A Relíquia - 16

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á borda; sujei immundamente o azul do mar de Tyro; depois rolei para o
beliche--e só ergui do travesseiro a face mortal quando senti as
correntes do _Caimão_ mergulharem nas calmas aguas onde outr'ora,
fugindo d'Accio, cahiram á pressa as ancoras douradas das galeras de
Cleopatra!
E outra vez, estremunhado e esguedelhado, te avistei, terra baixa do
Egypto, quente e da côr d'um leão! Em torno aos finos minaretes voavam
as pombas serenas. O languido palacio dormia á beira da agua entre
palmeiras. Topsius sobraçava a minha chapeleira, serrazinando coisas
doutissimas sobre o antigo Pharol. E a pallida Religiosa já deixára o
_Caimão_, pomba do êrmo escapada ao milhafre--porque o milhafre no seu
vôo fechára a aza, sordidamente enjoado!
N'essa mesma tarde, no _Hotel das Pyramides_, soube com jubilo que um
vapor de gado, _El Cid Campeador_, partia de madrugada para as terras
bemditas de Portugal! Na caleche de riscadinho, só com o douto Topsius,
dei o derradeiro passeio nas sombras olorosas do Mamoudieh. E passei a
curta noite n'uma rua deleitosa. Oh meus concidadãos, ide lá, se
appeteceis conhecer os deleites asperos do Oriente... Os bicos de gaz
sem globo assobiam largamente, torcidos ao vento: as casas baixas, de
pau, são apenas fechadas por uma cortina branca, atravessada de
claridade: tudo cheira a sandalo e alho: e mulheres sentadas sobre
esteiras, em camisa, com flôres nas tranças, murmuram suavemente:--_Eh
môssiu_! _Eh milord_!... Recolhi tarde, exhausto. Ao passar na rua das
_Duas Irmãs_ avistei sobre a porta d'uma loja cerrada a mão de pau,
pintada de rôxo, que empolgára o meu coração. Atirei-lhe uma bengalada.
Este foi o ultimo feito das minhas longas jornadas.
De manhã, o fiel e douto Topsius veio, de galochas, acompanhar-me ao
barracão da alfandega. Enlacei-o longamente nos braços tremulos:
--Adeus, companheiro, adeus! Escreva... Campo de Sant'Anna, 47...
Elle murmurou, estreitado commigo:
--Aquelles trinta mil reis, lá mandarei...
Apertei-o generosamente, para abafar essa explicação de pecunia. Depois,
já com a bota na prôa do bote que me ia levar ao _Cid Campeador_:
--Então, posso dizer á titi que a corôasinha d'espinhos é a mesma...
Elle ergueu as mãos, solemne como um pontifice do saber:
--Póde dizer-lhe em meu nome que foi a _mesmissima_, espinho por
espinho...
Baixou o bico de cegonha ornado d'oculos--e beijámo-nos na face como
dois irmãos.
Os negros remaram. Eu levava, pousado sobre os joelhos, o caixote da
suprema Reliquia. Mas quando o meu bote, á vela, fendia a agua
azul--passou rente d'outro bote lento, levado a remos para o lado do
palacio que dormia entre palmeiras. E n'um relance vi o habito negro, o
capuz descido... Um largo, sequioso olhar, pela vez derradeira, procurou
as minhas barbas. De pé, ainda gritei: «Oh filhinha, oh magana!» Mas já
o vento me levára. Ella, no seu bote, sumia a face contrita--e sobre o
delicado peito que ousára arfar decerto a cruz pesou mais forte,
ciumenta e de ferro!
Fiquei môno... Quem sabe? Era aquelle talvez em toda a vasta terra o
unico coração em que o meu poderia repousar, como n'um asylo seguro...
Mas quê! Ella era só monja, eu só sobrinho. Ella ia para o seu Deus, eu
ia para a minha tia. E quando n'estas aguas os nossos peitos se
cruzavam, e sentindo a sua concordancia batiam mudamente um para o
outro--o meu barco corria com vela alegre para Occidente, e o barco que
a levava, lento e negro, ia a remos para Oriente... Desencontro contínuo
das almas congeneres--n'este mundo de eterno esforço e de eterna
imperfeição!


