A Relíquia - 12

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que fiz eu? Sempre fui humilde, cumpro o Sabbat, vou á synagoga de Naim
que é a minha, e as raras migalhas que sobravam do meu pão juntava-as
para aquelles que nem migalhas têm na terra... Que mal fazia eu
vendendo? Em que offendia o Senhor? Sempre, antes de estender a esteira,
beijava as lages do Templo: cada pedra era purificada pelas aguas
lustraes... Em verdade Jehovah é grande, e sabe... Mas eu fui expulso
pelo Rabbi, sómente porque sou pobre!
Calou-se--e as suas mãos magras, tatuadas de linhas magicas, tremiam,
limpando as longas lagrimas que o alagavam.
Bati no peito, desesperado. E a minha angustia toda era por Jesus
ignorar esta desgraça, que, na violencia do seu espiritualismo, suas
mãos misericordiosas tinham involuntariamente creado, como a chuva
benefica por vezes, fazendo nascer a sementeira, quebra e mata uma flôr
isolada. Então para que não houvesse nada imperfeito na sua vida, nem
d'ella ficasse uma queixa na terra--paguei a divida de Jesus (assim seu
Pai perdôe a minha!) atirando para o saião do velho moedas
consideraveis, drachmas, crysos gregos de Philippe, aureos romanos
d'Augusto, até uma grossa peça da Cyrenaica que eu estimava por ter uma
cabeça de Zeus Amnon que parecia a minha imagem. Topsius juntou a este
thesouro um lepta de cobre--que tem em Judêa o valor d'um grão de
milho...
O velho pedreiro de Naim empallidecia, suffocado. Depois, com o dinheiro
n'uma dobra do saião, bem apertado contra o peito, murmurou timida e
religiosamente, erguendo os olhos ainda molhados para as alturas:
--Pai, que estás nos céos, lembra-te da face d'este homem, que me deu o
pão de longos dias!...
E soluçando sumiu-se entre a turba--que agora de todo o atrio
rumorosamente affluia, se apinhava em torno aos mastros altos do
velario. O escriba apparecera, mais vermelho e limpando os beiços. Ao
lado do Rabbi e dos guardas do Templo, Sarêas viera perfilar-se
encostado ao seu baculo. Depois, entre um brilho d'armas, surgiram as
varas brancas dos lictores: e novamente Poncius, pallido e pesado, na
sua vasta toga, subiu os degraus de bronze, retomou o o Assento Curul.
Um silencio cahiu, tão attento, que se ouviam as bozinas tocando ao
longe na Torre Marianna. Sarêas desenrolou o seu escuro pergaminho,
estendeu-o sobre a mesa de pedra entre os tabularios: e eu vi as mãos
gordas e morosas do escriba traçarem uma rubrica, estamparem um sêllo
sob as linhas vermelhas que condemnavam á morte Jesus de Galilêa, meu
Senhor... Depois Poncius Pilatus, com uma dignidade indolente, erguendo
apenas de leve o braço nú, confirmou em nome de Cesar a «sentença do
Sanhedrin, que julga em Jerusalem...»
Immediatamente Sarêas atirou sobre o turbante uma ponta do manto, ficou
orando, com as mãos abertas para o céo. E os Phariseus triumphavam:
junto a nós, dois muito velhos beijavam-se em silencio nas barbas
brancas: outros sacudiam no ar os bastões, ou lançavam sarcasticamente a
acclamação forense dos romanos: «_Bene et belle_! _Non potest melius_!»
Mas de subito o Interprete appareceu em cima d'um escabello, alteando
sobre o peito o seu papagaio flammante. A turba emmudecera,
surprehendida. E o phenicio, depois de ter consultado com o escriba,
sorriu, gritou em chaldaico, alargando os braços cercados de manilhas de
coral:
--Escutai! N'esta vossa festa de Paschoa, o Pretor de Jerusalem costuma,
desde que Valerius Gratus assim o determinou, e com assenso de Cesar,
perdoar a um criminoso... O Pretor propõe-vos o perdão d'este... Escutai
ainda! Vós tendes tambem o direito de escolher, vós mesmos, entre os
condemnados... O Pretor tem em seu poder, nos ergastulos de Herodes,
outro sentenciado á morte...
