A Relíquia - 05

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--Theodorico, que amor que lhe tem a titi! Rebusque essas ruinas,
esquadrinhe esses sepulcros! Traga uma reliquia á titi!
Eu bradei, exaltado:
--Titi, palavra de Raposão que lhe hei de trazer uma tremenda reliquia!
Pela severa sala de damascos transbordou, ruidosa e tocante, a commoção
dos nossos corações. Eu achei me com os beiços do Justino, ainda molles
da torrada, collados á minha barba...
Cedo, na manhã de domingo, 6 de setembro e dia de Santa Libania, fui
bater, devagar, ao quarto da titi, ainda adormecida no seu leito
castissimo. Senti, por sobre o tapete, aproximar-se o som molle dos seus
chinelos. Entreabriu pudicamente a porta; e, decerto em camisa,
estendeu-me, através da fenda, a sua mão escarnada, livida, cheirando a
rapé. Appeteceu-me mordel-a; depuz n'ella um beijo baboso; a titi
murmurou:
--Adeus, menino... Dá muitas saudades ao Senhor!
Desci a escadaria, já de capacete, sobraçando o meu _Guia do Oriente_.
Atraz a Vicencia soluçava.
A minha mala nova de couro, o meu repleto sacco de lona enchiam o coupé
do _Pingalho_. Ainda as andorinhas retardadas cantavam no beiral dos
telhados; na capella de Sant'Anna tocava para a missa. E um raio de sol,
vindo do Oriente, vindo lá da Palestina ao meu encontro, banhou-me a
face, acolhedor e risonho, como uma caricia do Senhor.
Fechei a tipoia, estirei-me, gritei: «Larga, _Pingalho_!»
E, romeiro abastado, soprando á brisa o fumo do meu cigarro--assim
deixei o portão de minha tia, em caminho para Jerusalem!


II

Foi n'um domingo e dia de S. Jeronymo que meus pés latinos pisaram
emfim, no caes de Alexandria, a terra do Oriente, sensual e religiosa.
Agradeci ao Senhor da Boa Viagem. E o meu companheiro, o illustre
Topsius, Doutor allemão pela Universidade de Bonn, socio do _Instituto
imperial de Excavações historicas_, murmurou, grave como n'uma
invocação, desdobrando o seu vastissimo guardasol verde:
--Egypto! Egypto! Eu te saúdo, negro Egypto! E que me seja em ti
propicio o teu Deus Phtah, Deus das Letras, Deus da Historia, inspirador
da obra de Arte e da obra de Verdade!...
Através d'este zumbido scientifico eu sentia-me envolvido n'um bafo
morno como o d'uma estufa, amollecedormente tocado d'aromas de sandalo e
rosa. No caes faiscante, entre fardos de lã, estirava-se, banal e sujo,
o barracão da Alfandega. Mas além as pombas brancas voavam em torno aos
minaretes brancos; o ceu deslumbrava. Cercado de severas palmeiras, um
languido palacio dormia á beira d'agua; e ao longe perdiam-se os areaes
da antiga Lybia, esbatidos n'uma poeirada quente, livre, e da côr d'um
leão.
Amei logo esta terra de indolencia, de sonho e de luz. E saltando para a
caleche forrada de chita, que nos ia levar ao _Hotel das Pyramides_,
invoquei as Divindades, como o illustrado Doutor de Bonn:
--Egypto, Egypto! Eu te saúdo, negro Egypto! E que me seja propicio...
--Não! que vos seja propicia, D. Raposo, Isis, a vacca amorosa! acudiu o
eruditissimo homem, risonho, e abraçado á minha chapeleira.
Não comprehendi, mas venerei. Eu conhecêra Topsius em Malta, uma fresca
manhã, estando a comprar violetas a uma ramalheteira que tinha já nos
olhos grandes um langor musulmano: elle andava medindo consideradamente
com o seu guardasol as paredes marciaes e monasticas do palacio do
Grão-Mestre.