V

Duas semanas depois, rolando na tipoia do _Pingalho_ pelo campo de
Sant'Anna, com a portinhola entreaberta e a bota estendida para o
estribo, avistei entre as arvores sem folhas o portão negro da casa da
titi! E, dentro d'esse duro calhambeque, eu resplandecia mais que um
gordo Cesar, coroado de folhagens d'ouro, sobre o seu vasto carro,
voltando de domar povos e deuses.
Era decerto em mim o deleite de revêr, sob aquelle céo de janeiro tão
azul e tão fino, a minha Lisboa, com as suas quietas ruas côr de caliça
suja, e aqui e além as taboinhas verdes descidas nas janellas como
palpebras pesadas de langor e de somno. Mas era sobretudo a certeza da
gloriosa mudança que se fizera na minha fortuna domestica e na minha
influencia social.
Até ahi, que fôra eu em casa da snr.^a D. Patrocinio? O menino
Theodorico que, apesar da sua carta de Doutor e das suas barbas de
Raposão, não podia mandar sellar a egoa para ir espontar o cabello á
Baixa, sem implorar licença á titi... E agora? O nosso dr. Theodorico,
que ganhára no contacto santo com os lugares do Evangelho uma
auctoridade quasi pontifical! Que fôra eu até ahi, no Chiado, entre os
meus concidadãos? O Raposito, que tinha um cavallo. E agora? O grande
Raposo, que peregrinára poeticamente na Terra Santa, como Chateaubriand,
e que pelas remotas estalagens em que pousára, pelas roliças
Circassianas que beijocára, podia parolar com superioridade na Sociedade
de Geographia ou em casa da Benta _Bexigosa_...
O _Pingalho_ estacou as pilecas. Saltei, com o caixote da Reliquia
estreitado ao coração... E, ao fundo do pateo triste, lageado de
pedrinha, vi a snr.^a D. Patrocinio das Neves, vestida de sêdas negras,
toucada de rendas negras, arreganhando no carão livido, sob os oculos
defumados, as dentuças risonhas para mim!
--Oh, titi!
--Oh, menino!
Larguei o caixote santo, cahi no seu peito sêcco; e o cheirinho que
vinha d'ella a rapé, a capella e a formiga, era como a alma esparsa das
coisas domesticas que me envolvia, para me fazer reentrar na piedosa
rotina do lar.
--Ai filho, que queimadinho que vens!...
--Titi, trago-lhe muitas saudades do Senhor...
--Da-m'as todas, dá-m'as todas!...
E retendo-me, cingido á dura táboa do seu peito, roçou os beiços frios
pelas minhas barbas--tão respeitosamente como se fossem as barbas de pau
da imagem de S. Theodorico.
Ao lado, a Vicencia limpava o olho com a ponta do avental novo. O
_Pingalho_ descarregára a minha mala de couro. Então, erguendo o
precioso caixote de pinho de Flandres benzido, murmurei, com uma
modestia cheia de unção:
--Aqui está ella, titi, aqui está ella! Aqui a tem, ahi lh'a dou, a sua
divina Reliquia, que pertenceu ao Senhor!
As emaciadas, lividas mãos da hedionda senhora tremeram ao tocar
aquellas táboas que continham o principio miraculoso da sua saude e o
amparo das suas afflicções. Muda, têsa, estreitando sôfregamente o
caixote, galgou os degraus de pedra, atravessou a sala de Nossa Senhora
das Sete-Dôres, enfiou para o oratorio. Eu atraz, magnifico, de
capacete, ia rosnando: «ora vivam! ora vivam!»--á cozinheira, á
desdentada Eusebia, que se curvavam no corredor como á passagem do
Santissimo.
