A Relíquia - 04

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S. José que fosse preparando ao meu condiscipulo uma morte somnolenta e
ditosa...
--Isso é que era um grande favor, titi! Elle chama-se Macieira... O
Macieira vesgo. É para S. José saber.
Toda a noite vagueei pela cidade, adormecida na molleza do luar de
julho. E por cada rua me acompanharam sempre, fluctuantes e
transparentes, duas figuras, uma em camisa, outra de capa á hespanhola,
enroscadas, beijando-se furiosamente--e só desligando os beiços pisados
para rirem alto de mim e para me chamarem _carola_.
Cheguei ao Rocio quando batia uma hora no relogio do Carmo. Ainda fumei
um cigarro, indeciso, por debaixo das arvores. Depois voltei os passos
para a casa da Adelia, vagaroso, e com medo. Na sua janella vi uma luz
enlanguecida e dormente. Agarrei a grossa aldraba da porta,--mas hesitei
com terror da certeza que vinha buscar, terminante e irreparavel... Meu
Deus! Talvez a Marianna, por vingança, calumniasse a minha Adelia! Ainda
na vespera ella me chamára _riquinho_, com tanto ardor! Não seria mais
sensato e mais proveitoso acreditar n'ella, tolerar-lhe um fugitivo
transporte pelo snr. Adelino, e continuar a receber egoistamente o meu
beijinho na orelha?
Mas então á idéa lacerante de que ella tambem beijava na orelha o snr.
Adelino, e que o snr. Adelino também dizia _ai! ai!_ como
eu--assaltou-me o desejo ferino de a matar, com desprezo e a murros,
alli, n'esses degraus onde tantas vezes arrulhára a suavidade dos nossos
adeuses. E bati na porta com um punho bestial como se fosse já sobre o
seu fragil, ingrato peito.
Senti correr desabridamente o fecho da vidraça. Ella surgiu em camisa,
com os seus bellos cabellos revoltos:
--Quem é o bruto?
--Sou eu, abre.
Reconheceu-me--a luz dentro desappareceu; e foi como se aquella torcida
de candieiro, apagando-se, deixasse tambem a minha alma em escuridão,
fria para sempre e vazia. Senti-me regeladamente só, viuvo, sem
occupação e sem lar. Do meio da rua olhava as janellas negras, e
murmurava: «ai, que eu rebento!»
Outra vez a camisa da Adelia alvejou na varanda.
--Não posso abrir, que ceei tarde e estou com somno!
--Abre! gritei erguendo os braços desesperados. Abre ou nunca mais cá
volto!...
--Pois á fava, e recados á tia.
--Fica-te, bebeda!
Tendo-lhe atirado, como uma pedrada, este urro severo, desci a rua muito
teso, muito digno. Mas á esquina aluí de dôr, para cima d'um portal, a
soluçar, escoado em pranto, delido.
Pesada foi então ao meu coração a lenta melancolia dos dias d'estio...
Tendo contado á titi que andava a escrever dois artigos, piamente
destinados ao _Almanach da Immaculada Conceição_ para 1878, encerrava-me
no quarto, toda a manhã, emquanto faiscavam ao sol as pedras da minha
varanda. Ahi, arrastando as chinelas sobre o soalho regado, remoía,
entre suspiros, recordações da Adelia; ou diante do espelho contemplava
o lugar macio da orelha em que ella costumava dar-me o beijo... Depois
sentia um ruido de vidraça--e o seu perfido, o seu affrontoso brado «á
fava!» Então, perdido, esguedelhado, machucava o travesseiro com os
murros que não podia vibrar ao peito magro do snr. Adelino.
Á tardinha, quando refrescava, ia espalhar para a Baixa. Mas cada
janella aberta ás aragens da tarde, cada cortina de cassa engommada me
lembrava a intimidade da alcovinha da Adelia; n'um simples par de meias,
esticado na vitrina de uma loja, eu revia com saudade a perfeição da sua
perna; tudo o que era luminoso me suggeria o seu olhar; e até o sorvete
de morango, no Martinho, me fazia repassar nos labios o adocicado e
gostoso sabor dos seus beijos.
