A Relíquia - 02

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ornado d'uma gola d'astrakan; depois chegavam as andorinhas aos beiraes
do nosso telhado, e no oratorio da titi, em lugar de camelias, vinham
braçadas dos primeiros cravos vermelhos perfumar os pés d'ouro de Jesus;
depois era o tempo dos banhos de mar, e o padre Casimiro mandava á titi
um gigo d'uvas da sua quinta de Torres... Eu comecei a estudar
rhetorica.
* * * * *
Um dia o nosso bom procurador disse-me que eu não voltaria mais para os
Isidoros, indo acabar os meus preparatorios em Coimbra, na casa do dr.
Rôxo, lente de Theologia. Fizeram-me roupa branca. A titi deu-me n'um
papel a oração que eu diariamente devia rezar a S. Luiz Gonzaga,
padroeiro da mocidade estudiosa, para que elle conservasse em meu corpo
a frescura da castidade, e na minha alma o medo do Senhor. O padre
Casimiro foi-me levar á cidade graciosa onde dormita Minerva.
Detestei logo o dr. Rôxo. Em sua casa soffri vida dura e claustral; e
foi um ineffavel gosto quando, no meu primeiro anno de Direito, o
desagradavel ecclesiastico morreu miseravelmente d'um anthraz. Passei
então para a divertida hospedagem das Pimentas--e conheci logo, sem
moderação, todas as independencias, e as fortes delicias da vida. Nunca
mais rosnei a delambida oração a S. Luiz Gonzaga, nem dobrei o meu
joelho viril diante de imagem benta que usasse aureola na nuca;
embebedei-me com alarido nas Camellas; affirmei a minha robustez
esmurrando sanguinolentamente um marcador do Trony; fartei a carne com
saborosos amores no Terreiro da Herva; vadiei ao luar, ganindo fados;
usava moca; e como a barba me vinha, basta e negra, aceitei com orgulho
a alcunha de _Raposão_. Todos os quinze dias porém escrevia á titi, na
minha boa letra, uma carta humilde e piedosa, onde lhe contava a
severidade dos meus estudos, o recato dos meus habitos, as copiosas
rezas e os rigidos jejuns, os sermões de que me nutria, os dôces
desaggravos ao Coração de Jesus á tarde, na Sé, e as novenas com que
consolava a minha alma em Santa-Cruz no remanso dos dias feriados...
Os mezes de verão em Lisboa eram depois dolorosos. Não podia sahir,
mesmo a espontar o cabello, sem implorar da titi uma licença servil. Não
ousava fumar ao café. Devia recolher virginalmente á noitinha: e antes
de me deitar tinha de rezar com a velha um longo terço no oratorio. Eu
proprio me condemnára a esta detestavel devoção!
--Tu lá nos estudos costumas fazer o teu terço? perguntára-me, com
seccura, a titi.
E eu, sorrindo abjectamente:
--Ora essa! É que nem posso adormecer sem ter rezado o meu rico
terço!...
Aos domingos continuavam as partidas. O padre Pinheiro, mais triste,
queixava-se agora do coração, e um pouco tambem da bexiga. E havia outro
commensal, velho amigo do commendador Godinho, fiel visita das Neves, o
Margaride, o que fôra delegado em Vianna, depois juiz em Mangualde. Rico
por morte de seu mano Abel, secretario da Camara Patriarchal, o doutor
aposentára-se, farto dos autos, e vivia em ocio, lendo os periodicos,
n'um predio seu na Praça da Figueira. Como conhecêra o papá, e muitas
vezes o acompanhará ao _Mosteiro_, tratou-me logo com authoridade e por
_você_.
Era um homem corpulento e solemne, já calvo, com um carão livido, onde
destacavam as sobrancelhas cerradas, densas e negras como carvão. Raras
vezes penetrava na sala da titi sem atirar, logo da porta, uma noticia
pavorosa. «Então, não sabem? Um incendio medonho, na Baixa!» Apenas uma
fumaraça n'uma chaminé. Mas o bom Margaride, em novo, n'um sombrio
accesso d'imaginação, compuzera duas tragedias; e d'ahi lhe ficára este
gosto morbido d'exagerar e d'impressionar. «Ninguem como eu, dizia elle,
saborêa o grandioso...»