Depois, no oratorio, diante do altar juncado de camelias brancas, fui
perfeito. Não ajoelhei, não me persignei: de longe, com dois dedos, fiz
ao Jesus d'ouro, pregado na sua cruz, um aceno familiar--e atirei-lhe um
olhar, muito risonho e muito fino, como a um velho amigo com quem se têm
velhos segredos. A titi surprehendeu esta intimidade com o Senhor:--e
quando se rojou sobre o tapete (deixando-me a almofada de velludo verde)
foi tanto para o seu Salvador como para o seu sobrinho que levantou as
mãos adorabundas.
Findos os Padre-nossos de graças pelo meu regresso, ella, ainda
prostrada, lembrou com humildade:
--Filho, seria bom que eu soubesse que reliquia é, para as velas, para o
respeito...
Acudi, sacudindo os joelhos:
--Logo se verá. Á noite é que se desencaixotam as reliquias... Foi o que
me recommendou o patriarcha de Jerusalem... Em todo o caso accenda a
titi mais quatro luzes, que até a madeirinha é santa!
Accendeu-as, submissa: collocou, com beato cuidado, o caixote sobre o
altar: depôz-lhe um beijo chilreado e longo: estendeu-lhe por cima uma
esplendida toalha de rendas... Eu então, episcopalmente, tracei sobre a
toalha com dois dedos uma benção em cruz.
Ella esperava, com os oculos negros postos em mim, embaciados de
ternura:
--E agora, filho, agora?
--Agora o jantarinho, titi, que tenho a tripa a tinir...
A snr.^a D. Patrocinio logo, apanhando as saias, correu a apressar a
Vicencia. Eu fui desafivelar a maleta para o meu quarto--que a titi
esteirára de novo: as cortinas de cassa tufavam, têsas de gomma; um ramo
de violetas perfumava a commoda.
Longas horas nos detivemos á mesa--onde a travessa d'arroz dôce
ostentava as minhas iniciaes, debaixo d'um coração e d'uma cruz,
desenhadas a canella pela titi. E, inesgotavelmente, narrei a minha
santa jornada. Disse os devotos dias do Egypto, passados a beijar uma
por uma as pégadas que lá deixára a Santa Familia na sua fuga; disse o
desembarque em Jaffa com o meu amigo Topsius, um sabio allemão, doutor
em theologia, e a deliciosa missa que lá saboreáramos; disse as collinas
de Judá cobertas de Presepes onde eu, com a minha egoa pela redea, ia
ajoelhar, transmittindo ás Imagens e ás Custodias os recados da tia
Patrocinio... Disse Jerusalem, pedra a pedra! E a titi, sem comer,
apertando as mãos, suspirava com devotissimo pasmo:
--Ai que santo! ai que santo ouvir estas coisas! Jesus! até dá uns
gostinhos por dentro!...
Eu sorria, humilde. E cada vez que a considerava de soslaio, ella me
parecia outra Patrocinio das Neves. Os seus fundos oculos negros, que
outr'ora reluziam tão asperamente, conservavam um contínuo embaciamento
de ternura humida. Na voz, que perdera a rispidez silvante, errava,
amollecendo-a, um suspiro acariciador e fanhoso. Emmagrecera: mas nos
seus sêccos ossos parecia correr emfim um calor de medulla humana! Eu
pensava--«Ainda a hei de pôr como um velludo.»
E, sem moderação, prodigalisava as provas da minha intimidade com o Céo.
Dizia:--«Uma tarde, no Monte das Oliveiras, estando a rezar, passou de
repente um anjo...» Dizia:--«Tirei-me dos meus cuidados, fui ao tumulo
de Nosso Senhor, abri a tampa, gritei para dentro...»
Ella pendia a cabeça, esmagada, ante estes privilegios prodigiosos, só
comparaveis aos de Santo Antão ou de S. Braz.
Depois enumerava as minhas tremendas rezas, os meus terrificos jejuns.
Em Nazareth, ao pé da fonte onde Nossa Senhora enchia o cantaro, rezára
mil Ave-Marias, de joelhos á chuva... No deserto, onde vivera S. João,
sustentára-me como elle de gafanhotos...