Hesitou,--e debruçado do escabello interrogava de novo o escriba que
remexia n'uma atarantação os papyros e os tabularios. Sarêas, sacudindo
a ponta do manto que escondia a sua oração, ficára assombrado para o
Pretor, com as mãos abertas no ar. Mas já o Interprete bradava, erguendo
mais a face risonha:
--Um dos condemnados é Rabbi Jeschoua, que ahi tendes, e que se disse
filho de David... É esse que propõe o Pretor. O outro, endurecido no
mal, foi preso por ter morto um legionario traiçoeiramente, n'uma rixa,
ao pé do Xistus. O seu nome é Bar-Abbás... Escolhei!
Um grito brusco e roufenho partiu d'entre os Phariseus:
--Bar-Abbás!
Aqui e além, pelo atrio, confusamente resoou o nome de Bar-Abbás. E um
escravo do Templo, de saião amarello, pulando até aos degraus do sólio,
rompeu a berrar, em face de Poncius, com palmadas furiosas nas côxas:
--Bar-Abbás! Ouve bem! Bar-Abbás! O povo só quer Bar-Abbás!
A haste d'um legionario fel-o rolar nas lages. Mas já toda a multidão,
mais leve e facil d'inflammar do que a palha na meda, clamava por
Bar-Abbás: uns com furor, batendo as sandalias e os cajados ferrados
como para aluir o Pretorio; outros de longe, encruzados ao sol,
indolentes e erguendo um dedo. Os vendilhões do Templo, rancorosos,
sacudindo as balanças de ferro e repicando sinetas, berravam, por entre
maldições ao Rabbi: «Bar-Abbás é o melhor!» E até as prostitutas de
Tiberiade, pintadas de vermelhão como idolos, feriam o ar de gritos
silvantes:
--Bar-Abbás! Bar-Abbás!
Raros alli conheciam Bar-Abbás; muitos, de certo, não odiavam o
Rabbi--mas todos engrossavam o tumulto promptamente, sentindo, n'essa
reclamação do preso que atacára Legionarios, um ultraje ao Pretor
romano, togado e augusto no seu tribunal. Poncius no entanto,
indifferente, traçava letras n'uma vasta lauda de pergaminho pousada
sobre os joelhos. E em torno os clamores disciplinados retumbavam em
cadencia, como malhos n'uma eira:
--Bar-Abbás! Bar-Abbás! Bar-Abbás!
Então Jesus, vagarosamente, voltou-se para aquelle mundo duro e
revoltoso que o condemnava: e nos seus refulgentes olhos humedecidos, no
fugitivo tremor dos seus labios, só transpareceu n'esse instante uma
mágua misericordiosa pela opaca inconsciencia dos homens, que assim
empurravam para a morte o melhor amigo dos homens... Com os pulsos
presos, limpou uma gotta de suor: depois ficou diante do Pretor, tão
imperturbado e quêdo, como se já não pertencesse á terra.
O escriba, batendo com uma regra de ferro na pedra da mesa, tres vezes
bradára o nome de Cesar. O tumulto ardente esmorecia. Poncius ergueu-se:
e grave, sem trahir impaciencia ou cólera, lançou, sacudindo a mão, o
mandado final:
--Ide e crucificai-o!
Desceu o estrado; a turba batia ferozmente as palmas.
Oito soldados da cohorte Syriaca appareceram, apetrechados em marcha,
com os escudos revestidos de lona, as ferramentas entrouxadas, e o largo
cantil da _posca_. Sarêas, vogal do Sanhedrin, tocando no hombro de
Jesus, entregou-o ao decurião: um soldado desapertou-lhe as cordas,
outro tirou-lhe o albornoz de lã: e eu vi o dôce Rabbi de Galilêa dar o
seu primeiro passo para a morte.
