A Relíquia - 13

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O sabio affirmava com desdem que ellas não tinham mais intellectualidade
que os pavões dos jardins d'Antipas; e que nenhuma decerto alli lêra
Aristoteles ou Sophocles!... Eu encolhia os hombros. Oh esplendor dos
céos! por qual d'estas mulheres que não lêra Sophocles não daria eu, se
fosse Cesar, uma cidade de Italia e toda a Iberia! Umas entonteciam-me
pela sua graça dolente e macerada de virgens de devoção, vivendo na
penumbra constante dos quartos de cedro, com o corpo saturado de
perfumes, a alma esmagada de orações. Outras deslumbravam-me pela
sumptuosidade solida e succulenta da sua belleza. Que largos, escuros
olhos d'idolos! Que claros, macios membros de marmore! Que sombria
molleza! Que nudezes magnificas, quando á beira do leito baixo se lhes
desenrolassem os cabellos pesados, e fossem dôcemente escorregando os
véos e os linhos de Galacia!...
Foi necessario que Topsius me arrastasse pelo albornoz para a escadaria
de Nicanor. E ainda estacava a cada degrau, alongando para traz os olhos
esbrazeados, resfolgando como um touro em maio nas lezirias.
--Ai, filhinhas de Sião! Que sois de vos deixar aqui os miolos!
Ao voltar-me, puxado pelo douto Historiador, bati no focinho d'um
cordeiro branco que um velho conduzia ás costas, amarrado pelas patas e
enfeitado de rosas. Em frente corria uma longa balaustrada de cédro
lavrado--onde uma cancella toda de prata, aberta e lassa nos seus
gonzos, se movia em silencio, faiscando.
--É aqui, disse o erudito Topsius, que se dão a beber as aguas amargas
ás mulheres adulteras... E agora, D. Raposo, ahi tem Israel adorando o
seu Deus.
Era emfim o Adro Sacerdotal! E eu estremeci diante d'aquelle Santuario
entre todos monstruoso e deslumbrante. Ao meio do vasto e claro terrado
erguia-se, feito de enormes pedras negras, o altar dos Holocaustos: aos
seus cantos enristavam-se quatro cornos de bronze; d'um pendiam
grinaldas de lirios; d'outros fios de coraes; o outro pingava sangue. Da
immensa grelha do altar subia uma fumaça avermelhada e lenta: e em redor
apinhavam-se os Sacrificadores, descalços, todos de branco--com
forquilhas de bronze nas mãos pallidas, espetos de prata, facas passadas
nos cintos côr de céo... No afanoso, severo rumôr do ceremonial
sacrosanto confundia-se o balar de cordeiros, o som argentino de pratos,
o crepitar das lenhas, as pancadas surdas de malho, o cantar lento da
agua em bacias de marmore, e o estridor das bozinas. Apesar dos
aromaticos que ardiam em caçoulas, das longas ventarolas de folhas de
palmeira com que os serventes agitavam o ar, eu puz o lenço na face,
enjoado com esse cheiro molle de carne crua, de sangue, de gordura frita
e de açafrão, que o Senhor reclamou a Moysés como o dom melhor a receber
da Terra...
Ao fundo, bois enfeitados de flôres, vitellas brancas com os cornos
dourados, sacudiam, mugindo e marrando, as cordas que os prendiam a
fortes argolas de bronze: mais longe, sobre mesas de marmore, entre
pedaços de gêlo, pousavam, vermelhas e sangrentas, grossas peças de
carne, sobre que os levitas balançavam leques de pennas para afugentar
os moscardos. De columnas rematadas por faiscantes globos de crystal,
pendiam cordeiros mortos, que os Netenins, resguardados por aventaes de
couro cobertos de textos sagrados, esfolavam com cutelos de prata:
emquanto os victimarios de saião azul, retesando os braços, conduziam
baldes d'onde trasbordavam e iam arrastando entranhas. Coroados por uma
mitra redonda de metal, escravos idumeos constantemente limpavam as
lages com esponjas: alguns vergavam sob mólhos de lenha; outros,
agachados, sopravam fogareiros de pedra.