E, sempre que aterrava a titi e os sacerdotes, sorvia gravemente uma
pitada.
Eu gostava do dr. Margaride. Camarada do papá em Vianna, muitas vezes
lhe ouvira cantar, ao violão, a xacara do conde Ordonho. Tardes inteiras
vagueára com elle poeticamente, pela beira da agua, no _Mosteiro_,
quando a mamã fazia raminhos silvestres á sombra dos amieiros. E
mandou-me as amendoas mal eu nasci, á noitinha, em sexta-feira de
Paixão. Além d'isso, mesmo na minha presença, elle gabava francamente á
titi o meu intellecto, e a circumspecção dos meus modos.
--O nosso Theodorico, D. Patrocinio, é moço para deleitar uma tia... V.
exc.^a, minha rica senhora, tem aqui um Telemaco!
Eu córava, modesto.
Ora foi justamente passeando com elle no Rocio, n'um dia d'agosto, que
eu conheci um parente nosso, afastado, primo do commendador G. Godinho.
O dr. Margaride apresentou-m'o, dizendo apenas:--«o Xavier, teu primo,
moço de grandes dotes.» Era um homem enxovalhado, de bigode louro, que
fôra galante e desbaratára furiosamente trinta contos, herdados de seu
pai, dono d'uma cordoaria em Alcantara. O commendador G. Godinho, mezes
antes de morrer da sua pneumonia, tinha-o recolhido por caridade á
secretaria da Justiça, com vinte mil reis por mez. E o Xavier agora
vivia com uma hespanhola chamada Carmen, e tres filhos d'ella, n'um
casebre da rua da Fé.
Eu fui lá n'um domingo. Quasi não havia moveis; a bacia da cara, a
unica, estava entalada no fundo rôto da palhinha d'uma cadeira. O Xavier
toda a manhã deitára escarros de sangue pela bocca. E a Carmen,
despenteada, em chinelas, arrastando uma bata de fustão manchada de
vinho, embalava sorumbaticamente pelo quarto uma criança embrulhada n'um
trapo e com a cabecinha coberta de feridas.
Immediatamente o Xavier, tratando-me por _tu_, fallou-me da tia
Patrocinio... Era a sua esperança, n'aquella sombria miseria, a tia
Patrocinio! Serva de Jesus, proprietaria de tantos predios, ella não
podia deixar um parente, um Godinho, definhar-se alli n'aquelle casebre,
sem lençoes, sem tabaco, com os filhos em redor, esfarrapados, a chorar
por pão. Que custava á tia Patrocinio estabelecer-lhe, como já fizera o
Estado, uma mesadinha de vinte mil reis?
--Tu é que lhe devias fallar, Theodorico! Tu é que lhe devias dizer...
Olha essas crianças. Nem meias teem... Anda cá, Rodrigo, dize aqui ao
tio Theodorico. Que comeste hoje ao almoço?... Um bocado de pão
d'hontem! E sem manteiga, sem mais nada! E aqui está a nossa vida,
Theodorico! Olha que é duro, menino!
Enternecido, prometti fallar á titi.
Fallar á titi! Eu nem ousaria contar á titi que conhecia o Xavier, e que
entrava n'esse casebre impuro onde havia uma hespanhola, emmagrecida no
peccado.
E para que elles não percebessem o meu ignobil terror da titi, não
voltei á rua da Fé.
No meado de setembro, no dia da Natividade de Nossa Senhora, soube pelo
dr. Barroso que o primo Xavier, quasi a morrer, me queria fallar em
segredo.
Fui lá, de tarde, contrariado. Na escada cheirava a febre. A Concha, na
cozinha, conversava por entre soluços com outra hespanhola, magrita, de
mantilha preta e corpetesinho triste de setim côr de cereja. Os
pequenos, no chão, rapavam um tacho d'açorda. E na alcova o Xavier,
enrodilhado n'um cobertor, com a bacia da cara ao lado, cheia de
escarros de sangue, tossia, despedaçadamente:
--És tu, rapaz?
