A Relíquia - 18

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Caramba! A velha rebentára!
Anciosamente saltei através das linhas tropeçando sobre os
detalhes--«congestão dos pulmões... Sacramentos recebidos... Todos a
chorar... O nosso Negrão!...» E empallidecendo, n'um suor que me
alagava, avistei, ao fim da lauda, a nova medonha:--«do testamento da
virtuosa senhora, consta que deixa a seu sobrinho Theodorico o oculo que
se acha pendurado na sala de jantar...»
Desherdado!
Agarrei o chapéo, corri aos encontrões pelas ruas até ao cartorio do
Justino, a S. Paulo. Achei-o á banca, com uma gravata de lucto e a penna
atraz da orelha, comendo fatias de vitella sobre um velho _Diario de
Noticias_.
--Com que, o oculo...?--balbuciei, esfalfado, arrimado á esquina d'uma
estante.
--É verdade. O oculo!--murmurou elle, com a bôca atulhada.
Fui tombar, quasi desmaiado, sobre o canapé de couro. Elle offereceu-me
vinho de Bucellas. Bebi um calice. E passando a mão tremula sobre a face
livida:
--Então dize lá, conta lá tudo, Justininho...
O Justino suspirou. A santa senhora, coitadinha, deixára-lhe duas
inscripções de conto... E de resto dispersára no seu testamento as
riquezas de G. Godinho do modo mais incoherente e mais perverso. O
predio do campo de Sant'Anna e quarenta contos de inscripções para o
Senhor dos Passos da Graça. As acções da Companhia do Gaz, as melhores
pratas, a casa de Linda-a-Pastora para o Casimiro, que já se não mexia,
moribundo. Padre Pinheiro recebia um predio na rua do Arsenal. A
deliciosa quinta do _Mosteiro_, com o seu pittoresco portão d'entrada
onde se viam ainda as armas dos condes de Landoso, as inscripções de
Credito Publico, a mobilia do campo de Sant'Anna, o Christo d'ouro--para
o padre Negrão. Tres contos de reis e o relogio para o Margaride. A
Vicencia tivera as roupas de cama. Eu--o oculo!
--Para vêr o resto de longe! considerou philosophicamente o Justino,
dando estalinhos nos dedos.
Recolhi á travessa da Palha. E durante horas, em chinelas, com os olhos
chammejantes, revolvi o desejo desesperado de ultrajar o cadaver da
titi--cuspindo-lhe sobre o carão livido, esfuracando com uma bengala a
podridão do seu ventre. Chamei contra ella todas as cóleras da Natureza.
Pedi ás arvores que recusassem sombra á sua sepultura! Pedi aos ventos
que sobre ella soprassem todos os lixos da terra! Invoquei o Demonio:
«Dou-te a minha alma se torturares incansavelmente a velha!» Gritei com
os braços para as alturas: «Deus, se tens um céo, escorraça-a de lá!»
Planeei quebrar a pedradas o mausoleu que lhe erguessem... E decidi
escrever communicados nos jornaes contando que ella se prostituia a um
gallego, todas as tardes, no sótão, d'oculos negros e em fralda!
Esfalfado de a odiar--adormeci densamente.
Foi o Pitta que me acordou, ao anoitecer, entrando com um longo
embrulho. Era o oculo. Mandava-m'o o Justino, com estas palavras amigas:
«Ahi vai a modesta herança!»
Accendi uma vela. Com aspera amargura tomei o oculo, abri a vidraça--e
_olhei por elle_, como da borda d'uma nau que vai perdida nas aguas.
Sim, muito sagazmente o affirmára Justino, a asquerosa Patrocinio
deixava-me o oculo com rancoroso sarcasmo--para _eu vêr através d'elle o
resto da herança_! E eu _via_, apesar da escura noite, nitidamente _via_
o Senhor dos Passos sumindo os maços de inscripções dentro da sua tunica
rôxa; o Casimiro tocando com as mãos moribundas os lavores das pratas,
espalhadas sobre o seu leito; e o vilissimo Negrão, de casaco de cotim e
galochas, passeando regalado á beira d'agua, sob os olmos do _Mosteiro_!
E eu alli, com o oculo!