A cada momento algum velho Sacrificador, descalço, marchava para o
altar, trazendo ao collo um anho tenro que não balava, contente e quente
entre os dois braços nús: um tocador de lyra precedia-o: levitas atraz
transportavam os jarros d'oleos aromaticos. Em frente á ara, rodeado de
Acolytos, o Sacrificador lançava sobre o cordeiro um punhado de sal;
depois, psalmodiando, cortava-lhe uma pouca de lã entre os cornos. As
bozinas resoavam; um grito d'animal ferido perdia-se no tumulto sacro;
por cima das tiáras brancas duas mãos vermelhas erguiam-se ao ar
sacudindo sangue; da grelha do altar resaltava, avivada pelos oleos e
pela gordura, uma chamma d'alegria e de offerta; e o fumo avermelhado e
lento ascendia serenamente ao azul, levando nos seus rolos o cheiro que
deleita o Eterno.
--É um talho! murmurei eu, aturdido. É um talho! Topsius, doutor, vamos
outra vez lá baixo ás mulherinhas...
O sabio olhou para o sol. Depois, gravemente, pousando-me no hombro a
mão amiga:
--É quasi a nona hora, D. Raposo!... E temos de ir fóra da Porta
Judiciaria, para além do Gareb, a um sitio agreste que se chama o
_Calvario_.
Empallideci. E pareceu-me que nenhuma vantagem espiritual obteria minha
alma, nenhuma inesperada acquisição enriqueceria o saber de Topsius--por
irmos contemplar no alto d'um morro, entre urzes, Jesus atado a um
madeiro e soffrendo: era apenas um tormento para a nossa sensibilidade!
Mas, submisso, segui o meu sapiente amigo pela escadaria das Aguas, que
leva ao largo lageado de basalto onde começam as primeiras casas d'Acra.
Visinhas do Santuario, habitadas por Sacerdotes, ellas ostentavam uma
profusa devoção Paschal, em palmas, lampadas, alcatifas penduradas dos
eirados: e algumas tinham os hombraes salpicados com o sangue fresco
d'um anho.
Antes de penetrar n'uma sordida, andrajosa rua que se ia torcendo sob
velhos toldes de esparto, voltei-me para o Templo: agora só via a
immensa muralha de granito, com bastiões no alto, sombria e
inderrubavel: e a arrogancia da sua força e da sua eternidade encheu de
cólera o meu coração. Emquanto sobre uma collina de morte, destinada aos
escravos, o homem de Galilêa, incomparavel amigo dos homens, arrefecia
na sua cruz, e para sempre se apagava aquella pura voz de amor e
d'espiritualidade--alli ficava o Templo que o matava, rutilante e
triumphal, com o balar dos seus gados, o estridor dos seus sophismas, a
usura sob os Porticos, o sangue sobre as Aras, a iniquidade do seu duro
orgulho, a importunidade do seu perenne incenso... Então, com os dentes
cerrados, mostrei o punho a Jehovah e á sua cidadella, e bradei:
--Arrasados sejaes!
* * * * *
Não descerrei mais os labios sêccos até chegarmos á estreita porta nas
muralhas de Ezekiah, que os Romanos denominavam a _Judiciaria_. E logo
ahi estremeci, vendo collado n'um pilar de pedra um pergaminho com três
sentenças transcriptas--«a d'um ladrão de Bettebara, a d'um assassino de
Emath, e a de Jesus de Galilêa!» O escriba do Sanhedrin, que conforme á
Lei alli vigiára para recolher, até que os condemnados passassem, algum
inesperado testemunho d'inculpabilidade, ia partir, com os seus
tabularios debaixo do braço, depois de traçar sobre cada sentença um
grosso risco vermelho. E aquelle córte final, côr de sangue, passado á
pressa por um escripturario que recolhia contente á sua morada, a comer
o seu anho, commoveu-me mais que a melancolia dos Livros Santos.