--Então que é isso, Xavier?
Elle exprimiu, n'um termo obsceno, que estava perdido. E estirando-se de
costas, com um brilho secco nos olhos, fallou-me logo da titi.
Escrevera-lhe uma carta linda, de rachar o coração: a fera não
respondera. E, agora, ia mandar para o _Jornal de Noticias_ um annuncio,
a pedir uma esmola, assignando «Xavier Godinho, primo do rico
commendador G. Godinho.» Queria vêr se D. Patrocinio das Neves deixaria
um parente, um Godinho, mendigar assim, publicamente, na pagina d'um
jornal.
--Mas é necessario que tu me ajudes, rapaz, que a enterneças! Quando
ella lêr o annuncio, conta-lhe esta miseria! Desperta-lhe o brio.
Dize-lhe que é uma vergonha vêr morrer ao abandono um parente, um
Godinho. Dize-lhe que já se rosna! Olha, se hoje pude tomar um caldo, é
que essa rapariga, a Lolita, que está em casa da Benta Bexigosa, nos
trouxe ahi quatro corôas... Vê tu a que eu cheguei!
Ergui-me, commovido.
--Conta commigo, Xavier.
--Olha, se tens ahi cinco tostões que te não façam falta, dá-os á
Concha.
Dei-lh'os a elle: e sahi, jurando-lhe que ia fallar á titi,
solemnemente, em nome dos Godinhos e em nome de Jesus!
Depois do almoço, ao outro dia, a titi, de palito na bocca, e vagarosa,
desdobrou o _Jornal de Noticias_. E decerto achou logo o annuncio do
Xavier, porque ficou longo tempo fitando o canto da terceira pagina onde
elle negrejava, afflictivo, vergonhoso, medonho.
Então pareceu-me vêr, voltados para mim, lá do fundo nú do casebre, os
olhos afflictos do Xavier; a face amarella da Concha, lavada de
lagrimas; as pobres mãosinhas dos pequenos, magras, á espera da côdea de
pão... E todos aquelles desgraçados anciavam pelas palavras que eu ia
lançar á titi, fortes, tocantes, que os deviam salvar, e dar-lhes o
primeiro pedaço de carne d'aquelle verão de miseria. Abri os labios. Mas
já a titi, recostando-se na cadeira, rosnava com um sorrisinho feroz:
--Que se aguente... É o que succede a quem não tem temor de Deus e se
mette com bebedas... Não tivesse comido tudo em relaxações... Cá para
mim, homem perdido com saias, homem que anda atraz de saias, acabou...
Não tem o perdão de Deus, nem tem o meu! Que padeça, que padeça, que
tambem Nosso Senhor Jesus Christo padeceu!
Baixei a cabeça, murmurei:
--E ainda nós não padecemos bastante... Tem a titi razão. Que se não
mettesse com saias!
Ella ergueu-se, deu as graças ao Senhor. Eu fui para o meu quarto,
fechei-me lá, a tremer, sentindo ainda regeladas e ameaçadoras, as
palavras da titi, para quem os homens «acabavam quando se mettiam com
saias.» Tambem eu me mettera com saias, em Coimbra, no Terreiro da
Herva! Alli, no meu bahú, tinha eu documentos do meu peccado, a
photographia da Thereza dos Quinze, uma fita de sêda, e uma carta
d'ella, a mais dôce, em que me chamava «unico affecto da sua alma» e me
pedia dezoito tostões! Eu cosera essas reliquias dentro do fôrro d'um
collete de pano, receando as incessantes rebuscas da titi, por entre a
minha roupa intima. Mas lá estavam, no bahú de que ella guardava a
chave, dentro do collete, fazendo uma dureza de cartão que qualquer dia
poderiam palpar os seus dedos desconfiados... E eu acabava logo para a
titi!
