A Relíquia - 09

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Já nos aproximavamos de Bethania. Para dar de beber ás egoas parámos
n'uma linda fonte que um cedro assombreava. E o douto Topsius,
arranjando um loro, admirava-se de não termos encontrado a caravana que
vem de Galilêa celebrar a Paschoa a Jerusalem--quando soou, adiante, na
estrada, um rumor lento d'armas em marcha... E eu vi, assombrado,
apparecerem soldados romanos, d'esses que tantas vezes amaldiçoára em
estampas da Paixão!
Barbudos, tostados pelo sol da Syria, marchavam solidamente, em
cadencia, com um passo bovino, fazendo resoar sobre as lages as
sandalias ferradas: todos traziam ás costas os escudos envoltos em
saccos de lona: e cada um erguia ao hombro uma alta forquilha, d'onde
pendiam trouxas encordelada, pratos de bronze, ferramentas e cachos de
tamaras. Algumas filas, descobertas, seguravam o capacete como um balde:
outras, nas mãos cabelludas balançavam um dardo curto. O Decurião gordo
e loiro, seguido de uma gazella familiar, enfeitada com coraes,
dormitava, ao passo miudo da egoa, embrulhado n'um manto escarlate. E
atraz, ao lado das mulas carregadas de saccos de trigo e mólhos de
lenha, os arrieiros cantavam ao som d'uma flauta de barro, tocada por um
negro quasi nú que tinha no peito, em traços vermelhos, o numero da
Legião.
Eu recuára para o escuro do cedro. Mas Topsius, logo, como um Germano
servil, desmontára, ajoelhando quasi no pó, ante as Armas de Roma: e não
se conteve, berrou, agitando os braços e a capa:
--Longa vida a Caio Tiberio, tres vezes Consul, Illyrico, Panonico,
Germanico, Imperador, Pacificador e Augusto!...
Alguns legionarios riram, crassamente. E passaram, cerrados, com um
rumor do ferro--emquanto um pegureiro, ao longe, arrebanhando as cabras
aos brados, fugia para o cimo dos cêrros.
De novo galopámos. A estrada de basalto findou; e penetrámos entre
arvoredos, n'um aroma de pomares, através de abundancia e frescura.
Oh, que differentes se mostravam estes caminhos, estas collinas, que eu
vira dias antes, em torno á Cidade Santa, deseccadas por um vento
d'abstracção, e brancas, da côr das ossadas... Agora tudo era verde,
regado, murmuroso, e com sombras. A mesma luz perdêra o tom magoado, a
côr dorida, com que eu sempre a vira, cobrindo Jerusalem: as folhas dos
ramos d'abril desabrochavam n'um azul, moço, tenro, cheio de esperança
como ellas. E a cada instante se me iam os olhos longamente n'esses
vergeis da Escriptura, que são feitos da oliveira, da figueira e da
vinha, e onde crescem silvestres, e mais esplendidos que o rei Salomão,
os lirios vermelhos dos campos!
Enlevado e cantarolando, eu trotava ao comprido d'uma sebe toda
entrelaçada de rosas. Mas Topsius deteve-me, mostrou-me no alto d'um
outeiro, sobre um fundo sombrio de cyprestes e cedros, uma casa abrindo
para o lado do oriente e da luz o seu portico branco. Pertencia, disse
elle, a um romano, parente de Valerius Gratus, antigo Legado imperial da
Syria: e tudo alli parecia penetrado de paz amavel e de graça latina. Um
tapete viçoso de relva bem lisa estendia-se em declive até a uma alea de
alfazema, tendo ao meio, sobre o verde, desenhadas com linhas de flôres
escarlates, as iniciaes de Valerius Gratus: em redor, entre canteiros de
rosas, de açucenas, orlados de myrto, resplandeciam nobres vasos de
marmore carynthico, onde se enrolavam folhas de acantho: um servo, de
capuz cinzento, talhava um teixo em fórma d'urna, ao lado d'um buxo alto
já talhado sabiamente em feitio de lyra; aves domesticas picavam o chão,
coberto d'arêa escarlate, n'uma rua de platanos onde os braços d'hera
faziam de tronco a tronco festões como os que ornam um templo: a rama
dos loureiros velava de sombras a nudez das estatuas. E sob um
caramanchão de vinha, ao rumor d'agua lenta cantando n'uma bacia de
bronze, um velho de toga, sereno, risonho, ditoso, lia junto a uma
imagem d'Esculapio um longo rôlo de papyro--emquanto uma rapariga, com
uma flecha d'ouro nas tranças, toda vestida de linho alvo, fazia uma
grinalda com as flôres que lhe enchiam o regaço... Ao passo dos nossos
cavallos ella ergueu os olhos claros. Topsius gritou--_O, salvè,
pulcherrima_! Eu gritei--_Viva la gracia_! Os melros cantavam nas
romanzeiras em flôr.
