A Relíquia - 15

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azul; uma tristeza cobria ao longe as montanhas de Samaria; grandes
aguias torneavam sobre os valles... Bocejando, rosnei:
--Vistasinha catita!
Uma madrugada, emfim, recomeçámos a descer para Jerusalem. Desde Samaria
a Ramah fomos alagados por esses vastos e negros chuveiros da Syria que
armam logo torrentes rugindo entre as rochas, sob os aloendros em flôr:
depois, junto á collina de Gibeah onde outr'ora no seu jardim, entre o
loiro e o cypreste, David tangia harpa olhando Sião--tudo se vestiu, de
serenidade e de azul. E uma inquietação engolfou-se em minha alma como
um vento triste n'uma ruina... Eu ia avistar Jerusalem! Mas--_qual_?
Seria a mesma que vira um dia, resplandecendo sumptuosamente ao sol de
Nizam, com as torres formidaveis, o Templo côr de ouro e côr de neve,
Acra cheia de palacios, Bezetha regada pelas aguas d'Enrogel?...
--El-Kurds! El-Kurds! gritou o velho beduino, com a lança no ar,
annunciando pela sua alcunha musulmana a cidade do Senhor.
Galopei, a tremer... E logo a vi, lá em baixo, junto á ravina do Cedron,
sombria, atulhada de conventos e agachada nas suas muralhas
caducas--como uma pobre, coberta de piolhos, que para morrer se embrulha
a um canto nos farrapos do seu mantéo.
Bem depressa, transpassada a Porta de Damasco, as patas dos nossos
cavallos atroaram o lagedo da rua Christã: rente ao muro um frade gordo,
com o breviario e o guardasol de paninho entalados sob o braço, ia
sorvendo uma pitada estrondosa. Apeámos no _Hotel do Mediterraneo_: no
esguio pateo, sob um annuncio das «Pilulas Holloway» um inglez, com um
quadrado de vidro collado ao olho claro, os sapatões atirados para cima
do divan de chita, lia o _Times_; por traz d'uma varanda aberta, onde
seccavam ceroulas brancas com nodoas de café, uma goela roufenha
vozeava: _C'est le beau Nicolas, holà_!... Ah! era esta, era esta, a
Jerusalém Catholica!... Depois ao penetrar no nosso quarto, claro e
alegrado pelo tabique de ramagens azues, ainda um instante me rebrilhou
na memoria certa sala, com candelabros d'ouro e uma estatua d'Augusto,
onde um homem togado estendia o braço e dizia: «Cesar conhece-me bem!»
Corri logo á janella a sorver o ar vivo da moderna Sião. Lá estava o
convento com as suas persianas verdes fechadas, e as gotteiras agora
mudas n'esta tarde de sol e doçura... Entre socalcos de jardins, lá se
torciam as escadinhas, cruzadas por Franciscanos d'alpercatas, por
judeus magros de sujas melenas... E que repouso na frescura d'estas
paredes de cella depois das estradas abrazadas de Samaria! Fui apalpar a
cama fofa. Abri o guarda-roupa de mogno. Fiz uma caricia leve ao
embrulhinho da camisa da Mary, redondo e gracioso com o seu nastro
vermelho, aninhado entre piugas.
N'esse instante o jocundo Potte entrou a trazer-me o precioso embrulho
da Corôa d'Espinhos, redondo e nitido com o seu nastro vermelho; e
alegremente deu-me as novas de Jerusalem. Colhera-as do barbeiro da
Via-Dolorosa e eram consideraveis. De Constantinopla viera um _firman_
exilando o Patriarcha grego, pobre velho evangelico, com uma doença de
figado, que soccorria os pobres. O snr. consul Damiani affirmára na loja
de reliquias da rua Armenia, batendo o pé, que antes do dia de Reis, por
causa da birra do murro entre os Franscicanos e a _Missão Protestante_,
a Italia tomaria armas contra a Allemanha. Em Bethlem, na egreja da
Natividade, um padre latino n'uma bulha, ao benzer hostias, rachára a
cabeça d'um padre copta com uma tocha de cera... E enfim, novidade mais
jubilosa, abrira-se para alegria de Sião, ao pé da porta de Herodes,
deitando sobre o valle de Josaphat, um café com bilhares, chamado o
_Retiro do Sinai_!