Eu alli para sempre, na travessa da Palha, possuindo na algibeira d'umas
calças com fundilhos setecentos e vinte--para me debater através da
cidade e da vida! Com um urro atirei o oculo, que foi rolando até junto
da chapeleira onde eu guardava o capacete de cortiça da minha jornada em
Terra Santa. Alli estavam, esse capacete e esse oculo, emblemas das
minhas duas existencias--a de esplendor e a de penuria! Havia mezes, com
aquelle capacete na nuca, eu era o triumphante Raposo, herdeiro da
snr.^a D. Patrocinio das Neves, remexendo ouro nas algibeiras, e
sentindo em torno, perfumadas e á espera de que eu as colhesse, todas as
flôres da Civilisação! E agora, com o oculo, eu era o pelintrissimo
Raposo de botas cambadas, sentindo em roda, negros e promptos a
ferirem-me, todos os cardos da Vida... E tudo isto, porque? Porque um
dia, na estalagem d'uma cidade da Asia, se tinham trocado dois embrulhos
de papel pardo!
Não houvera jámais zombaria igual da Sorte! A uma tia beata, que odiava
o amor como coisa suja e só esperava, para me deixar predios e pratas,
que eu, desdenhando saias, lhe rebuscasse em Jerusalem uma
reliquia--trazia a camisa de dormir d'uma luveira! E n'um impulso de
caridade, destinado a captivar o céo, atirava como pingue esmola a uma
pobre em farrapos, com o filho faminto chorando ao collo--um galho cheio
d'espinhos!... Oh Deus, dize-me tu! Dize-me tu, oh Demonio! como se fez,
como se fez esta troca de embrulhos--que é a tragedia da minha vida?
Elles eram semelhantes no papel, no formato, no nastro!... O da camisa
jazia no fundo escuro do guarda-fato; o da reliquia campeava sobre a
commoda, glorioso, entre dois castiçaes. E ninguem lhes tocára: nem o
jocundo Potte; nem o erudito Topsius; nem eu! Ninguém com mãos humanas,
mãos mortaes, ousára mover os dois embrulhos. Quem os movera então? Só
alguem, com mãos _invisiveis_!
Sim, havia alguem, incorporeo, todo poderoso--que por odio trocára
miraculosamente os espinhos em rendas, para que a titi me desherdasse e
eu fosse precipitado para sempre nas Profundas Sociaes!
E quando assim esbravejava, esguedelhado--encontrei frigidamente
cravados em mim e mais abertos, como gozando a derrota da minha vida, os
olhos claros do Christo crucificado, dentro do seu caixilho com
borlas...
--Foste tu! gritei, de repente illuminado e comprehendendo o prodigio.
Foste tu! Foste tu!
E, com os punhos fechados para elle, desafoguei fartamente os queixumes,
os aggravos do meu coração:
--Sim, foste tu, que transformaste ante os olhos devotos da titi a corôa
de dôr da tua Lenda--na camisa suja da Mary!... E porque? Que te fiz eu?
Deus ingrato e variavel! Onde, quando, gozaste tu devoção mais perfeita?
Não acudia eu todos os domingos, vestido de preto, a ouvir as missas
melhores que te offerta Lisboa? Não me atochava eu todas as
sextas-feiras, para te agradar, de bacalhau e de azeite? Não gastava eu
dias, no oratorio da titi, com os joelhos doridos, rosnando os terços da
tua predilecção? Em que cartilhas houve rezas que eu não decorasse para
ti? Em que jardins desabrocharam flôres com que eu não enfeitasse os
teus altares?