Persuadido que era um dever espiritual e doutoral, n'estas terras do
Levante, cheias de historia, medir os monumentos da antiguidade, tirei o
meu lenço e fui-o gravemente passeando, esticado como um covado, sobre
as austeras cantarias. Topsius dardejou-me logo, por cima dos oculos
d'ouro, um olhar desconfiado e ciumento. Mas tranquillisado, de certo,
pela minha face jucunda e material, pelas minhas luvas almiscaradas,
pelo meu futil raminho de violetas--ergueu cortezmente de sobre o longo
cabello, corredio e côr de milho, o seu bonésinho de sêda preta. Eu
saudei com o meu capacete de cortiça; e communicamos. Disse-lhe o meu
nome, a minha patria, os santos motivos que me levavam a Jerusalem. Elle
contou-me que nascêra na gloriosa Allemanha; e ia tambem á Judêa, depois
á Galilêa, n'uma peregrinação scientifica, colhêr notas para a sua
formidavel obra, a _Historia dos Herodes_. Mas demorava-se em Alexandria
a amontoar os pesados materiaes de outro livro monumental, a _Historia
dos Lagidas_... Porque estas duas turbulentas familias, os Herodes e os
Lagidas, eram propriedade historica do doutissimo Topsius.
--Então, ambos com o mesmo roteiro, podiamos acamaradar, Doutor Topsius!
Elle espigado, magrissimo e pernudo, com uma rabona curta de lustrina
enchumaçada de manuscriptos, cortejou gostosamente:
--Pois acamarademos, D. Raposo! Será uma deleitosa economia!
Encovado na gola, de guedelha cahida, o nariz agudo e pensativo, a calça
esguia,--o meu erudito amigo parecia-me uma cegonha, risivel e cheia de
letras, com oculos d'ouro na ponta do bico. Mas já a minha animalidade
reverenciava a sua intellectualidade: e fômos beber cerveja.
A sabedoria n'este moço era dom hereditario. Seu avô materno, o
naturalista Shlock, escreveu um famoso tratado em oito volumes sobre a
_Expressão physionomica dos Lagartos_, que assombrou a Allemanha. E seu
tio, o decrepito Topsius, o memoravel egyptologo, aos setenta e sete
annos dictou da poltrona, onde o prendia a gota, esse livro genial e
facil--a _Synthese monotheista da Theogonia egypcia, considerada nas
relações do Deus Phtah e do Deus Imhotep com as Triadas dos Nómos_.
O pai de Topsius, desgraçadamente, através d'esta alta sciencia
domestica, permanecia figle n'um a charanga, em Munich: mas o meu
camarada, reatando a tradição, logo aos vinte e dois annos tinha
esclarecido, radiantemente, em dezenove artigos publicados no _Boletim
hebdomadario de Excavações historicas_, a questão, vital para a
Civilisação, d'uma parede de tijolo erguida pelo rei Pi-Sibkmé, da
vigesima primeira dynastia, em torno do templo de Ramèses II, na
lendaria cidade de Tanis. Em toda a Allemanha scientifica, hoje, a
opinião de Topsius ácerca d'esta parede brilha com a irrefutabilidade do
sol.
Só conservo de Topsius recordações suaves ou elevadas. Já sobre as aguas
bravias do mar de Tyro; já nas ruas fuscas de Jerusalem; já dormindo
lado a lado, sob a tenda, junto aos destroços de Jerichó; já pelas
estradas verdes de Galilêa--encontrei-o sempre instructivo, serviçal,
paciente e discreto. Raramente comprehendia as suas sentenças, sonoras e
bem cunhadas, tendo a preciosidade de medalhas d'ouro; mas, como diante
da porta impenetravel d'um santuario, eu reverenciava, por saber que lá
dentro, na sombra, refulgia a essencia pura da Idéa. Por vezes tambem o
Doutor Topsius rosnava uma praga immunda; e então uma grata communhão se
estabelecia entre elle e o meu singelo intellecto de bacharel em leis.
Ficou-me a dever seis moedas;--mas esta diminuta migalha de pecunia
desapparece na copiosa onda de saber historico com que fecundou o meu
espirito. Uma coisa apenas, além do seu pigarro d'erudito, me
desagradava n'elle--o habito de se servir da minha escova de dentes.