Abri devagarinho o bahú, descosi o fôrro, tirei a carta deliciosa da
Thereza, a fita que conservára o aroma da sua pelle, e a sua
photographia, de mantilha. Na pedra da varanda, sem piedade, queimei
tudo, amabilidades e feições: e sacudi desesperadamente para o saguão as
cinzas da minha ternura.
N'essa semana não ousei voltar á rua da Fé. Depois, um dia que
choviscava, fui lá, ao escurecer, encolhido sob o meu guarda-chuva. Um
visinho, vendo-me espreitar de longe as janellas negras e mortas do
casebre, disse-me que o snr. Godinho, coitado, fôra para o hospital
n'uma maca.
Desci, triste, ao comprido das grades do Passeio. E, no crepusculo
humido, tendo roçado bruscamente por outro guarda-chuva, ouvi de repente
o meu nome de Coimbra, lançado com alegria.
--Oh, Raposão!
Era o Silverio, por alcunha o _Rinchão_, meu condiscipulo, e companheiro
de casa das Pimentas. Estivera passando esse mez no Alemtejo, com seu
tio, ricaço illustre, o barão d'Alconchel. E agora, de volta, ia vêr uma
Ernestina, rapariguita loura, que morava no Salitre, n'uma casa côr de
rosa, com roseirinhas á varanda.
--Queres tu vir cá um bocado, ó Raposão? Está lá outra rapariga bonita,
a Adelia... Tu não conheces a Adelia? Então que diabo, vem vêr a
Adelia... É um mulherão!
Era, um domingo, noite de partida da titi; eu devia recolher
religiosamente ás oito horas. Cocei a barba, indeciso. O Rinchão fallou
da brancura dos braços da Adelia: e eu comecei a caminhar ao lado do
Rinchão, enfiando as luvas pretas.
Munidos d'um cartucho de pasteis e de uma garrafa de Madeira,
encontrámos a Ernestina a coser um elastico nas suas botinas de duraque.
E a Adelia, estendida no sofá, de chambre e em saia branca, com os
chinelos cahidos no tapete, fumava um cigarro languido. Eu sentei-me ao
lado d'ella, commovido e mono, com o meu guarda-chuva entre os joelhos.
Só quando o Silverio e Ernestina correram dentro á cozinha, abraçados, a
buscar copos para o Madeira, ousei perguntar á Adelia, córando:
--Então a menina d'onde é?
Era de Lamego. E eu, novamente acanhado, só pude gaguejar que era
tristonho aquelle tempo de chuva. Ella pediu-me outro cigarro,
cortezmente, dizendo-me--o _cavalheiro_. Apreciei estes modos. As mangas
largas do seu roupão, escorregando descobriam braços tão brancos e
macios que entre elles a Morte mesma deveria ser deleitosa.
Fui eu que lhe offereci o prato onde a Ernestina collocára os pasteis.
Ella quiz saber o meu nome. Tinha um sobrinho que tambem se chamava
Theodorico; e isto foi como um fio subtil e forte que veio, do seu
coração, enrodilhar-se no meu.
--Porque é que o cavalheiro não põe o guarda-chuva alli a um canto?
disse-me ella, rindo.
O brilho picante dos seus dentinhos miudos fez desabrochar dentro em mim
uma flôr de madrigal.
--É para não me tirar d'aqui d'ao pé da menina nem um instantinho que
seja.
Ella fez-me uma cocega lenta no pescoço. Eu, aboborado de gôzo, bebi o
resto do Madeira que ella deixára no calice.
A Ernestina, poetica, e cantando o _fado_, aninhou-se nos joelhos do
Rinchão. Então a Adelia, revirando-se languidamente, puxou-me a face--e
os meus labios encontraram os seus no beijo mais sério, mais sentido,
mais profundo que até ahi abalára o meu sêr.
N'esse dôce instante, um relogio medonho, com o mostrador fingindo uma
face de lua, e que parecia espreitar-me de sobre o marmore d'uma mesa do
mogno, d'entre dois vasos sem flôres, começou a dar dez, horas, fanhoso,
ironico, pachorrento.