Apressados, enrolando o cigarro, deixámos logo o palacio de Herodes por
uma passagem que o douto Topsius conhecia, lobrega e humida, com fendas
gradeadas d'onde vinha um canto triste de escravos encarcerados...
Sahimos a um terreiro, abrigado pelo muro d'um jardim todo plantado de
cyprestes. Dois dromedarios deitados no pó ruminavam, junto d'um montão
d'hervas cortadas. E o alto historiador tomava já o caminho do Templo,
quando, sob as ruinas d'um arco que a hera cobria, vimos povo apinhado
em torno d'um Essenio, cujas mangas d'alvo linho batiam o ar como as
azas d'um passaro irritado.
Era Gad, rouco d'indignação, clamando contra um homem esgrouviado, de
barba rala e ruiva, com grossas argolas de ouro nas orelhas, que tremia
e balbuciava:
--Não fui eu, não fui eu...
--Foste tu! bradava o Essenio, estampando a sandalia na terra.
Conheço-te bem. Tua mãi é cardadeira em Capárnaum, e maldita seja pelo
leite que te deu!...
O homem recuava, baixando a cabeça, como um animal encurralado á força:
--Não fui eu! Eu sou Rephrahim, filho de Eliesar, de Ramah! Sempre todos
me conheceram são e forte como a palmeira nova!
--Torto e inutil eras tu como um sarmento velho de vide, cão e filho
d'um cão! gritou Gad. Vi-te bem... Foi em Capárnaum, na viella onde está
a fonte, ao pé da Synagoga, que tu appareceste a Jesus, Rabbi de
Nazareth! Beijavas-lhe as sandalias, dizias «Rabbi, cura-me! Rabbi, vê
esta mão que não póde trabalhar!» E mostravas-lhe a mão, essa, a
direita, secca, mirrada e negra, como o ramo que definhou sobre o
tronco! Era no Sabbath: estavam os tres chefes da Synagoga, e Elzear, e
Simeon. E todos olhavam Jesus para vêr se elle ousaria curar no dia do
Senhor... Tu choravas, de rojo no chão. E por acaso o Rabbi repelliu-te?
Mandou-te procurar a raiz do baraz? Ah cão, filho d'um cão! O Rabbi,
indifferente ás accusações da Synagoga, e só escutando a sua
misericordia, disse-te: «estende a mão!» Tocou-a, e ella reverdeceu logo
como a planta regada pelo orvalho do céo! Estava sã, forte, firme; e tu
movias ora um dedo, ora outro, espantado e tremendo.
Um murmurio d'enlevo correu entre a multidão, maravilhada pelo dôce
milagre. E o Essenio exclamava, com os braços tremulos no ar:
--Assim foi a caridade do Rabbi! E estendeu-te elle a ponta do manto,
como fazem os Rabbis de Jerusalem, para que lhe deitasses dentro um
siclo de prata? Não. Disse aos seus amigos que te dessem da provisão de
lentilha... E tu largaste a correr pelo caminho, refeito e agil,
gritando para o lado da tua casa: «Oh mãi, oh mãi, estou curado!...» E
foste tu, porco e filho de porco, que ha pouco no Pretorio pedias a cruz
para o Rabbi e gritavas por Bar-Abbás! Não negues, bocca immunda; eu
ouvi-te; estava por traz de ti, e via incharem-te as cordoveias do
pescoço com o furor da tua ingratidão!
Alguns, escandalisados, gritavam: «maldito! maldito!» Um velho, com
justiceira gravidade, apanhára duas grossas pedras. E o homem de
Capárnaum, encolhido, esmagado, ainda rosnou surdamente:
--Não fui eu, não fui eu... Eu sou de Ramah!
Gad, furioso, agarrou-o pelas barbas:
--N'esse braço, quando o arregaçaste diante do Rabbi, todos te viram
duas cicatrizes curvas como de dois golpes de foice!... E tu vaes
mostral-as agora, cão e filho d'um cão!
