A Relíquia - 11

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se o seu peito, acostumado aos livres e claros ares dos montes e dos
lagos de Galilêa, suffocasse entre aquelles marmores, sob o pesado
velario romano, na estreiteza formalista da Lei.
A um lado, Sarêas, o vogal do Sanhedrin, tendo deposto no chão o seu
manto e o seu baculo dourado, ia desenrolando e lendo uma tira escura de
pergaminho, n'um murmurio cantado e dormente. Sentado n'um escabello, o
Assessor romano, suffocado pelo calor já aspero do mez de Nizam,
refrescava com um leque de folhas d'heras sêccas a face rapada e branca
como um gesso: um escriba, velho e nedio, n'uma mesa de pedra cheia de
tabularios e de regras de chumbo, aguçava miudamente os seus calamos: e
entre ambos o interprete, um phenicio imberbe, sorria com a face no ar,
com as mãos na cinta, arqueando o peito onde trazia pintado sobre a
jaqueta de linho um papagaio vermelho. Em torno ao velario,
constantemente voavam pombas. E foi assim que eu vi Jesus de Galilêa
preso, diante do Pretor de Roma...
No emtanto Sarêas, tendo enrolado em torno á haste de ferro o pergaminho
escuro, saudou Pilatos, beijou um sinete sobre o dedo para marcar nos
seus labios o sêllo da verdade,--e immediatamente encetou uma arenga em
grego, com textos, verbosa e aduladora. Fallava do Tetrarca de Galilêa,
o nobre Antipas; louvava a sua prudencia; celebrava seu pai Herodes o
Grande, restaurador do Templo... A gloria d'Herodes enchia a terra; fôra
terrivel, sempre fiel aos Cesares; seu filho Antipas era engenhoso e
forte!... Mas reconhecendo a sua sabedoria elle estranhava que o
Tetrarca se recusasse a confirmar a sentença do Sanhedrin que condemnava
Jesus á morte... Não fôra essa sentença fundada nas Leis que dera o
Senhor? O justo Hanan interrogára o Rabbi, que emmudecera, n'um silencio
ultrajante. Era essa a maneira de responder ao sabio, ao puro, ao
piedoso Hanan? Por isso um zeloso, sem se conter, atirára a mão violenta
á face do Rabbi... Onde estava o respeito dos antigos tempos, e a
veneração do Pontificado?
A sua voz cava e larga rolava, infindavelmente. Eu, cansado, bocejava.
Por baixo de nós dois homens encruzados nas lages comiam tamaras de
Bethabara que traziam no saião, bebendo d'uma cabaça. Pilatos, com o
punho sob a barba, olhava somnolentamente os seus borzeguins escarlates
picados de estrellas d'ouro.
E Sarêas agora proclamava os direitos do Templo. Elle era o orgulho da
nação, a morada eleita do Senhor! Cesar Augusto offertára-lhe escudos e
vasos de ouro... E esse Templo, como o respeitára o Rabbi? Ameaçando
destruil-o! «Eu derrocarei o templo de Jehovah e edifical-o-hei em tres
dias!» Testemunhas puras ouvindo esta rude impiedade tinham coberto a
cabeça de cinza para afastar a cólera do Senhor... Ora a blasphemia
atirada ao santuario resaltava até ao seio de Deus!...
Sob o velario, os Phariseus, os Escribas, os Nethenins do Templo,
escravos sordidos, susurravam como arbustos agrestes que um vento começa
a agitar. E Jesus permanecia immovel, abstrahidamente indifferente, com
os olhos cerrados, como para isolar melhor o seu sonho contínuo e
formoso, longe das coisas duras e vãs que o maculavam. Então o Assessor
romano ergueu-se, depôz no escabello o seu leque de folhas, traçou com
arte o manto forense, orlado de azul, saudou tres vezes o Pretor,--e a
sua mão delicada começou a ondear no ar, fazendo scintillar uma joia.
--Que diz elle?...
--Coisas infinitamente habeis, murmurou Topsius. É um pedante, mas tem
razão. Diz que o Pretor não é um judeu; que nada sabe de Jehovah, nem
lhe importam os prophetas que se erguem contra Jehovah; e que a espada
de Cesar não vinga deuses que não protegem Cesar!... O romano é
engenhoso!