Mas adiante o facundo Topsius deteve-me ainda, apontando-me outra
vivenda de campo, escura e severa entre cyprestes: e disse-me baixo que
era d'Osanias, um rico sadduceu de Jerusalem, da familia pontifical de
Boethos, e membro do Sanhedrin. Nenhum ornato pagão lhe profanava os
muros. Quadrada, fechada, hirta, ella reproduzia a austeridade da Lei.
Mas os largos celleiros, cobertos de colmo, os lagares, os vinhedos,
diziam as riquezas feitas de duros tributos: no pateo dez escravos não
bastavam a guardar os saccos de trigo, ôdres, carneiros marcados de
vermelho, recolhidos em pagamento do dizimo n'esse dia de Paschoa. Junto
á estrada, com uma piedade ostentosa, caiada de fresco, reluzia, ao sol,
entre roseiras, a sepultura domestica.
Assim caminhando chegámos aos palmares onde se aninha Betphagé. E por um
atalho virente que Topsius conhecia, começámos a subir o Monte das
Oliveiras, até o Lagar da Moabita--que é uma paragem de caravanas n'essa
infinita, vetusta Via Real que vem do Egypto, seguindo até Damasco a
bem-regada.
E foi como um deslumbramento, ao encontrarmos sobre todo o Monte, por
entre os olivedos da encosta até ao Cedron, por entre os pomares do
valle até Siloeh, em meio dos tumulos novos dos Sacrificadores, e mesmo
para os lados onde se empoeira a estrada de Hebron--o despertar rumoroso
de todo um povo acampado! Tendas negras do deserto, feitas de pelles de
carneiro e rodeadas de pedras: barracas de lona, da gente da Idumêa,
alvejando ao sol entre as verduras; cabanas armadas com ramos, onde se
abrigam os pastores d'Ascalon; toldos de tapetes que os peregrinos de
Nephtali suspendem em varas de cedro;--era toda a Judêa, ás portas de
Jerusalem, a celebrar a Paschoa Sagrada! E havia ainda, em volta ao
casal onde velava um posto de Legionarios, os mercadores gregos da
Decapola, tecelões phenicios de Tiberiade, e a gente pagã que, através
da Samaria, vem dos lados de Cesarêa e do mar.
Fomos marchando, lentos e cautelosos. Á sombra das oliveiras os camêlos
descarregados ruminavam placidamente; e as egoas da Perea, com as patas
entravadas, pendiam a cabeça sob a espessura das longas clinas. Junto ás
tendas, cujos panos meio levantados nos deixavam entrevêr brilhos
d'armas penduradas ou o esmalte d'um grande prato, raparigas, com os
braços reluzindo de braceletes, pisavam entre duas pedras o grão do
centeio; outras, mugiam as cabras; por toda a parte se accendiam fogos
claros; e com os filhos pela mão, o cantaro esguio ao hombro, uma fila
de mulheres descia cantando para a fonte de Siloeh.