Subitamente, saudades dolentes do passado, cinzas que me cobriam a alma
foram varridas por um fresco vento de mocidade e de modernidade... Pulei
sobre o ladrilho sonoro:
--Viva o bello _Retiro_! A elle! ás iscas! á carambola! Irra! que estava
morto por me refestellar! E depois ás mulherinhas!... Põe ahi o embrulho
da Corôa, bello Potte... Isso significa muito bago! Jesus, o que ahi a
titi se vai babar!... Planta-o em cima da commoda, entre os castiçaes...
E logo, depois da comidinha, Pottesinho, para o _Retiro do Sinai_!
Justamente o sabio Topsius entrava esbaforido, com uma formosa nova
historica! Durante a nossa romagem a Galilêa, a _Commissão de Excavações
Biblicas_ encontrára, sob lixos seculares, uma das lapides de marmore
que, segundo Josepho e Philon e os Talmuds, se erguiam no Templo, junto
á Porta Bella, com uma inscripção prohibindo a entrada aos Gentilicos...
E elle instava que marchassemos, engolida a sopa, a pasmar para essa
maravilha... Um momento ainda me rebrilhou na memoria uma Porta, bella
em verdade, preciosa e triumphal, sobre os seus quatorze degraus de
marmore verde de Numidia...
Mas sacudi desabridamente os braços, n'uma revolta:
--Não quero! gritei. Estou farto!... Irra! E aqui lh'o declaro, Topsius,
solemnemente: de hoje em diante não torno a vêr nem mais um pedregulho,
nem mais um sitio de Religião... Irra! Tenho a minha dóse: e forte,
muito forte, doutor!
O sabio, enfiado, abalou com a rabona collada ás nádegas.
* * * * *
N'essa semana occupei-me em documentar e empacotar as Reliquias Menores
que destinava á tia Patrocinio. Copiosas e bem preciosas eram ellas--e
com devotissimo lustre brilhariam no thesouro da mais orgulhosa Sé! Além
das que Sião importa de Marselha em caixotes--rosarios, bentinhos,
medalhas, escapularios; além das que fornecem no Santo Sepulcho os
vendilhões--frascos d'agua do Jordão, pedrinhas da Via Dolorosa,
azeitonas do Monte Olivete, conchas do lago de Genesareth--eu levava-lhe
outras raras, peregrinas, ineditas... Era uma taboinha aplainada por S.
José; duas palhinhas do curral onde nasceu o Senhor; um bocadinho do
cantaro com que a Virgem ia á fonte; uma ferradura do burrinho em que
fugiu a Santa Familia para a terra do Egypto; e um prégo torto e
ferrugento...
Estas preciosidades, embrulhadas em papeis de côr, atadas com fitinhas
de sêda, guarnecidas de tocantes disticos--foram acondicionadas n'um
forte caixote, que a minha prudencia fez revestir de chapas de ferro.
Depois cuidei da Reliquia Maior, a Corôa de Espinhos, fonte de
celestiaes mercês para a titi--e de sonora pecunia para mim, seu
cavalleiro e seu romeiro.
Para a encaixotar, ambicionei uma madeira preclara e santa. Topsius
aconselhava o cedro do Libano--tão bello que por elle Salomão fez
alliança com Hyram rei de Tyro. O jocundo Potte porém, menos
archeologico, lembrou o honesto pinho de Flandres benzido pelo
Patriarcha de Jerusalem. Eu diria á titi que os prégos para o pregar
tinham pertencido á Arca de Noé: que um Ermitão os achára
miraculosamente no monte Ararat; que a ferragem que n'elles deixára o
lodo primitivo, dissolvida em agua benta, curava catarrhos... Tramámos
estas coisas consideraveis, cervejando no _Sinai_.
