A Relíquia - 08

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trazendo n'uma das mãos um alfange, na outra presa pelos cabellos a
cabeça do propheta. E assim acabou S. João, por quem se canta e se
queimam fogueiras n'uma dôce noite de junho...
Escutando, embevecidos e a passo, estas coisas tão antigas--avistámos ao
longe, na areia fulva, uma sebe de verdura triste e da côr do bronze.
Potte gritou: «o Jordão! o Jordão!» E arrebatadamente galopámos para o
rio da Escriptura.
O festivo Potte conhecia, á beira da corrente baptismal, um sitio
deleitosissimo para uma sesta christã: e ahi passamos as horas quentes,
recostados n'um tapete, languidos, e bebendo cerveja, depois de bem
esfriada nas aguas do rio santo. Elle faz alli um claro, suave remanso,
a repousar da lenta, abrazada jornada que traz, através do deserto,
desde o lago de Galilêa: e antes de mergulhar para sempre no amargor do
Mar Morto--alli preguiça, espraiado sobre a areia fina; canta baixo e
cheio de transparencia, rolando os seixos lustrosos do seu leito; e
dorme nos sitios mais frescos, immovel e verde, á sombra dos
tamarindos... Por sobre nós rumorejavam as folhas dos altos choupos da
Persia: entre as hervas balançavam-se flôres desconhecidas, das que
toucavam outr'ora as tranças das virgens de Canaan em manhãs de vindima;
e na escuridão fofa das ramagens, onde já as não vinha assustar a voz
terrivel de Jehovah, gorgeavam pacificamente as toutinegras. Defronte
elevavam-se azues e sem mancha, como feitas d'um só bloco de pedra
preciosa, as montanhas de Moab. O céo branco, mudo, recolhido, parecia
descançar deliciosamente do duro tumulto que o agitou quando alli vivia,
entre preces e mortandades, o sombrio Povo de Deus: e onde
constantemente batiam as azas dos Seraphins, e fluctuavam as roupagens
dos prophetas arrebatados pelo Altissimo, era calmante vêr agora passar
apenas uma revoada de pombos bravos, voando para os pomares d'Engaddi.
Obedecendo á recommendação da titi, despi-me, e banhei-me nas aguas do
Baptista. Ao principio, enleado de emoção beata, pisei a areia
reverentemente como se fosse o tapete d'um altar-mór: e de braços
cruzados, nú, com a corrente lenta a bater-me os joelhos, pensei em S.
Joãosinho, susurrei um padre-nosso. Depois ri, aproveitei aquella
bucolica banheira entre arvores; Potte atirou-me a minha esponja; e
ensaboei-me nas aguas sagradas, trauteando o _fado_ da Adelia.
Ao refrescar, quando montavamos a cavallo, uma tribu de beduinos,
descendo das collinas de Galgalá, trouxe os seus rebanhos de camêlos a
beber ao Jordão; as crias brancas e felpudas corriam, balando; os
pastores, de lança alta, soltando gritos de batalha, galopavam, n'um
amplo esvoaçar d'albornozes; e era como se resurgisse em todo o valle,
no esplendor da tarde, uma pastoral da idade biblica, quando Agar era
moça! Teso na sella, com as redeas bem colhidas, eu senti um curto
arrepio de heroismo; ambicionava uma espada, uma Lei, um Deus por quem
combater... Lentamente alargara-se pela planicie sacra um silencio
enlevado. E o mais alto cerro de Moab cobriu-se de um fulgor raro, côr
de rosa e côr d'ouro, como se n'elle de novo, fugitivamente, ao passar,
se reflectisse a face do Senhor! Topsius alçou a mão sapiente:
--Aquelle cimo illuminado, D. Raposo, é o Moriah, onde morreu Moysés!