E arrebatado, arrepiando os cabellos, repuxando as barbas, eu clamava
ainda, tão perto da imagem que as baforadas da minha cólera lhe
embaciavam o vidro:
--Olha bem para mim!... Não te recordas de ter visto este rosto, estes
pêllos, ha seculos, n'um atrio de marmore, sob um velario, onde julgava
um Pretor de Roma? Talvez te não lembres! Tanto dista d'um Deus
victorioso sobre o seu andor a um Rabbi de provincia amarrado com
cordas!... Pois bem! N'esse dia de Nizam, em que não tinhas ainda
confortaveis lugares no céo e na bemaventurança a distribuir aos teus
fieis; n'esse dia, em que ainda te não tornáras para ninguem fonte de
riqueza e esteio de poder; n'esse dia, em que a titi, e todos os que
hoje se prostram a teus pés, te teriam apupado como os vendilhões do
Templo, os Phariseus e a populaça d'Acra; n'esse dia, em que os Soldados
que hoje te escoltam com charangas, os Magistrados que hoje encarceram
quem te desacate ou te renegue, os Proprietarios que hoje te
prodigalisam ouro e festas d'egreja--se teriam juntado com as suas armas
e os seus codigos e as suas bolsas, para obterem a tua morte como
revolucionario, inimigo da Ordem, terror da Propriedade: n'esse dia, em
que tu eras apenas uma Intelligencia creadora e uma Bondade activa, e
portanto considerado pelos homens sérios como um perigo social--houve em
Jerusalem um coração que espontaneamente, sem engodo no céo, nem terror
do inferno, estremeceu por ti. Foi o meu!... E agora persegues-me.
Porque?...
Subitamente, oh maravilha! do tosco caixilho com borlas irradiaram
tremulos raios, côr de neve e côr d'ouro. O vidro abriu-se ao meio com o
fragor faiscante de uma porta do céo. E de dentro o Christo no seu
madeiro, sem despregar os braços, deslisou para mim serenamente,
crescendo até ao estuque do tecto, mais bello em magestade e brilho que
o sol ao sahir dos montes.
Com um berro cahi sobre os joelhos; bati a fronte apavorada no soalho. E
então senti esparsamente pelo quarto, com um rumor manso de brisa entre
jasmins, uma Voz repousada e suave:
--Quando tu ias ao alto da Graça beijar no pé uma imagem--era para
contar servilmente á titi a piedade com que deras o beijo: porque jámais
houve oração nos teus labios, humildade no teu olhar--que não fosse para
que a titi ficasse agradada no seu fervor de beata. O Deus a que te
prostravas era o dinheiro de G. Godinho; e o céo para que teus braços
trementes se erguiam--o testamento da titi... Para lograres n'elle o
lugar melhor fingiste-te devoto sendo incredulo; casto sendo devasso;
caridoso sendo mesquinho; e simulaste a ternura de filho tendo só a
rapacidade de herdeiro... Tu foste illimitadamente o _Hypocrita_! Tinhas
duas existencias: uma ostentada diante dos olhos da titi, toda de
rosarios, de jejuns, de novenas; e longe da titi, sorrateiramente,
outra, toda de gula, cheia da Adelia e da Benta... Mentiste sempre:--e
só eras verdadeiro para o céo, verdadeiro para o mundo, quando rogavas a
Jesus e á Virgem que rebentassem depressa a titi. Depois resumiste esse
laborioso dolo d'uma vida inteira n'um embrulho--onde accommodáras um
galho, tão falso como o teu coração; e com elle contavas empolgar
definitivamente as pratas e predios de D. Patrocinio! Mas n'outro
embrulho parecido trazias pela Palestina, com rendas e laços, a
irrecusavel evidencia do teu fingimento... Ora justiceiramente aconteceu
que o embrulho que offertaste á titi e que a titi abriu--foi aquelle que
lhe revelava a tua perversidade! E isto prova-te, Theodorico, a
_inutilidade da hypocrisia_.
Eu gemia sobre as táboas. A Voz susurrou, mais larga, como o vento da
tarde entre as ramas:
--Eu não sei quem fez essa troca dos teus embrulhos, picaresca e
terrivel; talvez ninguem; talvez tu mesmo! Os teus tedios de desherdado
não provêm d'essa mudança de espinhos em rendas:--mas de vivêres duas
vidas, uma verdadeira e de iniquidade, outra fingida e de santidade.
Desde que contradictoriamente eras do lado direito o devoto Raposo e do
lado esquerdo o obsceno Raposo--não poderias seguir muito tempo, junto
da titi, mostrando só o lado, vestido de casimiras de domingo, onde
resplandecia a virtude; um dia fatalmente chegaria em que ella,
espantada, visse o lado despido e natural onde negrejavam as maculas do
vicio... E ahi está porque eu alludo, Theodorico, á _inutilidade da
hypocrisia_.