E a titi, com baba no queixo:
--Ai que ternura, ai que ternura, os gafanhotinhos!... E que gosto para
o nosso rico S. João!... Como elle havia de ficar! E olha, filho, não te
fizeram mal?
--Se até engordei, titi! Nada, era o que eu dizia ao, meu amigo allemão:
«Já que a gente veio a uma pechincha d'estas, é aproveitar, e salvar a
nossa alminha...»
Ella virava-se para a Vicencia--que sorria, pasmada, no seu pouso
tradicional entre as duas janellas, sob o retrato de Pio IX e o velho
oculo do commendador G. Godinho:
--Ai Vicencia, que elle vem cheiinho de virtude! Ai que vem mesmo
atochadinho d'ella!
--Parece-me que Nosso Senhor Jesus Christo não ficou descontente
commigo! murmurava eu, estendendo a colhér para o dôce de marmelo.
E todos os meus movimentos (até o lamber da calda) os contemplava a
odiosa senhora, venerandamente, como preciosas acções de santidade.
Depois, com um suspiro:
--E outra coisa, filho... Trazes de lá algumas orações, das boas, das
que te ensinassem por lá os patriarchas, os fradesinhos?...
--Trago-as de chupeta, titi!
E numerosas, copiadas das carteiras dos santos, efficazes para todos os
achaques! Tinha-as para tosses, para quando os gavetões das commodas
emperram, para vesperas de loteria...
--E terás alguma para caimbras? Que eu ás vezes, de noite, filho...
--Trago uma que não falha em caimbras. Deu-m'a um monge meu amigo a quem
costuma apparecer o Menino Jesus...
Disse--e accendi um cigarro.
Nunca eu ousára fumar diante da titi! Ella detestára sempre o tabaco,
mais que nenhuma outra emanação do peccado. Mas agora arrastou
gulosamente a sua cadeira para mim--como para um milagroso cofre,
repleto d'essas rezas que dominam a hostilidade das coisas, vencem toda
a enfermidade, eternisam as velhas sobre a terra.
--Has de m'a dar, filho... É uma caridade que fazes!
--Oh, titi, ora essa! Todas! E diga, diga lá... Como vai a titi dos seus
padecimentos?
Ella deu um ai, d'infinito desalento. Ia mal, ia mal... Cada dia se
sentia mais fraca, como se se fosse a desfazer... Emfim já não morria
sem aquelle gostinho de me ter mandado a Jerusalem visitar o Senhor; e
esperava que elle lh'o levasse em conta, e as despezas que fizera, e o
que lhe custára a separação... Mas ia mal, ia mal!
Eu desviára a face, a esconder o vivo e escandaloso lampejo de jubilo
que a illuminára. Depois animei-a, com generosidade. Que podia a titi
recear? Não tinha ella agora, «para se apegar», vencer as leis da
decomposição natural, aquella reliquia de Nosso Senhor?...
--E outra coisa, titi... Os amiguinhos, como vão?
Ella annunciou-me a desconsoladora nova. O melhor e mais grato, o
delicioso Casimiro, recolhera á cama no domingo com as «perninhas
inchadas...» Os doutores affirmavam que era uma anasarca... Ella
desconfiava d'uma praga que lhe rogára um gallego...
--Seja como fôr, o santinho lá está! Tem-me feito uma falta, uma
falta... Ai filho, nem tu imaginas!... O que me tem valido é o sobrinho,
o padre Negrão...
--O Negrão? murmurei, estranho ao nome.
Ah! eu não conhecia... Padre Negrão vivia ao pé de Torres. Nunca vinha a
Lisboa, que lhe fazia nojo, com tanta relaxação... Só por ella, e para a
ajudar nos seus negocios, é que o santinho condescendera em deixar a sua
aldeia. E tão delicado, tão serviçal... Ai! era uma perfeição!