As patas dos nossos cavallos prendiam-se nas cordas retesadas das
barracas dos Idumeus. Depois estacavamos diante de tapetes alastrados,
onde um mercador de Cesarêa, com um manto á carthagineza, vistoso e
bordado de flôres, expunha peças de linho do Egypto, estendia sêdas de
Cós, fazia reluzir armas marchetadas; ou com um frasco na palma de cada
mão, celebrava as perfeições do nardo da Assyria e dos oleos dôces da
Parthia... Os homens em redor, arredando-se, demoravam em nós os seus
olhos languidos e altivos; por vezes murmuravam uma injuria surda; ou
por causa dos oculos do douto Topsius, um riso d'escarneo mostrava
dentes agudos de fera, entre rudes barbas negras.
Sob as arvores, encostados aos muros, filas de mendidos ganiam,
mostrando o caco com que rapavam as chagas. Diante d'uma cabana feita de
ramos de loureiro, um velho obeso, rubro como um Sileno, apregoava o
vinho fresco de Sichem, as favas novas de abril. Os homens fuscos do
deserto apinhavam-se em torno dos gigos de fruta. Um pastor d'Ascalon,
em andas, no meio d'um rebanho de cordeiros brancos, tocava bozina,
chamando os devotos a comprar o anho puro da Paschoa. E por entre a
multidão onde constantemente se erguiam paus, em rixas bruscas, soldados
romanos rondavam aos pares com um ramo d'oliveira no capacete, benignos
e paternaes.
Assim chegámos junto de dois altos, frondosos cedros,--tão cobertos de
pombas brancas voando, que eram como duas grandes macieiras, na
primavera, que um vento estivesse destoucando das flôres. Subitamente,
Topsius parára, abria os braços; eu tambem: e com o coração suspenso
alli ficámos immoveis, deslumbrados, vendo lá em baixo, na luz,
resplandecer Jerusalem.
O sol banhava-a, sumptuosamente! Uma severa, altiva muralha, guarnecida
de torres novas, com portas onde as cantarias se entremeavam de lavores
d'ouro, erguia-se sobre a ribanceira escarpada do Cedron, já sêcco pelos
calores de Nizam, e ia correndo, cingindo Sião, para o lado do Hinnon e
até aos cerros de Gareb. E, dentro, em face aos cedros que nos
assombreavam, o Templo, sobre os seus alicerces eternos, parecia dominar
toda a Judêa, soberbo em esplendor, murado de granitos polidos, armado
de bastiões de marmore, como a refulgente cidadella d'um Deus!...
Debruçado sobre as clinas, o sapiente Topsius apontava-me o adro
primordial, chamado «o Pateo dos Gentilicos», vasto bastante para
receber todas as multidões de Israel, todas as da terra pagã: o chão
liso rebrilhava como a agua limpida d'uma piscina: e as columnas de
marmore de Paros que o ladeavam, formando os Porticos de Salomão,
profundos e cheios de frescura, eram mais bastas que os troncos nos
cerrados palmares de Jerichó. Em meio d'esta área, cheia de ar e de luz,
elevava-se, em escadarias lustrosas como se fossem d'alabastro, com
portas chapeadas de prata, arcarias, torreões d'onde voavam pombas, um
nobre terraço, só accessivel aos fieis da Lei, ao Povo eleito de Deus, o
orgulhoso «Adro de Israel». D'ahi erguia-se ainda, com outras claras
escadarias, outro branco terraço, o «Atrio dos Sacerdotes»: no brilho
diffuso que o enchia negrejava um enorme altar de pedras brutas,
enristando a cada angulo um sombrio corno de bronze: aos lados dois
longos fumos direitos, subiam devagar, mergulhavam no azul com a
serenidade d'uma prece perennal. E ao fundo, mais alto, offuscante, com
os seus recamos d'ouro sobre a alvura dos marmores, niveo e fulvo, como
feito de ouro puro e neve pura, refulgia maravilhosamente, lançando o
seu clarão aos montes em redor, o _Hieron_, o Santuario dos Santuarios,
a morada de Jehovah: sobre a porta pendia o Véo Mystico, tecido em
Babylonia, côr do Fogo e côr dos Mares: pelas paredes trepava a folhagem
d'uma vinha d'esmeralda com cachos d'outras pedrarias: da cupula
irradiavam longas lanças de ouro que o aureolavam de raios como um sol:
e assim, resplandecente, triumphante, augusto, precioso, elle elevava-se
para aquelle céo de festa Paschal, offertando-se todo, como o dom mais
bello, o dom mais raro da Terra!
