A Relíquia - 14

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--Sêde bem vindos, rosnou Gamaliel. Grandes são as maravilhas de Sião,
deveis vir esfomeados...
Bateu de leve as palmas. Os escravos, caminhando sem ruido nas sandalias
de feltro, e precedidos majestosamente pelo homem obeso de tunica
amarella, entraram, erguendo muito alto largos pratos de cobre que
fumegavam.
A um lado tinhamos, para limpar os dedos, um bôlo de farinha branco,
fino e molle como um pano de linho; do outro um prato largo, com
cercadura de perolas, onde negrejava entre ramos de salsa um montão de
cigarras fritas; no chão jarros com agua de rosa. Cumprimos as abluções:
e Gamaliel, tendo purificado a bocca com um pedaço de gêlo, murmurou a
oração ritual sobre a vasta travessa de prata, onde o cabrito assado
fazia transbordar o môlho d'açafrão e saumura.
Topsius, bom sabedor das maneiras orientaes, arrotou fortemente, por
cortezia, demonstrando fartura e deleite: depois, com uma febra de anho
entre os dedos, affirmou sorrindo aos Doutores que Jerusalem lhe
parecera magnifica, formosa de claridade, e bemdita entre as cidades...
Eliezer de Silo acudiu, com os olhos cerrados de gozo, como se o
acariciassem:
--Ella é uma joia melhor que o diamante, e o Senhor engastou-a no centro
da Terra para que irradiasse igualmente o seu brilho em redor...
--No centro da Terra!... murmurou o Historiador, com douto espanto.
Sim! E, ensopando um pedaço de bôlo no môlho d'açafrão, o profundo
Physico explicou a Terra. Ella é chata e mais redonda que um disco; no
meio está Jerusalem a santa, como um coração cheio do amor do Altissimo;
em redor a Judêa, rica em balsamos e palmeiras, cerca-a de sombra e de
aromas; para além ficam os pagãos, em regiões duras onde nem o mel nem o
leite abundam; depois são os mares tenebrosos... E por cima o céo,
sonoro e solido.
--Solido!... balbuciou o meu sapiente amigo, esgazeado.
Os escravos serviam em taças de prata cerveja amarella da Media. Com
solicitude Gamaliel aconselhou-me que, para lhe avivar o sabôr,
trincasse uma cigarra frita. E Rabbi Eliezer, sabio entre todos nas
coisas da Natureza, revelava a Topsius a divina construcção do céo.
Elle é feito de sete duras, maravilhosas, rutilantes camadas de crystal;
por cima d'ellas constantemente rolam as grandes aguas; sobre as aguas
fluctua n'um fulgôr o espirito de Jehovah... Estas laminas de crystal,
furadas como um crivo, resvalam umas sobre as outras com uma musica dôce
e lenta que os prophetas mais queridos por vezes ouviam... Elle mesmo,
uma noite que orava no eirado da sua casa em Silo, sentira por um raro
favor do Altissimo essa harmonia, tão penetrante e suave que as lagrimas
uma a uma lhe cahiam nas mãos abertas... Ora nos mezes de Kisleu e de
Tebeth os furos das laminas coincidem, e por elles cahem sobre a Terra
as gotas das aguas eternas que fazem crescer as searas!
--A chuva? perguntou Topsius, com acatamento.
--A chuva! respondeu Eliezer, com serenidade.
Topsius, mordendo um sorriso, ergueu para Gamaliel os seus oculos d'ouro
que faiscavam de sabia ironia: mas o piedoso filho de Simeon conservava
sobre a face, emmagrecida no estudo da Lei, uma seriedade impenetravel.
Então o Historiador, remexendo as azeitonas, desejou saber do
esclarecido Physico por que tinham os crystaes do céo essa côr azul que
enleva a alma...
Eliezer de Silo elucidou-o:
--Uma grande montanha azul, invisivel até hoje aos homens, ergue-se a
occidente: ora, quando o sol a bate, a sua reverberação banha o crystal
do céo e anila-o.
