A Relíquia - 07

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d'esparto; ora me arredava diante d'um padre copta, deslisando como uma
sombra tenue, precedido por serventes que tangiam as pandeiretas
sagradas do tempo d'Osiris. Aqui topava n'um montão de roupagens
brancas, cahido nas lages como um fardo, d'onde se escapavam gemidos de
contrição; adiante tropeçava n'um negro, todo nú, estirado ao pé d'uma
columna, dormindo placidamente. Por vezes o clamor sacro d'um orgão
resoava, rolava pelos marmores da nave, morria com um susurro de vaga
espraiada: e logo mais longe um canto armenio, tremulo e ancioso, batia
os muros austeros como a palpitação das azas d'uma ave presa que quer
fugir para a luz. Junto d'um altar apartei dois gordos sacristães, um
grego, outro latino, que se tratavam furiosamente de _birbantes_,
esbrazeados, cheirando a cebola: e fui d'encontro a um bando de romeiros
russos de grenhas hirsutas, vindos decerto do Caspio, com os pés
doloridos embrulhados em trapos, que não ousavam mover-se, enleados de
terror divino, torcendo o barrete de feltro entre as mãos, d'onde lhes
pendiam grossos rosarios de vidro. Crianças, em farrapos, brincavam na
escuridão das arcarias; outras pediam esmola. O aroma do incenso
suffocava; e padres de cultos rivaes puxavam-me pela rabona para me
mostrarem reliquias rivaes, heroicas ou divinas--uns as esporas de
Godofredo, outros um pedaço da Cana Verde.
Atordoado, enfileirei-me n'uma procissão penitente--onde eu julgára
entrevêr, brancas, altivas, entre véos pretos d'arrependimento, as duas
pennas de gaivota. Uma carmelita, á frente, resmungava a ladainha,
detendo-nos a cada passo, arrebanhados n'um assombro devoto, á porta de
capellas cavernosas, dedicadas á Paixão--a do _Improperio_ onde o Senhor
foi flagellado, a da _Tunica_ onde o Senhor foi despido. Depois subimos,
de tochas na mão, uma escadaria tenebrosa, escavada na rocha...--E
subitamente todo o tropel devoto se atirou de rojo, ululando, carpindo,
gemendo, flagellando os peitos, clamando pelo Senhor, lugubre e
delirante. Estavamos sobre a Pedra do Calvario.
Em torno a capella que a abriga resplandecia com um luxo sensual e
pagão. No tecto azul-ferrete brilhavam soes de prata, signos do Zodiaco,
estrellas, azas d'anjos, flôres de purpura: e, d'entre este fausto
sideral, pendiam de correntes de perolas os velhos symbolos da
Fecundidade, os ovos de avestruz, ovos sacros d'Astarté e de Baccho
d'ouro. Sobre o altar elevava-se uma cruz vermelha com um Christo tosco
pintado a ouro--que parecia vibrar, viver através do fulgor diffuso dos
mólhos de lumes, da faiscação das alfaias, do fumo dos aromaticos
ardendo em taças de bronze. Globos espelhados, pousando sobre peanhas
d'ebano, reflectiam as joias dos retabulos, a refulgencia das paredes
revestidas de jaspe, de nacar e de agatha. E no chão, em meio d'este
clarão precioso de pedraria e luz, emergindo d'entre as lages de marmore
branco--destacava um bocado de rocha bruta e brava com uma fenda
alargada e polida por longos seculos de beijos e de afagos beatos. Um
archidiacono grego, de barbas esqualidas, gritou: «N'esta rocha foi
cravada a cruz! A cruz! A cruz! Miserere! Kirie Eleison! Christo!
Christo!» As rezas precipitaram-se, mais ardentes, entre soluços. Um
cantico dolente balançava-se, ao ranger dos incensadores. Kirie Eleison!
Kirie Eleison! E os diaconos perpassavam rapidamente, sôfregamente, com
vastos saccos de velludo, onde tilintavam, se afundavam, se sumiam as
offrendas dos simples.
