A Relíquia - 06

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papoulas do seu chapéo! Depois, por traz d'um penedo, surgiu-nos um
homem nú, colossal, tisnado, de cornos; os seus olhos reluziam,
vermelhos como vidros redondos de lanternas; e com o rabo infindavel ia
fazendo no chão o rumor de uma cobra irritada que roja por folhas
seccas. Sem nos cortejar, impudentemente, poz-se a marchar ao nosso
lado. Eu percebi bem que era o Diabo; mas não senti escrupulo, nem
terror. A insaciavel Adelia atirava olhadellas obliquas á potencia dos
seus musculos. Eu dizia-lhe, indignado: «Porca, até te serve o Diabo?»
Assim marchando, chegámos ao alto do monte--onde uma palmeira se
desgrenhava sobre um abysmo cheio de mudez e de treva. Defronte de nós,
muito longe, o céo desdobrava-se como um vasto estofo amarello: e sobre
esse fundo vivo, côr de gema d'ovo, destacava um negrissimo outeiro,
tendo cravadas no alto tres cruzinhas em linha, finas e d'um só traço. O
Diabo, depois de escarrar, murmurou, travando-me da manga: «A do meio é
a de Jesus, filho de José, a quem tambem chamam o Christo; e chegamos a
tempo para saborear a Ascensão.» Com effeito! A cruz do meio, a do
Christo, desairragada do outeiro, como um arbusto que o vento arranca,
começou a elevar-se, lentamente, engrossando, atravancando o céo. E logo
de todo o espaço voaram bandos de anjos, a sustel-a, apressados como as
pombas quando acodem ao grão; uns puxavam-na de cima, tendo-lhe amarrado
ao meio longas cordas de sêda; outros, de baixo, empurravam-na--e nós
viamos o esforço entumecido dos seus braços azulados. Por vezes do
madeiro desprendia-se, como uma cereja muito madura, uma grossa gotta de
sangue: um seraphim recolhia-a nas mãos e ia collocal-a sobre a parte
mais alta do céo, onde ella ficava suspensa e brilhando com o resplendor
d'uma estrella. Um ancião enorme de tunica branca, a que mal
distinguiamos as feições, entre a abundancia da coma revolta e os flocos
de barbas nevadas, commandava, estirado entre nuvens, estas manobras da
Ascensão, n'uma lingua semelhante ao latim e forte como o rolar de cem
carros de guerra. Subitamente tudo desappareceu. E o Diabo, olhando para
mim, pensativo: «_Consummatum est_, amigo! Mais outro Deus! Mais outra
Religião! E esta vai espalhar em terra e céo um inenarravel tedio.»
E logo, levando-me pela collina abaixo, o Diabo rompeu a contar-me
animadamente os Cultos, as Festas, as Religiões que floreciam na sua
mocidade. Toda esta costa do Grande Verde, então, desde Byblos até
Carthago, desde Eleusis até Memphis, estava atulhada de deuses. Uns
deslumbravam pela perfeição da sua belleza, outros pela complicação da
sua ferocidade. Mas todos se misturavam á vida humana, divinisando-a:
viajavam em carros triumphaes, respiravam as flôres, bebiam os vinhos,
defloravam as virgens adormecidas. Por isso eram amados com um amor que
não mais voltará: e os povos, emigrando, podiam abandonar os seus gados
ou esquecer os rios onde tinham bebido--mas levavam carinhosamente os
seus deuses ao collo. «O amigo, perguntou elle, nunca esteve em
Babylonia?» Ahi todas as mulheres, matronas ou donzellas, se vinham um
dia prostituir nos bosques sagrados, em honra da deusa Mylitta. As mais
ricas chegavam em carros marchetados de prata, puxados a búfalos, e
escoltadas d'escravas; as mais pobres traziam uma corda ao pescoço.