Despedaçou-lhe a manga da tunica nova; arrastou-o em redor, apertado nas
suas mãos de bronze, como um bode teimoso; mostrou bem as duas
cicatrizes, lividas no pêllo ruivo; e assim o arremessou
desprezivelmente para entre o povo--que, levantando o pó do caminho,
perseguiu o homem de Capárnaum com apupos e com pedradas...
Acercamo-nos de Gad sorrindo, louvando a sua fidelidade a Jesus. Elle,
acalmado, estendera as mãos a um vendedor d'agua, que lh'as purificava
com um largo jorro do seu ôdre felpudo: depois limpando-as á toalha de
linho que lhe pendia do cinto:
--Escutai! José de Ramatha reclamou o corpo do Rabbi, o Pretor
concedeu-lh'o... Esperai-me á nona hora romana no pateo de Gamaliel...
Onde ides?
Topsius confessou que iamos ao Templo, por motivos intellectuaes d'arte,
d'archeologia...
--Vão é aquelle que admira pedras! rosnou o altivo idealista.
E afastou-se puxando o capuz sobre a face, por entre as bençãos do povo
que crê e ama os Essenios.
* * * * *
Para poupar, até ao Templo, a rude caminhada pelo Tyropêo e pela ponte
do Xistus, tomámos duas liteiras--das que um liberto de Poncius
ultimamente alugava, junto ao Pretorio, «á moda de Roma».
Cançado, estirei-me, com as mãos sob a nuca, no colchão de folhas seccas
que cheirava a murta: e lentamente começou a invadir-me a alma uma
inquietação estranha, temerosa, que já no Pretorio me roçára de leve
como a aza arripiada d'uma ave agourenta... Ia eu ficar para sempre
n'esta cidade forte dos Judeus? Perdera eu irremediavelmente a minha
individualidade de Raposo, de catholico, de bacharel, contemporaneo do
_Times_ e do Gaz--para me tornar um homem da Antiguidade classica, coevo
de Tiberio? E, dado este mirifico retrogresso nos tempos, se voltasse á
minha patria, que iria eu encontrar á beira do rio claro?...
Decerto encontraria uma colonia romana: na encosta da collina mais
fresca uma edificação de pedra onde vive o proconsul; ao lado um templo
pequeno de Apollo ou de Marte coberto de lousa; nos altos um campo
entrincheirado onde estão os legionarios; e em redor a villa lusitana,
esparsa, com os seus caminhos agrestes, cabanas de pedra solta,
alpendres para recolher o gado, e estacadas no lodo onde se amarram
jangadas... Assim encontraria a minha patria. E que faria lá, pobre,
solitario? Seria pastor nos montes? Varreria as escadarias do Templo,
racharia a lenha das cohortes para ganhar um salario romano?... Miseria
incomparavel!
Mas se ficasse em Jerusalem? Que carreira tomaria n'esta sombria, devota
cidade da Asia? Tornar-me-hia um Judeu, resando o Schema, cumprindo o
Sabbath, perfumando a barba de nardo, indo preguiçar nos atrios do
Templo, seguindo as lições d'um Rabbi, e passeando ás tardes, com um
bastão dourado, nos jardins de Gareb entre os tumulos?... E esta
existencia igualmente me parecia pavorosa!... Não! a ficar encarcerado
no mundo antigo com o doutissimo Topsius, então deveriamos galopar
n'essa mesma noite, ao erguer da lua, para Joppé; de lá embarcar em
qualquer trirema phenicia que partisse para Italia; e ir habitar Roma,
ainda que fosse n'uma das escuras viellas do Velabro, n'uma d'essas
altas, fumarentas trapeiras, com duzentas escadas a subir, empestadas
pelos guisados d'alho e tripa, que escassamente atravessam duas calendas
sem desabar ou arder.
Assim me inquietava quando a liteira parou; descerrei as cortinas; vi
ante mim os vastos granitos da muralha do Templo. Penetrámos sob a
abobada da porta de Huldah; e fômos logo detidos emquanto os guardas do
Templo arrancavam a um pegureiro, teimoso e rude, a clava armada de
prégos com que elle queria atravessar o Santuario. O rolante rumor que
vinha de longe, dos Atrios, já me atemorisava, semelhante ao d'uma selva
ou d'um grande mar irritado...