Fugi, aturdido e confuso. O sabio historiador dos Herodes passeava no
adro, sob o seu guardachuva, respirando o ar humido. De novo nos
accommetteu o bando esfaimado dos vendilhões de reliquias. Repelli-os
rudemente: e sahi do Santo Lugar como entrára--em peccado e praguejando.
No hotel, Topsius recolheu logo ao quarto a registrar as suas impressões
do Sepulchro de Jesus; eu fiquei no pateo cervejando e cachimbando com o
aprazivel Potte. Quando subi, tarde, o meu esclarecido amigo já
resonava, com a vela accesa--e com um livro aberto sobre o leito, um
livro meu, trazido de Lisboa para me recrear no paiz do Evangelho, o
_Homem dos tres calções_. Descalçando os botins, sujos da lama veneravel
da Via-Dolorosa--eu pensava na minha Cybele. Em que sacratissimas
ruinas, sob que arvores divinisadas por terem dado sombra ao Senhor,
passára ella essa tarde nevoenta de Jerusalem? Fôra ao valle do Cedron?
Fôra ao branco tumulo de Rachel?...
Suspirei, amoroso e moído: e abria os lençoes bocejando--quando
distinctamente, através do tabique fino, senti um ruido d'agua despejada
n'uma banheira. Escutei, alvoroçado: e logo n'esse silencio negro e
magoado que sempre envolve Jerusalem, me chegou, perceptivel, o som leve
d'uma esponja arremessada na agua. Corri, collei a face contra o papel
de ramagens azues. Passos brandos e nús pisavam a esteira que recobria o
ladrilho de tijolo; e a agua rumorejou, como agitada por um dôce braço
despido que lhe experimentava o calor. Então, abrazado, fui ouvindo
todos os rumores intimos de um longo, lento, languido banho: o espremer
da esponja; o fôfo esfregar da mão cheia de espuma de sabão; o suspiro
lasso e consolado do corpo que se estira sob a caricia da agua tepida,
tocada d'uma gotta de perfume... A testa, tumida de sangue, latejava-me:
e percorria desesperadamente o tabique, procurando um buraco, uma fenda.
Tentei verrumal-o com a tesoura; as pontas finas quebraram-se na
espessura da caliça... Outra vez a agua cantou, escoando da esponja:--e
eu, tremendo todo, julgava vêr as gottas vagarosas a escorrer entre o
rego d'esses seios duros e brancos que faziam estalar o vestido de
sarja...
Não resisti: descalço, em ceroulas, sahi ao corredor adormecido; e
cravei á fechadura, da sua porta um olho tão esbugalhado, tão
ardente--que quasi receava feril-a com a devorante chamma do seu raio
sanguineo... Enxerguei n'um circulo de claridade uma toalha cahida na
esteira, um roupão vermelho, uma nesga do alvo cortinado do seu leito. E
assim agachado, com bagas de suor no pescoço, esperava que ella
atravessasse, núa e esplendida, n'esse disco escasso de luz--quando
senti de repente, por traz, uma porta ranger, um clarão banhar a parede.
Era o barbaças, em mangas de camisa, com o seu castiçal na mão! E eu,
miserrimo Raposo, não podia escapar. D'um lado estava elle, enorme. Do
outro o topo do corredor, maciço.
Vagarosamente, calado, com methodo, o Hercules pousou a vela no chão,
ergueu a sua rude bota de duas solas, e desmantelou-me as ilhargas... Eu
rugi: «bruto!» Elle ciciou: «silencio!» E outra vez, tendo-me alli
acercado contra o muro, a sua bota bestial e de bronze me malhou
tremendamente quadris, nadegas, canellas, a minha carne toda, bem
cuidada e preciosa! Depois, tranquillamente, apanhou o seu castiçal.
Então eu, livido, em ceroulas, disse-lhe com immensa dignidade:
--Sabe o que lhe vale, seu bife? É estarmos aqui ao pé do tumulo do
Senhor, e eu não querer dar escandalos por causa de minha tia... Mas se
estivessemos em Lisboa, fóra de portas, n'um sitio que eu cá sei,
comia-lhe os figados! Nem você sabe de que se livrou. Vá com esta,
comia-lhe os figados!