Sebes de cactos em flôr bordavam a estrada; e para além eram verdes
outeiros onde os muros baixos de pedra solta, vestidos de rosas bravas,
delimitavam os hortos. Tudo alli resplandecia, festivo e pacifico. Á
sombra das figueiras, debaixo dos pilares das parreiras, as mulheres,
encruzadas em tapetes, fiavam o linho ou atavam os ramos d'alfazema e
manjerona que se offerecem na Paschoa: e crianças em redor, com o
pescoço carregado d'amuletos de coral, balouçavam-se em cordas, atiravam
á setta... Pela estrada descia uma fila de lentos dromedarios levando
mercadorias para Joppé: dois homens robustos recolhiam da caça, com
altos coturnos vermelhos cobertos de pó, a aljava batendo-lhe a côxa,
uma rede atirada para as costas, e os braços carregados de perdizes e
d'abutres amarrados pelas patas: e diante de nós caminhava devagar,
apoiado ao hombro d'uma criança que o conduzia, um velho pobre, de
longas barbas, trazendo presa ao cinto como um bardo a lyra grega de
cinco cordas, e sobre a fronte uma corôa de louro...
Ao fundo d'um muro, coberto de ramos de amendoeiras, diante d'uma
cancella pintada de vermelho, dois servos esperavam, sentados n'um
tronco cahido, com os olhos baixos e as mãos sobre os joelhos. Topsius
parou, puxou-me o albornoz:
--É este o horto de José de Ramatha, um amigo de Jesus, membro do
Sanhedrin, homem d'espirito inquieto, que se inclina para os Essenios...
E justamente, ahi vem Gad!
Do fundo do horto, com effeito, por uma rua de murta e rosas, Gad descia
correndo com uma trouxa de linho e um cabaz de vime enfiados n'um pau.
Parámos.
--O Rabbi? gritou-lhe o alto Historiador, transpondo a cancella.
O Essenio entregou a um dos escravos a trouxa, e o cesto que estava
cheio de myrrha e d'hervas aromaticas; e ficou diante de nós um momento,
tremulo, suffocado, com a mão fortemente pousada sobre o coração para
lhe serenar a anciedade.
--Soffreu muito! murmurou, por fim. Soffreu quando lhe trespassaram as
mãos... Mais ainda ao erguer da cruz... E repelliu primeiro o vinho de
Misericordia, que lhe daria a inconsciencia... O Rabbi queria entrar com
a alma clara na morte por que chamára!... Mas José de Ramatha,
Nicodemus, estavam lá vigiando. Ambos lhe lembraram as coisas
promettidas uma noite em Bethania... O Rabbi então tomou a malga das
mãos da mulher de Rosmophin, e bebeu.
E o Essenio, pregados em Topsius os olhos reluzentes, como para cravar
bem seguramente na sua alma uma recommendação suprema, recuou um passo e
disse com uma grave lentidão:
--Á noite, depois da ceia, no eirado de Gamaliel...
E outra vez desappareceu na rua fresca do horto, entre a murta e as
roseiras. Topsius deixou logo a estrada de Joppé: e estugando o passo
por um atalho agreste, onde o meu largo albornoz se prendia aos espinhos
das piteiras, explicava-me que a bebida de Misericordia--era um vinho
forte de Tharses, com succo de papoulas e especiarias, fornecido por uma
confraria de mulheres devotas para insensibilizar os suppliciados... Mas
eu mal escutava aquelle copioso espirito. No alto d'um aspero outeiro,
todo de rocha e urze, avistára, destacando duramente no claro azul do
céo liso, um montão de gente parada: e em meio d'ella sobrelevavam-se
tres pontas grossas de madeiros e moviam-se, faiscando ao sol, elmos
polidos de Legionarios. Turbado, encostei-me á beira do caminho, n'um
penedo branco que escaldava. Mas vendo Topsius marchar, com a sabia
serenidade de quem considera a Morte uma purificadora libertação das
fórmas imperfeitas--não quiz ser menos forte, nem menos espiritual:
arranquei o albornoz que me abafava, galguei intrepidamente a collina
temerosa.