Á noite, depois do chá, refugiava-me no oratorio, como n'uma fortaleza
de santidade, embebia os meus olhos no corpo de ouro de Jesus, pregado
na sua linda cruz de pau preto. Mas então o brilho fulvo do metal
precioso ia, pouco a pouco, embaciando, tomava uma alva côr de carne,
quente e tenra; a magreza de Messias triste, mostrando os ossos,
arredondava-se em fórmas divinamente cheias e bellas; por entre a corôa
d'espinhos, desenrolavam-se lascivos anneis de cabellos crespos e
negros; no peito, sobre as duas chagas, levantavam-se, rijos, direitos,
dois esplendidos seios de mulher, com um botãosinho de rosa na ponta;--e
era ella, a minha Adelia, que assim estava no alto da cruz, núa,
soberba, risonha, victoriosa, profanando o altar, com os braços abertos
para mim!
Eu não via n'isto uma tentação do Demonio--antes me parecia uma graça do
Senhor. Comecei mesmo a misturar aos textos das minhas rezas as queixas
do meu amor. O céo é talvez grato: e esses innumeraveis santos, a quem
eu prodigalisára Novenas e Coroinhas, desejariam talvez recompensar a
minha amabilidade restituindo-me as caricias que me roubára o homem
cruel da capa á hespanhola. Puz mais flôres sobre a commoda diante de
Nossa Senhora do Patrocinio; contei-lhe as angustias do meu coração. Por
traz do limpido vidro do seu caixilho, com os olhos baixos e magoados,
ella foi a confidente do tormento da minha carne; e todas as noites, em
ceroulas, antes de me deitar, eu lhe segredava, com ardor:
--Ó minha querida Senhora do Patrocinio, faze que a Adelinha goste outra
vez de mim!
Depois utilisei o valimento da titi com os santos seus amigos--o
amorosissimo e perdoador S. José, S. Luiz Gonzaga, tão benevolo para a
juventude. Pedia-lhe que fizesse uma Petição por certa necessidade
minha, secreta e toda pura. Ella accedia, com alacridade; e eu,
espreitando pelo reposteiro do oratorio, regalava-me de vêr a rigida
senhora, de joelhos, de contas na mão, em supplicas aos Patriarchas
castissimos para que a Adelia me désse outra vez a beijoquinha na
orelha.
Uma noite, cedo, foi experimentar se o céo escutára tão valiosas preces.
Cheguei á porta da Adelia; e bati, tremendo todo, uma argoladinha
humilde. O snr. Adelino assomou á janella, em mangas de camisa.
--Sou eu, snr. Adelino, murmurei abjectamente e tirando o chapéo. Queria
fallar á Adeliasinha.
Elle rosnou para dentro, para a alcova, o meu nome. Creio mesmo que
disse _o carola_. E lá do fundo, d'entre os cortinados, onde eu a
presentia toda desalinhada e formosa, a minha Adelia gritou com furor:
--Atira-lhe para cima dos lombos o balde da agua suja!
Fugi.
* * * * *
No fim de setembro, o _Rinchão_ chegou de Paris: e um domingo, á
noitinha, á volta da Novena de S. Caetano, entrando no Martinho,
encontrei-o, rodeado de rapazes, contando ruidosamente os seus feitos
d'amor e de gentil audacia em Paris. Tristonho, puxei um banco e fiquei
a ouvir o _Rinchão_. Com uma ferradura de rubis na gravata, o monoculo
pendente d'uma fita larga, uma rosa amarella no peito, o _Rinchão_
impressionava, quando por entre o fumo do charuto esboçava traços do seu
prestigio: «Uma noite no Caffé de la Paix, estando eu a cear com a Cora,
com a Valtesse, e com um rapaz muito chic, um principe...» O que o
_Rinchão_ tinha visto! o que o _Rinchão_ tinha gozado! Uma condessa
italiana, delirante, parenta do Papa, e chamada _Popotte_, amára-o,
levára-o aos Campos-Elyseos na sua victoria--cujo velho brazão eram dois
chavelhos encruzados. Jantára em restaurantes onde a luz vinha de
serpentinas d'ouro, e os criados, macilentos e graves, lhe chamavam
respeitosamente _Mr. le Comte_. E o _Acazar_, com festões de gaz entre
as arvores, e a Paulina cantando, de braços nús, o _Chouriço de
Marselha_--revelára-lhe a verdade, a grandeza da civilisação.