E muito digno, coxeando, voltei ao quarto a fazer pacientes fricções
d'arnica. Assim eu passei a minha primeira noite em Sião.
Ao outro dia cedo o profundo Topsius foi peregrinar ao monte das
Oliveiras, á fonte clara de Siloé. Eu, dorido, não podendo montar a
cavallo, fiquei no sofá de riscadinho com o _Homem dos tres calções_. E
até para evitar o affrontoso barbaças não desci ao refeitorio,
pretextando tristeza e langor. Mas ao mergulhar o sol no mar de
Tyro--estava restabelecido e vivaz: Potte preparára para essa noite uma
festividade sensual em casa da Fatmé, matrona bem acolhedoura, que tinha
no Bairro dos Armenios um dôce pombal de pombas: e nós iamos lá
contemplar a gloriosa bailadeira da Palestina, a _Flôr de Jerichó_, a
saracotear essa dansa da _Abelha_, que esbrazêa os mais frios e deprava
os mais puros...
A recatada portinha da Fatmé, ornada d'um pé de vinha secca, abria-se ao
canto d'um muro negro junto á Torre de David. Fatmé esperava-nos,
magestosa e obesa, envolta em véos brancos, com fios de coraes entre as
tranças, os braços nús--tendo cada um a cicatriz escura de um bubão de
peste. Tomou-me submissamente a mão, levou-a á testa oleosa, levou-a aos
labios empastados d'escarlate, e conduziu-me em ceremonia defronte d'uma
cortina preta, franjada d'ouro como o pano d'um esquife. E eu estremeci,
ao penetrar emfim nos segredos deslumbradores d'um serralho mudo e
cheirando a rosa.
Era uma sala caiada de fresco, com sanefas de algodão vermelho encimando
a gelosia; e ao longo das paredes corria um divan amassado, revestido de
sêda amarella, com remendos de sêda mais clara. N'um bocado de tapete da
Persia pousava um brazeiro de latão, apagado, sob o montão de cinzas;
ahi ficára esquecido um pantufo de velludo, estrellado de lentejoulas.
Do tecto de madeira alvadia, onde se alastrava uma nodoa de humidade,
pendia de duas correntes enfeitadas de borlas um candieiro de petroline.
Um bandolim dormia a um canto, entre almofadas. No ar morno errava um
cheiro adocicado e molle a mofo e a benjoim. Pelos ladrilhos, por baixo
dos poaiaes da gelosia, corriam carochas.
Sentei-me sisudamente ao lado do historiador dos Herodes. Uma negra de
Dongola, encamisada de escarlate, com braceletes de prata a tilintar nos
braços, veio offerecer-nos um café aromatico: e quasi immediatamente
Topsius appareceu, descorçoado, dizendo que não podiamos saborear a
famosa dansa da _Abelha_! A _Rosa de Jerichó_ fôra bailar diante de um
principe de Allemanha, chegado n'essa manhã a Sião, a adorar o tumulo do
Senhor. E Fatmé apertava com humildade o coração, invocava Allah,
dizia-se nossa escrava! Mas era uma fatalidade! A _Rosa de Jerichó_ fôra
para o principe louro que viera, com cavallos e com plumas, do paiz dos
Germanos!...
Eu, despeitado, observei que não era um principe: mas minha tia tinha
luzidas riquezas: os Raposos primavam pelo sangue no fidalgo Alemtejo.
Se _Flôr de Jerichó_ estava ajustada para regosijar meus olhos
catholicos, era uma desconsideração tel-a cedido ao romeiro couraçado
que viera da hereje Allemanha...
O erudito Topsius resmungou, alçando o bico com petulancia, que a
Allemanha era a mãi espiritual dos povos...
--O brilho que sae do capacete allemão, D. Raposo, é a luz que guia a
humanidade!
--Sebo para o capacete! A mim ninguem me guia! Eu sou Raposo, dos
Raposos do Alemtejo!... Ninguem me guia senão Nosso Senhor Jesus
Christo... E em Portugal ha grandes homens! Ha Affonso Henriques, ha o
Herculano... Sebo!