D'um lado cavava-se o Valle de Hinom, abrazado e livido, sem uma herva,
sem uma sombra, juncado d'ossos, de carcassas, de cinzas. E diante de
nós o môrro ascendia, com manchas leprosas de tojo negro, e a espaços
furado por uma ponta de rocha polida e branca como um osso. O corrego,
onde os nossos passos espantavam os lagartos, ia perder-se entre as
ruinas d'um casebre de adobe: duas amendoeiras, mais tristes que plantas
crescidas na fenda d'um sepulchro, erguiam ao lado a sua rama rala e sem
flôr, onde cantavam asperamente cigarras. E na sombra tenue, quatro
mulheres descalças, desgrenhadas, com rasgões de luto nas tunicas
pobres, choravam como n'um funeral.
Uma, sem se mover, hirta contra um tronco, gemia surdamente sob a ponta
do manto negro: outra, exhausta de lagrimas, jazia n'uma pedra, com a
cabeça cahida nos joelhos, e os esplendidos cabellos louros
desmanchados, alastrados até ao chão. Mas as outras duas deliravam,
arranhadas, ensanguentadas, batendo desesperadamente nos peitos,
cobrindo a face de terra; depois, lançando ao céo os braços nús,
abalavam o môrro com gritos--«oh meu encanto, oh meu thesouro, oh meu
sol!» E um cão, que farejava entre as ruinas, abria a guela, uivava
tambem, sinistramente.
Espavorido, puxei a capa do douto Topsius--e cortámos pelas urzes até ao
alto, onde se apinhavam, olhando e galrando, obreiros das officinas de
Gareb, serventes do Templo, vendilhões, e alguns d'esses sacerdotes
miseraveis e em farrapos, que vivem de negromancia e d'esmolas. Diante
da branca capa em que Topsius se togava, dois cambistas, com moedas
d'ouro pendentes das orelhas, arredaram-se, murmurando bençãos servis.
Uma corda d'esparto deteve-nos, presa a postes cravados no chão para
isolar o alto do môrro, e, no sitio em que ficáramos, enrolada a uma
velha oliveira que tinha pendurados dos ramos escudos de Legionarios e
um manto vermelho.
Então, ancioso, ergui os olhos... Ergui os olhos para a cruz mais alta,
cravada com cunhas n'uma fenda de rocha. O Rabbi agonisava. E aquelle
corpo que não era de marfim nem de prata, e que arquejava, vivo, quente,
atado e pregado a um madeiro, com um pano velho na cinta, um travessão
passado entre as pernas--encheu-me de terror e d'espanto... O sangue que
manchára a madeira nova, ennegrecia-lhe as mãos, coalhado em torno aos
cravos: os pés quasi tocavam o chão, amarrados n'uma grossa corda, rôxos
e torcidos de dôr. A cabeça, ora escurecida por uma onda de sangue, ora
mais livida que um marmore, rolava d'um hombro a outro dôcemente; e por
entre os cabellos emmaranhados, que o suor empastára, os olhos
esmoreciam, sumidos, apagados--parecendo levar com a sua luz para sempre
toda a luz e toda a esperança da terra...
O centurião, sem manto, com os braços cruzados sobre a couraça de
escamas, rondava gravemente junto á cruz do Rabbi, cravando por vezes os
olhos duros na gente do Templo, cheia de rumores e de risos. E Topsius
mostrou-me defronte, rente á corda, um homem cuja face amarella e triste
quasi desapparecia entre as duas longas mechas negras de cabello que lhe
desciam sobre o peito--e que abria e enrolava com impaciencia um
pergaminho, ora espiando a marcha lenta do sol, ora fallando baixo a um
escravo ao seu lado.
--É Joseph de Ramatha, segredou-me o douto Historiador. Vamos ter com
elle, ouvir as coisas que convém saber...