Umas, estendendo um tapete na herva, agachavam-se como rezes pacientes;
outras, erguidas, núas, brancas, com a cabeça escondida n'um véo preto,
eram como esplendidos marmores entre os troncos dos alamos. E todas
assim esperavam que qualquer, atirando-lhe uma moeda de prata, lhes
dissesse: «Em nome de Venus!» Seguiam-no então, fosse um principe vindo
de Suza com tiara de perolas, ou o mercador que desce o Euphrates no seu
barco de couro: e toda a noite rugia na escuridão das ramagens o delirio
da Luxuria ritual. Depois o Diabo disse-me as fogueiras humanas de
Molok, os Mysterios da Boa-Deusa em que os lirios se regavam com sangue,
e os ardentes funeraes d'Adonis...
E parando, risonhamente: «o amigo nunca esteve no Egypto?» Eu disse-lhe
que estivera e conhecera lá Maricocas. E o Diabo, cortez: «Não era
Maricocas, era Isis!» Quando a inundação chegava até Memphis, as aguas
cobriam-se de barcas sagradas, Uma alegria heroica, subindo para o sol,
fazia os homens iguaes aos deuses. Osiris, com os seus cornos de boi,
montava Isis; e, entre o estridor das harpas de bronze, ouvia-se por
todo o Nilo o rugido amoroso da Vacca divina.
Depois o Diabo contava-me como brilhavam, dôces e bellas, na Grecia as
religiões da Natureza. Ahi tudo era branco, polido, puro, luminoso e
sereno: uma harmonia sahia das fórmas dos marmores, da constituição das
cidades, da eloquencia das academias e das destrezas dos athletas: por
entre as ilhas da Ionia, fluctuando na molleza do mar mudo como cestas
de flôres, as Nereidas dependuravam-se da borda dos navios, para ouvir
as historias dos viajantes; as Musas, de pé, cantavam pelos valles: e a
belleza de Venus era como uma condensação da belleza da Hellenia.
Mas apparecera este carpinteiro de Galilêa--e logo tudo acabára! A face
humana tornava-se para sempre pallida, cheia de mortificação: uma cruz
escura, esmagando a terra, seccava o esplendor das rosas, tirava o sabor
aos beijos:--e era grata ao deus novo a fealdade das fórmas.
Julgando Lucifer entristecido, eu procurava consolal-o: «Deixe estar,
ainda ha de haver no mundo muito orgulho, muita prostituição, muito
sangue, muito furor! Não lamente as fogueiras de Molok. Ha de ter
fogueiras de judeus.» E elle, espantado: «Eu? Uns ou outros, que me
importa, Raposo? Elles passam, eu fico!»
Assim, despercebido, a conversar com Satanaz, achei-me no campo de
Sant'Anna. E tendo parado, emquanto elle desenvencilhava os cornos dos
ramos d'uma das arvores--ouvi de repente ao meu lado um berro: «Olha o
Theodorico com o Porco-sujo!» Voltei-me. Era a titi! A titi, livida,
terrivel, erguendo, para me espancar, o seu livro de missa! Coberto de
suor--acordei.
Topsius gritava, á porta do beliche, alegremente:
--Levante-se, Raposo! Estamos á vista da Palestina!
O _Caimão_ parára; e no silencio eu sentia a agua roçando-lhe o costado,
de leve, n'um murmurio de mansa caricia. Porque sonhára eu assim, ao
avisinhar-me de Jerusalem, com os Deuses falsos, Jesus seu vencedor, e o
Demonio a todos rebelde? Que suprema revelação me preparava o Senhor?...
* * * * *
Desenrodilhei-me da manta; atordoado, sujo, sem largar o precioso
embrulho da Mary, subi ao tombadilho, encolhido no meu jaquetão. Um ar
fino e forte banhou-me deliciosamente, trazendo um aroma de serra e de
flôr de laranjeira. O mar emmudecera, todo azul, na frescura da manhã. E
ante meus olhos peccadores estendia-se a terra da Palestina, arenosa e
baixa--com uma cidade escura, rodeada de pomares, toucada no alto de
flechas de sol irradiando como os raios d'um resplendor de santo.