É talvez n'essa montanha que vivem as almas dos justos!...
Gamaliel tossiu brandamente e murmurou: «Bebamos, louvando o Senhor!».
Ergueu uma taça cheia de vinho de Sichem, pronunciou sobre ella uma
benção--passou-m'a, chamando a paz sobre o meu coração. Eu rosnei: «Á
sua, muitos e felizes!» E Topsius, recebendo a taça com veneração,
bebeu--«á prosperidade d'Israel, á sua força, ao seu saber!»
Depois os servos, precedidos pelo homem obeso de tunica amarella, que
fazia resoar sobre as lages com pompa a sua vara de marfim, trouxeram a
mais devota comida paschal--as hervas amargas.
Era uma travessa repleta de alface, agriões, chicorea, macella, com
vinagre e grossas pedras de sal. Gamaliel mastigava-as solemnemente,
como cumprindo um rito. Ellas representavam as amarguras de Israel no
captiveiro do Egypto. E Eliezer, chupando os dedos, declarou-as
deliciosas, fortificadoras e repassadas de alta lição espiritual.
Mas Topsius lembrou, fundado nos auctores gregos, que todos os legumes
amollecem no homem a virilidade, lhe descoram a eloquencia, lhe enervam
o heroismo: e com torrencial erudição citou logo Theophrasto, Eubulo,
Nicandro na segunda parte do seu _Diccionario_, Phenias no seu _Tratado
das Plantas_, Dephilo e Epicharmo!...
Gamaliel, seccamente, condemnou a inanidade d'essa sciencia--porque
Hecateus de Mileto, só no primeiro livro da sua _Descripção da Asia_,
encerra cincoenta e tres erros, quatorze blasphemias e cento e nove
omissões... Assim dizia o leviano grego que a tamara, maravilhoso dom do
Altissimo, enfraquece o intellecto!...
--Mas, exclamou Topsius com ardor, a mesma doutrina estabelece
Xenophonte no livro segundo do _Anabasis_! E Xenophonte...
Gamaliel rejeitou a auctoridade de Xenophonte. Então Topsius, vermelho,
batendo com uma colhér de ouro na borda da mesa, exaltou a eloquencia de
Xenophonte, a forte nobreza do seu sentimento, a sua terna reverencia
por Socrates!... E emquanto eu partia um empadão de Commagenia, os dois
facundos doutores, asperamente, romperam debatendo Socrates. Gamaliel
affirmava que as _vozes secretas_ ouvidas por Socrates, e que tão divina
e puramente o governavam, eram murmurios distantes que lhe chegavam da
Judêa, repercussões miraculosas da voz do Senhor... Topsius pulava,
encolhia os hombros, com desesperado sarcasmo. Socrates inspirado por
Jehovah! Ora lérias!
No emtanto era certo (insistia Gamaliel, já livido) que os gentilicos
iam emergindo da sua treva, attrahidos pela luz forte e pura que
derramava Jerusalem:--porque a reverencia pelos Deuses apparecia em
Eschylo profunda e cheia de terror; em Sophocles, amavel e cheia de
serenidade; em Euripides, superficial e cheia de duvida... E cada um dos
Tragicos dava assim, largamente, um passo para o Deus verdadeiro!
--Oh Gamaliel, filho de Simeon, murmurou Eliezer de Silo, tu, que
possues a verdade, para que dás accesso no teu espirito aos pagãos?
Gamaliel respondeu:
--Para os desprezar melhor dentro em mim!
Farto de tão classica controversia, acheguei a Eliezer um covilhete de
mel do Hebron--e contei-lhe quanto me agradára o caminho do Gareb entre
jardins. Elle concordou que Jerusalem, cercada de vergeis, era dôce á
vista como a fronte da noiva toucada d'anemonas. Depois estranhou que eu
escolhesse, para me recrear, esses arredores de Gihon, cheios
d'açougues, junto ao môrro escalvado onde se erguem as cruzes. Mais
suave me teria sido a fragrancia de Siloeh...