Estremeci. E penetrado pelas emanações divinas d'essas aguas, d'esses
montes, sentia-me forte--e igual aos homens fortes do Exodo. Pareceu-me
ser um d'elles, familiar de Jehovah, e tendo chegado do negro Egypto com
as minhas sandalias na mão... Esse alliviado suspiro que trazia a briza
vinha das tribus d'Israel, emergindo emfim do deserto! Pelas encostas
além, seguida d'uma escolta d'anjos, a Arca dourada descia balançada
sobre os hombros dos levitas vestidos de linho e cantando. Outra vez nas
seccas areias reverdecia a terra da Promissão. Jericó branquejava entre
as seáras: e através dos palmares cerrados já resoavam em marcha os
clarins de Josué!
Não me contive, arranquei o capacete, soltei por sobre Canaan este urro
piedoso:
--Viva Nosso Senhor Jesus Christo! Viva toda a Côrte do Céo!
* * * * *
Cedo, ao outro dia, domingo, o incansavel Topsius partiu, bem enlapisado
e bem enguardasolado, a estudar as ruinas de Jericó, essa velha Cidade
das Palmeiras que Herodes cobrira de thermas, de templos, de jardins,
d'estatuas, e onde passaram os seus tortuosos amores com Cleopatra... E
eu, á porta da tenda, escarranchado n'um caixote, fiquei a tomar o meu
café, olhando os pacificos aspectos do nosso acampamento. O cozinheiro
depennava frangos; o beduino triste areava á beira d'agua o seu pacato
alfange; o nosso lindo arrieiro esquecia a ração ás egoas para seguir no
céo, d'um brilho de saphira, a branca passagem das cegonhas voando aos
pares para a Samaria.
Depois puz o capacete, fui vadiar na doçura da manhã, de mãos nos
bolsos, cantarolando um _fado_ meigo. E ia pensando na Adelia e no snr.
Adelino... Enroscados na alcova, beijando-se furiosamente, estavam-me
talvez chamando _carola_, emquanto eu passeava alli, nos retiros da
Escriptura! Áquella hora a titi, de mantelete preto, com o seu ripanço,
sahia para a missa de Sant'Anna: os creados do Montanha, esguedelhados,
assobiando, escovavam o pano dos bilhares: e o dr. Margaride, á janella,
na praça da Figueira, pondo os oculos, abria o _Diario de Noticias_. Ó
minha dôce Lisboa!... Mas ainda mais perto, para além do deserto de
Gaza, no verde Egypto, a minha Maricoquinhas n'esse instante estava
enchendo o vaso do balcão com magnolias e rosas; o seu gato dormia no
velludo da cadeira; ella suspirava pelo «seu portuguezinho valente...»
Suspirei tambem: mais triste nos labios se me fez o _fado_ triste.
E de repente, olhando, achei-me, como perdido, n'um sitio de grande
solidão e de grande melancolia. Era longe do regato e dos aromaticos
arbustos de flôr amarella; já não via as nossas tendas brancas; e diante
de mim arredondava-se um ermo árido, livido, de areia, fechado todo por
penedos lisos, direitos como os muros d'um poço--tão lugubres que a luz
loura da quente manhã do Oriente desmaiava alli, mortalmente, desbotada
e magoada. Eu lembrava-me de gravuras, assim desoladas, onde um eremita
de longas barbas medita um in-folio junto de uma caveira. Mas nenhum
solitario aniquilava alli a carne em heroica penitencia. Sómente, ao
meio do fero recinto, isolada, orgulhosa, com um ar de raridade e de
reliquia, como se as penedias se tivessem amontoado para lhe arranjarem
um resguardo de Sacrario--erguia-se uma arvore tão repellente, que logo
me fez morrer nos labios o resto do _fado_ triste...
Era um tronco grosso, curto, atochado e sem nós de raizes, semelhante a
uma enorme moca bruscamente cravada na areia: a casca corredia tinha o
lustre oleoso de uma pelle negra: e da sua cabeça entumecida, de um tom
de tição apagado--rompiam, como longas pernas d'aranha, oito galhos que
contei, pretos, molles, lanugentos, viscosos, e armados de espinhos...
Depois de olhar em silencio para aquelle monstro, tirei devagar o meu
capacete e murmurei:
--Para que viva!