--Jaffa! gritou-me Topsius, sacudindo o seu cachimbo de louça. Ahi tem o
D. Raposo a mais antiga cidade da Asia, a velhissima Jeppo, anterior ao
Diluvio! Tire o barrete, saúde essa anciã dos tempos, cheia de lenda e
d'historia... Foi aqui que o borrachissimo Noé construiu a sua Arca!
Cortejei, assombrado.
--Caramba! Ainda agora a gente chega, já lhe começam a apparecer coisas
de religião!
E conservei-me descoberto--porque o _Caimão_, ao ancorar diante da Terra
Santa, tomára o recolhimento d'uma capella, cheia de piedosas occupações
e d'unção. Um lazarista, de longa sotaina, passeava, com os olhos
baixos, meditando o seu Breviario. Sumidas dentro dos capuzes negros de
lustrina, duas Religiosas corriam os dedos pallidos pelas contas dos
seus rosarios. Ao longo da amurada humida, peregrinos da Abyssinia,
hirsutos padres gregos de Alexandria, pasmavam para o casario de Jaffa,
aureolado de sol, como para a illuminação d'um sacrario. E a sineta á
pôpa tilintava, na brisa salgada, com uma doçura devota de toque de
missa...
Mas, vendo uma barcaça escura remar para o _Caimão_,--baixei depressa ao
beliche a pôr o meu capacete de cortiça, calçar luvas pretas, para pisar
decorosamente a terra do meu Salvador. Ao voltar, bem escovado, bem
perfumado, achei a lancha atulhada. E descia, com alvoroço, atraz d'um
franciscano barbudo--quando o amado embrulhinho da Mary escapou dos meus
braços carinhosos, rolou em saltos pela escada como uma pella, raspou a
borda do bote... Ia sumir-se nas aguas amargas! Dei um berro! Uma das
Religiosas apanhou-o, ligeira e cheia de misericordia.
--Agradecido, minha senhora! gritei, enfiado. É um pacotesinho de roupa!
Seja pelo sagrado amor de Maria!
Ella refugiou-se modestamente na sombra do seu capuz; e como eu me
accommodára, mais longe, entre Topsius e o franciscano barbudo que
cheirava a alho--a santa creatura guardou o embrulho sobre o seu puro
regaço, deitou-lhe mesmo por cima as contas do seu rosario.
O arraes, empunhando o leme, bradou: «Allah é grande, larga!» Os arabes
remaram cantando. O sol surgiu por traz de Jaffa. E eu, encostado ao meu
guardachuva, contemplava a pudica religiosa que assim levava, ao collo,
para a terra de castidade, a camisinha da Mary.
Era nova: e entre o bioco triste de lustrina preta parecia de marfim o
seu rosto oval, onde as pestanas longas punham a sombra d'uma dolente
melancolia. Os beiços tinham perdido toda a côr e todo o calor, para
sempre inuteis, destinados sómente a beijar os pés arroxeados do cadaver
d'um Deus. Comparada com Mary, rosa d'York aberta e sensual, perfumando
Alexandria--esta pendia como um lirio ainda fechado e já murcho na
humidade d'uma capella. Ia certamente para algum hospicio da Terra
Santa. A vida para ella devia ser uma successão de chagas a cobrir de
fios e de lençoes a estender por cima de faces mortas. E era decerto o
medo do Senhor que a tornava assim tão pallida.
--Bem tola! murmurei eu.
Pobre e esteril creatura! Percebeu ella por acaso o que continha aquelle
embrulho pardo? Sentiu ella subir de lá, e espalhar-se no escuro do seu
capuz, um perfume estranho e enlanguecedor de baunilha e de pelle
amorosa? A quentura do leito revolto, que ficára nas rendas da camisa,
atravessou por acaso o papel e veio aquecer-lhe brandamente os joelhos?