--Tem-me feito uma virtude que nem calculas, filho... Só o que elle tem
rezado por ti, para que Deus te protegesse n'essas terras de turcos... E
a companhia que me faz! Que todos os dias o tenho cá a jantar... Hoje
não quiz elle vir. Até me disse uma coisa muito linda: «não quero, minha
senhora, atalhar expansões.» Que lá isso, fallar bem, e assim coisas que
tocam... Ai, não ha outro... Nem imaginas, até regala... É de appetite!
Sacudi o cigarro, seccado. Porque vinha aquelle padre de Torres, contra
os costumes domesticos, comer _todos os dias_ o cozido da titi?
Resmunguei com auctoridade:
--Lá em Jerusalem os padres e os patriarchas só vêm jantar aos
domingos... Faz mais virtude.
Escurecera. A Vicencia accendeu o gaz no corredor: e como breve
chegariam os dilectos amigos, avisados pela titi para saudar o
Peregrino, recolhi ao meu quarto a enfiar a sobrecasaca preta.
Ahi, considerando ao espelho a face requeimada, sorri gloriosamente e
pensei:--«Ah Theodorico, venceste!»
Sim, vencera! Como a titi me tinha acolhido! com que veneração! com que
devoção!...--E ia mal, ia mal!... Bem depressa eu sentiria, com o
coração suffocado de gozo, as martelladas sobre o seu caixão. E nada
podia desalojar-me do testamento da snr.^a D. Patrocinio! Eu tornára-me
para ella S. Theodorico! A hedionda velha estava emfim convencida que
deixar-me o seu ouro--era como doal-o a Jesus e aos Apostolos e a toda a
Santa Madre Egreja!
Mas a porta rangeu--a titi entrou, com o seu antigo chale de Tonkin
pelos hombros. E, caso estranho, pareceu-me ser a D. Patrocinio das
Neves d'outro tempo, hirta, agreste, esverdeada, odiando o amor como
coisa suja, e sacudindo de si para sempre os homens que se tinham
mettido com saias! Com effeito! Os seus oculos, outra vez sêccos,
reluziam, cravavam-se desconfiadamente na minha mala... Justos céos! Era
a antiga D. Patrocinio. Lá vinham, as suas lividas, aduncas mãos,
cruzadas sobre o chale, arrepanhando-lhe as franjas, sôfregas de
esquadrinhar a minha roupa branca! Lá se cavava, aos cantos dos seus
labios sumidos, um rigido sulco d'azedume!... Tremi: mas visitou-me logo
uma inspiração do Senhor. Diante da mala, abri os braços, com candura:
--Pois é verdade!... Aqui tem a titi a maleta que lá andou por
Jerusalem... Aqui está, bem aberta, para todo o mundo vêr que é a mala
d'um homem de religião! Que é o que dizia o meu amigo allemão, pessoa
que sabia tudo: «Lá isso, Raposo, meu santinho, quando n'uma viagem se
peccou, e se fizeram relaxações, e se andou atraz de saias, trazem-se
sempre provas na mala. Por mais que se escondam, que se deitem fóra,
sempre lá esquece coisa que cheire a peccado!...» Assim m'o disse muitas
vezes, até uma occasião diante d'um Patriarcha... E o Patriarcha
approvou. Por isso, eu cá, é malinha aberta, sem receio... Póde-se
esquadrinhar, póde-se cheirar... A que cheira é a religião! Olhe, titi,
olhe... Aqui estão as ceroulinhas e as piuguinhas. Isso não póde deixar
de ser, porque é peccado andar nú... Mas o resto, tudo santo! O meu
rosario, o livrinho de missa, os bentinhos, tudo do melhor, tudo do
Santo Sepulchro...
--Tens alli uns embrulhos! rosnou a asquerosa senhora, estendendo um
grande dedo descarnado.
Abri-os logo, com alacridade. Eram dois frascos lacrados d'agua do
Jordão! E muito sério, muito digno, fiquei diante da snr.^a D.
Patrocinio com uma garrafinha do liquido divino na palma de cada mão...
Então ella, com os oculos de novo embaciados, beijou penitentemente os
frascos: uma pouca da baba do beijo escorreu nas minhas unhas. Depois, á
porta, suspirando, já rendida:
--Olha, filho, até estou a tremer... E é d'estes gostinhos todos!