Era tambem intoleravelmente vaidoso da sua patria. Sem cessar, erguendo
o bico, sublimava a Allemanha, mãi espiritual dos povos; depois
ameaçava-me com a irresistibilidade das suas armas. A omnisciencia da
Allemanha! A omnipotencia da Allemanha! Ella imperava, vasto acampamento
entrincheirado d'in-folios, onde ronda e falla d'alto a Metaphysica
armada! Eu, brioso, não gostava d'estas jactancias. Assim, quando no
_Hotel das Pyramides_ nos apresentaram um livro para n'elle registarmos
nossos nomes e nossas terras, o meu douto amigo traçou o seu «Topsius»,
ajuntando por baixo, altivamente, em letras tesas e disciplinadas como
galuchos:--«Da Imperial Allemanha.» Arrebatei a penna; e recordando o
barbudo João de Castro, Ormuz em chammas, Adamastor, a capella de S.
Roque, o Tejo e outras glorias, escrevi largamente em curvas mais
enfunadas que velas de galeões:--«Raposo, Portuguez, d'Áquem e
d'Álém-mar.» E logo, do canto, um moço magro e murcho, murmurou,
suspirando e a desfallecer:
--Em o cavalheiro necessitando alguma coisa, chame pelo Alpedrinha.
Um patricio! Elle contou-me a sua sombria historia, desafivelando a
minha maleta. Era de Trancoso e desgraçado. Tivera estudos, compuzera um
negrologio, sabia ainda mesmo de cór os versos mais doloridos «do nosso
Soares de Passos.» Mas apenas sua mamãsinha morrêra, tendo herdado
terras, correra á fatal Lisboa, a gozar; conheceu logo na travessa da
Conceição uma hespanhola deleitosissima, do adocicado nome de Dulce; e
largou com ella para Madrid, n'um idyllio. Ahi o jogo empobreceu-o, a
Dulce trahiu-o, um _chulo_ esfaqueou-o. Curado e macilento passou a
Marselha; e durante annos arrastou como um frangalho social, através de
miserias inenarraveis. Foi sacristão em Roma. Foi barbeiro em Athenas.
Na Morêa, habitando uma choça junto a um pantano, empregára-se na
pavorosa pesca das sanguesugas; e de turbante, com ôdres negros ao
hombro, apregoou agua pelas viellas de Smyrna. O fecundo Egypto
attrahira-o sempre, irresistivelmente... E alli estava no _Hotel das
Pyramides_, moço de bagagens e triste.
--E se o cavalheiro trouxesse por ahi algum jornal da nossa Lisboa, eu
gostava de saber como vai a Politica.
Concedi-lhe generosamente todos os _Jornaes de Noticias_ que embrulhavam
os meus botins.
O dono do hotel era um grego de Lacedemonia, de bigodes ferozes, e que
_hablaba un poquitito el castellano_. Respeitosamente elle proprio, têso
na sua sobrecasaca preta ornada d'uma condecoração, nos conduziu á sala
do almoço--_la más preciosa, sin duda, de todo el Oriente, caballeros_!
Sobre a mesa murchava um ramo grosso de flôres escarlates: no frasco do
azeite fluctuavam familiarmente cadaveres de moscas; as chinelas do
criado topavam a cada instante um velho _Jornal dos Debates_, manchado
de vinho, rojando alli desde a vespera, pisado por outras chinelas
indolentes: e no tecto, a fumaraça fetida dos candieiros de latão
juntára nuvens pretas ás nuvens côr de rosa onde esvoaçavam anjos e
andorinhas. Por baixo da varanda uma rebeca e uma harpa tocavam a
_Mandolinata_. E emquanto Topsius se alagava de cerveja, eu sentia
estranhamente crescer o meu amor por esta terra de preguiça e de luz.
Depois do café, o meu sapientissimo amigo, com o lapis dos apontamentos
na algibeira da rabona, abalou a rebuscar antigualhas e pedras do tempo
dos Ptolomeus. Eu, accendendo um charuto, reclamei Alpedrinha; e
confiei-lhe que desejava, sem tardança, ir rezar e ir amar. Rezar era
por intenção da tia Patrocinio, que me recommendára uma jaculatoria a S.