Durante esta atarefada semana, o embrulho da Corôa d'Espinhos
permanecera na commoda entre os dois castiçaes de vidro: foi só na
vespera de deixarmos Jerusalem que o encaixotei com carinho. Forrei a
madeira de chita azul, comprada na Via Dolorosa; fiz fôfo e dôce o fundo
do caixote com uma camada d'algodão mais branco que a neve do Carmello;
e colloquei dentro o adoravel embrulho, sem o remexer, como Topsius o
arranjára, no seu papel pardo e no seu nastro vermelho--porque estas
mesmas dobras do papel vincadas em Jerichó, este mesmo nó do nastro
atado junto ao Jordão, teriam para a snr.^a D. Patrocinio um
insubstituivel sabor de devoção... O esguio Topsius considerava estes
piedosos aprestes, fumando o seu cachimbo de louça.
--Oh Topsius, que chelpa isto me vai render! E diga lá, amiguinho, diga
lá! Então acha que eu posso affirmar á titi que _esta Corôa d'Espinhos
foi a mesma que_...
O doutissimo homem, por entre o fumo leve, soltou uma solidissima
maxima:
--As reliquias, D. Raposo, não valem pela authenticidade que possuem,
mas pela fé que inspiram. Póde dizer á titi que foi a mesma!
--Bemdito sejas, doutor!
N'essa tarde, o erudito homem acompanhára aos Tumulos dos Reis a
_Commissão de Excavações_. Eu parti, só, para o Horto das
Oliveiras--porque não havia, em torno a Jerusalem, lugar de sombra onde
mais gratamente em tardes serenas gozasse um pachorrento cachimbo.
Sahi pela porta de Santo Estevão; trotei pela ponte do Cedron; galguei o
atalho entre piteiras até ao murosinho, caiado e aldeão, que cerra o
jardim de Gethsemani. Empurrei a portinha verde, pintada de fresco, com
a sua aldraba de cobre: e penetrei no pomar onde Jesus ajoelhou e gemeu
sob a folhagem das Oliveiras. Alli vivem ainda, essas arvores santas que
ramalharam embaladoramente sobre a sua cabeça fatigada do mundo! São
oito, negras, carcomidas pela decrepitude, escoradas com estacas de
madeira, amodorradas, já esquecidas d'essa noite de Nizam em que os
anjos, voando sem rumor, espreitavam através dos seus ramos as
desconsolações humanas do filho de Deus... Nos buracos dos seus troncos
estão guardados enxós e podões: nas pontas dos galhos raras e tenues
folhinhas, d'um verde sem seiva, tremem e mal vivem como os sorrisos
d'um moribundo.
E em redor que hortasinha caridosamente regada, estrumada com devoção!
Em canteiros, com sebes de alfena, verdejam frescas alfaces: as
ruasinhas areadas não têm uma folha murcha que lhes macule o aceio de
capella: rente aos muros, onde rebrilham em nichos doze Apostolos de
louça, correm alfobres de cebolinho e cenoura fechados por cheirosa
alfazema... Porque não floria aqui, em tempos de Jesus, tão suave
quintal? Talvez a placida ordem d'estes uteis legumes calmasse a
tormenta do seu coração!
Sentei-me debaixo da mais velha oliveira. O frade guardião, risonho
santo de barbas sem fim, regava com o habito arregaçado os seus vasos de
rainunculos. A tarde cahia com melancolico esplendor.
E, enchendo o cachimbo, eu sorria aos meus pensamentos. Sim! Ao outro
dia deixaria essa cinzenta cidade, que lá em baixo se agachava entre os
seus muros funebres como viuva que não quer ser consolada... Depois uma
manhã, cortando a vaga azul, avistaria a serra fresca de Cintra: as
gaivotas da patria vinham dar-me o grito de boa acolhida, esvoaçando em
torno aos mastros; Lisboa pouco a pouco surgia, com as suas brancas
caliças, a herva nos seus telhados, indolente e dôce aos meus olhos...