--Fui vêr Jesus, atalhei severamente. Fui vêr Jesus, crucificado esta
tarde por mandado do Sanhedrin...
Eliezer, com oriental cortezia, bateu no peito demonstrando mágua. E
quiz saber se pertencia ao meu sangue, ou partilhára commigo o pão de
alliança, esse Jesus que eu fôra assistir na sua morte d'escravo.
Eu considerei-o, assombrado:
--É o Messias!
E elle considerou-me mais assombrado ainda, com um fio de mel a
escorrer-lhe na barba.
Oh raridade! Eliezer, doutor do Templo, Physico do Sanhedrin, não
conhecia Jesus de Galilêa! Atarefado com os enfermos que pela Paschoa
atulham Jerusalem (confessou elle) não fôra ao Xistus, nem á loja do
perfumista Cleos, nem aos eirados de Hannan, onde as novas voam mais
numerosas que as pombas: por isso nada ouvira da apparição d'um
Messias...
De resto, acrescentou, não podia ser o Messias! Esse deveria chamar-se
_Manahem_ «o consolador», porque traria a consolação a Israel. E haveria
dois Messias: o primeiro, da tribu de José, seria vencido por Gog; o
segundo, filho de David e cheio de força, venceria Magog. Antes d'elle
nascer começariam sete annos de maravilhas: haveria mares evaporados,
estrellas despregadas do céo, fomes e taes farturas que até as rochas
dariam fructo: no ultimo anno correria sangue entre as nações: emfim
resoaria uma voz portentosa: e, sobre o Hebron, com uma espada de fogo,
surgiria o Messias!...
Dizia estas coisas peregrinas fendendo a casca d'um figo. Depois com um
suspiro:
--Ora ainda nenhuma d'essas maravilhas, meu filho, annunciou a
consolação!...
E atolou os dentes no figo.
Então fui eu, Theodorico, Ibero, d'um remoto municipio romano, que
contei a um Physico de Jerusalem, creado entre os marmores do Templo, a
vida do Senhor! Disse as coisas dôces e as coisas fortes: as tres claras
estrellas sobre o seu berço; a sua palavra amansando as aguas de
Galilêa; o coração dos simples palpitando por elle; o Reino do Céo que
promettia; e a sua face augusta brilhando diante do Pretor de Roma...
--Depois os Padres, os Patricios e os Ricos crucificaram-no!
Doutor Eliezer, volvendo a remexer o açafate de figos, murmurou
pensativamente:
--Triste, triste!... Todavia, meu filho, o Sanhedrin é misericordioso.
Em sete annos, desde que o sirvo, apenas tem lançado tres sentenças de
morte... Sim, decerto o mundo necessita bem escutar uma palavra de amor
e de justiça: mas Israel tem soffrido tanto com innovadores, com
prophetas!... Emfim, nunca se deveria derramar o sangue do homem... E a
verdade é que estes figos de Bephtagé não valem os meus de Silo!
Calado, enrolei um cigarro. E n'esse instante o douto Topsius, debatendo
ainda com Gamaliel o Hellenismo e as escólas Socraticas, empinado,
d'oculos na ponta do bico, soltava este resumo forte:
--Socrates é a semente; Platão a flôr; Aristoteles o fructo... E d'esta
arvore, assim completa, se tem nutrido o espirito humano!
Mas Gamaliel subitamente ergueu-se: Doutor Eliezer tambem, arrotando com
effusão. Ambos tomaram os cajados, ambos gritaram:
--Alleluia! Louvai o Senhor que nos tirou da terra do Egypto!
Findára a ceia Paschal. O esclarecido Historiador, que limpava o suor da
controversia, olhou logo vivamente o relogio e rogou a Gamaliel
permissão de subir ao terraço, a refrescar a sua emoção no ar macio
d'Ophel... O Doutor da Lei conduziu-nos á varanda alumiada pallidamente
por lampadas de mica, mostrou-nos a ingreme escada de ebano que levava
aos eirados; e chamando sobre nós a graça do Senhor, penetrou com
Eliezer n'um aposento cerrado por cortinas de Mesopotamia--d'onde sahiu
um aroma, um fino rumor de risos e sons lentos de lyra.