Mas n'esse instante, d'entre o bando sordido dos servos do Templo e dos
sacerdotes miseraveis que são nutridos pelos sobejos dos holocaustos,
rompeu um ruido mais forte como o grasnar de corvos n'um alto. E um
d'elles, colossal, esqualido, com costuras de facadas através da barba
rala, atirou os braços para a cruz do Rabbi, e gritou n'uma baforada de
vinho:
--Tu que és forte, e querias destruir o Templo e as suas muralhas,
porque não quebras ao menos o pau d'essa cruz?
Em torno estalaram risadas alvares. E outro, espalmando as mãos sobre o
peito, curvado com infinito escarneo, saudava o Rabbi:
--Herdeiro de David, oh meu principe, que te parece esse throno?
--Filho de Deus! Chama teu pai, vê se teu pai te vem salvar! rouquejava
a meu lado um magro velho, que tremia e sacudia a barba, apoiado ao seu
bordão.
Alguns vendilhões bestiaes apanhavam torrões seccos a que misturavam
cuspo, para arremessar ao Rabbi: uma pedra por fim passou, resoou
cavamente no madeiro. Então o Centurião correu, indignado; a folha da
sua larga espada lampejou no ar; e o bando recuou blasphemando--emquanto
alguns embrulhavam na ponta do saião os dedos que escorriam sangue.
Nós acercámo-nos de José de Ramatha. Mas o sombrio homem abalou
bruscamente, esquivando a importunidade do sabio Topsius. E, magoados
com a sua rudeza alli ficámos junto d'um tronco de oliveira secca,
defronte das outras cruzes.
Os dois condemnados tinham acordado do primeiro desmaio, sob a frescura
da aragem da tarde. Um, grosso, pelludo, com os olhos esbugalhados, o
peito atirado para diante e as costellas a estalar, como se n'um esforço
desesperado quizesse arrancar-se do madeiro--urrava sem descontinuar,
medonhamente: o sangue pingava-lhe em gottas lentas dos pés negros, das
mãos esgaçadas: e abandonado, sem affeição ou piedade que o assistissem,
era como um lobo ferido que uiva e morre n'um brejo. O outro, delgado e
louro, pendia sem um gemido, como uma haste de planta meio quebrada.
Defronte d'elle uma mulher macilenta e em farrapos, passando a cada
instante o joelho sobre a corda, estendia-lhe nos braços uma criancinha
núa, e gritava, já rouca: «Olha ainda, olha ainda!» As palpebras lividas
não se moviam: um negro, que entrouxava as ferramentas da crucificação,
ia empurral-a com brandura: ella emmudecia, apertava desesperadamente o
filho para que lh'o não levassem tambem, batendo os dentes, tremendo
toda: e a criancinha entre os farrapos procurava o seio magro.
Soldados, sentados no chão, desdobravam as tunicas dos suppliciados:
outros, com o elmo enfiado no braço, limpavam o suor--ou por uma malga
de ferro, a goles lentos, bebiam a _posca_. E em baixo, na poeira da
estrada, sob o sol mais dôce, passava gente recolhendo pacificamente dos
campos e dos hortos. Um velho picava as suas vaccas para o lado da porta
de Genath: mulheres, cantando, carregavam lenha: um cavalleiro trotava,
embrulhado n'um manto branco. Ás vezes os que atravessavam o caminho ou
voltavam dos pomares de Gareb avistavam as tres cruzes erguidas:
arregaçavam a tunica, subiam a collina devagar através das urzes. O
rotulo da cruz do Rabbi, escripto em grego e em latim, causava logo
assombro. «Rei dos Judeus»! Quem era esse? Dois moços, patricios e
sadduceus, com brincos de perolas nas orelhas e bordaduras d'ouro nos
borzeguins, interpellaram o Centurião, escandalisados. Porque escrevera
o Pretor--«Rei dos Judeus»? Era aquelle, alli pregado na cruz, Caio
Tiberio? Só Tiberio era rei da Judêa! O Pretor quizera offender Israel!