Mas ao lado do Templo, mais alto que elle, dominando-o com a severidade
d'um amo orgulhoso, Topsius mostrou-me a Torre Antonia, negra, macissa,
impenetravel, cidadella de forças romanas... Na plataforma, entre as
ameias, movia-se gente armada: sobre um bastião, uma figura forte,
envolta n'um manto vermelho de Centurião, estendia o braço; e toques
lentos de bozina pareciam fallar, dar ordens, para outras torres que ao
longe se azulavam no ar limpido, algemando a Cidade Santa. Cesar
pareceu-me mais forte que Jehovah!
E mostrou-me ainda, para além da Antonia, o velho burgo de David. Era um
tropel de casas cerradas, caiadas de fresco sobre o azul, descendo como
um rebanho de cabras brancas para um valle ainda em sombra, onde uma
praça monumental se abria entre arcarias: depois trepava, fendido em
ruas tortuosas, a espalhar-se sobre a collina fronteira d'Acra, rica,
com palacios, e cisternas redondas que luziam á luz semelhantes a
broqueis d'aço. Mais longe ainda, para além de velhos muros derrocados
era o bairro novo de Bezetha, em construcção; o Circo de Herodes
arredondava ahi as suas arcarias; e os jardins d'Antipas estiravam-se
por um ultimo outeiro, até junto ao tumulo de Helena, assoalhados,
frescos, regados pelas aguas dôces de Enrogel.
--Ah Topsius, que cidade! murmurei maravilhado.
--Rabbi Eliezer diz que não viu jámais cidade bella quem não viu
Jerusalem!
Mas ao nosso lado passava gente alegre, correndo, para os lados da verde
estrada que sobe de Bethania: e um velho que puxava á pressa a arreata
do seu burro, carregado de mólhos de palmas, gritou-nos que se avistára
e vinha chegando a caravana da Galilêa! Então, curiosos, trotámos até um
comoro, junto a uma sebe de cactos, onde já se apinhavam mulheres com os
filhos ao collo, sacudindo véos claros, soltando palavras de benção e de
boa acolhida:--e logo vimos, n'uma poeirada lenta que o sol dourava, a
densa fila dos peregrinos que são os derradeiros a chegar a Jerusalem,
vindos de longe, da alta Galilêa, desde Gescala e dos montes. Um rumor
de canticos enchia a estrada festiva: em torno a um estandarte verde
agitavam-se palmas e ramos floridos de amendoeira; e os grandes fardos,
carregando o dorso dos camêlos, balanceavam em cadencia por entre os
turbantes brancos cerrados e movendo-se em marcha.
Seis cavalleiros da guarda Babylonica d'Antipas Herodes, tetrarca de
Galilêa, escoltavam a caravana desde Tiberiade: traziam mitras de felpo,
as longas barbas separadas em tranças, as pernas ligadas em tiras de
couro amarello: e caracolavam á frente, fazendo estalar n'uma das mãos
açoites de corda, com a outra atirando ao ar e aparando alfanges que
faiscavam. Logo atraz era uma collegiada de Levitas, em côro, a passos
largos, apoiados a bordões enfeitados de flôres, com os rôlos da Lei
apertados sobre o peito, psalmodiando rijo os louvores de Sião. E em
torno moços robustos, com as faces infladas e rubras, sopravam para o
céo furiosamente em trompas recurvas de bronze.
Mas, d'entre a gente apertada á beira da estrada, rompeu uma acclamação.