E ao emergir emfim da abobada estreita agarrei o braço magro do
Historiador dos Herodes, no deslumbramento que me tornou, intenso e
repassado de terror! Um brilho de neve e ouro vibrava profusamente no ar
molle, irradiado dos claros marmores, dos granitos brunidos, dos recamos
preciosos banhados pelo divino sol de Nizam. Os lisos pateos que eu de
manhã vira desertos, alvejando como a agua quieta d'um lago,
desappareciam agora sob o povo que os atulhava, adornado e festivo. Os
cheiros estonteavam, acres, emanados dos estofos tingidos, das resinas
aromaticas, da gordura frigindo em brazas. Sobre o denso ruido passavam
roucos mugidos de bois. E perennemente os fumos votivos se sumiam na
refulgencia do céo...
--Caramba! murmurei, enfiado. Isto são magnificencias de entupir!
Fômos penetrando sob os Porticos de Salomão, onde resoava o profano
tumulto d'um mercado. Por traz de grossas caixas gradeadas encruzavam-se
os Cambistas, com uma moeda d'ouro pendente da orelha entre as melenas
sordidas, trocando o dinheiro sacerdotal do Templo pelas moedas pagãs de
todas as regiões, de todas as idades, desde as macissas rodellas do
velho Lacio mais pesadas que broqueis, até aos tijolos gravados que
circulam, como «notas» nas feiras da Assyria. Adiante, brilhava a
frescura e abundancia d'um pomar: as romãs, estaladas de maduras,
trasbordavam dos gigos: hortelões com um ramo d'amendoeira preso ao
carapuço apregoavam grinaldas d'anemonas ou hervas amargas de Paschoa:
jarras de leite puro pousavam sobre saccos de lentilha; e os cordeiros,
deitados nas lages, amarrados pelas patas ás columnas, balavam
tristemente de sêde.
Mas a multidão sobretudo apinhava-se, com suspiros de cubiça, em torno
aos tecidos e ás joias. Mercadores das colonias phenicias, das Ilhas
gregas, de Tardis, da Mesopotamia, de Tadmor, uns com soberbas simarras
de lã bordada, outros com toscos tabardos de couro pintado, desdobravam
os panos azues de Tyro que reproduzem o brilho ardente dos céos do
Oriente, as sêdas impudicas de Sheba d'uma transparencia verde que vôa
na aragem, e esses estofos solemnes de Babylonia que sempre me
extasiavam, negros com largas flôres côr de sangue... Dentro de cofres
de cedro, espalhados sobre tapetes da Galacia, reluziam espelhos de
prata simulando a lua e os seus raios, sinetes de turmalina que os
hebreus usam ao peito, manilhas de pedrarias enfiadas em cornos
d'antilopes, diademas de sal-gema com que se enfeitam os noivos; e,
resguardadas mais preciosamente, talismans e amuletos que me pareciam
pueris, pedaços de raizes, pedregulhos negros, couros tisnados e ossos
com letras.
Topsius ainda parou entre as tendas dos perfumistas apreçando um
esplendido bastão de Tylos, d'uma rara madeira mosqueada como a pelle do
tigre, mas logo fugimos ao ardente cheiro que alli suffocava, vindo das
resinas, das gommas dos paizes dos Negros, dos mólhos de plumas de
abestruz, da mirrha d'Oronte, das ceras de Cirenaica, dos oleos rosados
de Cysico, e das grandes coifas de pelle d'hyppopotamo cheias de
violetas seccas e de folhas de baccaris...