Que dôce ar no terraço! E que alegre essa noite de Paschoa em Jerusalem!
No céo, mudo e fechado como um palacio onde ha luto, nenhum astro
brilhava: mas o burgo de David e a collina d'Acra, com as suas
illuminações rituaes, pareciam salpicadas d'ouro. Em cada eirado, vasos
com estopa ardendo em oleo lançavam uma chamma ondeante e vermelha. Aqui
e além, n'alguma casa mais alta os fios de luzes, na parede escura,
reluziam como um collar de joias no pescoço d'uma negra. O ar estava
dôcemente cortado dos gemidos de flauta, da dolente vibração das cordas
do konnor: e em ruas alumiadas por grandes fogueiras de lenha, viamos
esvoaçar, claras e curtas, as tunicas de gregos dançando a _callabida_.
Só as torres, mais vastas na noite, a Hippica, a Marianna, a Pharsala se
conservavam escuras: e o mugido das suas bozinas passava por vezes,
rouco e rude, como uma ameaça, sobre a santa cidade em festa.
Mas para além das muralhas recomeçava a alegria da noite paschal. Havia
luzes em Siloeh. Nos acampamentos, sobre o monte das Oliveiras, ardiam
fogos claros: e como as portas ficavam abertas, filas de tochas
fumegavam pelos caminhos, por entre um rumor de cantares.
Só uma collina, além do Gareb, permanecera em treva. N'essa hora, por
baixo d'ella, n'uma ravina entre rochas, alvejavam dois corpos
despedaçados, onde os bicos dos abutres com um ruido secco de ferros
entrechocados faziam a sua ceia Paschal. Ao menos outro corpo, precioso
envolucro d'um espirito perfeito, jazia resguardado n'um tumulo novo,
envolto em linho fino, ungido, perfumado de canella e de nardo. Assim o
tinham deixado n'essa noite, a mais santa d'Israel, aquelles que o
amavam--e que desde então para todo o sempre mais entranhadamente o
amariam... Assim o tinham deixado com uma pedra lisa por cima: e agora
entre as casas de Jerusalem, cheias de luzes e cheias de cantos--alguma
havia, escura e fechada, onde corriam lagrimas sem consolação. Ahi o lar
esfriára, apagado: a lampada triste esmorecia sobre o alqueire: na bilha
não havia agua, porque ninguem fôra á fonte; e sentadas na esteira, com
os cabellos cahidos, aquellas que o tinham seguido de Galilêa fallavam
d'elle, das primeiras esperanças, das parabolas contadas por entre os
trigaes, dos tempos suaves á beira do lago...
Assim eu pensava, debruçado sobre o muro, olhando Jerusalem--quando no
terraço surgiu, sem rumor, uma fórma envolta em linhos brancos,
espalhando um aroma de canella e de nardo. Pareceu-me que d'ella
irradiava um clarão, que os seus pés não pisavam as lages--e o meu
coração tremeu! Mas d'entre os pallidos panos uma benção sahiu, grave e
familiar:
--Que a paz seja comvosco!
Ah! que allivio! Era Gad.
--Que a paz seja comtigo!
O Essenio parou diante de nós, calado; e eu sentia os seus olhos
procurarem o fundo da minha alma, para lhe sondar bem a grandeza e a
força. Por fim murmurou, immovel como uma imagem tumular nas suas
grandes vestes brancas:
--A lua vai nascer... Todas as coisas esperadas se estão cumprindo...
Agora, dizei! Sentis o coração forte para acompanhar Jesus, e guardal-o
até ao oasis d'Engaddi?
Ergui-me, atirando os braços ao ar, n'um terror!... Acompanhar o Rabbi!
Elle não jazia pois morto, ligado e perfumado, sob uma pedra, n'uma
horta do Qareb?... Vivia! Ao nascer da lua, entre os seus amigos, ia
partir para Engaddi! Agarrei anciosamente o hombro de Topsius,
amparando-me ao seu saber forte e á sua auctoridade...