De rojo eu estendia abjectamente os labios para os pés do Christo,
transparentes, suspensos no ar, com prégos que despediam tremulas
radiancias de joia. E a Voz passou sobre mim, cheia e rumorosa, como a
rajada que curva os cyprestes:
--Tu dizes que eu te persigo! Não. O oculo, isso a que chamas Profundas
Sociaes, são obra das tuas mãos--não obra minha. Eu não construo os
episodios da tua vida; assisto a elles e julgo-os placidamente... Sem
que eu me mova, nem intervenha influencia sobrenatural--tu pódes ainda
descer a miserias mais torvas, ou elevar-te aos rendosos paraisos da
terra e ser director d'um Banco... Isso depende meramente de ti, e do
teu esforço d'homem... Escuta ainda! Perguntavas-me, ha pouco, se eu me
não lembrava do teu rosto... Eu pergunto-te agora se não te lembras da
minha voz... Eu não sou Jesus de Nazareth, nem outro Deus creado pelos
homens... Sou anterior aos deuses transitorios: elles dentro em mim
nascem; dentro em mim duram; dentro em mim se transformam; dentro em mim
se dissolvem: e eternamente permaneço em torno d'elles e superior a
elles, concebendo-os e desfazendo-os, no perpetuo esforço de realisar
fóra de mim o Deus absoluto que em mim sinto. Chamo-me a Consciencia;
sou n'este instante a tua propria Consciencia reflectida fóra de ti, no
ar e na luz, e tomando ante teus olhos a fórma familiar, sob a qual, tu
mal educado e pouco philosophico, estás habituado a comprehender-me...
Mas basta que te ergas e me fites, para que esta imagem resplandecente
de todo se desvaneça.
E ainda eu não levantára os olhos--já tudo desapparecera!
Então, transportado como perante uma evidencia do Sobrenatural, atirei
as mãos ao céo e bradei:
--Oh meu Senhor Jesus, Deus e filho de Deus, que te encarnaste e
padeceste por nós...
Mas emmudeci... Aquella ineffavel Voz resoava ainda em minha alma,
mostrando-me a inutilidade da hypocrisia. Consultei a minha consciencia,
que reentrára dentro de mim--e bem certo de não acreditar que Jesus
fosse filho de Deus e d'uma mulher casada de Galilêa (como Hercules era
filho de Jupiter e d'uma mulher casada da Argolida)--cuspi dos meus
labios, tornados para sempre verdadeiros, o resto inutil da oração.
* * * * *
Ao outro dia, casualmente, entrei no jardim de S. Pedro
d'Alcantara--sitio que não pizára desde os meus annos de latim. E mal
dera alguns passos, entre os canteiros, encontrei o meu antigo Chrispim,
filho de Telles Chrispim & C.^a, com fabrica de fiação á
Pampulha--camarada que não avistára desde o meu grau de bacharel. Era
este o louro Chrispim, que outr'ora no collegio dos Isidoros me dava
beijos vorazes no corredor, e me escrevia á noite bilhetinhos
promettendo-me caixas com pennas d'aço. Chrispim velho morrera: Telles,
rico e obeso, passára a Visconde de S. Telles: e este meu Chrispim agora
era a Firma.
Trocado um ruidoso abraço, Chrispim & C.^a notou pensativamente que eu
estava «muitissimo feio.» Depois invejou a minha jornada á Terra Santa
(que elle soubera pelo _Jornal das Novidades_) e alludiu, com amigavel
regosijo, á «grossa maquia que me devia ter deixado a snr.^a D.
Patrocinio das Neves...»
Amargamente mostrei-lhe as minhas botas cambadas. Parámos n'um banco,
junto d'uma trepadeira de rosas; e ahi, no silencio e no perfume, narrei
a camisa funesta da Mary, a Reliquia no seu embrulho, o desastre no
Oratorio, o oculo, o meu quarto miseravel na travessa da Palha...
--De modo, Chrispimzinho da minh'alma, que aqui me encontro sem pão!
Chrispim & C.^a, impressionado, torcendo os bigodes louros, murmurou que
em Portugal, graças á Carta e á Religião, todo o mundo tinha uma fatia
de pão: o que a alguns faltava era o queijo.