--Viste Victor Hugo? perguntou um rapaz de lunetas pretas, que roía as
unhas.
--Não, nunca andava cá na roda chic!
Toda essa semana, então, a idéa de vêr Paris brilhou incessantemente no
meu espirito, tentadora e cheia de suaves promessas... E era menos o
appetite d'esses gozos do Orgulho e da Carne com que se abarrotára o
_Rinchão_, que a anciedade de deixar Lisboa, onde igrejas e lojas, claro
rio e claro céo, só me lembravam a Adelia, o homem amargo de capa á
hespanhola, o beijo na orelha perdido para sempre... Ah! se a titi
abrisse a sua bolsa de sêda verde, me deixasse mergulhar dentro as mãos,
colher ouro, e partir para Paris!...
Mas, para a snr.^a D. Patrocinio, Paris era uma região ascorosa, cheia
de mentira, cheia de gula--onde um povo sem santos, com as mãos
maculadas do sangue dos seus arcebispos, está perpetuamente, ou brilhe o
sol, ou luza o gaz, commettendo uma _relaxação_. Como ousaria eu mostrar
á titi o desejo immodesto de visitar esse lugar de sujidade e de treva
moral?...
Logo no domingo porém, jantando no Campo de Sant'Anna os amigos
dilectos, aconteceu fallar-se, ao cozido, d'um sabio condiscipulo do
padre Casimiro que recentemente deixára a quietação da sua cella no
Varatojo, para ir esposar, entre foguetes, a trabalhosa Sé de Lamego. O
nosso modesto Casimiro não comprehendia esta cubiça d'uma mitra,
cravejada de pedras vãs: para elle a plenitude d'uma vida ecclesiastica
era estar assim aos sessenta annos, são e sereno, sem saudades e sem
temores, comendo o arrozinho do forno da snr.^a D. Patrocinio das
Neves...
--Porque deixe-me dizer-lhe, minha respeitavel senhora, que este seu
arroz está um primor!... E a ambição de ter sempre um arroz d'estes, e
amigos que o apreciem, parece-me a mais legitima e a melhor para uma
alma justa...
E assim se veio a discursar das acertadas ambições que, sem aggravo do
Senhor, cada um podia nutrir no seu coração. A do tabellião Justino era
uma quintasinha no Minho, com roseiras e com parreiras, onde elle
pudesse acabar a velhice, em mangas de camisa, e quietinho.
--Olhe, Justino, disse a titi, uma coisa que lhe havia de fazer falta
era a sua missa na Conceição Velha... Quando a gente se acostuma a uma
missinha, não ha outra que console... A mim, se me tirassem a de
Sant'Anna, parece-me que começava a definhar...
Era o padre Pinheiro que a celebrava; a titi, enternecida, collocou-lhe
no prato outra aza de gallinha;--e padre Pinheiro revelou tambem a
ambição que o pungia. Era elevada e santa. Queria vêr o Papa restaurado
n'esse throno forte e fecundo em que resplandecera Leão X...
--Se ao menos houvesse mais caridade com elle! exclamou a titi. Mas o
Santissimo Padre, o vigariosinho de Nosso Senhor, assim n'uma masmorra,
em farrapos, sobre palha... É de Caipházes, é de judeus!
Bebeu um gole da sua agua morna, e recolheu-se ao retiro da sua alma--a
rezar a Ave-Maria que sempre offertava pela saude do Pontifice e pelo
termo do seu captiveiro.
O dr. Margaride consolou-a. Não acreditava que o Pontifice dormisse
sobre palhas. Viajantes esclarecidos afiançavam-lhe até que o Santo
Padre, querendo, podia ter carruagem.