Mas em verdade só ultrajava Cesar!...
Impassivel, o Centurião fallava a dois Legionarios que remexiam no chão
em grossas barras de ferro. E a mulher que acompanhava os sadduceus, uma
romana miudinha e morena, com fitas de purpura nos cabellos empoados
d'azul, contemplava suavemente o Rabbi e aspirava o seu frasco de
essencias--lamentando decerto aquelle moço, rei vencido, rei barbaro,
que morria no poste dos escravos.
Cansado, fui sentar-me com Topsius n'uma pedra. Era perto da oitava hora
judaica: o sol, sereno como um heroe que envelhece, descia para o mar
por sobre as palmeiras de Bethania. Diante de nós o Gareb verdejava,
coberto de jardins. Junto ás muralhas, no bairro novo de Bezetha,
grandes panos vermelhos e azues seccavam em cordas ás portas das
tinturarias; um lume vermelhejava no fundo d'uma forja; crianças
corriam, brincando sobre a borda d'uma piscina. Adiante, no alto da
torre Hippica, que estendia já a sua sombra sobre o valle de Hinom,
soldados de pé na amurada apontavam a setta aos abutres voando no azul.
E para além, entre arvoredos, surgiam, frescos e rosados pela tarde, os
eirados do palacio de Herodes.
Triste, com o espirito disperso, eu pensava no Egypto, nas nossas
tendas, na vela que lá me esquecera ardendo, fumarenta e
vermelha--quando avistei, subindo a collina devagar, apoiado ao hombro
da criança que o conduzia, o velho que já cruzáramos na estrada de
Joppé, com uma lyra presa á cintura. Os seus passos arrastavam-se mais
incertos, na fadiga d'uma jornada penosa; uma tristeza abatia-lhe sobre
o peito a clara barba ondeante; e debaixo do manto côr de vinho, que lhe
cobria a cabeça, as folhas da corôa de louro pendiam raras e murchas.
Topsius gritou-lhe: «Eh, Rapsodo!» E quando elle, tenteando as urzes do
caminho, se acercou--o douto Historiador perguntou-lhe se das dôces
Ilhas do mar trazia algum canto novo. O velho ergueu a face
entristecida; e muito nobremente murmurou que uma mocidade imperecivel
sorri nos mais antigos cantos da Hellenia. Depois, tendo assentado a
sandalia sobre uma pedra, tomou a lyra entre as mãos vagarosas; a
criança, direita, com as pestanas baixas, pôz á bôca uma flauta de cana;
e, no resplandor da tarde que envolvia e dourava Sião, o Rapsodo soltou
um canto já tremulo, mas glorioso e repassado de adoração, como ante a
ara d'um templo, n'uma praia da Ionia... E eu percebi que elle cantava
os Deuses, a sua belleza, a sua actividade heroica. Dizia o Delphico,
imberbe e côr d'ouro, afinando os pensamentos humanos pelo rythmo da sua
cythara; Atheneia, armada e industriosa, guiando as mãos dos homens
sobre os teares; Zeus, ancestral e sereno, dando a belleza ás raças, a
ordem ás cidades; e acima de todos, sem fórma e esparso, o Fado, mais
forte que todos!
Mas subitamente um grito varou o céo no alto da collina, supremo e
arrebatado como o de uma libertação! Os dedos frouxos do velho
emmudeceram entre as cordas de metal: com a cabeça descabida, a corôa do
louro épico meio desfolhada, parecia chorar sobre a lyra hellenica,
d'ora em diante e para longas idades silenciosa e inutil. E ao lado a
criança, tirando a flauta dos labios, erguia para as cruzes negras os
olhos claros--onde subia a curiosidade e a paixão d'um mundo novo.
Topsius pediu ao velho a sua historia. Elle contou-a, com amargura.
Viera de Samnos a Cesarêa, e tocava o konnor junto ao Templo d'Hercules.