--Ora o queijo dou-t'o eu, meu velho! ajuntou alegremente a Firma,
atirando-me uma palmada ao joelho. Um dos empregados do escriptorio lá
na Pampulha começou a fazer versos, a metter-se com actrizes... E muito
republicano, achincalhando as coisas santas... Emfim, um horror,
desembaracei-me d'elle! Ora tu tinhas boa letra. Uma conta de sommar
sempre saberás fazer... Lá está a carteira do homem, vai lá, são vinte e
cinco mil reis, sempre é o queijo!...
Com duas lagrimas a tremerem-me nas pestanas abracei a Firma. Chrispim e
C.^a murmurou outra vez, com uma careta de quem, sente um gosto azêdo:
--Irra! que estás muitissimo feio!
Comecei então a servir com desvelo a fabrica de fiação á Pampulha: e
todos os dias á carteira, com mangas de lustrina, copiava cartas na
minha letra de bellas curvas e alinhava algarismos n'um vasto _Livro de
Caixa_... A Firma ensinára-me a «regra de tres», e outras habilidades.
E, como de sementes trazidas por um vento casual a um torrão
desaproveitado, rompem inesperadamente plantas uteis que prosperam--das
lições da Firma brotaram, na minha inculta natureza de bacharel em leis,
aptidões consideraveis para o negocio da fiação. Já a Firma dizia,
compenetrada, na Assembléa do Carmo:
--Lá o meu Raposo, apesar de Coimbra e dos compendios que lhe metteram
no caco, tem dedo para as coisas sérias!
Ora n'um sabbado d'agosto, á tarde, quando eu ia fechar o _Livro de
Caixa_, Chrispim & C.^a parou diante da minha carteira, risonho e
accendendo o charuto:
--Ouve lá, ó Raposão, tu a que missa costumas ir?
Silenciosamente, tirei a minha manga de lustrina.
--Eu pergunto isto, ajuntou logo a Firma, porque ámanhã vou com minha
irmã á Outra Banda, a uma quinta nossa, á _Ribeira_. Ora se tu não estás
muito apegado a outra missa, vinhas á de Santos, ás nove, iamos almoçar
ao _Hotel Central_, e embarcavamos de lá para Cacilhas. Estou com
vontade que conheças minha irmã!...
Chrispim & C.^a era um cavalheiro religioso que considerava a Religião
indispensavel á sua saude, á sua prosperidade commercial, e á boa ordem
do paiz. Visitava com sinceridade o Senhor dos Passos da Graça, e
pertencia á Irmandade de S. José. O empregado, cuja carteira eu
occupava, tornára-se-lhe sobretudo intoleravel por escrever no _Futuro_,
gazeta republicana, folhetins louvando Renan e ultrajando a Eucharistia.
Eu ia dizer a Chrispim & C.^a que estava tão apegado á missa da
Conceição Nova, que outra não me podia saber bem... Mas lembrei a Voz
austera e salutar da travessa da Palha! Recalquei a mentira beata que já
me sujava os labios--e disse, muito pallido e muito firme:
--Olha, Chrispim, eu nunca vou á missa... Tudo isso são patranhas... Eu
não posso acreditar que o corpo de Deus esteja todos os domingos n'um
pedaço d'hostia feita de farinha. Deus não tem corpo, nunca teve... Tudo
isso são idolatrias, são carolices... Digo-te isto rasgadamente... Pódes
fazer agora commigo o que quizeres. Paciencia!
A Firma considerou-me um momento mordendo o beiço:
--Pois olha, Raposo, calha-me essa franqueza!... Eu gósto de gente
lisa... O outro velhaco, que estava ahi a essa carteira, diante de mim
dizia: «Grande homem, o Papa!» E depois ia para os botequins e punha o
Santo Padre de rastos... Pois acabou-se! Não tens religião, mas tens
cavalheirismo... Em todo o caso, ás dez no _Central_ para o almocinho, e
á vela depois para a _Ribeira_!
Assim eu conheci a irmã da Firma. Chamava-se D. Jesuina, tinha trinta e
dois annos e era zarôlha. Mas, desde esse domingo de rio e de campo, a
riqueza dos seus cabellos ruivos como os d'Eva, o seu peito solido e
succulento, a sua pelle côr de maçã madura, o riso são dos seus dentes
claros--tornavam-me pensativo, quando á tardinha, com o meu charuto, eu
recolhia á Baixa pelo Aterro, olhando os mastros das falúas...