Era um velho, sem turbante, de cabellos soltos, recuando e dançando
freneticamente: das mãos cabelludas que elle agitava no ar sahia um
repique de castanholas: ora arremessava uma perna, ora outra: e toda a
sua face barbuda de Rei David ardia com um fulgôr inspirado. Atraz
d'elle, raparigas, pulando compassadamente sobre a ponta ligeira das
sandalias, feriam com dolencia harpas leves; outras, rodando sobre si,
batiam d'alto os tamborinos--e as suas manilhas de prata brilhavam no pó
que os seus pés levantavam, sob a roda das tunicas enfunadas... Então,
arrebatada, a turba entoou o velho canto das jornadas rituaes e os
psalmos de Peregrinação.
--Meus passos vão todos para ti, ó Jerusalem! Tu és perfeita! Quem te
ama conhece a abundancia!
E eu bradava tambem, transportado:
--Tu és o palacio do Senhor, ó Jerusalem, e o repouso do meu coração!
Lenta e rumorosa a caravana passava. As mulheres dos levitas, em burros,
veladas e rebuçadas, semelhavam grandes saccos molles: as mais pobres, a
pé, traziam nas pontas dobradas do manto frutas e o grão da aveia. Os
previdentes, já com a sua offrenda ao Senhor, arrastavam preso do cinto
um cordeiro branco; os mais fortes seguravam ás costas, presos pelos
braços, os doentes--cujos olhos dilatados, nas faces maceradas,
procuravam anciosamente as muralhas da Cidade Santa, onde todo o mal se
cura.
Entre os peregrinos e a alegre multidão que os acolhia, as bençãos
cruzavam-se, ruidosas e ardentes; alguns perguntavam pelos visinhos,
pelas searas ou pelos avós que tinham ficado na aldêa á sombra da sua
vinha: e ouvindo que lhe fôra roubada a pedra do seu moinho, um velho,
ao meu lado, com as barbas d'um Abrahão, arremessou-se a terra a
arrepellar-se e a esfarrapar a tunica. Mas já, fechando a marcha,
passavam as mulas com guisos carregadas de lenha e de ôdres d'azeite: e
atraz uma turba de fanaticos que nos arredores, em Betphagé e em
Rephrain, se tinham juntado á caravana, appareceu, atirando para os
lados cabaças de vinho já vazias, brandindo facas, pedindo a morte dos
Samaritanos e ameaçando a gente pagã...
Então seguindo Topsius trotei de novo através do monte para junto dos
cedros cobertos do vôo alvo das pombas: e n'esse instante tambem os
peregrinos, emergindo da estrada, avistavam emfim Jerusalem que
resplandecia lá em baixo formosa, toda branca na luz... Então foi um
santo, tumultuoso, inflammado delirio! Prostrada, a turba batia as faces
na terra dura: um clamor de orações subia ao céo puro por entre o
estridor das tubas: as mulheres erguiam os filhos nos braços
offertando-os arrebatadamente ao Senhor! Alguns permaneciam immoveis,
como assombrados, ante os esplendores de Sião: e quentes lagrimas de fé,
de amor piedoso, rolavam sobre barbas incultas e feras. Os velhos
mostravam com o dedo os terraços do Templo, as ruas antigas, os sacros
lugares da historia de Israel: «alli é a porta d'Ephrain, acolá era a
torre das Fornalhas; aquellas pedras brancas, além, são do tumulo de
Rachel...» E os que escutavam em redor, apinhados, batiam as mãos,
gritavam: «Bemdita sejas, Sião!» Outros, estonteados, com o cinto
desapertado, corriam tropeçando nas cordas das tendas, nos gigos de
fruta, a trocar a moeda romana, a comprar o anho da offerta. Por vezes,
d'entre as arvores, um canto subia, claro, fino, candido, e que ficava
tremendo no ar: a terra um momento parecia escutar, como o céo:
serenamente, Sião rebrilhava, do Templo os dois fumos lentos ascendiam,
com uma continuidade de prece eterna... Depois o canto morria: de novo
as bençãos rompiam, clamorosas: a alma inteira de Judá abysmava-se no
resplendor do santuario: e braços magros erguiam-se phreneticamente para
estreitar Jehovah.