Entrámos então na galeria chamada _Real_, toda votada á Doutrina e á
Lei. Ahi, cada dia, tumultuam rancorosamente as controversias entre
Sadduceus, Escribas, Sophorins, Phariseus, sectarios de Schemaia,
sectarios de Hillel, Juristas, Grammaticos, fanaticos de toda a terra
judaica. Junto ás columnas de marmore installavam-se os Mestres da Lei,
sobre altos escabellos, tendo ao lado um prato de metal onde cahiam os
óbolos dos fieis: e em torno, encruzados no chão, com as sandalias ao
pescoço, as pellicas cobertas de letras vermelhas desdobradas nos
joelhos, os discipulos, imberbes ou decrepitos, resmoneavam os dictames
balançando os hombros lentos. Aqui e além, no meio de devotos embebidos,
dois doutores disputavam, com as faces assanhadas, sobre temerosos
pontos da Doutrina. «Póde-se comer um ovo de gallinha posto no dia de
Sabbath? Por que osso da espinha dorsal começa a Resurreição?» O
philosophico Topsius ria, disfarçado n'uma préga da capa: mas eu tremia
quando os doutores, escaveirados e barbudos, se ameaçavam, gritavam
_racca_! _racca_! mergulhando a mão no seio da tunica á procura d'um
ferro escondido.
A cada momento cruzavamos esses Phariseus, resoantes e vazios como
tambores, que vêm ao Templo assoalhar a sua piedade--uns com as costas
vergadas, esmagadas pela vastidão do peccado humano; outros, tropeçando
e apalpando o ar, d'olhos fechados, para não vêr as fórmas impuras das
mulheres; alguns mascarrados de cinza, gemendo, com as mãos apertadas
sobre o estomago--em testemunho dos seus duros jejuns! Depois Topsius
mostrou-me um Rabbi, interpretador de sonhos: n'um carão livido e
chupado os seus olhos fundos luziam com a tristeza de lampadas de
sepulchro: e, sentado sobre saccos de lã, estendia por cima de cada
devoto, que vinha ajoelhar aos seus pés nús, a ponta d'um vasto manto
negro com signos brancos pintados. Eu, curioso, pensava em o
consultar--quando de repente gritos afflictos resoaram no atrio.
Corremos. Eram levitas, com cordas e vergas, chibatando furiosamente um
leproso que, em estado de impureza, penetrára no pateo de Israel. O
sangue salpicava as lages. Em torno crianças riam.
Ia cahindo a sexta hora judaica, a mais grata ao Senhor, quando o sol,
na sua marcha para o mar, pára sobre Jerusalem a contemplal-a com
paixão: e, para nos acercarmos do «atrio d'Israel», fomos penosamente
fendendo a multidão que alli remoinhava vinda de toda a terra culta e
barbara... O rude saião de pelles dos pegureiros das Idumêas roçava a
chlamyde curta dos gregos de face rapada e mais brancos que marmores.
Havia homens solemnes da planicie de Babylonia, com as barbas mettidas
dentro de saccos azues que uma corrente de prata lhes prendia ás mitras
de couro pintado: e havia gaulezes ruivos, de bigodes pendentes como as
hervas das suas lagôas, que riam e parolavam, devorando com a casca os
limões dôces da Syria. Por vezes um romano togado passava, tão grave
como se descesse d'um pedestal. Gente da Dacia e da Mysia, com as pernas
enfeixadas em ligaduras de feltro, tropeçava deslumbrada pelo claro
esplendor dos marmores. E não era menos estranho ir eu, Theodorico
Raposo, arrastando alli as minhas botas de montar, atraz d'um Sacerdote
de Moloch, enorme e sensual na sua simarra de purpura, que, em meio d'um
bando de mercadores de Serepta, desdenhava d'aquelle templo sem imagens,
sem bosques, e mais ruidoso que uma feira phenicia.
Assim lentamente nos fomos chegando á porta chamada «A Bella», que dava
accesso para o Atrio sagrado d'Israel. Bella em verdade, preciosa e
triumphal, sobre os quatorze degraus de marmore verde de Numidia,
mosqueado de amarello: os seus largos batentes, revestidos de chapas de
prata, faiscavam como os d'um reliquario: e os dois humbraes,
semelhantes a grossos mólhos de palmas, sustentavam uma torre, redonda e
branca, guarnecida de escudos tomados aos inimigos de Judá, brilhantes
no sol como um collar de gloria sobre o pescoço forte d'um heroe! Mas
diante d'este adito maravilhoso erguia-se severamente um pilar, encimado
por uma placa negra com letras d'ouro, onde se desenrolava esta ameaça
em grego, em latim, em aramaico, em chaldaico: _que nenhum Estrangeiro
aqui penetre sob pena de morrer_!