Fôra educada nas Selesias: sabia Geographia e todos os rios da China,
sabia Historia e todos os reis de França; e chamava-me
Theodorico-Coração-de-Leão, por eu ter ido á Palestina. Aos domingos
agora eu jantava na Pampulha: D. Jesuina fazia um prato d'ovos
queimados: e o seu olho vesgo pousava, com incessante agrado, na minha
face potente e barbuda de Raposão. Uma tarde ao café, Chrispim & C.^a
louvou a Familia Real, a sua moderação constitucional, a graça caridosa
da Rainha. Depois descemos ao jardim: e andando D. Jesuina a regar, e eu
ao lado enrolando um cigarro, suspirei e murmurei junto ao seu
hombro:--«V. exc.^a, D. Jesuina, é que estava a calhar para Rainha, se
cá o Raposinho fosse Rei!» Ella, córando, deu-me a ultima rosa do verão.
Em vesperas de Natal, Chrispim & C.^a chegou á minha carteira, pousou
galhofeiramente o chapéo sobre a pagina do _Livro de Caixa_ que eu
ennegrecia de cifras, e cruzando os braços, com um riso de lealdade e
estima:
--Então com que, Rainha, se o Raposinho fosse Rei...? Ora diga lá o snr.
Raposo. Ha ahi dentro d'esse peito amor verdadeiro á mana Jesuina?
Chrispim & C.^a admirava a paixão e o ideal. Eu ia já dizer que adorava
a snr.^a D. Jesuina como a uma estrella remota... Mas recordei a Voz
altiva e pura da travessa da Palha! Recalquei a mentira sentimental que
já me enlanguecia o labio--e disse corajosamente:
--Amor, amor, não... Mas acho-a um bello mulherão: gosto-lhe muito do
dote; e havia de ser um bom marido.
--Dá cá essa mão honrada! gritou a Firma.
* * * * *
Casei. Sou pai. Tenho carruagem, a consideração do meu bairro, a
commenda de Christo. E o Dr. Margaride, que janta commigo todos os
domingos de casaca, affirma que o Estado, pela minha illustração, as
minhas consideraveis viagens e o meu patriotismo--me deve o titulo de
Barão do Mosteiro. Porque eu comprei o _Mosteiro_. O digno Magistrado
uma tarde, á mesa, annunciou que o horrendo Negrão, desejando arredondar
as suas propriedades em Torres, decidira vender o velho solar dos condes
de Landoso.
--Ora aquellas arvores, Theodorico--lembrou o benemerito homem--deram
sombra á senhora sua mamã. Direi mais: as mesmas sombras cobriram seu
respeitabilissimo pai, Theodorico!... Eu por mim, se tivesse a honra de
ser um Raposo, não me continha, comprava o _Mosteiro_, erguia lá um
torreão com ameias!
Chrispim & C.^a disse, pousando o copo:
--Compra, é coisa de familia, fica-te bem.
E, n'uma vespera de Paschoa, assignei no cartorio do Justino, com o
procurador do Negrão, a escriptura que me tornava emfim, depois de
tantas esperanças e de tantos desalentos, o senhor do _Mosteiro_!
--Que faz agora esse maroto d'esse Negrão? indaguei eu do bom Justino,
apenas sahiu o agente do sordido sacerdote.
O dilecto e fiel amigo deu estalinhos nos dedos. O Negrão pechinchava!
Herdára tudo do padre Casimiro, que lá tinha o seu corpo no alto de S.
João e a sua alma no seio de Deus. E agora era o intimo do padre
Pinheiro que não tinha herdeiros, e que elle levára para Torres, «para o
curar». O pobre Pinheiro lá andava, mais chupado, empanturrando-se com
os tremendos jantares do Negrão, deitando a lingua de fóra diante de
cada espelho. E não durava, coitado! De sorte que o Negrão vinha a
reunir (com excepção do que fôra para o Senhor dos Passos, que não podia
tornar a morrer, esse!) o melhor da fortuna de G. Godinho.
Eu rosnei, pallido:
--Que besta!
--Chame-lhe besta, amiguinho!... Tem carruagem, tem casa em Lisboa,
tomou a Adelia por conta...
--Que Adelia?
--Uma de boas carnes, que esteve com o Eleuterio... Depois esteve muito
era segredo com um basbaque, um bacharel, não sei quem...