De repente Topsius colheu-me as redeas da egoa: e quasi ao meu lado um
homem com uma tunica côr d'açafrão, surgindo esgazeado de traz de uma
oliveira e brandindo uma espada, saltou para cima d'uma pedra e gritou
desesperadamente:
--Homens de Galilêa, acudi, e vós, homens de Nephtali!...
Peregrinos correram, erguendo os bastões: e as mulheres sahiam das
tendas, pallidas, apertando os filhos ao collo. O homem fazia tremer a
espada no ar, todo elle tremia tambem: e outra vez bradou,
desoladamente:
--Homens de Galilêa, Rabbi Jeschoua foi preso! Rabbi Jeschoua foi levado
a casa de Hannan, homens de Nephtali!
--D. Raposo, disse Topsius então, com os olhos faiscantes, o Homem foi
preso, e compareceu já diante do Sanhedrin!... Depressa, depressa,
amigo, a Jerusalem, a casa de Gamaliel!
* * * * *
E á hora em que no Templo se fazia a offerta do Perfume, quando o sol já
ia alto sobre o Hebron, Topsius e eu penetrámos, pela porta do Pescado,
a passo, n'uma rua da antiga Jerusalem. Era ingreme, tortuosa,
poeirenta, com casas baixas e pobres de tijolo; sobre as portas,
fechadas por uma corrêa, sobre as janellas esguias como fendas
gradeadas, havia verduras e palmas entretecidas, fazendo ornatos de
Paschoa. Nos terraços, rodeados de balaustradas, mulheres diligentes
sacudiam os tapetes, joeiravam o trigo; outras, chalrando, penduravam
lampadas de barro em festões para as illuminações rituaes.
Ao nosso lado ia marchando fatigado um harpista egypcio, com uma pluma
escarlate presa na peruca frisada, um pano branco envolvendo-lhe a cinta
fina, os braços pesados de braceletes, e a harpa ás costas, recurva como
uma foice e lavrada em flôres de lotus. Topsius perguntou-lhe se elle
vinha d'Alexandria. E ainda se cantavam nas tabernas do Eunotos as
cantigas da batalha d'Accio? O homem logo, mostrando n'um riso triste os
dentes longos, pousou a harpa, ia ferir os bordões... Picámos as egoas:
e assustámos duas mulheres cobertas de véos amarellos, com casaes de
pombas enroladas na ponta do manto, que se apressavam decerto para o
Templo, airosas, ligeiras, fazendo retinir os guisos das suas sandalias.
Aqui e além um lume caseiro ardia no meio da rua, com trempes,
caçarolas, d'onde sahia um cheiro acre d'alho: crianças de ventre enorme
que rolavam núas pela poeira, roendo vorazmente cascas d'abobora crua,
ficavam pasmadas para nós, com grandes olhos ramellosos onde fervilhavam
moscas. Diante d'uma forja um bando hirsuto de pastores de Moab
esperavam emquanto dentro, martellando n'um nimbo de chispas, os
ferreiros lhes batiam ferros novos para as lanças. Um negro, com um
pente em fórma de sol toucando-lhe a carapinha, apregoava, n'um grito
lugubre, bolos de centeio de feitios obscenos.
Calados, atravessámos uma praça, clara e lageada, que andava em obras.