Mas a gente abandonava o puro culto dos heroes; e só havia festas e
offrendas para a Boa Deusa da Syria! Acompanhára depois uns mercadores a
Tiberiade: os homens ahi não respeitavam a velhice, e tinham corações
interesseiros como escravos. Seguira então pelas longas estradas,
parando nos postos romanos onde os soldados o escutavam; nas aldeias de
Samaria batia ás portas dos lagares; e para ganhar o pão duro tocára a
cythara grega nos funeraes dos barbaros. Agora errava alli, n'essa
cidade onde havia um grande Templo, e um Deus feroz e sem fórma que
detestava as gentes. E o seu desejo era voltar a Mileto, sua patria,
sentir o fino murmurio das aguas do Meandro, poder palpar os marmores
santos do templo de Phebo Dydimeo--onde elle em criança levára n'um
cesto e cantando os primeiros anneis dos seus cabellos...
As lagrimas rolavam pela sua face, tristes como a chuva por um muro em
ruinas. E a minha piedade foi grande por aquelle Rapsodo das ilhas da
Grecia, perdido tambem na dura cidade dos judeus, envolto pela
influencia sinistra d'um Deus alheio! Dei-lhe a minha derradeira moeda
de prata. Elle desceu a collina, apoiado ao hombro da criança, lento e
curvado, com a orla esfarrapada do manto trapejando nas pernas núas, e
muda e mal segura do cinto a lyra heroica de cinco cordas.
No emtanto, em torno ás cruzes, no alto, crescera um rumor de revolta. E
fômos encontrar a gente do Templo, com as mãos no ar, mostrando o sol
que descia como um escudo d'ouro para o lado do mar de Tyro, intimando o
Centurião a que baixasse os condemnados da cruz antes de soar a hora
santa da Paschoa! Os mais devotos reclamavam que se applicasse aos
crucificados, se ainda viviam, o _crurifragio_ romano, quebrando-lhes os
ossos com barras de ferro, arrojando-os ao despenhadeiro de Hinom. E a
indifferença do Centurião exasperava o zelo piedoso. Ousaria elle
macular o Sabbath, deixando um corpo morto no ar? Alguns enrolavam a
ponta do manto para correr, e ir a Acra avisar o Pretor.
--O sol declina! O sol vai deixar o Hebron! gritou de cima d'uma pedra
um levita, aterrado.
--Acabai-os, acabai-os!
E ao nosso lado, um formoso moço exclamava, requebrando os olhos
languidos, movendo os braços cheios de manilhas d'ouro:
--Atirai o Rabbi aos corvos! Dai ás aves de rapina a sua Paschoa!
O Centurião, que espreitava o alto da torre Marianna onde os escudos
suspensos luziam batidos pelo sol derradeiro--acenou devagar com a
espada. Dois Legionarios, lançando pesadamente ao hombro as barras de
ferro, marcharam com elle para as cruzes. Eu, arripiado, agarrei o braço
de Topsius. Mas diante do madeiro de Jesus o Centurião parou, erguendo a
mão...
O corpo branco e forte do Rabbi tinha a serenidade d'um adormecimento:
os pés empoeirados, que ha pouco a dôr torcia dentro das cordas, pendiam
agora direitos para o chão como se o fossem em breve pisar: e a face não
se via, tombada para traz mollemente por sobre um dos braços da cruz,
toda voltada para o céo onde elle puzera o seu desejo e o seu reino...
Eu olhei tambem o céo: rebrilhava, sem uma sombra, sem uma nuvem, liso,
claro, mudo, muito alto, e cheio de impassibilidade...
--Quem reclamou o corpo d'este homem? gritou, procurando para os lados,
o Centurião.
--Eu, que o amei em vida! acudiu Joseph de Ramatha, estendendo por cima
da corda o seu pergaminho.
O escravo que esperava junto d'elle depoz logo no chão a trouxa de linho
e correu para as ruinas do casebre onde as mulheres choravam entre as
amendoeiras.