Quem sabe! Durante um momento pareceu-me que uma gota de sangue novo lhe
roseou a face desmaiada, e que debaixo do habito, onde brilhava uma
cruz, o seu seio arfou, perturbado: mesmo julguei vêr lampejar, por
entre as suas pestanas, um raio fugitivo e assustado procurando as
minhas barbas cerradas e pretas... Mas foi só um relance. Outra vez, sob
o capuz, o rosto recahiu na sua frialdade de marmore santo; e sobre o
seio submettido a cruz pesou, ciumenta e de ferro. Ao seu lado, a outra
religiosa, rochonchuda e de lunetas, sorria para o verde mar, sorria
para o sabio Topsius--com um sorriso claro que sahia da paz do seu
coração e lhe punha uma covinha no queixo.
Apenas saltámos na arêa da Palestina, corri a agradecer, de capacete na
mão, garboso e palaciano.
--Minha irmã, estou muito penhorado... Grande desgosto se se perdesse o
pacotesinho!... É de minha tia, uma encommenda para Jerusalem... Lá lhe
contarei... A titi é muito respeitadora de coisas santas, pella-se pela
caridade...
Muda, no refolho do seu capuz, ella estendeu-me o embrulhinho com a
ponta dos dedos, debeis e mais transparentes que os d'uma Senhora da
Agonia. E os dois habitos negros sumiram-se, entre muros faiscantes de
cal nova, n'uma viella em escadas onde apodrecia o cadaver d'um cão sob
o vôo dos moscardos. Eu murmurei ainda: «Bem tola!»
Quando me voltei, Topsius, á sombra do seu guardasol, conversava com o
homem prestante--que foi nosso Guia através das terras da Escriptura.
Era moço, moreno, espigado, com longos bigodes esvoaçando ao vento;
usava jaqueta de velludilho e botas brancas de montar; as coronhas
prateadas de duas pistolas, emergindo d'uma facha de lã negra,
armavam-lhe heroicamente o peito forte: e trazia amarrado na cabeça, com
as pontas e as franjas atiradas para traz, um lenço rutilante de sêda
amarella. O seu nome era Paulo Potte, a sua patria o Montenegro: e toda
a costa da Syria o conhecia pelo _alegre Potte_. Jesus, que alegre
matalote! A alegria faiscava-lhe na pupilla azul-clara; a alegria
cantava-lhe nos dentes incomparaveis; a alegria estremecia-lhe nas mãos
buliçosas; a alegria resoava-lhe no bater dos tacões. Desde Ascalon até
aos bazares de Damasco, desde o Carmelo até aos pomares d'Engadi--elle
era o _alegre Potte_. Estendeu-me rasgadamente a bolsa de tabaco
perfumado. Topsius maravilhou-se do seu saber biblico. Eu, com palmadas
pelo ventre, gritei-lhe logo--_meu gajo_! E, depois de valentes apertos
de mão, fomos para o _Hotel de Josaphat_ firmar o nosso contracto,
bebendo vasta cerveja.
O alegrissimo Potte depressa organisou a nossa caravana para a cidade do
Senhor. Um macho levava as bagagens; o arrieiro arabe, embrulhado n'um
farrapo azul, era tão airoso e lindo que eu, irresistivelmente e sem
cessar, procurava o negro afago do seu olhar de velludo; e, por luxo
oriental, como escolta, seguia-nos um beduino, velho, catarrhoso, com o
albornós de lã de camêlo listrado de cinzento, e uma forte lança
ferrugenta toda enfeitada de borlas.
Guardei n'um alforge, desveladamente, o embrulhinho mimoso da camisinha
da Mary: depois, já na sella, alongados os lóros do pernudo Topsius, o
festivo Potte, floreando o chicote, lançou o antigo grito das Cruzadas e
de Ricardo-Coração-de-Leão--_Avante, a Jerusalem, Deus o quer_! E a
trote, com os charutos em brasa, sahimos de Jaffa pela porta do
Mercado--á hora em que suavemente tocava a vesperas no Hospicio dos
Padres Latinos.
Na luminosa meiguice da tarde, a estrada alongava-se através de jardins,
hortas, pomares, laranjaes, palmeiraes, terra de Promissão,
resplandecente e amavel. Por entre as sebes de myrtos perdia-se o
fugidio cantar das aguas. O ar todo, d'uma doçura ineffavel, como para
n'elle respirar melhor o povo eleito de Deus, era um derramado perfume
de jasmins e limoeiros. O grave e pacifico chiar das noras ia
adormecendo, ao fim do dia de rega, entre as romanzeiras em flôr. Alta e
serena no azul, voava uma grande aguia.