--Não é tudo; está longe de ser tudo o que compete a quem usa a tiára;
mas uma carruagem, minha senhora, é uma grandissima commodidade...
Então o nosso Casimiro, risonho, desejou saber (já que todos patenteavam
as suas ambições) qual era a do douto, do eminente dr. Margaride.
--Diga lá a sua, dr. Margaride, diga lá a sua! clamaram todos, com
affecto.
Elle sorria, grave.
--Deixe-me v. exc.^a primeiro, D. Patrocinio, minha senhora, servir-me
d'essa lingua guizada, que marcha para nós e que me parece preciosa.
Depois de fornecido, o veneravel magistrado confessou que appetecia ser
Par do Reino. Não por alarde de honras, nem pelo luxo da farda; mas para
defender o principio sacro da authoridade...
--Só por isto, acrescentou com energia. Porque desejava tambem, antes de
morrer, poder dar, se v. exc.^a, D. Patrocinio, me permitte a expressão,
uma cacheirada mortal no atheismo e na anarchia. E dava-lh'a!
Todos declararam fervorosamente o dr. Margaride digno d'esses fastigios
sociaes. Elle agradeceu, seriissimo. Depois volveu para mim a face
magestosa e livida:
--E o nosso Theodorico? O nosso Theodorico ainda não nos disse qual era
a sua ambição.
Córei: e Paris logo rebrilhou ao fundo do meu desejo, com as suas
serpentinas de ouro, as suas condessas primas dos Papas, as espumas do
seu champagne--fascinante, embriagante, e adormentando toda a dôr... Mas
baixei os olhos; e affirmei que só aspirava a rezar as minhas corôas, ao
lado da titi, com proveito e com descanso...
O dr. Margaride porém pousára o talher, insistia. Não lhe parecia um
desapego de Deus, nem uma ingratidão com a titi, que eu, intelligente,
saudavel, bom cavalleiro e bacharel, nutrisse uma honesta cubiça...
--Nutro! exclamei então decidido como aquelle que arremessa um dardo.
Nutro, dr. Margaride. Gostava muito de vêr Paris.
--Cruzes! gritou a snr.^a D. Patrocinio, horrorisada. Ir a Paris!...
--Para vêr as igrejas, titi!
--Não é necessario ir tão longe para vêr bonitas igrejas, replicou ella,
rispidamente. E lá em festas com orgão, e um Santissimo armado com luxo,
e uma rica procissão na rua, e boas vozes, e respeito, e imagens de dar
gosto, ninguem bate cá os nossos portuguezes!...
Calei-me, esmagado. E o esclarecido dr. Margaride applaudiu o
patriotismo ecclesiastico da titi. Decerto, não era n'uma republica sem
Deus, que se deviam procurar as magnificencias do culto...
--Não, minha senhora, lá para saborear coisas grandiosas da nossa santa
religião, se eu tivesse vagares, não era a Paris que ia... Sabe v.
exc.^a onde eu ia, snr.^a D. Maria do Patrocinio?
--O nosso doutor, lembrou o padre Pinheiro, corria direito a Roma...
--Upa, padre Pinheiro! Upa, minha cara senhora!
Upa? Nem o bom Pinheiro, nem a titi comprehendiam o que houvesse de
superior a Roma pontifical! O dr. Margaride então ergueu solemnemente as
sobrancelhas, densas e negras como ebano.
--Ia á Terra Santa, D. Patrocinio! Ia á Palestina, minha senhora! Ia vêr
Jerusalem e o Jordão! Queria eu tambem estar um momento, de pé, sobre o
Golgotha, como Chateaubriand, com o meu chapéo na mão, a meditar, a
embeber-me, a dizer «salvè!» E havia de trazer apontamentos, minha
senhora, havia de publicar impressões historicas. Ora ahi tem v. exc.^a
onde eu ia... Ia a Sião!