José, apenas pisasse esse sólo do Egypto, tornado, desde a fuga da Santa
Familia em cima do seu burrinho, chão devoto como o d'uma Sé. Amar era
por necessidade do meu coração, ancioso e ardido. Alpedrinha, em
silencio, ergueu as persianas, e mostrou-me uma clara praça, ornamentada
ao centro por um heroe de bronze, cavalgando um corcel de bronze: uma
aragem quente levantava poeiradas lentas por sobre dois tanques seccos;
e em redor perfilavam-se no azul altos predios, hasteando cada um a
bandeira da sua patria como cidadellas rivaes sobre um sólo vencido.
Depois o triste Alpedrinha indicou-me, a uma esquina, onde uma velha
vendia canas d'assucar, a tranquilla rua das Duas Irmãs. Ahi (murmurou
elle) eu veria, pendurada sobre a porta d'uma lojinha discreta, uma
pesada mão de pau, tosca e rôxa--e por cima, em taboleta negra, estes
dizeres convidativos a ouro: «Miss Mary, Luvas e Flores de Cera.» Era
esse o refugio que elle aconselhava ao meu coração. Ao fundo da rua,
junto d'uma fonte chorando entre arvores, havia uma capella nova onde a
minha alma acharia consolação e frescura.
--E diga o cavalheiro a miss Mary que vai de mandado do _Hotel das
Pyramides_.
Puz uma rosa ao peito--e sahi, ovante. Logo da entrada das Duas Irmãs
avistei a ermidinha virginal, dormindo castamente sob os platanos, ao
rumor meigo da agua. Mas o amantissimo patriarcha S. José estava
certamente, a essa hora, occupado em receber jaculatorias mais
instantes, e evoladas de labios mais nobres: não quiz importunar o
bondosissimo santo;--e parei diante da mão de pau, pintada de rôxo, que
parecia estar alli esperando, alongada e aberta, para empolgar o meu
coração.
Entrei, commovido. Por traz do balcão envernizado, junto a um vaso de
rosas e magnolias, ella estava lendo o seu _Times_, com um gato branco
no collo. O que me prendeu logo foram os seus olhos azues-claros, d'um
azul que só ha nas porcelanas, simples, celestes, como eu nunca vira na
morena Lisboa. Mas encanto maior ainda tinham os seus cabellos, crespos,
frisadinhos como uma carapinha d'ouro, tão dôces e finos que appetecia
ficar eternamente e devotamente a mexer-lhes com os dedos tremulos; e
era irresistivel o profano nimbo luminoso que elles punham em torno da
sua face gordinha, d'uma brancura de leite onde se desfez carmezim, toda
tenra e succulenta. Sorrindo, e baixando com sentimento as pestanas
escuras, perguntou-me se eu queria _pellica_ ou _Suecia_.
Eu murmurei, roçando-me sôfregamente pelo balcão:
--Trago-lhe recadinhos do Alpedrinha.
Ella escolheu entre o ramo um timido botão de rosa, e deu-m'o na ponta
dos dedos. Eu trinquei-o, com furor. E a voracidade d'esta caricia
pareceu agradar-lhe, porque um sangue mais quente veio afoguear-lhe a
face--e chamou-me baixo «mausinho!» Esqueci S. José e a sua
jaculatoria--e as nossas mãos, um momento unidas para ella me calçar a
luva clara, não se desenlaçaram mais, n'essas semanas que passei, na
cidade dos Lagidas, em festivas delicias musulmanas!
Ella era d'York, esse heroico condado da velha Inglaterra, onde as
mulheres crescem fortes e bem desabrochadas, como as rosas dos seus
jardins reaes. Por causa da sua meiguice e do seu riso d'ouro quando lhe
fazia cocegas, eu puzera-lhe o nome galante e cacarejante de
_Maricoquinhas_. Topsius, que a apreciava, chamava-lhe «a nossa
symbolica Cleopatra.» Ella amava a minha barba negra e potente: e, só
para não me afastar do calor das suas saias, eu renunciei a vêr o Cairo,
o Nilo, e a eterna Esphinge, deitada á porta do deserto, sorrindo da
Humanidade vã...