E por traz de nós, Phariseus e Sadduceus que se tinham juntado
estranhavam com azedume que José de Ramatha, um membro do Sanhedrin,
assim solicitasse o corpo do Rabbi para o perfumar e lhe fazer soar em
torno as flautas e os prantos d'um funeral... Um d'elles, corcovado, com
esfiadas melenas luzidias d'oleo, affirmava que sempre conhecera José de
Ramatha inclinado para todos os innovadores, todos os sediciosos... Mais
d'uma vez o vira fallar com esse Rabbi junto ao campo dos Tintureiros...
E com elles estava Nicodemus, homem rico que tem gados, que tem vinhas,
e todas as casas que estão d'ambos os lados da Synagoga de Cyrenaica...
Outro, rubicundo e molle, gemeu:
--Que será da nação, se os mais considerados se juntam aos que adulam o
pobre, e lhe ensinam que os fructos da terra devem ser igualmente para
todos!...
--Raça de Messias! bradou o mais moço com furor, atirando o bastão
contra as urzes. Raça de Messias, perdição d'Israel!
Mas o Sadduceu de melenas oleosas ergueu devagar a mão, ligada em tiras
sagradas:
--Socegai: Jehovah é grande: e tudo em verdade determina para melhor...
No Templo e no Conselho não faltarão jámais homens fortes que mantenham
a velha Ordem; e em cima dos calvarios, felizmente, hão de sempre
erguer-se as cruzes!...
E todos susurraram:
--Amen!
No emtanto o Centurião, com os soldados atraz levando ao hombro as
barras de ferro, marchava para os outros madeiros onde os condemnados,
vivos e cheios d'agonia pediam agua--um pendido e gemendo, outro
torcido, com as mãos rasgadas, rugindo terrivelmente. Topsius, que
sorria friamente, murmurou: «É tempo, vamos.»
Com os olhos alagados d'agua amarga, tropeçando nas pedras, desci ao
lado do fecundo critico a collina de Immolação. E sentia uma densa
melancolia entenebrecer a minha alma pensando n'essas cruzes vindouras,
annunciadas pelo conservador de guedelha oleosa... Assim seria, oh dura
miseria! Sim! d'ora ávante, por todos os seculos a vir, iria sempre
recomeçando em torno á lenha das fogueiras, sob a frialdade das
masmorras, junto ás escadas das forcas--este affrontoso escandalo de se
juntarem Sacerdotes, Patricios, Magistrados, Soldados, Doutores e
Mercadores para matarem ferozmente no alto d'um morro o justo que
penetrado do esplendor de Deus ensine a Adoração em Espirito, ou cheio
do amor dos homens proclame o Reino da Igualdade!
Com estes pensamentos recolhi a Jerusalem--emquanto as aves, mais
felizes que os homens, cantavam nos cedros do Gareb...
* * * * *
Escurecera e era a hora da Ceia Paschal, quando chegámos a casa de
Gamaliel: no pateo, preso a uma argola, estava o burro, albardado de
panos pretos, que trouxera o amavel physico Eliezer de Silo.
Na sala azul, de tecto de cedro, perfumada de malobrathro, o austero
Doutor já nos aguardava estendido no divan de correias brancas, com os
pés nús, as largas mangas arregaçadas e pregadas no hombro--e ao lado um
bordão de viagem, uma cabaça d'agua e uma trouxa, emblemas rituaes da
sahida do Egypto. Defronte d'elle, n'uma mesa incrustada de madreperola,
entre vasos de barro com flôres pintadas, açafates de filigrana de prata
transbordando de fruta e pedaços scintillantes de gelo, erguia-se um
candelabro em fórma de arbusto, tendo na ponta de cada galho uma pallida
chamma azul: e, com os olhos perdidos no seu brilho tremulo, as mãos
cruzadas no ventre, Eliezer, o benigno «Doutor da Tripa», sorria
beatificamente encostado a almofadas de couro vermelho. Junto d'elle
dois escabellos, recobertos com tapetes da Assyria, esperavam por mim e
pelo sagaz Historiador.
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