Berrando «oh titi, oh titi!», eu trepava as escadas de pedra da nossa
casa em Sant'Anna: e a titi, com fios de baba no queixo, punha-se a
tremer diante da Grande Reliquia que eu lhe offerecia, modesto. Então,
na presença de testemunhas celestes, de S. Pedro, de Nossa Senhora do
Patrocinio, de S. Casimiro e de S. José, ella chamava-me «seu filho, seu
herdeiro!» E ao outro dia começava a amarellecer, a definhar, a gemer...
Oh delicia!
De leve, sobre o muro, entre as madresilvas um passaro cantou: e mais
alegre que elle cantou uma esperança no meu coração! Era a titi na cama,
com o lenço negro amarrado na cabeça, apalpando angustiosamente as
dobras do lençol suado, arquejando com terror do Diabo... Era a titi a
espichar, retesando as canellas. N'um dia macio de Maio mettiam-n'a já
fria e cheirando mal, dentro d'um caixão bem pregado e bem seguro. Com
tipoias atraz, lá marchava D. Patrocinio para a sua cova, para os
bichos. Depois quebrava-se o lacre do testamento na sala dos damascos,
onde eu preparára para o tabellião Justino pasteis e vinho do Porto:
carregado de luto, amparado ao marmore da mesa, eu afogava n'um lenço
amarfanhado o escandaloso brilho da minha face: e d'entre as folhas de
papel sellado sentia, rolando com um tinir d'ouro, rolando com um
susurro de searas, rolando, rolando para mim os contos de G. Godinho!...
Oh extasi!
O santo frade pousára o regador, e passeava com o Breviario aberto n'uma
ruasinha de murta. Que faria eu, na minha casa em Sant'Anna, apenas
levassem a fetida velha, amortalhada n'um habito de Nossa Senhora? Uma
alta justiça: correr ao oratorio, apagar as luzes, desfolhar os ramos,
abandonar os santos á escuridão e ao bolor! Sim, todo eu, Raposo e
liberal, necessitava a desforra de me ter prostrado diante das suas
figuras pintadas como um sordido sacrista, de me ter recommendado á sua
influencia de calendario como um escravo credulo! Eu servira os santos
para servir a titi. Mas agora, ineffavel deleite, ella na sua cova
apodrecia: n'aquelles olhos, onde nunca escorrera uma lagrima caridosa,
fervilhavam gulosamente os vermes: sob aquelles beiços, desfeitos em
lôdo, surgiam emfim sorrindo os seus velhos dentes furados que jámais
tinham sorrido... Os contos de G. Godinho eram meus; e libertado da
ascorosa senhora, eu já não devia aos seus santos nem rezas nem rosas!
Depois, cumprida esta obra de justiça philosophica, corria a Paris, ás
mulherinhas!
O bom frade, risonho na sua barba de neve, bateu-me no hombro, chamou-me
seu filho, lembrou-me que se fechava o Santo Horto e que lhe seria grata
a minha esmola... Dei-lhe uma placa: e recolhi regalado a Jerusalem,
devagar, pelo valle de Josaphat, cantarolando um _fado_ meigo.
Ao outro dia de tarde, tocava o sino a Novena na egreja da Flagellação
quando a nossa caravana se formou á porta do _Hotel do Mediterraneo_,
para partirmos de Jerusalem. Os caixões das reliquias iam sobre o macho,
entre os fardos. O beduino, mais encatarrhoado, abafára-se n'um ignobil
_cachenez_ de sacristão. Topsius montava outra egoa, séria e
pachorrenta. E eu, que por alegria puzera uma rosa vermelha ao peito,
resmunguei, ao pisarmos pela vez derradeira a Via Dolorosa:--«Fica-te,
possilga de Sião!»
Já chegávamos á porta de Damasco quando um grito esbaforido resoou, no
alto da rua, á esquina do convento dos Abyssinios:
--Amigo Potte, doutor, cavalheiros!... Um embrulho! Esqueceu um
embrulho...
Era o negro do Hotel, em cabello, agitando um embrulho que logo
reconheci pelo papel pardo e pelo nastro vermelho. A camisinha de dormir
da Mary! E recordei que com effeito, ao emmalar, eu não o vira no
guarda-roupa, no seu ninho de piugas.