É que me encontrava certamente diante d'uma arvore illustre! Fôra um
galho igual (o nono talvez) que, arranjado outr'ora em fórma de corôa
por um centurião romano da guarnição de Jerusalem, ornára sarcastimente,
no dia do suplicio, a cabeça de um carpinteiro de Galilêa, condemnado...
Sim, condemnado por andar, entre quietas aldeias e nos santos pateos do
Templo, dizendo-se filho de David e dizendo-se filho de Deus, a prégar
contra a velha Religião, contra as velhas Instituições, contra a velha
Ordem, contra as velhas Fórmas! E eis que esse galho por ter tocado os
cabellos incultos do rebelde torna-se divino, sobe aos altares, e do
alto enfeitado dos andores faz prostrar no lagedo, á sua passagem, as
multidões enternecidas...
No collegio dos Isidoros, ás terças e sabbados, o sebento padre Soares
dizia esfuracando os dentes--«que havia, meninos, lá n'um sitio da
Judêa...» Era alli! «...uma arvore que segundo dizem os authores é mesmo
d'arripiar...» Era aquella! Eu tinha ante meus frivolos olhos de
Bacharel a sacratissima Arvore d'Espinhos!
E logo uma idéa sulcou-me o espirito com um brilho de visitação
celeste... Levar á titi um d'esses galhos, o mais pennugento, o mais
espinhoso, como sendo a reliquia fecunda em milagres a que ella poderia
consagrar seus ardores de devota e confiadamente pedir as mercês
celestiaes! «Se entendes que mereço alguma coisa pelo que tenho feito
por ti, traze-me então d'esses santos lugares uma santa reliquia...»
Assim dissera a snr.^a D. Patrocinio das Neves na vespera da minha
jornada piedosa, enthronada nos seus damascos vermelhos, diante da
Magistratura e da Igreja, deixando escapar uma baga de pranto sob seus
oculos austeros. Que lhe podia eu offerecer mais sagrado, mais
enternecedor, mais efficaz, que um ramo da Arvore d'Espinhos, colhido no
valle do Jordão, n'uma clara, rosada manhã de missa?
Mas de repente assaltou-me uma aspera inquietação... E se realmente uma
virtude transcendente circulasse nas fibras d'aquelle tronco? E se a
titi começasse a melhorar do figado, a reverdecer, mal eu installasse no
seu oratorio, entre lumes e flôres, um d'esses galhos erriçados de
espinhos? Ó miserrimo logro! Era eu pois que lhe levava nesciamente o
principio milagroso da Saude, e a tornava rija, indestructivel,
ininterravel, com os contos de G. Godinho firmes na mão avara! Eu! Eu
que só começaria a viver--quando ella começasse a morrer!
Rondando então em torno á Arvore d'Espinhos, interroguei-a, sombrio e
rouco: «Anda, monstro, dize! És tu uma reliquia divina com poderes
sobrenaturaes? ou és apenas um arbusto grutesco com um nome latino nas
classificações de Linneu? Falla! Tens tu, como aquelle cuja cabeça
coroaste por escarneo, o dom de sarar? Vê lá... Se te levo commigo para
um lindo Oratorio portuguez, livrando-te do tormento da solidão e das
melancolias da obscuridade, e dando-te lá os regalos de um altar, o
incenso vivo das rosas, a chamma louvadora das velas, o respeito das
mãos postas, todas as caricias da oração--não é para que tu, prolongando
indulgentemente uma existencia estorvadora, me prives da rapida herança
e dos gozos a que a minha carne moça tem direito! Vê lá! Se, por teres
atravessado o Evangelho, te embebeste de idéas pueris de Caridade e
Misericordia, e vaes com tenção de curar a titi--então fica-te ahi,
entre essas penedias, fustigado pelo pó do deserto, recebendo o
excremento das aves de rapina, enfastiado no silencio eterno!... Mas se
promettes permanecer surdo ás preces da titi, comportar-te como um pobre
galho secco e sem influencia, e não interromperes a appetecida
decomposição dos seus tecidos--então vaes ter em Lisboa o macio agasalho
d'uma capella afofada de damascos, o calor dos beijos devotos, todas as
satisfações de um idolo, e eu hei de cercar-te de tanta adoração que não
has de invejar o Deus que os teus espinhos feriram... Falla, monstro!»