Ergui-me, medonho. O sapientissimo Topsius tremia, encolhido. Potte
acudiu:
--Paz, christãos e amigos, paz!
Topsius e eu reencruzámo-nos logo no divan--tendo apertado as mãos,
galhardamente e com honra.
Fatmé, no emtanto, jurava que Allah era grande e que ella era a nossa
escrava. E, se nós a quizessemos mimosear com sete piastras d'ouro, ella
em compensação da _Rosa de Jerichó_ offerecia-nos uma joia inapreciavel,
uma Circassiana, mais branca que a lua cheia, mais airosa que os lirios
que nascem em Galgalá.
--Venha a Circassiana! gritei, excitado. Caramba, eu vim aos Santos
Lugares para me refocilar... Venha a Circassiana! Larga as piastras,
Potte! Irra! Quero regalar a carne!
Fatmé sahiu, recuando: o festivo Potte reclinou-se entre nós, abrindo a
sua bolsa perfumada de tabaco de Alepo. Então, uma portinha branca,
sumida no muro caiado, rangeu a um canto, de leve: e uma figura entrou,
velada, vaga, vaporosa. Amplos calções turcos de sêda carmesim tufavam
com languidez, desde a sua cinta ondeante até aos tornozêlos, onde
franziam, fixos por uma liga d'ouro; os seus pésinhos mal pousavam,
alvos e alados, nos chinelos de marroquim amarello; e através do véo de
gaze que lhe enrodilhava a cabeça, o peito e os braços--brilhavam
recamos d'ouro, scentelhas de joias, e as duas estrellas negras dos seus
olhos. Espreguicei-me, tumido de desejo.
Por traz d'ella Fatmé, com a ponta dos dedos, ergueu-lhe o véo devagar,
devagar--e d'entre a nuvem de gaze surgiu um carão côr de gesso,
escaveirado e narigudo, com um olho vesgo, e dentes podres que
negrejavam no langor nescio do sorriso... Potte pulou do divan,
injuriando Fatmé: ella gritava por Allah, batendo nos seios, que soavam
mollemente como odres mal cheios.
E desappareceram, assanhados, levados n'uma rajada de ira. A
Circassiana, requebrando-se, com o seu sorriso putrido, veio
estender-nos a mão suja, a pedir «presentinhos» n'um tom rouco
d'aguardente. Repelli-a com nojo. Ella coçou um braço, depois a ilharga;
apanhou tranquillamente o seu véo, e sahiu arrastando as chinelas.
--Oh Topsius! rosnei eu. Isto parece-me uma grande infamia!
O sabio fez considerações sobre a voluptuosidade. Ella é sempre
enganadora. Debaixo do sorriso luminoso está o dente cariado. Dos beijos
humanos só resta o amargor. Quando o corpo se extasia, a alma
entristece...
--Qual alma! não ha alma! O que ha é um eminentissimo desaforo! Na rua
do Arco do Bandeira, esta Fatmé tinha já dois murros na bochecha...
Irra!
Sentia-me feroz, com desejos de escavacar o bandolim... Mas Potte
reappareceu, cofiando os bigodões, dizendo que por mais nove piastras
d'ouro Fatmé consentia em mostrar a sua secreta maravilha, uma virgem
das margens do Nilo, da alta Nubia, bella como a noite mais bella do
Oriente. E elle vira-a, afiançava-a, valia o tributo d'uma fertil
provincia.
Fragil e liberal, cedi. Uma a uma, as nove piastras d'ouro tiniram na
mão gordufa de Fatmé.