Consolados, parámos n'uma fonte de marmore vermelho e negro, abrigada á
sombra de sycomoros onde arrulhavam rôlas: ao lado erguia-se uma tenda,
com um tapete na relva coberto d'uvas e de malgas de leite; e o velho de
barbas brancas que a occupava saudou-nos em nome de Allah, com a nobreza
de um patriarcha. A cerveja tinha-me feito sêde: foi uma rapariga bella
como a antiga Rachel, que me deu a beber do seu cantaro de fórma
biblica, sorrindo, com o seio descoberto, duas longas argolas d'ouro
batendo-lhe a face morena--e um cordeirinho branco e familiar preso da
ponta da tunica.
A tarde descia, muda e dourada, quando penetrámos na planicie de Saron,
que a Biblia outr'ora encheu de rosas. No silencio tilintavam os
chocalhos d'um rebanho de cabras negras, que um arabe ia pastoreando, nú
como um S. João. Lá ao fundo, os montes sinistros da Judêa, tocados pelo
sol obliquo que se afundava sobre o mar de Tyro, pareciam ainda
formosos, azues e cheios de doçura de longe, como as illusões do
peccado. Depois tudo escureceu. Duas estrellas de um resplendor infinito
appareceram:--e começaram a caminhar adiante de nós para os lados de
Jerusalem.
* * * * *
O nosso quarto, no _Hotel do Mediterraneo_, em Jerusalem, com a sua
abobada caiada de branco, o chão de tijolo, semelhava uma rigida cella
de rude mosteiro. Mas, fronteiro á janella, um tabique delgado,
revestido de papel de ramagens azues, dividia-o d'outro quarto, onde nós
sentiamos uma voz fresca cantarolar a _Ballada do rei de Thule_: e ahi,
exhalando conforto e civilisação, brilhava um guarda-roupa de mogno, que
eu abri, como se abre um relicario, para encerrar o meu embrulhinho
bemdito.
Os dois leitosinhos de ferro desappareciam sob as pregas virginaes dos
cortinados de cambraia branca; e ao meio havia uma mesa de pinho, onde
Topsius estudava o mappa da Palestina, emquanto eu, de chinelos,
passeava, limando as unhas. Era a devota sexta-feira em que a
christandade commemora, enternecida, os SS. Martyres d'Evora. Nós
tinhamos chegado n'essa tarde, sob uma chuva triste e miuda, á cidade do
Senhor: e de vez em quando Topsius, erguendo os oculos de cima das
estradas de Galilêa, contemplava-me de braços cruzados e murmurava com
amizade:
--Ora está o amigo Raposo em Jerusalem!
Eu, parando ao espelho, dava um olhar ás barbas crescidas, á face
crestada, e murmurava tambem, agradado:
--É verdade, cá está o bello Raposo em Jerusalem!
E voltava, insaciado, a admirar através dos vidros baços a divina Sião.
Sob a chuva melancolica erguiam-se defronte as paredes brancas d'um
convento silencioso, com as persianas verdes corridas, e duas enormes
goteiras de zinco a cada esquina, uma escoando-se ruidosamente sobre uma
viella deserta--a outra cahindo no chão molle d'uma horta plantada de
couves, onde orneava um jumento. D'esse lado, era uma vastidão
infindavel de telhados em terraço, lugubres e côr de lodo, com uma
cupulasinha de tijolo em fórma de forno, e longas varas para seccar
farrapos; e quasi todos decrepitos, desmantelados, miserrimos, pareciam
desfazer-se na agua lenta que os alagava. Do outro elevava-se uma
encosta atulhada de casebres sordidos, com verduras de quintal,
esfumadas, arripiadas na nevoa humida: por entre elles, torcia-se uma
viella esgalgada, em escadinhas, onde constantemente se cruzavam frades
de alpercatas sob os seus guardachuvas, sombrios judeus de melenas
cahidas, ou algum vagoroso beduino arregaçando o seu albornós... Por
cima pesava o céo pardacento. E assim da minha janella me apparecia a
velha Sião, a bem-edificada, brilhante de claridade, alegria da terra, e
formosa entre as cidades.