O monstro não fallou. Mas logo senti perpassar-me na alma,
aquietadoramente, com uma consolante fresquidão de brisa d'estio, o
presentimento de que breve a titi ia morrer e apodrecer na sua cova. A
Arvore d'Espinhos mandava, pela communicação esparsa da Natureza, da sua
seiva ao meu sangue, aquelle palpite suave da morte da snr.^a D.
Patrocinio--como uma promessa sufficiente de que, transportado para o
oratorio, nenhum dos seus galhos impediria que o figado d'essa hedionda
senhora inchasse e se desfizesse... E isto foi, entre nós, n'esse ermo,
como um pacto taciturno, profundo e mortal.
Mas era esta realmente a Arvore d'Espinhos? A rapidez da sua
condescendencia fazia-me suspeitar a excellencia da sua divindade.
Resolvi consultar o solido, sapientissimo Topsius.
Corri á fonte de Elyseo, onde elle rebuscava pedras, lascas, lixos,
restos da orgulhosa Cidade das Palmeiras. Avistei logo o luminoso
historiographo acocorado junto a uma poça d'agua, com os oculos
sôfregos, esgarafunhando um pedaço de pilastra negra, meia enterrada no
lodo. Ao lado um burro, esquecido da herva tenra, contemplava
philosophicamente e com melancolia o afan, a paixão d'aquelle sabio, de
rastos no chão, á procura das Thermas de Herodes.
Contei a Topsius o meu achado, a minha incerteza... Elle ergueu-se logo,
serviçal, zeloso, presto ás lides do Saber.
--Um arbusto d'espinhos? murmurava, estancando o suor. Ha de ser o
_Nabka_... Banalissimo em toda a Syria! Hasselquist, o botanico,
pretende que d'ahi se fez a Corôa d'Espinhos... Tem umas folhinhas
verdes, muito tocantes, em fórma de coração, como as da hera... Ah, não
tem? Perfeitamente, então é o _Lycium Spinosum_. Foi o que serviu,
segundo a tradição latina, para a Corôa d'Injuria... Que quanto a mim a
tradição é futil; e Hasselquist ignaro, infinitamente ignaro... Mas eu
vou já aclarar isso, D. Raposo. Aclarar irrefutavelmente e para sempre!
Abalámos. No ermo, ante a arvore medonha, Topsius, alçando
cathedraticamente o bico, recolheu um momento aos depositos interiores
do seu saber--e depois declarou que eu não podia levar a minha tia
devotissima nada mais precioso. E a sua demonstração foi faiscante.
Todos os instrumentos da Crucificação (disse elle, floreando o
guardasol), os Pregos, a Esponja, a Cana Verde, um momento divinisados
como materiaes da Divina Tragedia, reentraram pouco a pouco, pelas
urgencias da civilisação, nos usos grosseiros da vida... Assim, o Prego
não ficou _per eternum_ na ociosidade dos altares, memorando as Chagas
Sacratissimas: a humanidade, catholica e commerciante, foi gradualmente
levada a utilisar o prego como uma valiosa ferragem: e tendo trespassado
as mãos do Messias, elle hoje segura, laborioso e modesto, as tampas de
caixões impurissimos... Os mais reverentes irmãos do Senhor dos Passos
empregam a Cana para pescar; ella entra na folgante composição do
foguete; e o Estado mesmo (tão escrupuloso em materia religiosa) assim a
usa em noites alegres de nova Constituição ou em festivos delirios pelas
bodas de Principes... A Esponja, outr'ora embebida no vinagre de
sarcasmo e offerecida n'uma lança, é hoje aproveitada n'esses
irreligiosos ceremoniaes da limpeza--que a Igreja sempre reprovou com
odio... Até a Cruz, a Fórma suprema, tem perdido entre os homens a sua
divina significação. A christandade, depois de a ter usado como lábaro,
usa-a como enfeite. A cruz é broche, a cruz é breloque; pende nos
collares, tilinta nas pulseiras; é gravada em sinetes de lacre, é
incrustada em botões de punho;--e a Cruz realmente n'este soberbo seculo
pertence mais á Ourivesaria do que pertence á Religião...