De novo a porta caiada rangeu, ficou, cerrada--e, sobre o tom alvaiado,
destacou, na sua nudez côr de bronze, uma esplendida femea, feita como
uma Venus. Durante um momento parou, muda, assustada pela luz o pelos
homens, roçando os joelhos lentamente. Uma tanga branca cobria-lhe os
flancos possantes e ageis: os cabellos hirsutos, lustrosos d'oleo, com
sequins d'ouro entreleçados, cahiam-lhe sobre o dorso, como uma juba
selvagem; um fio solto de contas de vidro azul enroscava-se-lhe em torno
do pescoço e vinha escorregar por entre o rego dos seios rijos,
perfeitos e de ebano. De repente soltou convulsamente, repicando a
lingua, uma ululação desolada: _Lu_! _lu_! _lu_! _lu_! _lu_! Atirou-se
de bruços para o divan: e estirada, na attitude d'uma Esphinge, ficou
dardejando sobre nós, séria e immovel, os seus grandes olhos tenebrosos.
--Hein? dizia Potte, acotovelando-me. Veja-lhe o corpo... Olhe, os
braços! Olhe a espinha como arqueia! É uma panthera!
E Fatmé, de olhos em alvo, chilreava beijos na ponta dos
dedos--exprimindo os deleites transcendentes que devia dar o amor
d'aquella Nubia... Certo, pela persistencia do seu olhar, que as minhas
barbas fortes a tinham captivado, desenrosquei-me do divan, fui-me
acercando, devagar, como para uma preza certa. Os seus olhos
alargavam-se, inquietos e faiscantes. Gentilmente, chamando-lhe «minha
lindinha», acariciei-lhe o hombro frio: e logo ao contacto da minha
pelle branca a Nubia recuou, arripiada, com um grito abafado de gazella
ferida. Não gostei. Mas quiz ser amavel. Disse-lhe paternalmente:
--Ah! se tu conhecesses a minha patria!... E olha que sou capaz de te
levar! Em Lisboa é que é! Vai-se ao Dáfundo, cêa-se no Silva... Isto
aqui é uma choldra! E as raparigas como tu são bem tratadas, dá-se-lhes
consideração, os jornaes fallam d'ellas, casam com proprietarios...
Murmurava-lhe ainda outras coisas profundas e dôces. Ella não
comprehendia o meu fallar: e nos seus olhos esgazeados fluctuava a longa
saudade da sua aldêa da Nubia, dos rebanhos de bufalos que dormem á
sombra das tamareiras, do grande rio que corre eterno e sereno entre as
ruinas das Religiões e os tumulos das Dynastias...
Imaginando então despertar o seu coração com a chamma do meu, puxei-a
para mim lascivamente. Ella fugiu; encolheu-se toda a um canto, a
tremer; e deixando cahir a cabeça entre as mãos começou a chorar,
longamente.
--Olha que massada! gritei, embaçado.
E agarrei o capacete, abalei, esgaçando quasi no meu furor o pano preto
franjado d'ouro. Parámos n'uma cella ladrilhada onde cheirava mal. E ahi
bruscamente foi entre Potte e a nedia matrona uma bulha ferina sobre a
paga d'aquella radiante festa do Oriente: ella reclamava mais sete
piastras d'ouro: Potte, de bigode erriçado, cuspia-lhe injurias em
arabe, rudes e chocando-se como calhaus que se despenham n'um valle. E
sahimos d'aquelle lugar de deleite perseguidos pelos gritos de Fatmé,
que se babava de furor, agitava os braços marcados da peste e nos
amaldiçoava, e a nossos paes, e aos ossos de nossos avós, e a terra que
nos gerára, e o pão que comiamos, e as sombras que nos cobrissem! Depois
na rua negra dois cães seguiram-nos muito tempo, ladrando lugubremente.