Offegando, o Assessor recahiu languidamente no escabello. E logo Sarêas
volveu a arengar, sacudindo os braços para a multidão dos Phariseus,
como a evocar os seus protestos, e refugiando-se na sua força. Agora,
mais retumbante, accusava Jesus, não da sua revolta contra Jehovah e o
Templo, mas das suas pretenções como principe da casa de David! Toda a
gente em Jerusalem o tinha visto, havia quatro dias, entrar pela Porta
d'Ouro, n'um falso triumpho, entre palmas verdes, cercado d'uma multidão
de galileus, que gritavam--«Hossana ao filho de David, Hossana ao rei
d'Israel!...»
--Elle é o filho de David, que vem para nos tornar melhores! gritou ao
longe a voz de Gad, cheia de persuasão e d'amor.
Mas de repente Sarêas collou ao corpo as mangas franjadas, mudo e mais
teso que um conto de lança: o escriba romano, de pé, com os punhos
fincados na mesa, vergava o cachaço reverente e nedio: o Assessor
sorria, attento. Era o Pretor que ia interrogar o Rabbi: e eu, tremendo,
vi um Legionario empurrar Jesus que ergueu a face...
Debruçado de leve para o Rabbi, com as mãos abertas que pareciam soltar,
deixar cahir todo o interesse por esse pleito ritual de sectarios
arguciosos, Poncius murmurou, enfastiado e incerto:
--És tu então o rei dos judeus?... Os da tua nação trazem-te aqui!...
Que fizeste tu?... Onde é o teu reino?
O interprete, enfatuado, perfilado junto ao sólio de marmore, repetiu
muito alto estas coisas na antiga lingua hebraica dos Livros Santos: e,
como o Rabbi permanecia silencioso, gritou-as na falla chaldaica que se
usa em Galilêa.
Então Jesus deu um passo. Eu ouvi a sua voz. Era clara, segura,
dominadora e serena:
--O meu reino não é d'aqui! Se por vontade de meu Pai eu fosse rei de
Israel, não estaria diante de ti com esta corda nas mãos... Mas o meu
reino não é d'este mundo!
Um grito estrugiu, desesperado:
--Tirai-o então d'este mundo!
E logo, como lenha preparada que uma faisca inflamma, o furor dos
Phariseus e dos serventes do Templo irrompeu, crepitando, em clamores
impacientes:
--Crucificai-o! crucificai-o!
Pomposamente o interprete redizia em grego ao Pretor os brados
tumultuosos, lançados na lingua syriaca que falla o povo em Judêa...
Poncius bateu o borzeguim sobre o marmore. Os dois lictores ergueram ao
ar as varas rematadas n'uma figura d'aguia: o escriba gritou o nome de
Caio Tiberio: e logo os braços frementes se abaixaram, e foi como um
terror diante da magestade do Povo Romano.
De novo Poncius fallou, lento e vago:
--Dizes então que és rei... E que vens tu fazer aqui?
Jesus deu outro passo para o Pretor. A sua sandalia pousou fortemente
sobre as lages como se tomasse posse suprema da terra. E o que sahiu dos
seus labios tremulos pareceu-me fulgurar, vivo no ar, como o resplendor
que dos seus olhos negros sahiu.
--Eu vim a este mundo testemunhar a verdade! Quem desejar a verdade,
quem quizer pertencer á verdade tem de escutar a minha voz!
Pilatos considerou-o um momento, pensativo; depois encolhendo os
hombros:
--Mas, homem, o que é a verdade?
Jesus de Nazareth emmudeceu--e no Pretorio espalhou-se um silencio como
se todos os corações tivessem parado, cheios subitamente de incerteza...
Então, apanhando devagar a sua vasta toga, Pilatos desceu os quatro
degraus de bronze;--e precedido dos lictores, seguido do Assessor,
penetrou no Palacio, por entre, o rumor d'armas dos legionarios que o
saudavam batendo o ferro das lanças sobre o bronze dos escudos.