--Mas a Corôa d'Espinhos, D. Raposo, essa não _tornou a servir para mais
nada_!
Sim, _para mais nada_! A Igreja recebeu-a das mãos de um proconsul
romano--e ella ficou isoladamente e para toda a eternidade na Igreja,
commemorando o Grande Ultraje. Em todo este vario Universo ella só
encontra um lugar congenere na penumbra das capellas; o seu unico
prestimo é persuadir á contrição. Nenhum joalheiro jámais a imitou em
ouro, cravejada de rubis, para ornar um penteado loiro; ella é só
Instrumento de Martyrio; e com salpicos de sangue, sobre os caracoes
frisados das imagens, inspira infinitamente as lagrimas... O mais astuto
Industrial, depois de a retorcer pensativamente nas mãos,
restituil-a-hia aos altares como coisa inutil na Vida, no Commercio, na
Civilisação; ella é só attributo da Paixão, recurso de tristes,
enternecedora de fracos. Só ella, entre os accessorios da Escriptura,
provoca sinceramente a oração. Quem, por mais adorabundo, se prostraria,
a borbulhar de Padre-Nossos, diante d'uma esponja cahida n'uma tina, ou
d'uma cana á beira d'um regato?... Mas para a Corôa d'Espinhos erguem-se
sempre as mãos crentes; e a sensação da sua deshumanidade passa ainda na
melancolia dos Misereres!
Que maior maravilha podia eu levar á titi?...
--Sim, Topsius, meu catita... Os teus dizeres são d'oiro puro... Mas a
outra, a verdadeira, _a que serviu_, teria sido tirada d'aqui, d'este
tronco? Hein, amiguinho?
O erudito Topsius desdobrou lentamente o seu lenço de quadrados: e
declarou (contra a futil tradição latina e contra o ignarissimo
Hasselquist) que a Corôa d'Espinhos fôra arranjada d'uma silva, fina e
flexivel, que abunda nos valles de Jerusalem, com que se accende o lume,
com que se erriçam as sebes, e que dá uma flôrzinha rôxa, triste e sem
cheiro...
Eu murmurei, succumbido:
--Que pena! A titi fazia tanto gosto que fosse d'aqui, Topsius! A titi é
tão rica!...
Então este sagaz philosopho comprehendeu que ha Razões de Familia como
ha Razões d'Estado--e foi sublime. Estendeu a mão por cima da arvore,
cobrindo-a assim largamente com a garantia da sua sciencia--e disse
estas palavras memoraveis:
--D. Raposo, nós temos sido bons amigos... Póde pois afiançar á senhora
sua tia da parte d'um homem que a Allemanha escuta em questões de
critica archeologica, que o galho que lhe levar d'aqui, arranjado em
corôa, foi...
--Foi?--berrei ancioso.
--Foi o mesmo que ensanguentou a fronte do rabbi Jeschoua Natzarieh, a
quem os latinos chamam Jesus do Nazareth, e outros tambem chamam o
Christo!...
Fallára o alto saber germanico! Puxei o meu navalhão sevilhano, decepei
um dos galhos. E emquanto Topsius voltava a procurar pelas hervas
humidas a cidadella de Cypron e outras pedras de Herodes--eu recolhi ás
tendas, em triumpho, com a minha preciosidade. O prazenteiro Potte,
sentado n'um sellim, estava moendo café.
--Soberbo galho! gritou elle. Quer-se arranjadinho em corôa... Fica
d'uma devoção!