Vestido de branco como um lirio, eu gozava manhãs ineffaveis, encostado
ao balcão da Mary, amaciando respeitosamente a espinha do gato. Ella era
silenciosa: mas o seu simples sorrir com os braços cruzados, ou o seu
modo gentil de dobrar o _Times_, saturava o meu coração de luminosa
alegria. Nem precisava chamar-me «seu portuguezinho valente, seu
bibichinho.» Bastava que o seu peito arfasse:--só para vêr aquella dôce
onda languida, e saber que a levantava assim a saudade dos meus beijos,
eu teria vindo de tão longe a Alexandria, iria mais longe, a pé, sem
repouso, até onde as aguas do Nilo são brancas!
De tarde, na caleche de chita com o nosso doutissimo Topsius, davamos
lentos, amorosos passeios á beira do canal Mamoudieh. Sob as frondosas
arvores, rente aos muros de jardins de serralho, eu sentia o aroma
perturbador de magnolias, e outros calidos perfumes que não conhecia.
Por vezes uma leve flôr rôxa ou branca cahia-me sobre o regaço: com um
suspiro eu roçava a barba pelo rosto macio da minha Maricoquinhas; ella,
sensivel, estremecia. Na agua jaziam as barcas pesadas que sobem o Nilo,
sagrado e bemfazejo, ancorando junto ás ruinas dos templos, costeando as
ilhas verdes onde dormem os crocodilos. Pouco a pouco a tarde cahia.
Vagarosamente rolavamos na sombra olorosa. Topsius murmurava versos de
Goethe. E as palmeiras da margem fronteira recortavam-se no poente
amarello--como feitas em relevo de bronze sobre uma lamina d'ouro.
Maricocas jantava sempre comnosco no _Hotel das Pyramides_; e diante
d'ella Topsius desabrochava todo em flôres d'erudição amavel.
Contava-nos as tardes de festa da velha Alexandria dos Ptolomeus, no
canal que levava a Canopia: ambas as margens resplandeciam de palacios e
de jardins; as barcas, com toldos de sêda, vogavam ao som dos alaúdes;
os sacerdotes d'Osiris, cobertos de pelles de leopardo, dançavam sob os
laranjaes; e nos terraços abrindo os véos, as damas d'Alexandria bebiam
á Venus Assyria, pelo calice da flôr do lotus. Uma voluptuosidade
esparsa amollecia as almas. Os philosophos mesmo eram frascarios.
--E, dizia Topsius requebrando o olho, em toda a Alexandria só havia uma
dama honesta que commentava Homero e era tia de Seneca. Só uma!
Maricoquinhas suspirava. Que encanto, viver n'essa Alexandria, e navegar
para Canopia, n'uma barca toldada de sêda!
--Sem mim? gritava eu, ciumento.
Ella jurava que sem o seu portuguezinho valente não queria habitar nem o
céo!
Eu, regalado, pagava o _champagne_.
E os dias assim foram passando, leves, flaccidos, gostosos, repicados de
beijos--até que chegou a vespera sombria de partirmos para Jerusalem.
--O cavalheiro, dizia-me n'essa manhã Alpedrinha engraxando os meus
botins, o que devia era ficar aqui na Alexandriasinha, a refocilar...
Ah! se pudesse! Mas irrecusaveis eram os mandados da titi! E, por amor
do seu ouro, lá tinha d'ir á negra Jerusalem, ajoelhar diante de
oliveiras seccas, desfiar rosarios piedosos ao pé de frios sepulchros...
--Tu já estiveste em Jerusalem, Alpedrinha? perguntei, enfiando
desconsoladamente as ceroulas.
--Não senhor, mas sei... Peor que Braga!
--Irra!
A nossa cêa com Maricocas, á noite, no meu quarto, foi cortada de
silencios, de suspiros: as velas tinham a melancolia de tochas: o vinho
anuviava-nos como aquelle que se bebe nos funeraes. Topsius offertava
consolações generosas.