Ao fundo uma casa de banhos, moderna, uma Therma romana, estendia com ar
de luxo e de ociosidade a longa arcada do seu portico de granito: no
pateo interior, por entre os platanos que o refrescavam, cujos ramos
suspendiam velarios de linho alvo, corriam escravos nús, reluzentes de
suor, levando vasos d'essencias e braçadas de flôres; das aberturas
gradeadas, ao rez das lages, sahia um bafo molle d'estufa que cheirava a
rosa. E sob uma das columnas vestibulares, onde uma lapide d'onyx
indicava a entrada das mulheres, estava de pé, immovel, offertando-se
aos votos como um idolo, uma creatura maravilhosa: sobre a sua face
redonda, d'uma brancura de lua cheia, com labios grossos, rubros de
sangue, erguia-se a mitra amarella das prostitutas de Babylonia; dos
hombros fortes, por cima da tumida rijeza dos seios direitos, cahia em
pregas duras de brocado uma dalmatica negra radiantemente recamada de
ramagens côr de ouro. Na mão tinha uma flôr de cactus; e as suas
palpebras pesadas, as pestanas densas, abriam-se e fechavam-se em
rythmo, ao mover onduloso d'um leque que uma escrava preta, agachada a
seus pés, balançava cantando. Quando os seus olhos se cerravam, tudo em
redor parecia escurecer; e quando se levantava a negra cortina das suas
pestanas, vinha d'essa larga pupilla um clarão, uma influencia, como a
do sol do meio dia no deserto que abraza e vagamente entristece. E assim
se offertava, magnifica, com os seus grandes membros de marmore, a sua
mitra fulva, lembrando os ritos de Astarté e d'Adonis, lasciva e
pontifical...
Toquei no braço de Topsius, murmurei, pallido:
--Caramba! Vou aos banhos!
Sêcco, impertigado na sua capa branca, elle volveu asperamente:
--Espera-nos Gamaliel, filho de Simeon. E a sabedoria dos Rabbis lá
disse que a mulher é o caminho da iniquidade!
E bruscamente penetrou n'uma lobrega viella, toda abobadada: as patas
das egoas, ferindo as lages, acirraram contra nós uivos de cães,
maldições de mendigos, amontoados juntos no escuro. Depois saltámos por
uma brecha da antiga muralha de Ezekiah, passámos uma velha cisterna
sêcca onde os lagartos dormiam: e trotando pela poeira solta d'uma longa
rua, entre muros caiados que reluziam e portas besuntadas de alcatrão,
parámos no alto diante d'uma entrada mais nobre, em arco, com uma grade
baixa d'arame que a defendia dos escorpiões. Era a casa de Gamaliel.
No meio d'um vasto pateo ladrilhado, escaldando ao sol, um limoeiro
toldava a agua clara d'um tanque. Em volta, sobre pilastras de marmore
verde, corria uma varanda, silenciosa e fresca, d'onde pendia aqui e
além um tapete da Assyria com flôres bordadas. Um puro azul brilhava no
alto;--e ao canto, sob um alpendre, um negro atrellado por cordas como
uma alimaria a uma barra de pau, calçado de ferraduras, vincado de
cicatrizes, ia fazendo gemer e girar lentamente a grande mó de pedra do
moinho domestico.
No escuro d'uma porta appareceu um homem obeso, sem barba, quasi tão
amarello como a tunica lassa que o envolvia todo: tinha na mão uma vara
de marfim e mal podia erguer as palpebras molles.
--Teu amo? gritou-lhe Topsius, desmontando.
--Entra, disse o homem n'uma voz fugidia e fina como um silvo de cobra.
Por uma escadaria rica de granito negro chegámos a um patamar--onde
pousavam dois candelabros, espigados como os arbustos de que
reproduziam, em bronze, o tronco sem folhas: e entre elles estava de pé,
diante de nós, Gamaliel, filho de Simeon. Era muito alto, muito magro; e
a barba solta, lustrosa, perfumada, enchia-lhe o peito, onde brilhava um
sinete de coral pendurado d'uma fita escarlate. O seu turbante branco,
entremeado de fios de perolas, descobria uma tira de pergaminho collada
sobre a testa e cheia de textos sagrados: sob aquella alvura, os seus
olhos encovados tinham um fulgor frio e duro. Uma longa tunica azul
cobria-o até ás sandalias, orlada de compridas franjas que arrastavam: e
cosidas ás mangas, enroladas nos pulsos, tinha ainda outras tiras de
pergaminho onde negrejavam outras escripturas rituaes.
Topsius saudou-o á moda do Egypto, deixando cahir lentamente a mão até á
joelheira da sua calça de lustrina. Gamaliel alargou os braços e
murmurou, como psalmodiando:
--Entrai, sêde bem vindos, comei e regosijai-vos...