E logo, com a sua rara destreza de mãos, o jocundo homem entrelaçou o
galho rude em forma de corôa santa. E tão parecida! tão tocante!...
--Só lhe faltam as pinguinhas de sangue! murmurava eu, enternecido.
Jesus! o que a titi se vai babar!
Mas como levariamos para Jerusalem, através dos cerros de Judá, aquelles
incommodos espinhos--que, apenas armados na sua fórma Passional,
pareciam já avidos de rasgar carne innocente? Para o alegre Potte não
havia difficuldades; tirou do fundo do seu provido alforge uma fofa
nuvem de algodão em rama; envolveu n'ella delicadamente a Corôa
d'Aggravo, como uma joia fragil; depois com uma folha de papel pardo e
um nastro escarlate--fez um embrulho redondo, sólido, ligeiro e
nitido... E eu, sorrindo, enrolando o cigarro, pensava n'esse outro
embrulho de rendas e laços de sêda, cheirando a violeta e a amor, que
ficára em Jerusalem, esperando por mim e pelo favor dos meus beijos.
--Potte, Potte! gritei, radiante. Nem tu sabes que grossa moeda me vai
render esse galhinho, dentro d'esse pacotinho!
Apenas Topsius voltou da sacra fonte d'Elyseo--eu offereci, para
celebrar o encontro providencial da Grande Reliquia, uma das garrafas de
Champagne, que Potte trazia nos alforges, encarapuçadas d'ouro. Topsius
bebeu «á Sciencia!» Eu bebi «á Religião!» E largamente a espuma de _Moet
et Chandon_ regou a terra de Canaan.
Á noite, para maior festividade, accendemos uma fogueira: e as mulheres
arabes de Jericó vieram dançar diante das nossas tendas. Recolhemos
tarde, quando por sobre Moab, para os lados de Makéros, a lua apparecia,
fina e recurva, como esse alfange d'ouro que decepou a cabeça ardente
d'Iokanan.
O embrulho da Corôa d'Espinhos estava á beira do meu catre. O lume
apagára-se, o nosso acampamento dormia no infinito silencio do Valle da
Escriptura... Tranquillo, regalado, adormeci tambem.


III

Havia certamente duas horas que assim dormia, denso e estirado no catre,
quando me pareceu que uma claridade trémula, como a d'uma tocha
fumegante, penetrava na tenda--e através d'ella uma voz me chamava,
lamentosa e dolente:
--Theodorico, Theodorico, ergue-te, e parte para Jerusalem!
Arrojei a manta, assustado:--e vi o doutissimo Topsius, que, á luz
mortal de uma vela, bruxoleando sobre a mesa onde jaziam as garrafas de
Champagne, afivelava no pé rapidamente uma velha espora de ferro. Era
elle que me despertava, açodado, fervoroso:
--A pé, Theodorico, a pé! As egoas estão selladas! Amanhã é Paschoa! Ao
alvorecer devemos chegar ás portas de Jerusalem!
Arredando os cabellos, considerei com pasmo o sisudo, ponderado Doutor:
--Oh Topsius! Pois nós partimos assim, bruscamente, sem os nossos
alforges, e deixando as tendas adormecidas, como quem foge espavorido?
O erudito homem alçou os seus oculos d'ouro que resplandeciam com uma
desusada, irresistivel intellectualidade. Uma capa branca, que eu nunca
lhe vira, envolvia-lhe a douta magreza em prégas graves e puras de toga
latina: e lento, esguio, abrindo os braços, disse, com labios que
pareciam classicos e de marmore:
--D. Raposo! Esta aurora que vae nascer, e em pouco tocar os cimos do
Hebron, é a de 15 do mez de Nizam; e não houve em toda a historia
d'Israel, desde que as tribus voltaram de Babylonia, nem haverá, até que
Tito venha pôr o ultimo cêrco ao Templo, um dia mais interessante! Eu
preciso estar em Jerusalem para vêr, viva e rumorejando, esta pagina do
Evangelho! Vamos pois fazer a santa Paschoa a casa de Gamaliel, que é um
amigo d'Hillel, e um amigo meu, um conhecedor das letras gregas,
patriota forte e membro do Sanhedrin. Foi elle que disse: «para te
livrares do tormento da duvida, impõe-te uma auctoridade.» Portanto, a
pé, D. Raposo!