Servira-se o lombo assado; e houve, por sobre os pratos, um recolhimento
reverente a esta evocação da terra sagrada onde padeceu o Senhor. Eu
parecia-me vêr lá muito longe, na Arabia, ao fim de arquejantes dias de
jornada sobre o dorso d'um camêlo, um montão de ruinas em torno d'uma
cruz; um rio sinistro corre ao lado entre oliveiras; o céo arqueia-se
mudo e triste como a abobada d'um tumulo. Assim devia ser Jerusalem.
--Linda viagem! murmurou o nosso Casimiro, pensativo.
--Sem contar, rosnou padre Pinheiro, baixo e como ciciando uma oração,
que Nosso Senhor Jesus Christo vê com grande apreço, e muito agradece,
essas visitas ao seu Santo Sepulchro.
--Até quem lá vai, disse o Justino, tem perdão de peccados. Não é
verdade, Pinheiro? Eu assim li no _Panorama_... Vem-se de lá limpinho de
tudo!
Padre Pinheiro (tendo recusado, com mágoa, a couve-flôr, que considerava
indigesta) deu esclarecimentos. Quem ia á Terra Santa, n'uma devota
peregrinação, recebia sobre o marmore do Santo Sepulchro, das mãos do
Patriarcha de Jerusalem, e pagando os rituaes emolumentos, as suas
Indulgencias Plenarias...
--Não só para si, segundo tenho ouvido dizer, acrescentou o instruido
ecclesiastico, mas para uma pessoa querida de familia, piedosa, e
comprovadamente impedida de fazer a jornada... Pagando, já se vê,
emolumentos dobrados.
--Por exemplo! exclamou o dr. Margaride inspirado, batendo-me com força
nas costas. Assim para uma boa titi, uma titi adorada, uma titi que tem
sido um anjo, toda virtude, toda generosidade!...
--Pagando, já se vê, insistiu padre Pinheiro, os emolumentos dobrados!
A titi não dizia nada; os seus oculos, girando do Sacerdote para o
Magistrado, pareciam estranhamente dilatados, e brilhando mais com o
clarão interior d'uma idéa: um pouco de sangue subira á sua face
esverdinhada. A Vicencia offereceu o arroz dôce. Nós rezamos as graças.
Mais tarde no meu quarto, despindo-me, senti-me triste, infinitamente.
Nunca a titi me deixaria visitar a terra immunda de França: e aqui
ficaria enclausurado n'esta Lisboa onde tudo me era tortura, e as mais
rumorosas ruas me aggravavam o ermo do meu coração, e até a pureza do
fino céo de estio me recordava a torva perfidia d'essa que fôra para mim
estrella e Rainha da Graça... Depois, n'esse dia, ao jantar, a titi
parecera-me mais rija, solida ainda, duradoura, e por longos annos dona
da bolsa de sêda verde, dos predios e dos contos do commendador G.
Godinho... Ai de mim! Quanto tempo mais teria de rezar com a odiosa
velha o fastiento terço, de beijar o pé do Senhor dos Passos, sujo de
tanta bocca fidalga, de palmilhar novenas, e de magoar os joelhos diante
do corpo d'um Deus, magro e cheio de feridas? Oh vida entre todas
amargurosa! E já não tinha, para me consolar do enfadonho serviço de
Jesus, os macios braços da Adelia...
* * * * *
De manhã, apparelhada a egoa, e já d'esporas, fui saber se minha titi
tinha algum pio recado para S. Roque, por ser esse seu milagroso dia. Na
saleta votada ás glorias de S. José, a titi, ao canto do sofá, com o
chale de Tonkin cahido dos hombros, examinava o seu grande caderno de
contas, aberto sobre os joelhos; e, defronte, calado, com as mãos
cruzadas atraz das costas, o bom Casimiro sorria pensativamente ás
flôres do tapete.
--Ora venha cá, venha cá! disse elle, mal eu assomei curvando o
espinhaço. Ouça lá a novidade! Que você é uma joia, respeitador de
velhos, e tudo merece de Deus e da senhora sua tia. Chegue-se cá, venha
de lá esse abraço!
Sorri, inquieto. A titi enrolava o seu caderno.