Immediatamente elevou-se por todo o pateo um aspero e ardente susurro
como de abelhas irritadas. Sarêas perorava, brandindo o baculo, entre os
Phariseus que apertavam as mãos n'um terror. Outros, afastados,
cochichavam sombriamente. Um grande velho, com um manto negro que
esvoaçava, corria n'uma ancia o Pretorio, por entre os que dormiam, ao
sol, por entre os vendedores de pães azymos, gritando: «Israel está
perdido!» E eu vi Levitas fanaticos arrancarem as borlas das tunicas,
como n'uma calamidade publica.
Gad surgiu diante de nós, erguendo os braços triumphantes:
--O Pretor é justo e liberta o Rabbi!...
E, com a face cheia de brilho, revelava-nos a doçura da sua esperança! O
Rabbi, apenas solto, deixaria Jerusalem--onde as pedras eram menos duras
que os corações. Os seus amigos armados esperavam-no em Bethania: e
partiriam ao romper da lua para o oasis d'Engaddi! Lá estavam aquelles
que o amavam. Não era Jesus o irmão dos Essenios? Como elles o Rabbi
prégava o desprezo dos bens terrestres, a ternura pelos que são pobres,
a incomparavel belleza do reino de Deus...
Eu, credulo, regosijava-me--quando um tumulto invadiu a galeria que um
escravo viera regar. Era o bando escuro dos Phariseus, em marcha para o
banco de pedra, onde Rabbi Robam conversava com Manassés, enrolando
dôcemente nos dedos os cabellos da criança, mais louros que os minhos.
Topsius e eu corremos para a turba intolerante. Já Sarêas, no meio,
curvado, mas com a firmeza de quem intíma, dizia:
--Rabbi Robam, é necessário que vás fallar ao Pretor e salvar a nossa
lei!
E logo, de todos os lados, foi um supplicar ancioso:
--Rabbi, falla ao Pretor! Rabbi, salva Israel!
Lentamente o velho erguia-se, magestoso como um grande Moysés. E diante
d'elle um Levita, muito pallido, vergava os joelhos, murmurava a tremer:
--Rabbi, tu és justo, sabio, perfeito e forte diante do Senhor!
Rabbi Robam levantou as duas mãos abertas para o céo: e todos se
curvaram como se o espirito de Jehovah, obedecendo á muda invocação,
tivesse descido para encher aquelle coração justo. Depois, com a mão da
criança na sua, poz-se a caminhar em silencio; atraz a turba fazia um
rumor de sandalias lassas sobre as lages de marmore.
Parámos, amontoados, diante da porta de cedro--onde o pretoriano cruzára
a lança, depois de bater as argolas de prata. Os pesados gonzos
rangeram; um tribuno do Palacio acudiu tendo na mão um longo galho de
vide. Dentro era uma fria sala, mal alumiada, severa, com os muros
forrados de estuques escuros. Ao centro erguia-se pallidamente uma
estatua de Augusto, com o pedestal juncado de corôas de louro e de ramos
votivos: dois grandes tocheiros de bronze dourado reluziam aos cantos,
na sombra.
Nenhum dos judeus entrou--porque pisar em dia paschal um sólo pagão era
coisa impura diante do Senhor. Sarêas annunciou altivamente ao Tribuno
que «alguns da nação d'Israel, á porta do Palacio de seus paes, estavam
esperando o Pretor.» Depois pesou um silencio, cheio d'anciedade...
Mas dois lictores avançaram: e logo atraz, caminhando a passos largos,
com a vasta toga apanhada contra o peito, Pilatos appareceu.
Todos os turbantes se curvaram, saudando o Procurador da Judêa. Elle
parára junto á estatua de Augusto. E, como repetindo o gesto nobre da
figura de marmore, estendeu a mão que segurava um pergaminho enrolado, e
disse:
--Que a paz seja comvosco e com as vossas palavras... Fallai!
Sarêas, vogal do Sanhedrin, adiantando-se, declarou que os seus corações
vinham em verdade cheios de paz... Mas, tendo o Pretor deixado o
Pretorio sem confirmar nem annullar a sentença do Sanhedrin que
condemnava Jesus-ben-José--elles se achavam como o homem que vê a uva na
vinha, suspensa, sem seccar e sem amadurecer!