Sahiu. Eu fiquei coçando o queixo. Sim, ainda havia uma circumstancia
que me escorraçaria do testamento da titi! Seria apparecer diante
d'ella, material e tangivel, uma evidencia das minhas relaxações... Mas
como surgiria ella jámais n'este logico Universo? Todas as passadas
fragilidades da minha carne eram como os fumos esparsos d'uma fogueira
apagada que nenhum esforço póde novamente condensar. E o meu derradeiro
peccado--saboreado tão longe, no velho Egypto, como chegaria jámais á
noticia da titi? Nenhuma combinação humana lograria trazer ao campo de
Sant'Anna as duas unicas testemunhas d'elle--uma luveira occupada agora
a encostar as papoilas do seu chapéo aos granitos de Raméses em Thebas,
e um Doutor encafuado n'uma rua escolastica, á sombra d'uma vetusta
Universidade da Allemanha, escarafunchando o cisco historico dos
Herodes... E, a não ser essa flôr de deboche e essa columna de sciencia,
ninguem mais na terra conhecia os meus culpados delirios na cidade
amorosa dos Lagidas.
Demais, o terrvel documento da minha juncção com a sordida Mary, a
camisa de dormir aromatisada de violeta, lá cobria agora em Sião uma
languida cinta de circassiana ou os seios côr de bronze d'uma nubia de
Koskoro: a compromettedora offerta «_ao meu portuguezinho valente_» fôra
despregada, queimada no brazeiro: já as rendas se iriam esgaçando no
serviço forte do amor; e rôta, suja, gasta, ella bem depressa seria
arremessada ao lixo secular de Jerusalem! Sim, nada se poderia interpôr
entre a minha justa sofreguidão e a bolsa verde da titi. Nada, a não ser
a carne mesma da velha, a sua carcassa rangente, habitada por uma
teimosa chamma vital, que se não quizesse extinguir!... Oh fado
horrivel! Se a titi, obstinada, renitente, vivesse ainda quando abrissem
os cravos do outro anno! E então não me contive. Atirei a alma para as
alturas, gritei desesperadamente, em toda a ancia do meu desejo:
--Oh Santa Virgem Maria, faze que ella rebente depressa!
N'esse momento soou a grossa sineta do pateo. E foi-me grato reconhecer,
depois da longa separação, as duas badaladas curtas e timidas do nosso
modesto Justino: mais grato ainda sentir, logo após, o repique magestoso
do dr. Margaride. Immediatamente a titi escancarou a porta do meu
quarto, n'uma penosa atarantação:
--Theodorico, filho, ouve! Tem-me estado a lembrar... Parece-me que para
destapar a reliquia é melhor esperar até que se vão logo embora o
Justino e o Margaride! Ai, eu sou muito amiga d'elles, são pessoas de
muita virtude... Mas acho que para uma ceremonia d'estas é melhor que
estejam só pessoas d'egreja...
Ella, pela sua devoção, considerava-se pessoa d'egreja. Eu, pela minha
jornada, era quasi pessoa do céo.
--Não, titi... O Patriarcha de Jerusalem recommendou-me que fosse diante
de todos os amigos da casa, na capella, com velas... É mais efficaz... E
olhe, diga á Vicencia que me venha buscar as botas para limpar.
--Ai eu lh'as dou!... São estas? Estão sujinhas, estão! Já cá te vêm,
filho, já cá te vêm!
E a snr.^a D. Patrocinio das Neves agarrou as botas! E a snr.^a D.
Patrocinio das Neves levou as botas!
Ah, estava mudada, estava bem mudada!... E ao espelho, cravando no setim
da gravata uma cruz de coral de Malta, eu pensava que desde esse dia ia
reinar alli, no campo de Sant'Anna, de cima da minha santidade, e que
para apressar a obra lenta da morte--talvez viesse a espancar aquella
velha.