Esfalfado, o servo contou que depois de partirmos, varrendo o quarto,
descobrira o embrulhinho entre pó e aranhas, detraz da commoda;
limpára-o carinhosamente; e como fôra sempre seu afan servir o fidalgo
lusitano, abalára, mesmo sem a jaleca...
--Basta! rosnei eu, sêcco e carrancudo.
Dei-lhe as moedas de cobre que me atulhavam as algibeiras. E pensava:
«Como rolou elle para traz da commoda?» Talvez o negro atabalhoado que,
arrumando, o tirára do seu ninho de piugas... Pois antes lá permanecesse
para sempre, entre o pó e as aranhas! Porque em verdade este pacote era
agora audazmente impertinente.
Decerto! eu amava a Mary. A esperança que em breve na terra do Egypto
seria apertado pelos seus braços gordinhos ainda me fazia espreguiçar
com langor. Mas guardando fielmente a sua imagem no coração, não
necessitava trazer perennemente á garupa a sua camisinha de dormir. Com
que direito pois corria esta bretanha atraz de mim, pelas ruas de
Jerusalem, querendo installar-se violentamente nas minhas malas e
acompanhar-me á minha patria?
E era essa idéa de patria que me torturava, emquanto nos afastavamos das
muralhas da Cidade Santa... Como poderia eu jámais penetrar com este
pacote lubrico na casa ecclesiastica da tia Patrocinio? Constantemente a
titi se encafuava no meu quarto, munida de chaves falsas, aspera e
avida, rebuscando pelos cantos, nas minhas cartas e nas minhas
ceroulas... Que cólera a esverdearia se n'uma noite de pesquizas ella
encontrasse estas rendas babujadas pelos meus labios, fedendo a peccado,
com a offerta em letra cursiva «_Ao meu portuguezinho valente_!»
«Se soubesse que n'esta santa viagem te tinhas mettido com saias,
escorraçava-te como um cão!» Assim o dissera a titi, em vesperas da
minha romagem, diante da Magistratura e da Egreja. E iria eu, pelo luxo
sentimental de conservar a reliquia d'uma luveira, perder a amizade da
velha que tão caramente conquistára com terços, pingos d'agua benta e
humilhações da razão liberal? Jámais!... E, se não afoguei logo o
embrulho funesto na agua d'um charco, ao atravessarmos as choças de
Kolonieh, foi para não revelar ao penetrante Topsius as covardias do meu
coração. Mas decidi que mal penetrassemos com a noite nas montanhas de
Judá, retardaria o passo á egoa, e longe dos oculos do Historiador,
longe das solicitudes de Potte, arrojaria a um barranco a terrivel
camisa da Mary, evidencia do meu peccado e damno da minha fortuna. E que
bem depressa os dentes dos chacaes a rasgassem! Bem depressa os
chuveiros do Senhor a apodrecessem!
Já passáramos o tumulo de Samuel por traz dos rochedos d'Emmaus, já para
sempre Jerusalem desapparecera aos meus olhos, quando a egoa de Topsius,
avistando uma fonte, n'um valle cavado junto á estrada, deixou a
caravana, deixou o dever--e trotou para a agua, com impudencia e com
alacridade. Estaquei, indignado:
--Puxe-lhe a redea, doutor! Olha que descaro d'egoa! Ainda agora
bebeu... Não lhe ceda! Puxe mais! Não lhe toque, homem!
Mas debalde o philosopho, com os cotovêlos sahidos, as pernas esticadas,
lhe repuxava bridões e clinas. A cavalgadura abalou com o philosopho.
Corri tambem á fonte, para não abandonar n'aquelle ermo o precioso
homem. Era um fio d'agua turva, escorrendo d'uma quelha, sobre um tanque
escavado na rocha. Ao pé branquejava, já partida, a grande carcassa d'um
dromedario. Os ramos d'uma mimosa, alli solitaria, tinham sido queimados
por um fogo de caravana. Longe, na espinha escarnada d'uma collina, um
pastor, negro no céo opalino, ia caminhando devagar entre as suas
ovelhas com a lança pousada ao hombro. E na sombria mudez de tudo a
fonte chorava.