Jesus! era a hora do chá em casa da titi! Com que terror eu trepei,
esbaforido, sem mesmo abrir o guarda-chuva, as viellas escuras e
infindaveis que levam ao Campo de Sant'Anna! Em casa, nem tirei as botas
enlameadas. Enfiei pela sala; e vi logo, lá ao fundo, no sofá de
damasco, os oculos da titi, mais negros, assanhados, esperando por mim e
fuzilando. Ainda balbuciei:
--Titi...
Mas já ella gritava, esverdinhada de cólera, sacudindo os punhos.
--Relaxações em minha casa não admitto! Quem quizer viver aqui ha de
estar ás horas que eu marco! Lá deboches e porcarias, não, emquanto eu
fôr viva! E quem não lhe agradar, rua!
Sob a rajada estridente da indignação da snr.^a D. Patrocinio, padre
Pinheiro e o tabellião Justino tinham dobrado a cabeça embaçados. O dr.
Margaride, para apreciar conscienciosamente a minha culpa, puxou o seu
pesado relogio d'ouro. E foi o bom Casimiro que interveio, como
sacerdote, como procurador, influente e suave.
--D. Patrocinio tem razão, tem muita razão em querer ordem em casa...
Mas talvez o nosso Theodorico se tivesse demorado um pouco mais no
Martinho, a ouvir fallar d'estudos, de compendios...
Exclamei amargamente:
--Nem isso, padre Casimiro! Nem no Martinho estive! Sabe onde estive? No
convento da Encarnação! É verdade, encontrei um condiscipulo meu, que ia
lá buscar a irmã. Hoje era festa, a irmã tinha ido passar o dia com uma
tia, uma commendadeira... Estivemos á espera, a passear no pateo... A
irmã vai casar, elle andou a contar-me do noivo, e do enxoval, e do
apaixonada que ella está... Eu morto por me safar, mas com ceremonia do
rapaz, que é sobrinho do barão d'Alconchel... E elle zás, zás, a fallar
da irmã, e do namoro, e das cartas...
A tia Patrocinio uivou de furor.
--Olha que conversa! Que porcaria de conversa! Que indecente conversa
para o pateo d'uma casa de religião! Cala-te, alma perdida, que até
devias ter vergonha!... E fique entendendo! Para outra vez que venha a
estas horas, não me entra em casa! Fica na rua, como um cão...
Então o dr. Margaride estendeu a mão pacificadora e solemne:
--Está tudo explicado! O nosso Theodorico foi imprudente, mas o sitio
onde esteve é respeitavel... E eu conheço o barão d'Alconchel. É um
cavalheiro da maior circumspecção, e um dos mais abastados do
Alemtejo... Talvez mesmo um dos mais ricos proprietarios de Portugal...
O mais rico, direi!... Mesmo lá fóra não haverá fortuna territorial que
lhe exceda. Nem que se lhe compare!... Só em porcos! Só em cortiça!
Centenares de contos! milhões!
Erguera-se; o seu vozeirão empolado rolava serras d'ouro. E o bom
Casimiro murmurava, ao meu lado, com brandura:
--Tome o seu chásinho, Theodorico, vá tomando o seu chásinho. E creia
que a tia não deseja senão o seu bem...
Puxei, com a mão a tremer, a minha chavena de chá: e, remexendo
desfallecidamente o fundo d'assucar, pensava em abandonar para sempre a
casa d'aquella velha medonha que assim, me ultrajava diante da
Magistratura e da Igreja, sem consideração pela barba que me começava a
nascer, forte, respeitavel e negra.
Mas, aos domingos, o chá era servido nas pratas do commendador G.
Godinho. Eu via-as, macissas e resplandecentes, diante de mim: o grande
bule terminando em bico de pato; o assucareiro cuja aza tinha a fórma
d'uma cobra assanhada; e o paliteiro gentil em figura de macho trotando
sob os seus alforges. E tudo pertencia á titi. Que rica que era a titi!
Era necessario ser bom, agradar sempre á titi!...