--Bella dama, bella dama, o nosso Raposo ha de voltar... Estou mesmo
certo que trará da ardente terra da Syria, da terra da Venus e da Esposa
dos Cantares, uma chamma no seu coração mais fogosa e mais moça...
Eu mordia o beiço, suffocado:
--Pois está visto! Ainda havemos d'andar de caleche pelo Mamoudieh...
Isto é só ir rezar uns padre-nossos ao Calvario... Até me faz bem...
Volto como um touro.
Depois do café fomos encostar-nos á varanda a olhar, calados, aquella
sumptuosa noite do Egypto. As estrellas eram como uma grossa poeirada de
luz que o bom Deus levantava lá em cima, passeando sósinho pelas
estradas do céo. O silencio tinha uma solemnidade de sacrario. Nos
escuros terraços, em baixo, uma fórma branca movendo-se por vezes, de
leve, mostrava que outras creaturas estavam alli, como nós, deixando a
alma embeber-se mudamente no esplendor sideral: e n'esta diffusa
religiosidade, igual á d'uma multidão pasmando para os lumes d'um
altar-mór, eu sentia subir aos labios irresistivelmente a doçura d'uma
Ave-Maria...
Ao longe o mar dormia. E, á quente irradiação dos astros, eu podia
distinguir, n'um pontal de arêa, mergulhando quasi n'agua, uma casa
deserta, pequenina, toda branca e poetica entre duas palmeiras... Então
comecei a pensar que, mal a titi morresse e fosse meu o seu ouro, eu
poderia comprar esse dôce retiro, forral-o de lindas sêdas, e viver ao
lado da minha luveira, vestido de turco, fresco, sereno, livre de todas
as inquietações da civilisação. Desaggravos ao Sagrado Coração de Jesus
ser-me-hiam tão indifferentes como as guerras que entre si travassem os
Reis. Do céo só me importaria a luz anilada que banhasse a minha
vidraça; da terra só me importariam as flôres abertas no meu jardim para
aromatisar a minha alegria. E passaria os dias n'uma fôfa preguiça
oriental, fumando o puro Latakié, tocando viola franceza, e recebendo
perpetuamente essa impressão de felicidade perfeita que a Mary me dava
só com deixar arfar o seio e chamar-me «seu portuguezinho valente.»
Apertei-a contra mim n'um desejo de a sorver. Junto á sua orelha, d'uma
brancura de concha branca, balbuciei nomes ineffaveis: disse-lhe
_rechonchudinha_, disse-lhe _riquiquitinha_. Ella estremeceu, ergueu os
olhos magoados para a poeirada d'ouro.
--Que d'estrellas! Deus queira que ámanhã o mar esteja manso!
Então, á idéa d'essas longas ondas que me iam levar á rispida terra do
Evangelho, tão longe da minha Mary, um pezar infinito afogou-me o
peito--e irrepressivelmente se me escapou dos labios, em gemidos
entoados, queixosos e requebrados... Cantei. Por sobre os terraços
adormecidos da musulmana Alexandria soltei a voz dolorida, voltado para
as estrellas; e roçando os dedos pelo peito do jaquetão onde deviam
estar os bordões da viola, fazendo os meus ais bem chorosos--suspirei o
_fado_ mais sentido da saudade portugueza:
Co'a minh'alma aqui te ficas,
Eu parto só com os meus ais,
E tudo me diz, Maricas,
Que não te verei nunca mais.
Parei, abafado de paixão. O erudito Topsius quiz saber se estes dôces
versos eram de Luiz de Camões. Eu, choramigando, disse-lhe que
estes--ouvira-os no Dáfundo ao _Calcinhas_.
Topsius recolheu a tomar uma nota do grande poeta _Calcinhas_. Eu fechei
a vidraça: e depois d'ir ao corredor fazer ás escondidas um rapido
signal da cruz, vim desapertar sôfregamente, e pela vez derradeira, os
atacadores do collete da minha saborosa bem-amada.