Aquella quebrada era tão deserta que me lembrou deixar alli a
desfazer-se, como a ossada do dromedario, o embrulhinho da Mary... A
egoa do Historiador beberava com pachorra. E eu procurava aqui, além, um
barranco ou um charco--quando me pareceu que junto da fonte, e misturado
ao pranto d'ella, corria tambem um pranto humano.
Torneei um penedo que avançava soberbamente como a prôa d'uma galera--e
descobri, agachada e refugiada entre as pedras e os cardos, uma mulher
que chorava, com uma criancinha no regaço: os seus cabellos crespos
espalhavam-se pelos hombros e pelos braços, que os trapos negros mal
cobriam: e sobre o filho, que dormia no calor do collo, o seu chôro
corria, mais contínuo, mais triste que o da fonte, e como se não devesse
findar jámais.
Gritei pelo jocundo Potte. Quando elle trotou para nós, agarrando a
coronha prateada da sua pistola, suppliquei que perguntasse á mulher a
causa d'essas longas lagrimas. Mas ella parecia entontecida pela
miseria: fallou surdamente d'um casebre queimado, de cavalleiros turcos
que tinham passado, do leite que lhe seccava... Depois apertou a criança
contra a face--e suffocada, sob os cabellos esguedelhados, recomeçou a
chorar.
O festivo Potte deitou-lhe uma moeda de prata; Topsius tomou, para a sua
severa conferencia sobre a _Judêa Musulmana_, um apontamento d'aquelle
infortunio. E eu, commovido, procurava na algibeira o meu cobre--quando
me recordei que o dera n'um punhado ao negro do _Hotel do Mediterraneo_.
Mas tive uma util inspiração. Atirei-lhe o perigoso embrulho da
camisinha da Mary; e a meu pedido o risonho Potte explicou á
desventurada que qualquer das peccadoras que habitam junto á torre de
David, a gorda Fatmé ou Palmira a _Samaritana_, lhe daria duas piastras
d'ouro por esse vestido de luxo, de amor e de civilisação.
Trotámos para a estrada. Atraz de nós a mulher lançava-nos, por entre
soluços e beijos ao filho, todas as bençãos do seu coração: e a nossa
caravana retomou a marcha--emquanto o arrieiro adiante, escarranchado
sobre as bagagens, cantava á estrella de Venus que se erguera esse canto
da Syria, aspero, alongado e dolente, em que se falla d'amor, de Allah,
d'uma batalha com lanças, e dos rosaes de Damasco...
* * * * *
Ao apearmos de manhã no _Hotel de Josaphat_, na vetusta
Jaffa--prodigiosa foi a minha surpreza vendo, pensativamente sentado no
pateo, com um bojudo turbante branco, o mofino Alpedrinha!... Fiz-lhe
ranger os ossos n'um abraço voraz. E quando Topsius e o jocundo Potte
partiram, debaixo do guardasol de paninho, a colher novas do paquete que
nos devia levar á terra do Egypto--Alpedrinha contou-me a sua historia,
escovando o meu albornoz.
Fôra por tristeza que deixára a «Alexandriasinha». O _Hotel das
Pyramides_, as maletas carregadas, tinham já saturado a sua alma d'um
tedio insondavel: e o nosso embarque no _Caimão_ para Jerusalem dera-lhe
a saudade dos mares, das cidades cheias d'historia, das multidões
desconhecidas... Um judeu de Keshan, que ia fundar uma estalagem em
Bagdad com bilhar, alliciára-o para «marcador». E elle, mettendo n'um
sacco as piastras juntas nas amarguras do Egypto, ia tentar essa
aventura do Progresso junto ás aguas lentas do Euphrates, na terra de
Babylonia. Mas, cansado de acarretar fardos alheios, buscava primeiro
Jerusalem, insensivelmente, levado talvez pelo Espirito como o Apostolo,
para descansar com as mãos quietas a uma esquina da Via Dolorosa...