Foi-me dôce, ao penetrar na sala, encontrar os dilectos amigos, com
casacos sérios, de pé, alargando para mim os braços extremosos. A titi
pousava no sofá, têsa, desvanecida, com setins de festa e com joias. E
ao lado, um padre muito magro vergava a espinha com os dedos
enclavinhados no peito--mostrando n'uma face chupada dentes afiados e
famintos. Era o Negrão. Dei-lhe dois dedos, sêccamente:
--Estimo vê-lo por cá...
--Grandissima honra para este seu servo! ciciou elle, puxando os meus
dedos para o coração.
E, mais vergado o dorso servil, correu a erguer o _abat-jour_ do
candieiro--para que a luz me banhasse, e se pudesse vêr na madureza do
meu semblante a efficacia da minha peregrinação.
Padre Pinheiro decidiu, com um sorriso de doente:
--Mais magro!
Justino hesitou, fez estalar os dedos:
--Mais queimado!
E o Margaride, carinhosamente:
--Mais homem!
O onduloso padre Negrão revirou-se, arqueado para a titi como para um
Sacramento entre os seus mólhos de luzes:
--E com um todo d'inspirar respeito! Inteiramente digno de ser o
sobrinho da virtuosissima D. Patrocinio!...
No emtanto em torno tumultuavam as curiosidades amigas: «E a saudinha?»
«Então, Jerusalem?» «Que tal, as comidas?...»
Mas a titi bateu com o leque no joelho, n'um receio que tão familiar
alvoroço importunasse S. Theodorico. E o Negrão acudiu, com um zelo
mellifluo:
--Methodo, meus senhores, methodo!... Assim todos á uma não se goza... É
melhor deixarmos fallar o nosso interessante Theodorico!...
Detestei aquelle _nosso_, odiei aquelle padre. Porque corria tanto mel
no seu fallar? Porque se privilegiava elle no sofá, roçando a sordida
joelheira da calça pelos castos setins da titi?
Mas o dr. Margaride, abrindo a caixa de rapé, concordou que o methodo
seria mais proficuo...
--Aqui nos sentamos todos, fazemos roda, e o nosso Theodorico conta por
ordem todas as maravilhas que viu!
O esgalgado Negrão, com uma escandalosa privança, correu dentro a colhêr
um copo d'agua e assacar para me lubrificar as vias. Estendi o lenço
sobre o joelho. Tossi--e comecei a esboçar a soberba jornada. Disse o
luxo do _Malaga_; Gibraltar e o seu môrro encarapuçado de nuvens; a
abundancia das «mesas redondas» com puddings e aguas-gazosas...
--Tudo á grande, á franceza! suspirou padre Pinheiro, com um brilho de
gula no olho amortecido. Mas naturalmente, tudo muito indigesto...
--Eu lhe digo, padre Pinheiro... Sim, tudo á grande, tudo á franceza:
mas coisas saudaveis, que não esquentavam os intestinos... Bello
rosbeef, bello carneiro...
--Que não valiam decerto o seu franguinho de cabidella, excellentissima
senhora! atalhou unctuosamente o Negrão, junto do hombro agudo da titi.
Execrei aquelle padre! E, remexendo a agua com assucar, decidi em meu
espirito que, mal eu começasse a governar ferreamente o campo de
Sant'Anna--não mais a cabidella da minha familia escorregaria na guela
aduladora d'aquelle servo de Deus.
No emtanto o bom Justino, repuxando o collarinho, sorria para mim,
embevecido. E como passava eu as noites em Alexandria? Havia uma
assembléa, onde espairecesse? Conhecia eu alguma familia considerada,
com quem tomasse uma chavena de chá?...
--Eu lhe digo, Justino... Conhecia. Mas, a fallar verdade, tinha
repugnancia em frequentar casas de turcos... Sempre é gente que não
acredita senão em Mafoma!... Olhe, sabe o que fazia á noite? Depois de
jantar ia a uma egrejinha cá da nossa bella religião, sem
estrangeirices, onde havia sempre um Santissimo d'appetite... Fazia as
minhas devoções: depois ia-me encontrar com o allemão, o meu amigo, o
lente, n'uma grande praça que dizem lá os de Alexandria que é muito
melhor que o Rocio... Maior e mais abrutada talvez seja. Mas não é esta
lindeza do nosso Rocio, o ladrilhinho, as arvores, a estatua, o
theatro... Emfim, para meu gosto, e para um regalinho de verão prefiro o
Rocio... E lá o disse aos turcos!