O meu douto amigo parecia enleado n'uma pesada incerteza:
--Sim, talvez... O nosso coração é forte, mas... Além d'isso não temos
armas!
--Vinde commigo! acudiu Gad, ardentemente. Passaremos por casa d'alguem
que nos dirá as coisas que convém saber, e que vos dará armas!...
Ainda trémulo, sem me desamparar do sapiente Historiador, ousei
balbuciar:
--E Jesus?... Onde está?
--Em casa de José de Ramatha, segredou o Essenio espreitando em roda
como o avaro que falla d'um thesouro. Para que nada suspeitasse a gente
do Templo, mesmo na presença d'elles depositámos o Rabbi no tumulo novo
que está no horto de José. Tres vezes as mulheres choraram sobre a pedra
que segundo os ritos, como sabeis, não fechava inteiramente o tumulo,
deixando uma larga fenda por onde se via o rosto do Rabbi. Alguns
serventes do Templo olharam, e disseram: «Está bem.» Cada um recolheu á
sua morada... Eu entrei pela porta de Genath, nada mais vi. Mas, apenas
anoitecesse, José e outro, fiel inteiramente, deviam ir buscar o corpo
de Jesus, e com as receitas que vem no livro de Salomão fazel-o reviver
do desmaio em que o deixou o vinho narcotisado e o soffrimento... Vinde
pois, vós que o amaes tambem e crêdes n'elle!...
Impressionado, decidido, Topsius traçou a sua farta capa: e descemos,
n'um cauto silencio, pela escada que do terraço levava um caminho de
pedra miuda collado á muralha nova d'Herodes.
Longo tempo marchámos na escuridão, guiados pelas roupagens brancas do
Essenio. D'entre casebres em ruinas, por vezes um cão saltava uivando.
Sobre as altas ameias passavam mortiças lanternas de ronda. Depois uma
sombra que tossia ergueu-se de sob uma arvore, triste e molle como se
sahisse da sua sepultura; e roçando o meu braço, puxando a capa de
Topsius, rogava-nos através de gemidos e baforadas d'alho que fôssemos
dormir ao seu leito que ella perfumára de nardo.
Parámos finalmente diante d'um muro, a que uma esteira grossa d'esparto
cerrava a entrada. Um corredor que ressumbrava agua levou-nos a um pateo
rodeado por uma varanda, assente sobre rudes vigas de madeira: o chão
molle como lodo abafava o rumor das nossas solas.
Gad, tres vezes espaçadas, soltou o grito dos chacaes. Nós esperavamos
no meio do pateo, á borda d'um poço, coberto com tábuas: o céo, por
cima, guardava a escuridão dura e impenetravel d'um bronze. A um canto,
emfim, sob a varanda, um clarão vivo de lampada surgiu--alumiando a
barba negra do homem que a trazia e que lançára sobre a cabeça a ponta
d'um albornoz pardo de galileu. Mas a luz morreu sob um sôpro forte. E o
homem, lentamente, na treva, caminhou para nós.
Gad cortou a desolada mudez:
--Que a paz seja comtigo, irmão! Estamos promptos.
O homem pousou devagar a lampada sobre a tampa do poço, e disse:
--Tudo está consummado.
Gad, estremecendo, gritou:
--O Rabbi?
O homem atirou a mão para abafar o grito do Essenio. Depois, tendo
sondado a sombra em redor com olhos inquietos que reluziam como os d'um
animal do deserto:
--São coisas mais altas do que podemos entender. Tudo parecia certo. O
vinho narcotisado fôra bem preparado pela mulher de Rosmophim, que é
habil e conhece os simples... Eu tinha fallado ao Centurião, um camarada
a quem salvei a vida na Germania, na campanha de Publius. E, quando
rolámos a pedra sobre o tumulo de José de Ramatha, o corpo do Rabbi
estava quente!