Por isso, mais tarde, quando ella penetrou no oratorio para cumprir o
terço, já eu lá estava, de rojos, gemendo, martellando o peito, e
supplicando ao Christo de ouro que me perdoasse ter offendido a titi.
* * * * *
Um dia emfim cheguei a Lisboa, com as minhas cartas de doutor mettidas
n'um canudo de lata. A titi examinou-as reverente, achando um sabor
ecclesiastico ás linhas em latim, ás paramentosas fitas vermelhas, e ao
sêllo dentro do seu relicario.
--Está bom, disse ella, estás doutor. A Deus Nosso Senhor o deves, vê
não lhe faltes...
Corri logo ao oratorio, com o canudo na mão, agradecer ao Christo de
ouro o meu glorioso grau de bacharel.
Na manhã seguinte, estando ao espelho, a espontar a barba, que agora
tinha cerrada e negra, o padre Casimiro entrou-me pelo quarto, risonho e
a esfregar as mãos.
--Boa nova vos trago aqui, snr. doutor Theodorico!...
E depois de me acariciar, segundo o seu affectuoso costume, com
palmadinhas dôces nos rins, o santo procurador revelou-me que a titi,
satisfeita commigo, decidira comprar-me um cavallo para eu dar honestos
passeios, e espairecer por Lisboa.
--Um cavallo! Oh, padre Casimiro!
Um cavallo. E além d'isso, não querendo que seu sobrinho, já barbado, já
letrado, soffresse um vexame, por lhe faltar ás vezes um troco para
deitar na salva de Nossa Senhora do Rosario, a titi estabelecia-me uma
mezada de tres moedas.
Abracei com calor o padre Casimiro. E desejei saber se a amoravel
intenção da titi era que eu não tivesse outra occupação além de cavalgar
por Lisboa, e lançar pratinhas na salva de Nossa Senhora.
--Olhe, Theodorico, eu parece-me que a titi não quer que você tenha
outro mister senão temer a Deus... O que lhe digo é que o amigo vai
passal-a boa e regalada... E agora, ande, vá-lhe lá dentro agradecer, e
diga-lhe uma coisinha mimosa.
Na saleta, onde brilhavam pelas paredes os feitos piedosos do patriarcha
S. José, a titi, sentada a um canto do sofá de riscadinho, fazia meia,
com um chale de Tonkin pelos hombros.
--Titi, murmurei eu encolhido, venho aqui agradecer...
--Está bom, vai com Deus.
Então, devotamente, beijei-lhe a franja do chale. A titi gostou. Eu fui
com Deus.
Começou d'ahi, farta e regalada, a minha existencia de sobrinho da
snr.^a D. Patrocinio das Neves. Ás oito horas, pontualmente, vestido de
preto, ia com a titi á igreja de Sant'Anna, ouvir a missa do padre
Pinheiro. Depois d'almoço, tendo pedido licença á titi, e rezadas no
oratorio tres _Gloria Patri_ contra as tentações, sahia a cavallo, de
calça clara. Quasi sempre a titi me dava alguma incumbencia beata:
passar em S. Domingos, e dizer a oração pelos tres santos martyres do
Japão; entrar na Conceição Velha, e fazer o acto de desaggravo pelo
Sagrado Coração de Jesus...
E eu receava tanto desagradar-lhe, que nunca deixava de dar estes ternos
recados que ella mandava a casa do Senhor.
Mas era este o momento desagradavel do meu dia: ás vezes, ao sahir,
surrateiro, do portão da igreja, topava com algum condiscipulo
republicano, dos que me acompanhavam em Coimbra, nas tardes de
procissão, chasqueando o Senhor da Cana Verde.
--Oh, Raposão! pois tu agora...
Eu negava, vexado:
--Ora essa! Não me faltava mais nada! Sou mesmo lá de carolices... Qual!
entrei aqui por causa d'uma rapariga... Adeus, tenho a egua á espera.
Montava--e de luva preta, a perna bem collada á sella, um botãosinho de
camelia no peito, ia caracolando, em ocio e luxo, até ao largo do
Loreto. Outras vezes deixava a egua no Arco do Bandeira, e gozava uma
manhã regalada no bilhar do Montanha.