--E fica-lhe bem ter levantado assim as coisas portuguezas! observou o
dr. Margaride, contente e rufando na tabaqueira. Direi mais... É acto de
patriota... Nem d'outra maneira procediam os Gamas e os Albuquerques!
--Pois é verdade... Ia-me encontrar com o allemão; e então para
espairecer um bocado, porque emfim uma distracção sempre é necessaria
quando se anda a viajar, iamos tomar um café... Que lá isso, sim! Lá
café fazem-n'o os turcos que é uma perfeição!
--Bom cafésinho, hein? acudiu padre Pinheiro, chegando a cadeira para
mim com interesse sôfrego. E forte, forte? Bom aroma?
--Sim, padre Pinheiro, de consolar!... Pois tomavamos o nosso cafésinho,
depois vinhamos para o hotel, e ahi no quarto, com os santos Evangelhos,
punhamo-nos a estudar todos aquelles divinos lugares na Judêa onde
tinhamos d'ir rezar... E como o allemão era lente e sabia tudo, eu era
instruir-me, instruir-me!... Até elle ás vezes dizia: «Vossê, Raposo,
com estas noitadas, vai d'aqui um chavão...» E lá isso, o que é de
coisas santas e de Christo, sei tudo... Pois, senhores, assim passavamos
á luz do candieiro até às dez, onze horas... Depois chásinho, terço, e
cama.
--Sim senhor, noites muito bem gozadas, noites muito fructuosas!
declarou, sorrindo para a titi, o estimavel dr. Margaride.
--Ai, isso fez-lhe muita virtude! suspirava a horrenda senhora. Foi como
se subisse um bocadinho ao céo... Até o que elle diz cheira bem...
Cheira a santo.
Modestissimamente, baixei a palpebra lenta.
Mas Negrão, com sinuosa perfidia, notou que mais proveitoso seria, e de
maior unção repassaria as almas--escutar coisas de festas, de milagres,
de penitencias...
--Estou seguindo o meu itinerario, snr. padre Negrão, repliquei
asperamente.
--Como fez Chateaubriand, como fazem todos os famosos auctores!
confirmou Margaride, approvando.
E foi com os olhos n'elle, como no mais douto, que eu disse a partida de
Alexandria n'uma tarde de tormenta: o tocante momento em que uma santa
irmã da Caridade (que estivera já em Lisboa e que ouvira fallar da
virtude da titi) me salvára das aguas salgadas um embrulho em que eu
trazia terra do Egypto, da que pisára a Santa Familia: a nossa chegada a
Jaffa, que, por um prodigio, apenas eu subira ao tombadilho, de chapéo
alto e pensando na titi, se coroára de raios de sol...
--Magnifico! exclamou o dr. Margaride. E diga, meu Theodorico... Não
tinham comsigo um sabio guia, que lhes fosse apontando as ruinas, lhes
fosse commentando...
--Ora essa, dr. Margaride! Tinhamos um grande latinista, o padre Potte!
Remolhei o labio. E disse as emoções da gloriosa noite em que
acampáramos junto a Ramleh, com a lua no céo alumiando coisas da
religião, beduinos velando de lança ao hombro, e em redor leões a
rugir...
--Que scena! bradou o dr. Margaride, erguendo-se arrebatadamente. Que
enorme scena! Não estar eu lá! Parece uma d'estas coisas grandiosas da
Biblia, do _Eurico_! É d'inspirar! Eu por mim, se tal visse, não me
continha!... Não me continha, fazia uma ode sublime!
O Negrão puxou a aba do casaco ao facundo magistrado:
--É melhor deixar fallar o nosso Theodorico, para podermos todos
saborear...
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