E atraz de Gamaliel, pisando um chão sonoro de mosaico, penetrámos n'uma
sala onde se achavam tres homens. Um, que se afastou da janella para nos
acolher, era magnificamente bello, com longos cabellos castanhos,
pendendo em anneis dôces em torno d'um pescoço forte, macio e branco
como um marmore corinthio: na faxa negra que lhe apertava a tunica
brilhava, com pedrarias, o punho d'ouro d'uma espada curta. O outro,
calvo, gordo, com uma face balofa sem sobrancelhas, e tão livida que
parecia coberta de farinha, ficára encruzado, embrulhado no seu manto
côr de vinho, sobre um divan feito de correias--tendo uma almofada de
purpura debaixo de cada braço; e o seu gesto d'acolhida foi mais
distrahido e desdenhoso, do que a esmola que se atira ao estrangeiro.
Mas Topsius quasi se prostrára, a beijar os seus sapatos redondos de
couro amarello, atados por fios de ouro--porque aquelle era o venerando
Osanias, da familia pontifical de Beothos, ainda do sangue real de
Aristobolus! O outro homem não o saudámos, nem elle tambem nos viu;
estava agachado a um canto, com a face sumida no capuz d'uma tunica de
linho mais alvo que a neve fresca, como mergulhado n'uma oração: e só de
vez em quando se movia, para limpar as mãos lentamente a uma toalha da
fina brancura da tunica, que lhe pendia d'uma corda, apertada á cintura,
grossa e cheia de nós, como as que cingem os monges.
No emtanto, descalçando as luvas, eu examinava o tecto da sala, todo de
cedro, com lavores retocados d'escarlate. O azul liso e lustroso das
paredes era como a continuação d'aquelle céo d'Oriente, quente e puro,
que resplandecia através da janella, onde se destacava, pendido do muro,
na plena luz, um ramo solitario de madresilva. Sobre uma tripeça,
incrustada de nacar, n'um incensador de bronze, fumegava uma resina
aromatica.
Mas Gamaliel aproximára-se--e depois de ter olhado duramente as minhas
botas de montar disse com lentidão:
--A jornada do Jordão é longa, deveis vir esfomeados...
Murmurei polidamente uma recusa... E elle, grave como se recitasse um
texto:
--A hora do meio dia é a mais grata ao Senhor. Joseph disse a Benjamim:
«tu comerás commigo ao meio dia.» Mas a alegria do hospede é tambem doce
ao Muito-Alto, ao Muito-Forte... Estaes fracos, ides comer, para que a
vossa alma me abençôe.
Bateu as palmas--um servo, com os cabellos apertados n'um diadema de
metal, entrou trazendo um jarro cheio d'agua tepida que cheirava a rosa,
onde eu purifiquei as mãos; outro offereceu bolos de mel sobre viçosas
folhas de parra; outro verteu em taças de louça brilhante um vinho forte
e negro d'Emaús. E para que o hospede não comesse só, Gamaliel partiu um
gomo de romã, e com as palpebras cerradas levou á beira dos labios uma
malga, onde boiavam pedaços de gêlo entre flôres de laranjeira.
--Pois agora, disse eu lambendo os dedos, tenho lastro até ao meio
dia...
--Que a tua alma se regosije!
Accendi um cigarro, debrucei-me na janella. A casa de Gamaliel ficava
n'um alto, decerto por traz do Templo, sobre a collina d'Ophel: alli o
ar era tão dôce e macio, que só o sentir a sua caricia enchia de paz o
coração. Por baixo corria a muralha nova erguida por Herodes o Grande; e
para além floriam jardins e pomares dando sombra ao Valle da Fonte, e
subindo até á collina, em que branquejava, calada e fresca, a aldeia de
Siloé. Por uma fenda, entre o monte do Escandalo e a collina dos
Tumulos, eu via resplandecer o mar Morto como uma chapa de prata: as
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