Breve, avaramente breve, foi essa noite estrellada do Egypto!
Cedo, amargamente cedo, veio o grego de Lacedemonia avisar-me que já
fumegava na bahia, aspera e cheia de vento, _el paquete_, ferozmente
chamado o _Caimão_, que me devia levar para as tristezas d'Israel.
_El señor D. Topsius_, madrugador, já estava em baixo a almoçar
pachorrentamente os seus ovos com presunto, a sua vasta caneca de
cerveja. Eu tomei apenas um gole de café, no quarto, a um canto da
commoda, em mangas de camisa, com os olhos vermelhos sob a nevoa das
lagrimas. A minha solida mala de couro atravancava o corredor, fechada e
afivelada; mas Alpedrinha estava ainda accommodando, á pressa, a roupa
suja dentro do sacco de lona. E Maricoquinhas, sentada desoladamente á
borda do leito, com o seu gentil chapéo enfeitado de papoulas e as
olheirinhas pisadas--contemplava aquelle enfardelar de flanellas, como
se fossem bocados do seu coração atirados para o fundo do sacco, para
partirem e não voltarem mais!
--Levas tanta roupa suja, Theodorico!
Balbuciei, dilacerado:
--Manda-se lavar em Jerusalem com a ajuda de Nosso Senhor!
Deitei os meus bentinhos ao pescoço. N'esse instante Topsius assomava á
porta, cachimbando, com a barraca do seu guardasol fechada sob o braço,
de galochas anchas para a humidade do tombadilho--e um volume da Biblia
enchumaçando-lhe a rabona d'alpaca. Ao vêr-me sem collete, reprehendeu a
minha amorosa preguiça.
--Mas comprehendo, bella dama, comprehendo! acudiu elle, ás cortezias a
Mary, esgrouviado e onduloso, d'oculos na ponta do bico. É doloroso
deixar os braços de Cleopatra... Já Antonio por elles perdeu Roma e o
mundo... Eu mesmo, todo absorvido na minha missão, com recantos
crepusculares da Historia a alumiar, levo gratas memorias d'estes dias
de Alexandria... Deliciosissimos os nossos passeios pelo Mamoudieh!...
Permitta-me que apanhe a sua luva, bella dama!... E se voltar jámais a
esta terra dos Ptolomeus, não me esquecerá a rua das _Duas irmãs_...
«Miss Mary, luvas e flôres de cêra.» Perfeitamente. Consentirá que lhe
mande, quando completa, a minha _Historia dos Lagidas_... Ha detalhes
muito picantes... Quando Cleopatra se apaixonou por Herodes, o rei da
Judêa...
Mas Alpedrinha, da beira do leito, gritava, alvoroçado:
--Cavalheiro! Ainda ha aqui roupa suja!
Rebuscando, entre os cobertores revoltos, descobrira uma longa camisa de
rendas, com laços de sêda clara. Sacudia-a; e espalhava-se um aroma
saudoso de violeta e d'amor... Ai! era a camisa de dormir da Mary,
quente ainda dos meus abraços!
--Pertence á snr.^a D. Mary! É a tua camisinha, amor! gemi eu, cruzando
os suspensorios.
A minha luveirinha ergueu-se, tremula, descórada--e teve um poetico
rasgo de paixão. Enrolou a sua camisinha, atirou-m'a para os braços, tão
ardentemente, como se entre as dobras viesse tambem o seu coração.
--Dou-t'a, Theodorico! Leva-a, Theodorico! Ainda está amarrotada da
nossa ternura!... Leva-a para dormires com ella ao teu lado, como se
fosse commigo... Espera, espera ainda, amor! Quero pôr-lhe uma palavra,
uma dedicatoria!
Correu á mesa, onde jaziam restos do papel sisudo em que eu escrevia á
titi a historia edificativa dos meus jejuns em Alexandria, das noites
consumidas a embeber-me do Evangelho... E eu, com a camisinha perfumada
nos braços, sentindo duas bagas de pranto rolarem-me pelas barbas,
procurava angustiosamente em redor onde guardar aquella preciosa
reliquia d'amor. As malas estavam fechadas. O sacco de lona estalava,
repleto.