--Isto é um horror, Topsius! Bem dizia o Alpedrinha! Isto é peor que
Braga, Topsius! E nem um passeio, nem um bilhar, nem um theatro! nada!
Olha que cidade para viver Nosso Senhor!
--Sim! No tempo d'elle era mais divertida, resmungou o meu sapiente
amigo.
E logo me propôz que no domingo partissemos para as margens do
Jordão--onde o reclamavam os seus estudos sobre os Herodes. Ahi eu
poderia ter deleites campestres--banhando-me nas aguas santas, atirando
ás perdizes, entre as palmeiras de Jerichó. Accedi com gosto. E descemos
a comer, chamados por uma sineta de convento, funeraria e badalando na
sombra do corredor.
O refeitorio era tambem abobadado, com uma esteira d'esparto sobre o
chão de ladrilho: e estavamos sós, o erudito investigador dos Herodes e
eu, na mesa tristonha, adornada com flôres de papel em vasinhos
rachados. Remexendo o macarrão de uma sopa dissaborida, murmurei,
succumbido: «Jesus, Topsius, que grande massada!» Mas uma porta de
vidraça ao fundo abriu-se de leve; e logo exclamei, arrebatado:
«Caramba, Topsius, que grande mulher!»
Grande, em verdade! Solida e saudavel como eu; branca, da alvura do
linho muito lavado, e picada de sardas; coroada por uma massa ardente de
cabello ondeado e castanho; presa n'um vestido de sarja azul que os
seios rijos quasi faziam estalar--ella entrou, derramando um fresco
cheiro de sabão Windsor e d'agua de Colonia, e logo alumiou todo o
refeitorio com o esplendor da sua carne e da sua mocidade... O fecundo
Topsius comparou-a á fortissima deusa Cybele.
Cybele sentou-se no topo da mesa, serena e soberba. Ao lado, fazendo
ranger a cadeira com o peso dos seus amplos membros, accommodou-se um
Hercules tranquillo, calvo, de espessas barbas grisalhas--que, no mero
gesto de desdobrar o guardanapo, revelou a omnipotencia do dinheiro e o
envelhecido habito de mandar. Por um _yes_ que ella murmurou comprehendi
que era da terra de Maricocas. E lembrava-me a ingleza do senhor barão.
Ella collocára junto ao prato um livro aberto que me pareceu ser de
versos: o barbaças, mastigando com o vagar magestoso d'um leão, folheava
tambem, em silencio o seu _Guia do Oriente_. E eu esquecia o meu
carneiro guisado, para contemplar devoradoramente cada uma das suas
perfeições. De vez em quando ella erguia a franja cerrada das suas
pestanas: eu esperava com ancia o dom d'esse claro e suave olhar; mas
ella derramava-o pelos muros caiados, pelas flôres de papel, e deixava-o
recahir, desinteressado e frio, sobre as paginas do seu poema.
Depois do café beijou a mão cabelluda do barbaças; e desappareceu pela
porta envidraçada, levando comsigo o aroma, a luz, e a alegria de
Jerusalem. O Hercules accendeu morosamente o cachimbo; disse ao moço
«que lhe mandasse o Ibrahim, o guia»; levantou-se, pesado e membrudo.
Junto á porta derrubou o guardachuva de Topsius, do venerabilissimo
Topsius, gloria da Allemanha, membro do _Instituto imperial de
Excavações historicas_; e passou--sem o erguer, nem sequer baixar o olho
altivo.
--Irra, bruto! rosnei, a borbulhar de furor.
O meu douto amigo, com a sua cobardia social d'allemão disciplinado,
apanhou o seu guardachuva e escovou-lhe o paninho, murmurando, já
tremulo, que talvez «o barbaças fosse um duque...»