Poncius pareceu-me penetrado d'equidade e clemencia.
--Eu interroguei o vosso preso, disse elle; e não lhe achei culpa que
deva punir o Procurador da Judêa... Antipas Herodes, que é prudente e
forte, que pratíca a vossa Lei e ora no vosso Templo, interrogou-o
tambem e nenhuma culpa n'elle encontrou... Esse homem diz apenas coisas
incoherentes como os que fallam em sonhos... Mas as suas mãos estão
puras de sangue; nem ouvi que elle escalasse o muro do seu visinho...
Cesar não é um amo inexoravel... Esse homem é apenas um visionario.
Então, com um sombrio murmurio, todos recuaram, deixando Rabbi Robam só
no limiar da sala romana. Um brilho de joia tremia na ponta da sua
tiára: as suas cans cahindo sobre os vastos hombros coroavam-no de
magestade como a neve faz aos montes: as franjas azues do seu manto
solto rojavam nas lages, em redor. Devagar, sereno, como se explicasse a
Lei aos seus discipulos, ergueu a mão e disse:
--Official de Cesar, Poncius, muito justo e muito sabio! O homem que tu
chamas visionario, ha annos que offende todas as nossas leis e blasphema
o nosso Deus. Mas quando o prendemos nós, quando t'o trouxemos nós?
Sómente quando o vimos entrar em triumpho pela Porta d'Ouro, acclamado
como rei da Judêa. Porque a Judêa não tem outro rei senão Tiberio: e
apenas um sedicioso se proclama em revolta contra Cesar, apressamo-nos a
castigal-o. Assim fazemos nós, que não temos mandado de Cesar, nem
cobramos do seu erario: e tu, official de Cesar, não queres que seja
castigado o rebelde a teu amo?...
A face larga de Poncius, que uma somnolencia amollecia, relampeou,
raiada vivamente de sangue. Aquella tortuosidade de judeus que,
execrando Roma, apregoavam agora um zêlo ruidoso por Cesar para poderem,
em nome da sua auctoridade, saciar um odio sacerdotal--revoltou a
rectidão do Romano: e a audaciosa admoestação foi intoleravel ao seu
orgulho. Desabridamente exclamou, com um gesto que os sacudia:
--Cessai! Os procuradores de Cesar não vêm aprender a uma colonia
barbara da Asia os seus deveres para com Cesar!
Manassés que ao meu lado, já impaciente, puxava a barba, afastou-se com
indignação. Eu tremi. Mas o soberbo Rabbi proseguiu, mais indifferente á
ira de Poncius do que ao balar d'um anho que arrastasse ás aras:
--Que faria o procurador de Cesar em Alexandria se um visionario
descesse de Bubastes proclamando-se rei do Egypto? O que tu não queres
fazer n'esta terra barbara da Asia! Teu amo dá-te a guardar uma vinha, e
tu deixas que entrem n'ella e que a vindimem? Para que estás então na
Judêa, para que está a sexta legião na torre Antonia? Mas o nosso
espirito é claro, e a nossa voz é clara e alta bastante, Poncius, para
que Cesar a ouça!...
Poncius deu um passo lento para a porta. E com os olhos faiscantes,
cravados n'aquelles judeus que astutamente o iam enlaçando na trama
subtil dos seus rancores religiosos:
--Eu não receio as vossas intrigas! murmurou surdamente. Elius Lamma é
meu amigo!... E Cesar conhece-me bem!
--Tu vês o que não está nos nossos corações! disse Rabbi Robam, calmo
como se conversasse á sombra do seu vergel. Mas nós vemos bem o que está
no teu, Poncius! Que te importa a ti a vida ou a morte de um vagabundo
de Galilêa?... Se tu não queres, como dizes, vingar deuses cuja
divindade não respeitas, como pódes querer salvar um propheta cujas
prophecias não crês?... A tua malicia é outra, romano! Tu queres a
destruição de Judá!