Antes do jantar, em chinelas, no oratorio com a titi, eu fazia a
jaculatoria a S. José, aio de Jesus, custodio de Maria e amorosissimo
patriarcha. Á mesa, adornada apenas por compoteiras de doce de calda em
torno d'uma travessa d'aletria, eu contava á titi o meu passeio, as
igrejas em que me deleitára, e quaes os altares alumiados. A Vicencia
escutava com devoção, perfilada no seu lugar costumado, entre as duas
janellas, onde um retrato de nosso santo padre Pio IX enchia a tira de
parede verde, tendo por baixo, pendente d'um cordão, um velho oculo
d'alcance, reliquia do commendador G. Godinho. Depois do café a titi,
lentamente, cruzava os braços; e o seu carão sumia-se, dormente e
pesado, na sombra do lenço rôxo.
Eu ia enfiar as botas; e, authorisado agora por ella a recrear-me fóra
de casa até ás nove e meia, corria ao fim da rua da Magdalena, ao pé do
largo dos Caldas. Ahi, com resguardo, encolhido na gola do meu
sobretudo, cosido com o muro, como se o candieiro de gaz que alli havia
fosse o olho inexoravel da titi--penetrava sofregamente na escadinha da
Adelia...
Sim, da Adelia! Porque nunca mais me esquecera, desde a noite em que o
_Rinchão_ me levou ao Salitre, o beijo que ella me dera, languida e
branca, sobre o sofá. Em Coimbra procurára mesmo fazer-lhe versos: e
esse amor dentro do meu peito foi no ultimo anno de Universidade, no
anno de Direito ecclesiastico, como um maravilhoso lirio que ninguem via
e que perfumava a minha vida... Apenas a titi me estabeleceu a mezada
das tres moedas, corri em triumpho ao Salitre; lá havia as roseirinhas á
janella, mas a Adelia já lá não estava. E foi ainda o prestante
_Rinchão_ que me mostrou esse primeiro andar, junto ao largo dos Caldas,
onde ella agora vivia patrocinada por Eleuterio Serra, da firma Serra
Brito & C.^a, com loja de fazendas e moelas na Conceição Velha.
Mandei-lhe uma carta ardente e séria, pondo reverentemente no alto:
«Minha senhora.» Ella respondeu, com dignidade:--«O cavalheiro póde vir
aqui ao meio dia.» Levei-lhe uma caixinha de pastilhas de chocolate,
atada com uma fita de sêda azul: pizando commovido a esteira nova da
sala, eu antevia, pela engommada brancura das bambinellas, a frescura
das suas saias; e o rigido alinho dos moveis revelava-me a rectidão dos
seus sentimentos. Ella entrou, um pouco constipada, com um chale
vermelho pelos hombros. Reconheceu logo o amigo do _Rinchão_; fallou da
Ernestina, com severidade, chamando-lhe «porcalhona.» E a sua voz
enrouquecida, o seu defluxo, davam-me o desejo de a curar nos meus
braços, d'um longo dia d'agasalho e somnolencia, sob o peso dos
cobertores, na penumbra molle da sua alcova. Depois ella quiz saber se
eu era empregado ou estava no commercio... Eu contei-lhe com orgulho a
riqueza da titi, os seus predios, as suas pratas. Disse-lhe, com as suas
mãos grossas presas nas minhas:
--Se a titi agora rebentasse, eu é que lhe punha á menina uma casa chic!
Ella murmurou, banhando-me todo na negra doçura do seu olhar:
--Ora! o cavalheiro, se apanhasse o bago, não se importava mais commigo!
Ajoelhei sobre a esteira, tremulo, esmagando o peito contra os seus
joelhos, offertando-me como uma rez; ella abriu o seu chale, aceitou-me
misericordiosamente.
Agora, á noitinha (emquanto Eleuterio, no club da rua Nova do Carmo,
jogava a manilha) eu tinha alli na alcova da Adelia a radiante festa da
minha vida. Levára para lá um par de chinelas--era o eleito do seu seio.