Assim murmurou o meu amigo, erecto e lento. E eu, submissamente, como
perante um mandamento celeste, comecei a enfiar em silencio as minhas
grossas botas de montar. Depois, apenas me agasalhei no albornoz, elle
empurrou-me com impaciencia para fóra da tenda--sem mesmo me deixar
recolher o relogio e a faca sevilhana, que todas as noites, cauteloso,
eu guardava debaixo do travesseiro. A luz da vela esmorecia, fumarenta e
vermelha...
Devia ser meia noite. Dois cães ladravam ao longe, surdamente, como
entre frondosos muros de quintas. O ar macio e ermo cheirava a rosas de
vergel e á flôr da laranjeira. O ceu d'Israel faiscava com desacostumado
esplendor: e em cima do monte Nebo, um bello astro mais branco, d'uma
refulgencia divina, olhava para mim, palpitando anciosamente, como se
procurasse, captivo na sua mudez, dizer um segredo á minha alma!
As egoas esperavam, immoveis sob as longas clinas. Montei. E então,
emquanto Topsius arranjava laboriosamente os loros, avistei para os
lados da fonte d'Elyseo--uma fórma maravilhosa que me arripiou de terror
transcendente.
Era, ao clarão diamantino das estrellas da Syria, como a branca muralha
d'uma cidade nova! Frontões de templos alvejavam pallidamente entre a
espessura de bosques sagrados; para as collinas distantes fugiam
esbatidos os arcos ligeiros d'um aqueducto. Uma chamma fumegava no alto
d'uma torre; mais baixo, movendo-se, faiscavam pontas de lanças; um som
longo de bozina morria na sombra... E abrigada junto aos bastiões uma
aldêa dormia entre palmeiras.
Topsius, na sella, prompto a marchar, embrulhára a mão nas clinas da
egoa.
--Aquillo, branco, além? murmurei, suffocado.
Elle disse simplesmente:
--Jericó.
Rompeu, galopando. Não sei quanto tempo segui, emmudecido, o nobre
historiador dos Herodos: era por uma estrada direita, feita de lages
negras de basalto. Ah! que differente do aspero caminho por onde
tinhamos descido a Canaan, faiscante e côr de cal, através de collinas
onde o tojo escasso semelhava, na irradiação da luz, um bolor de velhice
e de abandono! E tudo em redor me parecia differente tambem, a fórma das
rochas, o cheiro da terra quente, até a palpitação das estrellas... Que
mudança se fizera em mim, que mudança se fizera no Universo? Por vezes
uma faisca dura saltava das ferraduras das egoas. E sem descontinuar
Topsius galopava, agarrado ás clinas, com as duas bandas da capa branca
batendo como os dois panos de uma bandeira...
Mas subitamente parou. Era junto d'uma casa quadrada, entre arvores,
toda apagada e muda, tendo no tôpo uma haste sobre que pousava
estranhamente, como recortada n'uma lamina de ferro, a figura d'uma
cegonha. Á entrada esmorecia uma fogueira: remexi as achas: e á curta
chamma que resaltou comprehendi que era uma antiga estalagem á beira
d'uma antiga estrada. Por baixo da cegonha, encimando a porta estreita e
erriçada de pregos, brilhava em negro, n'uma lapide branca, a taboleta
latina--_Ad Gruem Majorem_: e ao lado, enchendo parte da fachada,
desenrolava-se uma inscripção rudemente entalhada na pedra, que eu
decifrei a custo, e em que Apollo promettia a saude ao hospede, e
Septimanus, o hospedeiro, lhe garantia risonha acolhida, o banho
reparador, vinho forte da Campania, frescos palhetes d'Engaddi, e «todas
as commodidades á maneira de Roma.»