Entrei no _Hotel do Mediterraneo_, afogado em saudades da minha terra
risonha: os gozos de que me via privado n'esta lobrega, inimiga Sião,
faziam-me anciar mais inflammadamente pelos que me daria a facil,
amoravel Lisboa, quando, morta a titi, eu herdasse a bolsa sonora de
sêda verde!... Lá não encontraria, nos corredores adormecidos, uma bota
severa e bestial! Lá nenhum corpo barbaro fugiria, com lagrimas, á
caricia dos meus dedos. Dourado pelo ouro da titi, o meu amor não seria
jámais ultrajado, nem a minha concupiscencia jámais repellida. Ah! meu
Deus! Assim eu lograsse pela minha santidade captivar a titi!...--E
logo, abancando, escrevi á hedionda senhora esta carta ternissima:
«Querida titi do meu coração! Cada vez me sinto com mais virtude. E
attribuo-a ao agrado com que o Senhor está vendo esta minha visita ao
seu santo tumulo. De dia e de noite passo o tempo a meditar a sua divina
Paixão e a pensar na titi. Agora mesmo venho da Via-Dolorosa. Ai, que
enternecedora que estava! É uma rua tão benta, tão benta, que até tenho
escrupulo de a pisar com os botins; e n'outro dia não me contive,
agachei-me, beijei-lhe as ricas pedrinhas! Esta noite passei-a quasi
toda a rezar á Senhora do Patrocinio que todo o mundo aqui em Jerusalem
respeita muitissimo. Tem um altar muito lindo; ainda que a este respeito
bem razão tinha a minha boa tia (como tem razão em tudo) quando dizia
que lá para festas e procissões não ha como os nossos portuguezes. Pois
esta noite, assim que ajoelhei deante da capella da Senhora, depois de
seis Salve-Rainhas, voltei-me para a bella imagem e disse-lhe:--Ai, quem
me dera saber como está minha tia Patrocinio!--E quer a titi acreditar?
Pois olhe, a Senhora com a sua divina bocca disse-me, palavras textuaes,
que até, para não me esquecerem, as escrevi no punho da camisa:--A minha
querida afilhada vai bem, Raposo, e espera fazer-te feliz!--E isto não é
milagre extraordinario, porque me contam aqui todas as familias
respeitaveis com quem vou tomar chá que a Senhora e seu divino Filho
dirigem sempre algumas palavras bonitas a quem os vem visitar. Saberá
que já lhe obtive certas reliquias, uma palhinha do presepio, e uma
taboinha aplainada por S. José. O meu companheiro allemão, que, como
mencionei á titi na minha carta de Alexandria, é de muita religião e
muito sabio, consultou os livros que traz e affirmou-me que a taboinha
era das mesmas que, segundo está provado, S. José costumava aplainar nas
horas vagas. Emquanto _á grande reliquia_, aquella que lhe quero levar
para a curar de todos os seus males e dar a salvação á sua alma e
pagar-lhe assim tudo o que lhe devo, _essa espero em breve obtel-a_. Mas
por ora não posso dizer nada... Recados aos nossos amigos em quem penso
muito e por quem tenho rezado constantemente; sobretudo ao nosso
virtuoso Casimiro. E a titi deite a sua benção ao seu sobrinho fiel e
que muito a venera e está chupadinho de saudades e deseja a sua
saude--_Theodorico_.--P.S. Ai, titi, que asco que me fez hoje a casa de
Pilatos! Até lhe escarrei! E cá disse á Santa Veronica que a titi tinha
muita devoção com ella. Pareceu-me que a senhora santa ficou muito
regalada... É o que eu digo aqui a todos estes ecclesiasticos e aos
patriarchas:--É necessario conhecer-se a titi para se saber o que é
virtude!»
Antes de me despir, fui escutar, collada a orelha ao tabique de
ramagens. A ingleza dormia serena, insensivel: eu resmunguei brandindo
para lá o punho fechado:
--Besta!
Depois abri o guarda-roupa, tirei o dilecto embrulho da camisinha da
Mary, depuz n'elle o meu beijo repenicado e grato.
Cedo, ao alvorar do outro dia, partimos para o devoto Jordão.
* * * * *
Fastidiosa, modorrenta, foi a nossa marcha entre as collinas de Judá!
Ellas succedem-se, lividas, redondas como craneos, resequidas,
escalvadas por um vento de maldição: só a espaços n'alguma encosta
rasteja um tojo escasso, que na vibração inexoravel da luz parece de
longe um bolor de velhice e de abandono. O chão faisca, côr de cal. O
silencio radiante entristece como o que cae da aboboda de um jazigo. No
fulgor duro do céo rondava em torno a nós, lento e negro, um abutre...
Ao declinar do sol erguemos as nossas tendas nas ruinas de Jericó.