--Theodorico! começou ella, cruzando os braços, impertigada. Theodorico!
tenho estado aqui a consultar com o snr. padre Casimiro. E estou
decidida a que alguem que me pertença, e que seja do meu sangue, vá
fazer por minha intenção uma peregrinação á Terra Santa...
--Hein, felizão! murmurou Casimiro, resplandecendo.
--Assim, proseguiu a titi, está entendido e ficas sabendo que vaes a
Jerusalem e a todos os divinos lugares. Escusas de me agradecer, é para
meu gosto, e para honrar o tumulo de Jesus Christo, já que eu lá não
posso ir... Como, louvado seja Nosso Senhor, não me faltam os meios, has
de fazer a viagem com todas as commodidades; e para não estar com mais
duvidas, e pela pressa d'agradar a Nosso Senhor, ainda has de partir
n'este mez... Bem, agora vai, que eu preciso conversar com o snr. padre
Casimiro. Obrigado, não quero nada para o snr. S. Roque: já me entendi
com elle.
Balbuciei: «Muito agradecido, titi; adeusinho, padre Casimiro.» E segui
pelo corredor, atordoado.
No meu quarto corri ao espelho a contemplar, pasmado, este rosto e estas
barbas, onde em breve pousaria o pó do Jerusalem... Depois, cahi sobre o
leito.
--Olha que tremenda espiga!
Ir a Jerusalem! E onde era Jerusalem? Recorri ao bahú que continha os
meus compendios e a minha roupa velha; tirei o Atlas, e com elle aberto
sobre a commoda, diante da Senhora do Patrocinio, comecei a procurar
Jerusalem lá para o lado onde vivem os Infieis, ondulam as escuras
caravanas, e uma pouca d'agua n'um poço é como um dom precioso do
Senhor.
O meu dedo errante sentia já o cansaço d'uma longa jornada: e parei á
beira tortuosa d'um rio que devia ser o devoto Jordão. Era o Danubio. E
de repente o nome de Jerusalem surgiu, negro, n'uma vasta solidão
branca, sem nomes, sem linhas, toda de arêas, nua, junto ao mar. Alli
estava Jerusalem. Meu Deus! Que remoto, que ermo, que triste!
Mas então comecei a considerar que, para chegar a esse sólo de
penitencia, tinha d'atravessar regiões amaveis, femininas e cheias de
festa. Era primeiro essa bella Andaluzia, terra de Maria Santissima,
perfumada de flôr de laranjeira, onde as mulheres só com metter dois
cravos no cabello, e traçando um chale escarlate, amansam o coração mais
rebelde, _bendita sêa su gracia_! Era adiante Napoles--e as suas ruas
escuras, quentes, com retabulos da Virgem, e cheirando a mulher, como os
corredores d'um lupanar. Era depois mais longe ainda a Grecia: desde a
aula de Rhetorica ella apparecera-me sempre como um bosque sacro de
loureiros onde alvejam frontões de templos, e, nos lugares de sombra em
que arrulham as pombas, Venus de repente surge, côr de luz e côr de
rosa, offerecendo a todo o labio, ou bestial ou divino, o mimo dos seus
seios immortaes. Venus já não vivia na Grecia; mas as mulheres tinham
conservado lá o esplendor da sua fórma e o encanto do seu impudor...
Jesus! o que eu podia gozar! Um clarão sulcou-me a alma. E gritei, com
um murro sobre o Atlas, que fez estremecer a castissima Senhora do
Patrocinio e todas as estrellas da sua corôa:
--Caramba, vou fartar o bandulho!
Sim, fartal-o! E mesmo, receando que a titi, por avareza do seu ouro ou
desconfiança da minha piedade, renunciasse á idéa d'esta peregrinação
tão promettedora de gozos--resolvi ligal-a supernaturalmente por uma
ordem divina. Fui ao oratorio; desmanchei o cabello, como se por entre
elle tivesse passado um sopro celeste; e corri ao quarto da titi,
esgazeado, com os braços a tremer no ar.