Topsius, impaciente, tirára das profundezas do seio o seu relogio de
prata. O nosso Lacedemonio, á porta, rosnava:
--_D. Theodorico, es tarde, es mui tarde_...
Mas a minha bem-amada já sacudia o papel, coberto das letras que ella
traçára, largas, impetuosas e francas como o seu amor: «_Ao meu
Theodorico, meu portuguezinho possante, em lembrança do muito que
gozámos_!»
--Oh, riquinha! E onde hei de eu metter isto? Eu não hei de levar a
camisa nos braços, assim núa e ao léo!
Já Alpedrinha, de joelhos, desafivelava desesperadamente o sacco. Então
Maricoquinhas, com uma inspiração delicada, agarrou uma folha de papel
pardo, apanhou do chão um nastro vermelho; e as suas habilidosas mãos de
luveira fizeram da camisinha um embrulho redondo, commodo e
gracioso--que eu metti debaixo do braço, apertando-o com avara,
inflammada paixão.
Depois foi um murmurio arrebatado de soluços, de beijos, de doçuras...
--Mary, anjo querido!
--Theodorico, amor!...
--Escreve-me para Jerusalem...
--Lembra-te da tua bichaninha bonita...
Rolei pela escada, tonto. E a caleche que tantas vezes me passeára,
enlaçado com Mary, por sob os arvoredos aromaticos do Mamoudieh--lá
partiu, ao trote da parelha branca, arrancando-me a uma felicidade onde
o meu coração deitára raizes, agora despedaçadas e gottejando sangue no
silencio do meu peito. O douto Topsius, abarracado sob o seu guardasol
verde, recomeçára, impassivel, a murmurar coisas de velha erudição.
Sabia eu por onde iamos rodando? Por sobre a nobre calçada dos
Sete-Stados, que o primeiro dos Lagidas construira para communicar com a
ilha de Pharos, louvada nos versos de Homero! Nem o escutava, debruçado
para traz, na caleche, agitando o lenço molhado da minha saudade. A dôce
Maricoquinhas, á porta do Hotel, ao lado d'Alpedrinha, linda sob o
chapéo florido de papoulas, fazia esvoaçar tambem o seu lenço amoroso e
acariciador: e um momento estas duas cambraias brancas sacudiram uma
para a outra, no ar quente, o ardor dos nossos corações. Depois eu cahi
sobre a almofada de chita como cae um corpo morto...
Apenas embarcado no _Caimão_, corri a esconder no beliche a minha dôr.
Topsius ainda me agarrou pela manga para me mostrar sitios das grandezas
dos Ptolomeus, o porto do Eunotos, a enseada de marmore onde ancoravam
as galeras de Cleopatra. Fugi; na escada esbarrei, quasi rolei sobre uma
Irmã da Caridade, que subia timidamente com as suas contas na mão.
Rosnei um «desculpe, minha santinha.» E tombando emfim no catre, deixei
escapar o pranto á larga, por cima do embrulho de papel pardo: elle era
tudo que me restava d'essa paixão de incomparavel esplendor, passada na
terra do Egypto.
Dois dias e duas noites o _Caimão_ arquejou e rolou nos vagalhões do mar
de Tyro. Enrodilhado n'um cobertor, sem largar do peito o embrulhinho da
Mary, eu recusava com odio as bolachas que de vez em quando me trazia o
humanissimo Topsius; e desattento ás coisas eruditas que elle
imperturbavelmente me contava d'estas aguas chamadas pelos egypcios o
_Grande Verde_, rebuscava debalde na memoria bocados soltos de uma
oração que ouvira á titi para amansar as vagas iradas.
Mas uma tarde, ao escurecer, tendo cerrado os olhos, pareceu-me sentir
sob as chinelas um chão firme, chão de rocha, onde cheirava a
rosmaninho: e achei-me incomprehensivelmente a subir uma collina agreste
de companhia com a Adelia, e com a minha loura Mary--que sahira de
dentro do embrulho, fresca, nitida, sem ter sequer amarrotado as
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