Saboroso foi então descançar sobre macios tapetes, bebendo devagar
limonada, na doçura da tarde. A frescura de um riacho alegre, que
chalrava junto ao nosso acampamento por entre arbustos silvestres,
misturava-se ao aroma da flôr que elles davam, amarella como a da
giesta; adiante verdejava um prado de hervas altas, avivado pela
brancura de vaidosos, languidos lirios; junto d'agua passeavam aos pares
pensativas cegonhas. Do lado de Judá erguia-se o monte da Quarentena,
torvo, fusco na sua tristeza de eterna penitencia; e para as bandas de
Moab os meus olhos perdiam-se na velha, sagrada terra de Canaan, areal
cinzento e desolado que se estende, como a alva mortalha d'uma raça
esquecida, até ás solidões do Mar Morto.
Fomos, ao alvorecer, com os alforges fornidos, fazer essa votiva
romaria. Era então em dezembro; esse inverno da Syria ia
transparentemente dôce; e trotando pela areia fina ao meu lado, o
erudito Topsius contava-me como esta planicie de Canaan fôra outr'ora
toda coberta de rumorosas cidades, de brancos caminhos entre vinhedos, e
d'aguas de rega refrescando os muros das eiras; as mulheres, toucadas
d'anemonas, pisavam a uva cantando; o perfume dos jardins era mais grato
ao céo que o incenso: e as caravanas que entravam no valle pelo lado de
Segor achavam aqui a abundancia do rico Egypto--e diziam que era este em
verdade o vergel do Senhor.
--Depois, acrescentava Topsius sorrindo com infinito sarcasmo, um dia o
Altissimo aborreceu-se e arrazou tudo!
--Mas porquê? porquê?
--Birra; mau humor; ferocidade...
Os cavallos relincharam sentindo a visinhança das aguas malditas:--e bem
depressa ellas appareceram, estendidas até ás montanhas de Moab,
immoveis, mudas, faiscando solitarias sob o céo solitario. Oh tristeza
incomparavel! E comprehende-se que pesa ainda sobre ellas a colera do
Senhor, quando se considera que alli jazem, ha tantos seculos--sem uma
recreavel villa como Cascaes; sem claras barracas de lona alinhadas á
sua beira; sem regatas, sem pescas; sem que senhoras, meigas e de
galochas, lhe recolham poeticamente as conchinas na areia; sem que as
alegrem, á hora das estrellas, as rebecas de uma Assembléa toda festiva
e com gaz--alli mortas, enterradas entre duras serras como entre as
cantarias de um tumulo.
--Além era a cidadella de Makeros, disse gravemente o erudito Topsius,
alçado sobre os estribos, alongando o guardasol para a costa azulada do
mar. Alli viveu um dos meus Herodes, Antipas, o tetrarcha da Galilêa,
filho de Herodes o Grande: alli, D. Raposo, foi degolado o Baptista.
E seguindo a passo para o Jordão (emquanto o alegre Potte nos fazia
cigarros do bom tabaco de Aleppo) Topsius contou-me essa lamentavel
historia. Makeros, a mais altiva fortaleza da Asia, erguia-se sobre
pavorosos rochedos de basalto. As suas muralhas tinham cento e cincoenta
covados d'altura; as aguias mal podiam chegar até onde subiam as suas
torres. Por fóra era toda negra e soturna: mas dentro resplandecia de
marfins, de jaspes, d'alabastros; e nos profundos tectos de cedro os
largos broqueis d'ouro suspensos faziam como as constellações d'um céo
de verão. No centro da montanha, n'um subterraneo, viviam as duzentas
egoas de Herodes, as mais bellas da terta, brancas como o leite, com
clinas negras como o ebano, alimentadas a bolos de mel, e tão ligeiras
que podiam, correr, sem lhes macular a pureza, por sobre um prado de
acuçenas. Depois, mais fundo ainda, n'um carcere, jazia Iokanan--que a
Igreja chama o Baptista.
--Mas então, esclarecido amigo, como foi essa desgraça?