--Ó titi! pois não quer saber? Estava agora no oratorio, a rezar de
satisfação, e vai de repente pareceu-me ouvir a voz de Nosso Senhor, de
cima da cruz, a dizer-me baixinho, sem se mexer: «Fazes bem, Theodorico,
fazes bem em ir visitar o meu Santo Sepulchro... E estou muito contente
com tua tia... Tua tia é das minhas!...»
Ella juntou as mãos, n'um fogoso transporte d'amor:
--Louvado seja o seu santissimo nome!... Pois disse isso? Ai, era bem
capaz, que Nosso Senhor sabe que é para o honrar que eu lá te mando...
Louvado seja outra vez o seu santissimo nome! Louvado seja em Terra e
Céo! Anda, filho, vai, reza-lhe... Não te fartes, não te fartes!
Eu ia, murmurando uma Ave-Maria. Ella correu ainda á porta, n'uma
effusão de sympathia:
--E olha, Theodorico, vê lá a respeito de roupa branca... Talvez te
sejam necessarias mais ceroulas... Encommenda, filho, encommenda, que
graças a Nossa Senhora do Rosario tenho posses, e quero que vás com
decencia e te apresentes bem lá na sepulturasinha de Deus!...
Encommendei: e, tendo comprado um _Guia do Oriente_ e um capacete de
cortiça, informei-me, sobre o modo mais deleitoso de chegar a Jerusalem,
com Benjamim Sarrosa & C.^a, judeu sagaz, que ia todos os annos, de
turbante, comprar bois a Marrocos. Benjamim marcou-me, miudamente, n'um
papel, o meu grandioso itinerario. Embarcaria no _Malaga_, vapor da casa
Jadley que, por Gibraltar, e depois por Malta, me levaria, n'um mar
sempre azul, á velha terra do Egypto. Ahi um repouso sensual na festiva
Alexandria. Depois no paquete do Levante, que sobe a costa religiosa da
Syria, aportaria a Jaffa, a de verdejantes pomares; e de lá, seguindo
uma estrada macadamisada, ao chouto d'uma egoa dôce, veria, ao fim d'um
dia e ao fim d'uma noite, surgirem, negras entre collinas tristes, as
muralhas de Jerusalem!
--Diabo, Benjamim... Parece-me muito mar, muito paquete. Então nem um
bocadinho de Hespanha? Ó menino, olhe que eu quero refastelar-me.
--Refastela-se em Alexandria. Tem lá tudo. Tem o bilhar, tem a tipoia,
tem a batota, tem a mulherinha... Tudo do bom. É lá que você se
refastela!
No emtanto, já no Montanha e na tabacaria do Brito se fallava da minha
santa empresa. Uma manhã, li, escarlate d'orgulho, no _Jornal das
Novidades_ estas linhas honorificas: «Parte brevemente a visitar
Jerusalem, e todos os sacros lugares em que padeceu por nós o Redemptor,
o nosso amigo Theodorico Raposo, sobrinho da exc.^{ma} D. Patrocinio das
Neves, opulenla proprietaria, e modelo de virtudes christãs. Boa
viagem!» A titi, desvanecida, guardou o jornal no oratorio, debaixo da
peanha de S. José: e eu jubilei, por imaginar o despeito da Adelia
(leitora fiel do _Jornal_) ao vêr-me assim abalar desprendido d'ella,
atestado d'ouro, para essas terras musulmanas--onde a cada passo se topa
um serralho, mudo e cheirando a rosa entre sycomoros...
A vespera da partida, na sala dos damascos, teve elevação e solemnidade.
O Justino contemplava-me--como se contempla uma figura historica.
--O nosso Theodorico... Que viagem!... O que se vai fallar n'isto!
E padre Pinheiro murmurava com unção:
--Foi uma inspiração do Senhor! E que bem que lhe ha de fazer á saude!
Depois mostrei o meu capacete de cortiça. Todos o admiraram. O nosso
Casimiro, todavia, depois de coçar pensativamente o queixo, observou que
me daria talvez mais seriedade um chapéo alto...