--E o cavalheiro recebeu alguns jornaes da nossa Lisboa? Gostava de
saber como vai por lá a rapaziada...
Emquanto elle assim balbuciava, triste e com o turbante á banda, eu
revia risonhamente a terra quente do Egypto, a rua clara das _Duas
Irmãs_, a capellinha entre platanos, as papoilas do chapéo da Mary... E
mais agudo me picava outra vez o desejo da minha loira luveira. Que dôce
grito de paixão nos seus beiços gordinhos, quando uma tarde, queimado
pelo sol da Syria e mais forte, eu surgisse diante do seu balcão
espantando o gato branco! E a camisinha?... Bem! contaria que uma noite,
junto d'uma fonte, m'a tinham roubado cavalleiros turcos com lanças.
--Dize lá, Alpedrinha! Tenl-a visto, a Maricoquinhas? Que tal está?
hein? Rechonchudinha?
Elle baixou o rosto murcho, onde um estranho rubor lhe avivára duas
rosas.
--Já não está... Foi para Thebas!
--Para Thebas? Onde ha umas ruinas?... Mas isso é no alto Egypto! Isso é
em cascos de Nubia! Ora essa!... Que foi ella lá fazer?
--Alindar as vistas, murmurou Alpedrinha com desolação.
Alindar as vistas! Só comprehendi quando o patricio me contou que a
ingrata rosa d'York, adorno d'Alexandria, fôra levada por um italiano de
cabellos compridos, que ia a Thebas photographar as ruinas d'esses
palacios onde viviam face a face Rameses, rei dos homens, e Amnon, rei
dos Deuses... E Maricoquinhas ia amenisar «as vistas», apparecendo
n'ellas, á sombra austera dos granitos sacerdotaes, com a graça moderna
do seu guardasolinho fechado e do seu chapéo de papoilas...
--Que descarada! gritei eu, varado. Então com um italiano? E gostando
d'elle? Ou só negocio?... Hein, gostando?
--Babadinha, balbuciou Alpedrinha.
E, com um suspiro, atroou o _Hotel de Josaphat_. Perante este _ai_,
repassado de tormento e de paixão, relampejou-me n'alma uma suspeita
abominavel.
--Alpedrinha, tu suspiraste! Aqui ha perfidia, Alpedrinha!
Elle baixou a fronte tão contritamente que o turbante lasso rolou nos
ladrilhos. E antes que elle o levantasse já eu lhe empolgára com sanha o
braço molle.
--Alpedrinha, escarra a verdade! A Maricoquinhas, hein? Tambem
petiscaste?
A minha face barbuda chammejava... Mas Alpedrinha era meridional, das
nossas terras palreiras da vangloria e do vinho. O medo cedeu á
vaidade,--e revirando para mim o bugalho branco do olho:
--Tambem petisquei!
Sacudi-lhe o braço para longe, cheio de furor e de nojo. Tambem
aquella--com aquelle! Oh, a Terra! a Terra! que é ella senão um montão
de coisas pôdres, rolando pelos céos com basofias d'astro?
--E dize lá, Alpedrinha, dize lá, tambem te deu uma camisa?
--A mim um chambresinho...
Tambem a elle--roupa branca! Ri, acerbamente, com as mãos nas ilhargas.
--E ouve lá... Tambem te chamava «seu portuguezinho valente?»
--Como eu servia com turcos, chamava-me seu «moirosinho catita».
Ia rebolar-me no divan, rasgal-o com as unhas, rir sempre, n'um
desesperado desprezo de tudo... Mas Topsius e o risonho Potte
appareceram alvoroçados.
--Então?...
Sim, chegára de Smyrna um paquete que levantava n'essa tarde ferro para
o Egypto, e que era o nosso dilecto _Caimão_!
--Ainda bem! gritei, atirando patadas ao ladrilho. Ainda bem, que estava
farto do Oriente!... Irra! que não apanhei aqui senão soalheiras,
traições, sonhos medonhos e botas pelos quadris! Estava farto!