--Qual duque! Para mim não ha duques! Eu sou Raposo, dos Raposos do
Alemtejo... Rachava-o!
Mas a tarde descia--e deviamos fazer a nossa visita reverente ao
sepulchro do nosso Deus. Corri ao quarto, a ornar-me com o meu chapéo
alto, como promettera á titi; e penetrava no corredor quando vi Cybele
abrir a porta, _junto da nossa porta_, e sahir envolta n'uma capa
cinzenta, com uma gorra onde alvejavam duas pennas de gaivota. O coração
bateu-me no delirio de uma grande esperança. Assim, era ella que
cantarolava a _Ballada do rei de Thule_! Assim, os nossos leitos estavam
apenas separados pelo fino, fragil tabique coberto de ramarias azues!
Nem procurei as luvas pretas: desci n'um alvoroço, certo de que a ia
encontrar no sepulchro de Jesus: e planeava já verrumar no tabique um
buraco, por onde o meu olho namorado pudesse ir saciar-se nas bellezas
do seu desalinho.
Ainda chovia, lugubremente. Apenas começámos a atolar-nos no enxurro da
Via-Dolorosa, entalada entre muros côr de lodo--chamei Potte para
debaixo do meu guardachuva, perguntei-lhe se vira no hotel a minha forte
e sardenta Cybele. O jucundo Potte já a admirára. E pelo Ibrahim, seu
compadre dilecto, sabia que o barbaças era um escossez, negociante de
cortumes...
--Ahi está, Topsius! gritei eu. Negociante de cortumes... Qual duque! É
uma besta! Eu rachava-o! Em coisas de dignidade sou uma fera. Rachava-o!
A filha, a das bastas tranças, dizia Potte, tinha um nome radiante de
pedra preciosa: chamava-se _Ruby_, rubim. Amava os cavallos, era
arrojada; na Alta Galilêa, d'onde vinham, matára uma aguia negra...
--Ora aqui têm os cavalheiros a casa de Pilatos...
--Deixa lá a casa de Pilatos, homem! Importa-me bem com Pilatos! E então
que diz mais o Ibrahim? Desembucha, Potte!
Alli a Via-Dolorosa estreitava-se, abobadada, como um corredor de
Catacumba. Dois mendigos chaguentos roíam cascas de melões, assapados na
lama e grunhindo. Um cão uivava. E o risonho Potte contava-me que o
Ibrahim vira muitas vezes Miss Ruby enlevada na belleza dos homens da
Syria: de noite, á porta da tenda, emquanto o papá cervejava, ella dizia
versos baixinho, olhando para a palpitação das estrellas. Eu pensava:
«Caramba! tenho mulher!»
--Ora aqui estão os cavalheiros diante do Santo Sepulchro...
Fechei o meu guardachuva. Ao fundo de um adro, de lages descolladas,
erguia-se a fachada d'uma igreja, caduca, triste, abatida, com duas
portas em arco: uma tapada já a pedregulho e cal, como superflua; a
outra timidamente, medrosamente entreaberta. E aos flancos debeis d'este
templo soturno manchado de tons de ruina, collavam-se duas construcções
desmanteladas, do rito latino e do rito grego--como filhas apavoradas
que a Morte alcançou, e que se refugiam ao seio da mãi, meia morta
tambem e já fria.
Calcei então as minhas luvas pretas. E immediatamente, um bando voraz
d'homens sordidos envolveu-nos com alarido, offerecendo reliquias,
rosarios, cruzes, escapularios, bocadinhos de taboas aplainadas por S.
José, medalhas, bentinhos, frasquinhos de agua do Jordão, cirios,
agnus-dei, lithographias da Paixão, flôres de papel feitas em Nazareth,
pedras benzidas, caroços d'azeitona do Monte Olivete, e tunicas «como
usava a Virgem Maria!» E á porta do Sepulchro de Christo, onde a titi me
recommendára que entrasse de rastos, gemendo e rezando a corôa--tive de
esmurrar um malandrão de barbas de ermita, que se dependurára da minha
rabona, faminto, rabido, ganindo que lhe comprassemos boquilhas feitas
de um pedaço da arca de Noé!