--Sei eu.
--Pois essa! Tem-n'a por conta o Negrão, com luxo, tapete na escada,
cortinas de damasco, tudo... E está mais gordo. Vi-o hontem, vinha de
prégar... Pelo menos disse-me que «sahia de S. Roque esfalfado de dizer
amabilidades a um diabo d'um Santo!» Que o Negrão ás vezes é engraçado.
E tem bons amigos, lábia, influencia em Torres... Ainda o vemos Bispo!
Recolhi á minha familia, pensativo. Tudo o que eu esperára e amára (até
á Adelia!) o possuia agora legitimamente o horrendo Negrão!... Perda
pavorosa! E que não proviera da troca dos meus embrulhos, nem dos erros
da minha hyprocrisia.
Agora, pai, commendador, proprietario, eu tinha uma comprehensão mais
positiva da vida: e sentia bem que fôra esbulhado dos contos de G.
Godinho simplesmente por me ter faltado no Oratorio da titi--a coragem
d'affirmar!
Sim! quando em vez d'uma Corôa de Martyrio apparecera, sobre o altar da
titi, uma camisa de peccado--eu deveria ter gritado, com segurança: «Eis
ahi a Reliquia! Quiz fazer a surpreza... Não é a Corôa de Espinhos. É
melhor! É a camisa de Santa Maria Magdalena!... Deu-m'a ella no
Deserto!...»
E logo o provava com esse papel, escripto em letra perfeita: _Ao meu
portuguezinho valente, pelo muito que gozámos_... Era essa a carta em
que a Santa me offertava a sua camisa. Lá brilhavam as suas
iniciaes--_M. M._! Lá destacava essa clara, evidente confissão--«_o
muito que gozámos_»: o muito que eu gozára em mandar á Santa as minhas
orações para o céo, o muito que a Santa gozára no céo em receber as
minhas orações!
E quem o duvidaria? Não mostram os santos Missionarios de Braga, nos
seus sermões, bilhetes remettidos do céo pela Virgem Maria, sem sêllo? E
não garante a _Nação_ a divina authenticidade d'essas missivas, que têm
nas dobras a fragrancia do paraiso? Os dois sacerdotes, Negrão e
Pinheiro, conscios do seu dever, e na sua natural sofreguidão de
procurar esteios para a Fé oscillante--acclamariam logo na camisa, na
carta e nas iniciaes, um miraculoso triumpho da Egreja! A tia Patrocinio
cahiria sobre o meu peito, chamando-me «seu filho e seu herdeiro.» E
eis-me rico! Eis-me beatificado! O meu retrato seria pendurado na
sacristia da Sé. O Papa enviar-me-hia uma Benção Apostolica, pelos fios
do telegrapho.
Assim ficavam saciadas as minhas ambições sociaes. E quem sabe? Bem
poderiam ficar tambem satisfeitas as ambições intellectuaes que me
pegára o douto Topsius. Porque talvez a Sciencia, invejosa do triumpho
da Fé, reclamasse para si esta camisa de Maria de Magdala como documento
archeologico... Ella poderia alumiar escuros pontos na Historia dos
Costumes contemporaneos do Novo Testamento--o feitio das camisas na
Judêa no primeiro seculo, o estado industrial das rendas da Syria sob a
administração Romana, a maneira de abainhar entre as raças semiticas...
Eu surgiria, na consideração da Europa, igual aos Champollions, aos
Topsius, aos Lepsius, e outros sagazes resuscitadores de Passado. A
Academia logo gritaria--«A mim, o Raposo!» Renan, esse heresiarcha
sentimental, murmuraria--«Que suave collega, o Raposo!» Sem demora se
escreveriam sobre a camisa da Mary sabios, ponderosos livros em allemão,
com mappas da minha romagem em Galilêa... E eis-me ahi bemquisto pela
Egreja, celebrado pelas Universidades, com o meu cantinho certo na
Bemaventurança, a minha pagina retida na Historia, começando a engordar
pacificamente dentro dos contos de G. Godinho!
E tudo isto perdera! Porquê? Porque houve um momento em que me faltou
esse _descarado heroismo d'affirmar_, que, batendo na Terra com pé
forte, ou pallidamente elevando os olhos ao Céo--cria através da
universal illusão, Sciencias e Religiões.
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