Assim eu bramava, sanhudo. Mas n'essa tarde, na praia, diante da barcaça
negra que nos devia levar ao _Caimão_, entrou-me n'alma uma longa
saudade da Palestina, e das nossas tendas erguidas sob o esplendor das
estrellas, e da caravana marchando e cantando por entre as ruinas de
nomes sonoros.
O labio tremeu-me, quando Potte commovido me estendeu a sua bolsa de
tabaco d'Alepo:
--D. Raposo, é o ultimo cigarro que lhe dá o alegre Potte.
E a lagrima rolou por fim quando Alpedrinha, em silencio, me estendeu os
braços magros.
Da barcaça, acocorado sobre os caixões das Reliquias, ainda o vi na
praia, sacudindo para mim um lenço triste de quadrados--ao lado de Potte
que nos atirava beijos, com as grossas botas mettidas n'agua. E já no
_Caimão_, debruçado na amurada, ainda o avistei immovel sobre as pedras
do molhe, segurando com as mãos, contra a brisa salgada, o seu vasto
turbante branco.
Desventuroso Alpedrinha! Só eu, em verdade, comprehendi a tua grandeza!
Tu eras o derradeiro Lusiada, da raça dos Albuquerques, dos Castros, dos
varões fortes que iam nas armadas á India! A mesma sêde divina do
desconhecido te levára, como elles, para essa terra de Oriente, d'onde
sobem ao céo os astros que espalham a luz e os deuses que ensinam a lei.
Sómente não tendo já, como os velhos Lusiadas, crenças heroicas
concebendo empresas heroicas, tu não vaes como elles, com um grande
rosario e com uma grande espada, impôr ás gentes estranhas o teu rei e o
teu Deus. Já não tens Deus por quem se combata, Alpedrinha! nem rei por
quem se navegue, Alpedrinha!... Por isso, entre os povos do Oriente, te
gastas nas occupações unicas que comportam a fé, o ideal, o valor dos
modernos Lusiadas--descansar encostado ás esquinas, ou tristemente
carregar fardos alheios...
As rodas do _Caimão_ bateram a agua. Topsius ergueu o seu boné de
sêda--e gravemente gritou para o lado de Jaffa, que escurecia na
pallidez da tarde, sobre os seus tristes rochedos, entre os seus pomares
verde-negros:
--Adeus, adeus para sempre, terra da Palestina!
Eu acenei tambem com o capacete:
--Adeusinho, adeusinho, coisas de Religião!
Afastava-me devagar da amurada quando roçou por mim a longa capa de
lustrina d'uma Religiosa; e d'entre a sombra pudica do capuz, que se
voltou de leve, um fulgor de olhos negros procurou as minhas barbas
potentes. Oh maravilha! Era a mesma santa irmã que levára nos seus
castos joelhos, através d'estas aguas da Escriptura, a camisa immunda da
Mary!
Era a mesma! Porque collocava novamente o destino junto a mim, no
estreito tombadilho do _Caimão_, este lirio de capella ainda fechado e
já murcho? Quem sabe! Talvez para que ao calor do meu desejo elle
reverdecesse, désse flôr, e não ficasse para sempre esteril e inutil,
tombado aos pés do cadaver de um Deus!... E não vinha agora guardada
pela outra Religiosa, rechonchuda e de luneta! A sorte abandonava-m'a
indefesa, como a pombinha no êrmo.
Rompeu-me então n'alma a fulgurante esperança d'um amor de monja mais
forte que o medo de Deus, d'um seio magoado pela estamenha de penitencia
cahindo, todo a tremer e vencido, entre os meus braços valentes!...
Decidi segredar-lhe logo alli: «Oh minha irmãsinha, estou todo lamecha
por si!» E inflammado, torcendo os bigodes, caminhei para a dôce
Religiosa, que se refugiára n'um banco, passando os dedos pallidos pelas
contas do seu rosario...
Mas, bruscamente, o taboado do _Caimão_ fugiu sob meus pés ovantes.
Estaquei, enfiado. Oh miseria! humilhação! Era a vaga enjoadora... Corri
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