Um estremecimento de cólera, de paixão devota, passou entre os
Phariseus: alguns palpavam o seio da tunica como procurando uma arma. E
Rabbi Robam continuava, denunciando o Pretor, com serenidade e lentidão:
--Tu queres deixar impune o homem que prégou a insurreição,
declarando-se rei n'uma provincia de Cesar, para tentar, pela
impunidade, outras ambições mais fortes e levar outro Judas de Gamala a
atacar as guarnições de Samaria! Assim preparas um pretexto para abater
sobre nós a espada imperial, e inteiramente apagar a vida nacional da
Judêa. Tu queres uma revolta para a afogares em sangue, e apresentar-te
depois a Cesar como soldado victorioso, administrador sabio, digno d'um
proconsulado ou d'um governo na Italia! É a isso que chamaes a fé
romana? Eu não estive em Roma, mas sei que a isso se chama lá a fé
punica... Não nos supponhas porém tão simples como um pastor d'Idumêa!
Nós estamos em paz com Cesar, e cumprimos o nosso dever condemnando o
homem que se revoltou contra Cesar... Tu não queres cumprir o teu,
confirmando essa condemnação? Bem! Mandaremos emissarios a Roma, levando
a nossa sentença e a tua recusa, e tendo salvaguardado perante Cesar a
nossa responsabilidade, mostraremos a Cesar como procede na Judêa
aquelle que representa a lei do Imperio!... E agora, Pretor, pódes
voltar ao Pretorio.
--E lembra-te dos Escudos Votivos, gritou Sarêas. Talvez novamente vejas
a quem Cesar dá razão!
Poncius baixára a face, perturbado. Decerto imaginava já vêr além, n'um
claro terraço junto ao mar de Capreia, Sejanus, Cesonius, todos os seus
inimigos, fallando ao ouvido de Tiberio e mostrando-lhe os emissarios do
Templo... Cesar, desconfiado e sempre inquieto, suspeitaria logo um
pacto d'elle com esse «rei dos Judeus» para sublevarem uma rica
provincia imperial... E assim a sua justiça e o orgulho em a manter
podiam custar-lhe o proconsulado da Judêa! Orgulho e justiça foram então
na sua alma frouxa como ondas um momento altas que uma sobre outra se
abatem, se desfazem. Veio até ao limiar da porta, devagar, abrindo os
braços, como trazido por um impulso magnanimo de conciliação--e começou
a dizer, mais branco que a sua toga:
--Ha sete annos que governo a Judêa. Encontrastes-me jámais injusto, ou
infiel ás promessas juradas?... Decerto as vossas ameaças não me
movem... Cesar conhece-me bem... Mas entre nós, para proveito de Cesar,
não deve haver desaccordo. Sempre vos fiz concessões! Mais que nenhum
outro Procurador desde Coponius tenho respeitado as vossas leis...
Quando vieram os dois homens de Samaria polluir o vosso Templo, não os
fiz eu suppliciar? Entre nós não deve haver dissenções, nem palavras
amargas...
Um momento hesitou; depois, esfregando lentamente as mãos, e
sacudindo-as, como molhadas n'uma agua impura:
--Quereis a vida d'esse visionario? Que me importa? Tomai-a... Não vos
basta a flagellação? Quereis a cruz? Crucificai-o... Mas não sou eu que
derramo esse sangue!
O levita macilento bradou com paixão:
--Somos nós, e que esse sangue cáia sobre as nossas cabeças!
E alguns estremeceram--crentes de que todas as palavras têm um poder
sobrenatural e tornam vivas as coisas pensadas.
Poncius deixára a sala: o Decurião, saudando, cerrou a porta de cedro.
Então Rabbi Robam voltou-se, sereno, resplandecente como um justo: e
adiantando-se por entre os Phariseus, que se baixavam a beijar-lhe as
franjas da tunica--murmurava com uma grave doçura:
--Antes soffra um só homem do que soffra um povo inteiro!
