os braços, em desolação. E, como D.
Maria tambem se erguera, ambos seguiram pela tira de relva que orla os
alamos. Elle quasi gemia, desconsolado:
--Ora bonita, viuva, rica... Para conhecer esses grandes segredos não a
incommodava eu, prima!... Que diabo! seja boa rapariga, seja franca! A
prima sabe, de certo já ambas conversaram... Seja franca. Ella tem por
mim alguma sympathia?
D. Maria parou, murmurou, riscando com a ponta do guardasolinho o trilho
amarellado da relva:
--Pois está claro que tem...
--Bravo! Então, se d'aqui a um tempo, passados estes primeiros mezes de
luto, eu me declarasse, me...
Ella dardejou a Gonçalo os espertos olhos:
--Santo Deus, como o primo por ahi vae, a galope... Então é uma paixão?
Gonçalo tirou o seu velho chapeu de palha, passou lentamente os dedos
pelos cabellos. E n'um immenso e triste desabafo:
--Olhe, prima! É sobretudo a necessidade de me accommodar na vida! Pois
não lhe parece?
--Tanto me parece que lhe indiquei o bom poizo... E agora adeus, passa
das cinco horas. Não me quero demorar por causa dos creados.
Gonçalo protestou, supplicou:
--Mais um bocadinho!... É tão cedo! Só outra cousa, com franqueza. Ella
é boa rapariga?
D. Maria voltára, ao cabo do renque d'alamos, recolhendo á caleche:
--Uma pontinha de genio, para animar a existencia. Mas muito boa
rapariga... E uma dona de casa admiravel! O primo não imagina como anda
a _Feitosa_. A ordem, o acceio, a regularidade, a disciplina... Ella
olha por tudo, até pela adega, até pela cocheira!
Gonçalo esfregou radiantemente as mãos:
--Pois se d'aqui a um anno se realisar o grande acontecimento hei de
gritar por toda a parte que foi a prima Maria que salvou a casa de
Ramires!
--Por isso eu trabalho, para servir o brazão e o nome! exclamou ella,
saltando ligeiramente para a caleche, como se fugisse, arremessada
aquella clara confissão.
O trintanario trepára á almofada. E em quanto os cavallos folgados
largavam, aos corcovos, D. Maria ainda gritou:
--Sabe quem encontrei em Villa Clara? O Titó!
--O Titó?...
--Chegou do Alemtejo, vem jantar comsigo. Eu não o trouxe na carruagem
por decencia, para o não comprometter...
E a caleche rolou--entre os risos e os doces acenos com que ambos se
afagavam, n'aquella nova concordancia mais calorosa d'uma conspiração
sentimental.
Gonçalo largou logo alegremente para Villa-Clara, ao encontro do Titó. E
já o alvoroçava a idéa de colher do Titó, intimo da _Feitosa_,
informações sobre a D. Anna, o seu genio, os seus modos. A prima Maria,
por amor dos Ramires (sobretudo, coitada, para proveito dos Mendonças!),
idealisava a noiva. Mas o Titó, o homem mais veridico do Reino, amando a
Verdade com a antiga devoção de Epaminondas, apresentaria D. Anna sem um
enfeite nem um desenfeite. E o Titó... Ah! sob o seu vozeirão troante, a
sua indolencia bovina, o Titó possuia um espirito muito attento, muito
penetrante.
Logo á Portella os dous amigos s'encontraram. E, apesar de separação tão
curta, o abraço foi estrondoso.
--Oh sô Gonçalão!...
--Oh Titósinho querido! tens feito cá uma falta enorme!... E teu irmão?
O mano melhor, mas arrasado. Muito cartapacio e muito fêmea para velho
de sessenta annos. E elle lá o avisára:--«Mano João, mano João! olhe que
assim sempre agarrado aos papeis velhos e ás cachopas novas, o mano
rebenta!»
--E por cá? Essa eleição?
--A eleição agora para outubro, nos começos d'outubro... De resto,
semsaboria universal. Gouveia na Costa, Manoel Duarte na vindima... Eu
seccadote, murchote, sem veia, até sem appetite.
--Olha que eu venho jantar e convidei o Videirinha.
--Bem sei, já me disse a prima Maria, que parou um bocado na Torre...
Ella está na _Feitosa_ com a D. Anna.
Durante um momento repisou sobre a intimidade da prima Maria na
_Feitosa_, com a tentação de desabafar, logo alli na estrada, sobre o
inesperado romance que desabrochára. Mas não ousou! Era um angustiado
acanhamento, como a vergonha de cubiçar assim todos os restos do pobre
Lucena--o Circulo e a viuva.
Então, conversando do Alemtejo e do mano João (que contára muitas
antigualhas massadoras sobre a genealogia dos Ramires), desceram da
Portella á Torre, com tenção de estirar o passeio até aos Bravaes. Mas,
na Torre, Gonçalo desejou avisar a Rosa dos dous convivas inesperados,
senhores de tão poderoso garfo. Entraram pela porta do pomar onde um fio
lento d'agoa s'atardava nos regueiros. Aos brados galhofeiros do Fidalgo
a Rosa accudio, limpando as mãos ao avental. O que! dous convidados!
Mesmo quatro, e mais valentes, que graças a Deus nosso Senhor o
jantarinho sobrava! Ainda de tarde comprára a uma mulher da Costa um
cesto de sardinhas, graudas e gordas que regalavam!... O Titó reclamou
logo uma fritada tremenda de sardinha e ovos. E os dois amigos
atravessavam o pateo--quando Gonçalo reparou no Bento, escarranchado no
banco da latada, deante d'uma tigella, e areando com enthusiasmo um
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