Fortunadamente avistámos o magro Gamaliel que se encaminhava ao Santo
Pateo, descalço, apertando ao peito um mólho d'espigas votivas: com elle
vinha um homem nedio e risonho, de face côr de papoula, coroado por uma
enorme mitra de lã negra enfeitada de fios de coral... Curvados até ás
lages, saudámos o austero Doutor da Lei. Elle psalmodiou logo, de
palpebras cerradas:
--Sêde bemvindos... Esta é a hora melhor para receber a benção do
Senhor. O Senhor disse: «sahi das vossas habitações, vinde a mim com as
primicias dos vossos fructos, eu vos abençoarei em todas as obras das
vossas mãos...» Vós hoje pertenceis miraculosamente a Israel. Subi á
morada do Eterno! Este que vem a meu lado é Eliezer de Silo, benefico e
sabio entre todos nas coisas da natureza.
Deu-nos duas espigas de milho: e atraz d'elle pisámos com as nossas
solas gentilicas o Adro interdicto de Judá.
Caminhando ao meu lado, Eliezer de Silo, cortez e suave, perguntou-me se
era remota a minha patria e perigosos os seus caminhos...
Eu rosnei, vaga e recatadamente:
--Sim... Chegamos de Jerichó.
--Boa, por lá, a colheita do balsamo?
--Rica! afiancei, com calor. Louvado seja o Eterno, que n'este seu anno
de graça estamos lá abarrotadinhos de balsamo!
Elle pareceu regosijado. E revelou-me então que era um dos Medicos que
residem no Templo--onde os Sacerdotes e os Sacrificadores soffrem
perennemente «dissabores intestinaes», por pisarem suados e descalços as
lages frias dos Adros.
--Por isso, murmurou elle com uma faisca alegre no olho benigno, o povo
em Sião nos chama _Doutores da Tripa_!
Torci-me de riso, de gozo, com aquella jocosidade assim susurrada na
austera morada do Eterno... Depois, recordando os meus dissabores
intestinaes em Jerichó, por muito amar os divinos e perfidos melões da
Syria--perguntei ao amavel Physico se n'essas occorrencias elle
preconisava o bismutho...
O homem magistral abanou cautamente a sua mitra bojuda. Depois,
espetando um dedo no ar, segredou-me esta receita incomparavel:
--Tomai gomma de Alexandria, açafrão de jardim, uma cebola da Persia e
vinho negro de Emmaus... Misturai, cozei... Deixai esfriar n'um vaso de
prata... Collocai-vos n'uma encruzilhada, ao nascer do sol...
Mas emmudeceu subitamente, com os braços abertos e a face pendida para
as lages. Penetráramos no soberbo adro, chamado «Pateo das Mulheres»: e
n'esse instante terminavam as Bençãos que á sexta hora um sacerdote vem
alli derramar do alto da porta de Nicanor.
Severa, toda de bronze--ella deixava entrevêr, lá ao fundo, os ouros, a
neve, as pedrarias do Santuario refulgindo com serenidade... Nos largos
degraus, mais lustrosos que alabastro, desenrolavam-se duas collegiadas
de levitas, ajoelhados e vestidos de branco--uns com uma trompa recurva,
outros pousando os dedos sobre as cordas mudas de lyras. E, por entre
estas alas de homens prostrados, um grande velho emmaciado vinha
descendo devagar os degraus, com um incensador de ouro na mão...
A sua tunica justa de byssus tinha a fimbria orlada de pinhas
d'esmeralda, alternando com guizos que tiniam finamente; os pés sem
sandalias e tingidos d'heneh pareciam de coral; e ao meio da facha que
lhe cingia as costellas magras brilhava, bordado a ouro, um grande sol.