Mas calou-se: e, como se o pateo fechado sob o céo negro não fosse
bastante secreto e seguro, tocou no hombro de Gad, e sem um rumor dos
pés nús recolheu á escuridão mais densa sob a varanda, até ás pedras do
muro. Nós, rente a elle e mudos, tremiamos de anciedade:--e eu senti que
uma revelação ia passar, suprema e prodigiosa, alumiando os Mysterios.
--Ao anoitecer, segredou o homem por fim com um murmurio triste d'agua
correndo na sombra, voltámos ao tumulo. Olhámos pela fenda: a face do
Rabbi estava serena e cheia de magestade. Levantámos a pedra, tirámos o
corpo. Parecia adormecido, tão bello, como divino, nos panos que o
envolviam... José tinha uma lanterna: e levámol-o pelo Gareb, correndo
através do arvoredo. Ao pé da fonte encontrámos uma ronda da Cohorte
auxiliar. Dissemos: «é um homem de Joppé que adoeceu, e que nós levamos
á sua synagoga.» A ronda disse: «passai». Em casa de José estava Simeon
o Essenio, que viveu em Alexandria e sabe a natureza das plantas: e tudo
fôra preparado, até a raiz do baraz... Estendemos Jesus na esteira.
Démos-lhe a beber os cordiaes, chamámol-o, esperámos, orámos... Mas ai!
sentiamos, sob as nossas mãos, arrefecer-lhe o corpo!... Um instante
abriu lentamente os olhos, uma palavra sahiu-lhe dos labios. Era vaga,
não a comprehendemos... Parecia que invocava seu pai, e que se queixava
de um abandono... Depois estremeceu: um pouco de sangue appareceu-lhe ao
canto da bocca... E, com a cabeça sobre o peito de Nicodemus, o Rabbi
ficou morto!
Gad cahiu pesadamente de joelhos, soluçando: e o homem, como se todas as
coisas tivessem sido ditas, deu um passo para buscar a sua lampada ao
poço. Topsius deteve-o, com avidez:
--Escuta! Preciso toda a verdade. Que fizestes depois?
O homem parou junto a um dos pilares de madeira. Depois, alargando os
braços na escuridão, e tão perto das nossas faces que eu sentia o seu
bafo quente:
--Era necessario, para bem da terra, que se cumprissem as prophecias!
Durante duas horas José de Ramatha orou, prostrado. Não sei se o Senhor
lhe fallou em segredo; mas, quando se ergueu, resplandecia todo e
gritou: «Elias veio! Elias veio! Os tempos chegaram!» Depois, por sua
ordem, enterrámos o Rabbi n'uma caverna que elle tem, talhada na rocha,
por traz do moinho...
Atravessou o pateo, tomou a sua lampada. E recolhia lentamente, sem um
rumor, quando Gad, erguendo a face, o chamou através dos seus soluços:
--Escuta ainda! Grande é o Senhor, na verdade!... E o outro tumulo, onde
as mulheres de Galilêa o deixaram, ligado e envolto em panos, com aloes
e com nardo?
O homem, sem parar, murmurou, já sumido na treva:
--Lá ficou aberto, lá ficou vazio!...
Então Topsius arrastou-me pelo braço tão arrebatadamente que
tropeçavamos no escuro contra os pilares da varanda. Uma porta ao fundo
abriu-se, com um brusco estrondo de ferros cahidos... E vi uma praça,
rodeada de pallidos arcos, triste e fria, com herva entre as fendas das
lages dessoldadas, como n'uma cidade abandonada. Topsius estacou, os
seus oculos faiscavam:
--Theodorico, a noite termina, vamos partir de Jerusalem!... A nossa
jornada ao Passado acabou... A lenda inicial do christianismo está
feita, vai findar o mundo antigo!
Eu considerei, assombrado e arripiado, o douto Historiador. Os seus
cabellos ondeavam agitados por um vento de inspiração. E o que levemente
sahia dos seus finos labios retumbava, terrivel e enorme, cahindo sobre
o meu coração:
--Depois d'ámanhã, quando acabar o Sabbath, as mulheres de Galilêa
voltarão ao sepulchro de José de Ramatha onde deixaram Jesus
sepultado... E encontram-no aberto, encontram-no vazio!...