Murmurei, desconfiado:
--Á maneira de Roma!
Que estranhos caminhos ia eu então trilhando? Que outros homens,
dissemelhantes de mim, no fallar e no traje, bebiam alli, sob a
protecção d'outros deuses, o vinho em amphoras do tempo de Horacio?...
Mas de novo Topsius marchou, esguio e vago na noite. Agora findára a
estrada de basalto sonoro: e subiamos a passo um brusco caminho, cavado
entre rochas, onde grossos pedregulhos resoavam, rolavam sob as patas
das egoas, como no leito d'uma torrente que um lento Agosto seccou. O
erudito Doutor, sacudido na sella, praguejava roucamente contra o
Sanhedrin, contra a hirta Lei judaica, opposta indobravelmente a toda a
obra culta que quer fazer o Proconsul... Sempre o Phariseu via com
rancor o aqueducto romano que lhe trazia a agua, a estrada romana que o
levava ás cidades, a therma romana que lhe curava as pustulas...
--Maldito seja o Phariseu!
Somnolento, rememorando velhas imprecações do Evangelho, eu rosnava,
encolhido no meu albornoz:
--Phariseu, sepulchro caiado... Maldito seja!
Era a hora calada em que os lobos dos montes vão beber. Cerrei os olhos;
as estrellas desmaiavam.
Breves faz o Senhor as noites macias do mez de Nizam, quando se come em
Jerusalem o anho branco de Paschoa: e bem cedo o céo se vestiu d'alvo do
lado do paiz de Moab.
Despertei. Já os gados balavam nos cerros. O ar fresco cheirava a
rosmaninho.
E então avistei, errando por cima dos penedos sobranceiros ao caminho,
um homem estranho, bravio, coberto com uma pelle de carneiro, que me
recordou Elias e todas as cóleras da Escriptura; o peito, as pernas
pareciam de granito vermelho; por entre a grenha e a barba, rudes,
emmaranhadas, fazendo-lhe como uma juba feroz, os olhos refulgiam-lhe
desvairadamente... Descobriu-nos; e logo, sacudindo os braços como quem
arremessa pedras, despediu sobre nós todas as maldições do Senhor!
Chamou-nos «pagãos», chamou-nos «cães»: gritava «malditas sejam as
vossas mães, sêccos sejam os peitos que vos crearam!» Crueis e cheios de
presagios cahiam os seus brados do alto das rochas: e, retardado pelos
passos lentos da egoa, Topsius encolhia-se na capa como sob uma saraiva
inclemente. Até que me enfureci; voltei-me na anca da cavalgadura,
chamei-lhe _bebedo_, atirei-lhe obscenidades; e via no emtanto, sob a
chamma selvagem dos seus olhos, a bocca clamorosa e negra torcer-se-lhe,
babar-se de furor devoto...
Mas, desembocando da ravina, encontrámos, larga e lageada, a estrada
romana que vai a Sichem: e trotando por ella, sentiamos o allivio de
penetrar emfim n'uma região culta, piedosa, humana e legal. A agua
abundava: sobre as collinas erguiam-se fortalezas novas: pedras sagradas
delimitavam os campos. Nas eiras brancas, os bois enfeitados d'anemonas
pisavam o trigo da colheita de Paschoa; e em vergeis onde a figueira já
tinha enfolhado, o servo na sua torre caiada, cantando com uma vara na
mão, afugentava os pombos bravos. Por vezes avistavamos um homem, de pé,
junto da sua vinha, ou á beira dos canaes de rega, direito, com a ponta
do manto atirada por cima da cabeça, e os olhos baixos, dizendo a santa
oração do _Schema_. Um oleiro, que espicaçava o seu burro, carregado de
cantaros de barro amarello, gritou-nos: «Bemditas sejam as vossas mães,
boa vos seja a Paschoa!» E um leproso, que descançava á sombra, nos
olivedos, perguntou-nos, gemendo e mostrando as chagas, qual era em
Jerusalem o Rabbi que curava, e aonde se apanhava a raiz do baraz.
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