--Pois foi assim, D. Raposo... O meu Herodes conhecera em Roma
Herodiade, sua sobrinha, esposa de seu irmão Filippe, que vivia na
Italia, indolente e esquecido da Judêa, gozando o luxo latino. Era
esplendidamente, sombriamente bella. Herodiade!... Antipas Herodes
arrebata-a n'uma galera para a Syria; repudia sua mulher, uma moabita
nobre, filha do rei Aretas, que governava o deserto e as caravanas; e
fecha-se incestuosamente com Herodiade n'essa cidadella de Makeros.
Colera em toda a devota Judêa contra este ultraje á lei do Senhor! E
então Antipas Herodes, arteiro, manda buscar o Baptista que prégava no
vão do Jordão...
--Mas para quê, Topsius?
--Pois para isto, D. Raposo... A vêr se o rude propheta, acariciado,
amimado, amollecido pelo louvor e pelo bom vinho de Sichem, approvava
estes negros amores, e pela persuasão da sua voz, dominante em Judêa e
Galilêa, os tornava aos olhos dos fieis brancos como a neve do Carmello.
Mas, desgraçadamente, D. Raposo, o Baptista não tinha originalidade.
Santo respeitavel, sim; mas nenhuma originalidade... O Baptista imitava
em tudo servilmente o grande propheta Elias; vivia n'um buraco como
Elias; cobria-se de pelles de feras como Elias; nutria-se do gafanhotos
como Elias; repetia as imprecações classicas de Elias:--e como Elias
clamára contra o incesto d'Achab, logo o Baptista trovejou contra o
incesto de Herodiade. Por imitação, D. Raposo!
--E emmudeceram-no com a masmorra!
--Qual! Rugiu peor, mais terrivelmente! E Herodiade escondia a cabeça no
manto para não ouvir esse clamor de maldição, sahido do fundo da
montanha.
Eu balbuciei, com uma lagrima a amollentar-me a palpebra:
--E Herodes mandou então degolar o nosso bom S. João!
--Não! Antipas Herodes era um frouxo, um tibio... Muito lubrico, D.
Raposo, infinitamente lubrico, D. Raposo! Mas que indecisão!... Além
d'isso, como todos os galileus, tinha uma secreta fraqueza, uma
irremediavel sympathia por prophetas. E depois arreceava a vingança de
Elias, o patrono, o amigo d'Iokanan... Porque Elias não morreu, D.
Raposo. Habita o céo, vivo, em carne, ainda coberto de farrapos,
implacavel, vociferador e medonho...
--Safa! murmurei, arripiado.
--Pois ahi está... Iokanan ia vivendo, ia rugindo. Mas sinuoso e subtil
é o odio da mulher, D. Raposo. Chega, no mez de Schebat, o dia dos annos
de Herodes. Ha um vasto festim em Makeros, a que assistia Vitellius,
então viajando na Syria. D. Raposo lembra-se do crasso Vitellius que
depois foi senhor do mundo... Pois á hora em que pelo ceremonial das
Provincias Tributarias se bebia á saude de Cesar e de Roma, entra
subitamente na sala, ao som dos tamborinos e dançando á maneira de
Babylonia, uma virgem maravilhosa. Era Salomé, a filha de Herodiade e de
seu marido Filippe, que ella educára secretamente em Cesarea, n'um
bosque, junto do Templo d'Hercules. Salomé dançou, núa e deslumbrante.
Antipas Herodes, inflammado, estonteado de desejo, promette dar tudo o
que ella pedisse pelo beijo dos seus labios... Ella toma um prato
d'ouro, e tendo olhado a mãi, pede a cabeça do Baptista. Antipas,
aterrado, offerece-lhe a cidade de Tiberiade, thesouros, as cem aldeias
de Genesareth... Ella sorriu, olhou a mãi: e outra vez, incerta e
gaguejando pediu a cabeça de Iokanan... Então todos os convivas,
Saducceus, Escribas, homens ricos da Decapola, mesmo Vitellius e os
romanos, gritaram alegremente: «Tu prometteste, tetrarca, tu juraste,
tetrarca!» Momentos depois, D. Raposo, um negro da Idumea entrou,
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