«Desappareceu, não está aqui!...» Então Maria de Magdala, crente e
apaixonada, irá gritar por Jerusalém--«_resuscitou, resuscitou_!» E
assim o amor d'uma mulher muda a face do mundo, e dá uma religião mais á
humanidade!
E, atirando os braços ao ar, correu através da praça--onde os pilares de
marmore começavam a tombar, sem ruido e mollemente. Arquejando, parámos
no portão de Gamaliel. Um escravo, tendo ainda nos pulsos pedaços de
cadêas partidas, segurava os nossos cavallos. Montámos. Com um fragor de
pedras levadas n'uma torrente, varámos a Porta d'Ouro: e galopámos para
Jerichó, pela estrada romana de Sichem, tão vertiginosamente que não
sentiamos as ferraduras ferir as lages negras de basalto. Adiante, a
capa branca de Topsius torcia-se açoutada por uma rajada furiosa. Os
montes corriam aos lados, como fardos sobre dorsos de camêlos na
debandada d'um povo. As ventas da minha egoa dardejavam jactos de fumo
avermelhado:--e eu agarrava-me ás clinas, tonto, como se rolasse entre
nuvens...
De repente avistámos, alargada, cavada até ás serras de Moab, a planicie
de Canaan. O nosso acampamento alvejava junto ás bragas dormentes da
fogueira. Os cavallos estacaram, tremendo. Corremos ás tendas: sobre a
mesa, a vela que Topsius accendera para se vestir, havia mil e
oitocentos annos, morria n'um fogacho livido... E derreado da infinita
jornada atirei-me para o catre, sem mesmo descalçar as botas brancas de
pó...
Immediatamente me pareceu que uma tocha fumegante penetrára na tenda,
esparzindo um brilho d'ouro... Ergui-me, assustado. N'um largo raio de
sol, vindo dos montes de Moab, o jocundo Potte entrava, em mangas de
camisa, com as minhas botas na mão!
Arrojei a manta, arredei os cabellos, para verificar melhor a mudança
terrivel que desde a vespera se fizera no Universo! Sobre a mesa jaziam
as garrafas do _champagne_ com que brindaramos á Sciencia e á Religião.
O embrulho da Corôa d'Espinhos pousava á minha cabeceira. Topsius, no
seu catre, em camisola e com um lenço amarrado na testa, bocejava, pondo
os oculos de ouro no bico. E o risonho Potte, censurando a nossa
preguiça, queria saber se appeteciamos n'essa manhã--«tapioca ou café».
Deixei sahir deliciosamente do peito um ruidoso, consolado suspiro. E no
jubilo triumphal de me sentir reentrado na minha individualidade e no
meu seculo pulei sobre o colxão, com a fralda ao vento, bradei:
--Tapioca, meu Potte! Uma tapioca bem docinha e mollesinha, que saiba
bem ao meu Portugal!...


IV

Ao outro dia, que fôra um radioso domingo, levantámos de Jerichó as
nossas tendas; e caminhando com o sol para occidente; pelo valle de
Cherith, começámos a romagem de Galilêa.
Mas ou fosse que a consoladora fonte da admiração houvesse seccado
dentro em mim, ou que a minha alma, arrebatada um momento aos cimos da
Historia e batida ahi por asperas rajadas de emoção, não se pudesse já
aprazer n'estes quietos e êrmos caminhos da Syria--senti sempre
indifferença e cansaço, do paiz de Ephraim ao paiz de Zebelon.
Quando n'essa noite acampámos em Bethel, vinha a lua cheia sahindo por
traz dos montes negros de Gilead... O festivo Potte mostrou-me logo o
chão sagrado em que Jacob, pastor de Bersabé, tendo adormecido sobre uma
rocha, vira uma escada que faiscava, fincada a seus pés e arrimada ás
estrellas, por onde ascendiam e baixavam, entre terra e céo, anjos
calados, com as azas fechadas... Eu bocejei formidavelmente e
rosnei:--«Tem seu chic!...»