Os fieis ajoelhados, quedos, sem um murmurio, quasi pousavam nas lages a
cabeça escondida sob os mantos e sob os véos: e com as côres festivas,
onde dominava o vermelho da anemona e o verde da figueira, era como se o
adro estivesse juncado de flôres e folhagens, n'uma manhã de triumpho,
para passar Salomão!
Com a barba aguda e dura levantada aos céos--o velho incensou o lado do
Oriente e das areias, depois o lado do Occidente e dos mares; e o
recolhimento era tão enlevado que se ouviam no fundo do Santuario os
mugidos lentos dos bois. Desceu ainda, alçou mais a mitra salpicada de
joias, atirou o incensador que rangeu faiscando ao sol--e com o fumo
branco veio rolando tenue e cheirosa, sobre Israel, a benção do
Muito-Forte. Então os levitas, unisonamente, feriram as cordas das
lyras: das trombetas curvas subiu um grito de bronze: e todo o povo
erguido, com os braços ao céo, entoou um psalmo celebrando a eternidade
de Judá... E subitamente tudo cessou: os Levitas recolhiam pela
escadaria de marmore sem um rumor dos pés nús: Eliezer de Silo e o
rigido Gamaliel tinham desapparecido sob os Porticos: e o claro pateo em
redor resplandecia sumptuoso e cheio de mulheres.
Os revestimentos de alabastro eram tão lustrosos que Topsius mirava
n'elles como n'um espelho as pregas nobres da sua capa: todos os fructos
da Asia e as flôres dos vergeis se entrelaçavam, em copiosos lavores de
prata, nas portas das camaras rituaes onde se perfuma o oleo, se
consagra a lenha, se purifica a lepra: entre as columnas pendiam em
festões fios grossos de perolas e de contas d'onyx, mais numerosos que
no peito de uma noiva: e nos mealheiros de bronze, semelhantes a
trombetas de guerra colossaes, pousadas nas lages, enrolavam-se,
scintillando e reclamando as dadivas, inscripções em relevo de ouro,
graciosas como versos de canticos--_Queimai Incensos e Nardos, Offertai
Pombas e Rôlas_...
Mas o santo adro resplandecia de mulheres: e meus olhos bem depressa
deixaram metaes e marmores, para captivadamente se prenderem áquellas
filhas de Jerusalem, cheias de graça e morenas como as tendas do Cedar!
Todas traziam no Templo o rosto descoberto: ou apenas um fôfo véo, d'uma
musselina leve como o ar, á moda romana, enrodilhado finamente no
turbante, punha em torno das faces uma alvura d'espuma, onde os olhos
negros tomavam um quebranto mais humido, enlanguecidos pelas densas
pestanas, alongados pela tintura de cypro. A abundancia barbara dos
ouros, das pedrarias, envolvia-as n'uma radiancia tremula desde os
peitos fortes até aos cabellos mais crespos que a lã das cabras de
Galaad. As sandalias, ornadas de guizos e de correntes, arrastavam sobre
as lages uma melodia argentina, tanta era a graça concertada dos seus
movimentos ondulados e graves: e os tecidos bordados, os algodões de
Galacia, os finos linhos de côres que as cingiam, ensopados nas
escencias ardentes d'ambar, de malobathro e de baccaris, enchiam o ar de
fragancia e de molleza a alma dos homens. As mais ricas caminhavam
solemnemente entre escravas vestidas de panos amarellos, que lhes
traziam o párasol de pennas de pavão, os rolos devotos em que está
escripta a Lei, saccos de tamaras dôces, espelhos ligeiros de prata. As
mais pobres, com uma simples camisa de algodão de riscadinho multicôr, e
sem mais joias que um rude talisman de coral, corriam, chalravam,
mostrando nús os braços e o collo côr de medronho mal maduro... E sobre
todas o meu desejo zumbia--como uma abelha que hesita entre flôres de
igual doçura!
--Ai Topsius, Topsius! rosnava eu. Que mulheres! Que mulheres! Eu
estoiro, esclarecido amigo!
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