--Irra, caramba, larga-me, animal!
E foi assim, praguejando, que me precipitei, com o guardachuva a pingar,
dentro do santuario sublime onde a Christandade guarda o tumulo do seu
Christo. Mas logo estaquei, surprehendido, sentindo um delicioso e grato
aroma de tabaco da Syria. N'um amplo estrado, afofado em divan, com
tapetes da Caramania e velhas almofadas de sêda, reclinavam-se tres
turcos, barbudos e graves, fumando longos cachimbos de cerejeira. Tinham
dependurado na parede as suas armas. O chão estava negro dos seus
escarros. E, diante, um servo em farrapos esperava, com uma taça
fumegante de café, na palma de cada mão.
Pensei que o Catholicismo, previdente, estabelecera á porta do lugar
divino uma _Loja de bebidas e aguas-ardentes_, para conforto dos seus
romeiros. Disse baixo a Potte:
--Grande idéa! Parece-me que tambem vou tomar um cafésinho!
Mas logo o festivo Potte me explicou que esses homens sérios, de
cachimbo, eram soldados musulmanos policiando os altares christãos, para
impedir que em torno ao mausoleu de Jesus se dilacerem por superstição,
por fanatismo, por inveja de alfaias, os Sacerdocios rivaes que alli
celebram os seus Ritos rivaes--Catholicos como o padre Pinheiro, Gregos
orthodoxos para quem a cruz tem quatro braços, Abissynios e Armenios,
Coptas que descendem dos que outr'ora em Memphis adoravam o boi Apis,
Nestorianos que veem da Chaldêa, Georgianos que veem do mar Caspio,
Maronitas que veem do Libano,--todos christãos, todos intolerantes,
todos ferozes!... Então saudei com gratidão esses soldados de Mahomet
que, para manter o recolhimento piedoso em torno do Christo Morto,
serenos e armados velam á porta, fumando.
Logo á entrada parámos diante d'uma lapide quadrada, incrustada nas
lages escuras, tão polida e reluzindo com um tão dôce brilho de nacar
que parecia a agua quieta d'um tanque onde se reflectiam as luzes das
lampadas. Potte puxou-me a manga, lembrou-me que era costume beijar
aquelle pedaço de rocha, santa entre todas, que outr'ora, no jardim de
José d'Arimathêa...
--Bem sei, bem sei... Beijo, Topsius?
--Vá beijando sempre, disse-me o prudente historiographo dos Herodes.
Não se lhe péga nada; e agrada á senhora sua tia.
Não beijei. Em fila e calados, penetrámos n'uma vasta cupula, tão
esfumada no crepusculo que o circulo de frestas redondas na cimalha
brilhava apenas, pallidamente, como um aro de perolas em torno de uma
tiara: as columnas que a sustentavam, finas e juntas como as lanças
d'uma grade, riscavam a sombra em redor--cada uma picada pela mancha
vermelha e mortal d'uma lampada de bronze. Ao centro do lagedo sonoro
elevava-se, espelhado e branco, um Mausoleu de marmore--com lavores e
com florões: um velho, pano de damasco cobria-o como um toldo, recamado
de bordados d'ouro esvaído: e duas alas de tocheiros faziam-lhe uma
avenida de lumes funerarios até á porta, estreita como uma fenda, tapada
por um trapo côr de sangue. Um padre armenio que desapparecia sob o seu
amplo manto negro, sob o capuz descido, incensava-o, dormente e
mudamente.
Potte puxou-me outra vez pela manga:
--O tumulo!
Oh minha alma piedosa! Oh titi! Ahi estava pois, ao alcance dos meus
labios, o tumulo do meu Senhor!--E immediatamente rompi como um rafeiro,
por entre a turba ruidosa de frades e peregrinos, a buscar um rosto
gordinho e sardento e uma gorra com pennas de gaivota! Longamente, errei
estonteado... Ora esbarrava n'um franciscano cingido na sua corda
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