E assim rosnando e bocejando, atravessei a terra dos prodigios. A graça
dos valles foi-me tão fastidiosa como a santidade das ruinas. No poço de
Jacob, sentado nas mesmas pedras em que Jesus, cansado como eu da calma
d'estas estradas e como eu bebendo do cantaro d'uma Samaritana, ensinára
a nova e pura maneira de adorar; nas encostas do Carmello, n'uma cella
de mosteiro, ouvindo de noite ramalhar os cedros que abrigaram Elias, e
gemerem em baixo as ondas, vassallas de Hyram rei de Tyro; galopando com
o albornoz ao vento pela planicie de Esdrelon; remando dôcemente no lago
de Grenesareth, coberto de silencio e de luz--sempre o Tedio marchou a
meu lado como companheiro fiel, que a cada passo me apertava ao seu
peito molle, debaixo do seu manto pardo...
Ás vezes, porém, uma saudade fina e gostosa, vinda do remoto Passado,
levantava de leve a minha alma, como uma aragem lenta faz a uma cortina
muito pesada... E então, fumando diante das tendas, trotando pelo leito
sêcco das torrentes, eu _revia_, com deleite, pedaços soltos d'essa
Antiguidade que me apaixonára:--a Therma romana onde uma creatura
maravilhosa de mitra amarella se offertava, lasciva e pontifical; o
formoso Manassés levando a mão á espada cheia de pedrarias; mercadores,
no Templo, desdobrando os brocados de Babylonia; a sentença do Rabbi com
um traço vermelho, n'um pilar de pedra, á porta _Judiciaria_; ruas
illuminadas, gregos dançando a _callabida_... E era logo um desejo
angustioso de remergulhar n'esse mundo irrecuperavel. Coisa risivel! eu,
Raposo e bacharel, no farto gozo de todos os confortos da
Civilisação--tinha saudade d'essa barbara Jerusalem que habitára n'um
dia do mez de Nizam, sendo Poncius Pilatus procurador da Judêa!
Depois estas memorias esmoreciam como fogos a que falta a lenha. Na
minha alma só restavam cinzas--e, diante das ruinas do monte Ebal ou sob
os pomares que perfumam Sichem a Levitica, recomeçava a bocejar.
Quando chegámos a Nazareth, que apparece na desolação da Palestina como
um ramalhete pousado na pedra d'uma sepultura--nem me interessaram as
lindas judias por quem se banhou de ternura o coração de Santo Antonino.
Com a sua cantara vermelha ao hombro, ellas subiam por entre os
sycomoros á fonte onde Maria, mãi de Jesus, ia todas as tardes, cantando
como estas e como estas vestida de branco... O jocundo Potte, torcendo
os bigodes, murmurava-lhes madrigaes; ellas sorriam, baixando as
pestanas pesadas e meigas. Era diante d'esta suave modestia que Santo
Antonino, apoiado ao seu bordão, sacudindo a sua longa barba, suspirava:
«Oh virtudes claras, herdadas de Maria cheia de graça!» Eu, por mim,
rosnava seccamente: «lambisgoias»!
Através de viellas onde a vinha e a figueira abrigam casas humildes,
como convém á dôce aldeia d'aquelle que ensinou a humildade, trepámos ao
cimo de Nazareth, batido sempre do largo vento que sopra das Idumeias.
Ahi Topsius tirou o barrete saudando essas planicies, esses longes, que
decerto Jesus vinha contemplar, concebendo diante da sua luz e da sua
graça as incomparaveis bellezas do reino de Deus... O dedo do douto
Historiador ia-me apontando todos os lugares religiosos--cujos nomes
sonoros cahem na alma com uma solemnidade de prophecia ou com um fragor
de batalha: Esdrelon, Endor, Sulem, Thabor... Eu olhava, enrolando um
cigarro. Sobre o Carmello sorria uma brancura de neve; as planicies da
Perea fulguravam, rolando uma poeira de ouro; o golfo de Kaipha era todo
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