A titi acudiu, afflicta:
--É o que eu lhe disse! Acho de pouca ceremonia, para a cidade em que
morreu Nosso Senhor...
--Ó titi, mas já lhe expliquei! Isto é só para o deserto!... Em
Jerusalem, está claro, e em todos aquelles santos lugares, ando de
chapéo alto...
--Sempre é mais de cavalheiro, affirmou o dr. Margaride.
Padre Pinheiro quiz saber, solicitamente, se eu ia prevenido com
remedios para o caso d'um contratempo intestinal n'esses descampados
biblicos...
--Levo tudo. O Benjamim deu-me a lista... Até linhaça, até arnica!...
O pachorrento relogio do corredor começou a gemer as dez; eu devia
madrugar; e o dr. Margaride, commovido, agasalhava já o pescoço no seu
lenço de sêda. Então, antes dos abraços, perguntei aos meus leaes amigos
que «lembrançasinha» desejavam d'essas terras remotas onde vivera o
Senhor. Padre Pinheiro queria um frasquinho d'agua do Jordão. Justino
(que já me pedira no vão da janella um pacote de tabaco turco) diante da
titi só appetecia um raminho de oliveira, do monte Olivete. O dr.
Margaride contentava-se com uma boa photographia do sepulchro de Jesus
Christo, para encaxilhar...
Com a carteira aberta, depois de alistar estas piedosas
imcumbencias--voltei-me para a titi, risonho, carinhoso, humilde...
--Cá por mim, disse ella do meio do sofá como d'um altar, tesa nos seus
setins de domingo, o que desejo é que faças essa viagem com toda a
devoção, sem deixar pedra por beijar, nem perder novena, nem ficar
lugarzinho em que não rezes ou o terço ou a corôa... Além d'isso, tambem
estimo que tenhas saude.
Eu ia depôr na sua mão, brilhante de anneis, um beijo gratissimo. Ella
deteve-me--mais aprumada e secca:
--Até aqui tens sido apropositado, não tens faltado aos preceitos, nem
te tens dado a relaxações... Por isso te vaes regalar de vêr as
oliveiras onde Nosso Senhor suou sangue, e de beber no Jordãosinho...
Mas se eu soubesse que n'esta passeata tinhas tido maus pensamentos, e
praticado uma relaxação, ou andado atraz de saias, fica certo que,
apesar de ser a unica pessoa do meu sangue, e teres visitado Jerusalem,
e gozar indulgencias, havias de ir para a rua, sem uma côdea, como um
cão!
Curvei a cabeça, apavorado. E a titi, depois de roçar o lenço de rendas
pelos beiços sumidos, proseguiu com mais authoridade, e uma emoção
crescente que lhe punha, sob o corpete raso, como o fugitivo arfar d'um
peito humano:
--E agora quero dizer-te para teu governo uma só coisa!...
Todos de pé, e reverentes, logo percebemos que a titi se preparava a
proferir uma palavra suprema. N'essa hora de separação, rodeada dos seus
sacerdotes, rodeada dos seus magistrados, D. Patrocinio das Neves ia
decerto revelar qual fôra o seu intimo motivo, em me mandar, como
sobrinho e como romeiro, á cidade de Jerusalem. Eu ia saber emfim, e tão
indubitavelmente como se ella m'o escrevesse n'um pergaminho, qual
deveria ser o mais precioso dos meus cuidados, velando ou dormindo, nas
terras do Evangelho!
--Aqui está! declarou a titi. Se entendes que mereço alguma coisa pelo
que tenho feito por ti desde que morreu tua mãi, já educando-te, já
vestindo-te, já dando-te egoa para passeares, já cuidando da tua alma,
então traze-me d'esses santos lugares uma santa reliquia, uma reliquia
milagrosa que eu guarde, com que me fique sempre apegando nas minhas
afflicções e que cure as minhas doenças.
E pela vez primeira, depois de cincoenta annos de aridez, uma lagrima
breve escorregou no carão da titi, por sob os seus oculos sombrios.
O dr. Margaride rompeu para mim, arrebatadamente:
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