Ás nove e meia, despenteada, envolta á pressa n'um roupão de flanella,
com os pés nús, acompanhava-me pela escadinha de traz, colhendo em cada
degrau, nos meus labios, um beijo lento e saudoso.
--Adeus, Délinha!
--Agasalha-te, riquinho!
E eu recolhia devagar ao campo de Sant'Anna, ruminando o meu gozo!
O verão passou, languidamente. Os primeiros ventos d'outono levaram as
andorinhas e as folhagens do campo de Sant'Anna: e logo n'esse outubro,
de repente, a minha vida se tornou mais facil, mais larga. A titi
mandára-me fazer uma casaca; e eu estreei-a, com permissão d'ella, indo
ouvir a S. Carlos o _Poliuto_--opera que o dr. Margaride recommendára,
como «repassada de sentimentos religiosos e cheia de elevada lição.» Fui
com elle, de luvas brancas, frizado. Depois, no outro dia, ao almoço,
contei á titi o devoto enredo, os idolos derrubados, os canticos, as
fidalgas que estavam nos camarotes, e de que lindo velludo vestia a
rainha.
--E sabe quem me veio fallar, titi? O barão d'Alconchel, o ricaço, tio
d'aquelle rapaz que foi meu condiscipulo. Veio apertar-me a mão, esteve
um bocado commigo no salão... Tratou-me com muita consideração.
A titi gostou d'esta consideração.
Depois, tristemente, como um moralista magoado, queixei-me do nedio
decote d'uma senhora immodesta, núa nos braços, núa no peito, mostrando
toda essa carne, esplendida e irreligiosa, que é a desolação do justo e
a angustia da Igreja.
--Jesus, Senhor, que vexame! Acredite a titi, estava com nojo!
A titi gostou d'este nojo.
E passados dias, depois do café, quando eu me dirigia, ainda de
chinelas, ao oratorio, a fazer uma curta petição ás chagas do nosso
Christo d'ouro--a titi, já de braços cruzados e somnolenta, disse-me
d'entre a sombra do lenço:
--Está bom, se queres, volta hoje a S. Carlos... E lá quando te
appetecer, não te acanhes, tens licença, pódes ir gozar um bocado de
musica... Agora que estás um homem, e que parece que tens proposito, não
me importa que fiques fóra, até ás onze ou onze e meia... Em todo o caso
a essa hora quero estar já de porta fechada, e tudo prompto, para
começarmos o terço.
Ella não viu o triumphante lampejar dos meus olhos. Eu murmurei,
requebrado, a babar-me de gosto devoto:
--Lá o terço, titi, lá o meu querido terço não perdia eu, nem pelo maior
divertimento... Nem que el-rei me convidasse para um chásinho no paço!
Corri, delirante, a enfiar a casaca. E este foi o começo d'essa anhelada
liberdade que eu conquistára laboriosamente, vergando o espinhaço diante
da titi, macerando o peito diante de Jesus! Liberdade bem vinda, agora
que Eleuterio Serra partira para Paris, fazer os seus fornecimentos, e
deixára a Adelia só, solta, bella, mais jovial, mais fogosa!
Sim, decerto, eu ganhára a confiança da titi com os meus modos pontuaes,
sisudos, servis e beatos! Mas o que a levára a alargar assim, com
generosidade, as minhas horas de honesto recreio, fôra (como ella disse
confidencialmente ao padre Casimiro) a certeza de que eu «me portava com
religião e não andava atraz de saias.»
Porque para a tia Patrocinio todas as acções humanas, passadas por fóra
dos portaes das igrejas, consistiam em _andar atraz de calças_ ou _andar
atraz de saias_:--e ambos estes dôces impulsos naturaes lhe eram
igualmente odiosos!
Donzella, e velha, e resequida como um galho de sarmento; não tendo
jámais provado na livida pelle senão os bigodes do commendador G.
Godinho, paternaes e grisalhos; resmungando incessantemente, diante de
Christo nú, essas jaculatorias das _Horas de piedade_, soluçantes de
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