Limpando as bagas de suor de que a emoção me alagára a testa, cahi,
tremulo, sobre um banco. E, através da minha lassidão, confusamente
distinguia no Pretorio dois legionarios, de cinturão desapertado,
bebendo n'uma grande malga de ferro que um negro ia enchendo com o ôdre
suspenso aos hombros; adiante uma mulher bella e forte, sentada ao sol,
com os filhos pendurados dos dois peitos nús; mais longe um pegureiro
envolto em pelles, rindo e mostrando o braço manchado de sangue. Depois
cerrei os olhos; um momento pensei na vela que deixára na tenda, ardendo
junto ao meu catre, fumarenta e vermelha; por fim roçou-me um somno
ligeiro... Quando despertei a cadeira curul permanecia vazia--com a
almofada de purpura em frente, sobre o marmore, gasta, cavada pelos pés
do Pretor; e uma multidão mais densa enchia, n'um longo rumor de
arraial, o velho atrio de Herodes. Eram homens rudes, com capas curtas
d'estamenha, sujas de pó, como se tivessem servido de tapetes sobre as
lages d'uma praça. Alguns traziam balanças na mão, gaiolas de rolas; e
as mulheres que os seguiam, sordidas e macilentas, atiravam de longe com
o braço fremente maldições ao Rabbi. Outros no emtanto, caminhando na
ponta das sandalias, apregoavam baixo coisas infimas e ricas, mettidas
no seio entre as dobras dos saiões--grãos d'aveia torrada, potes de
unguentos, coraes, braceletes de filigrana de Sidon. Interroguei
Topsius: e o meu douto amigo, limpando os oculos, explicou-me que eram
decerto os mercadores contra quem Jesus, na vespera de Paschoa, erguendo
um bastão, reclamára a estreita applicação da Lei que interdiz traficos
profanos no Templo, fóra dos porticos de Salomão...
--Outra imprudencia do Rabbi, D. Raposo! murmurou com ironia o fino
historiador.
Entretanto, como cahira a sexta hora judaica e findára o trabalho,
vinham entrando obreiros das tinturarias visinhas, ennodoados de
escarlate ou azul; escribas das synagogas apertando debaixo dos braços
os seus tabularios; jardineiros com a fouce a tiracollo, o ramo de murta
no turbante; alfaiates com uma longa agulha de ferro pendendo da
orelha... Tocadores phenicios a um canto afinavam as harpas, tiravam
suspiros das flautas de barro: e diante de nós rondavam duas prostitutas
gregas de Tiberiade, com perucas amarellas, mostrando a ponta da lingua
e sacudindo a roda da tunica d'onde voava um cheiro de mangerona. Os
legionarios, com as lanças atravessadas no peito, apertavam uma
cercadura de ferro em torno de Jesus: e eu, agora, mal podia distinguir
o Rabbi através d'essa multidão susurrante, em que as consoantes asperas
de Moab e do deserto se chocavam por sobre a molleza grave da falla
chaldaica...
Por baixo da galeria veio tilintando uma sineta triste. Era um hortelão
que offerecia n'um cabaz d'esparto, acamados sobre folhas de parra,
figos rachados de Bephtagé. Debilitado pelas emoções, perguntei-lhe,
debruçado no parapeito, o preço d'aquelle mimo dos vergeis que os
Evangelhos tanto louvam. E o homem, rindo, alargou os braços como se
encontrasse o esperado do seu coração:
--Entre mim e ti, ó creatura d'abundancia que vens d'além do mar, que
são estes poucos figos? Jehovah manda que os irmãos troquem presentes e
bençãos! Estes fructos colhi-os no horto, um a um, á hora em que o dia
nasce no Hebron; são succulentos e consoladores; poderiam ser postos na
mesa de Hannan!... Mas que valem vãs palavras entre mim e ti se os
nossos peitos se entendem? Toma estes figos, os melhores da Syria, e que
o Senhor cubra de bens aquella que te creou!
Eu sabia que esta offerta era uma cortezia consagrada, em compras e
vendas, desde o tempo dos Patriarchas. Cumpri tambem o ceremonial:
declarei que Jehovah, o muito forte, me ordenava que com o dinheiro
cunhado pelos Principes eu pagasse os fructos da Terra... Então o
hortelão abaixou a cabeça, cedeu ao mandamento divino; e pousando o
cesto nas lages, tomando um figo em cada uma das mãos negras e cheias de
terra:
--Em verdade, exclamou, Jehovah é o mais forte! Se elle o manda, eu devo
pôr um preço a estes fructos da sua bondade, mais dôces que os labios da
esposa! Justo é pois, ó homem abundante, que por estes dois que me
enchem as palmas, tão perfumados e frescos, tu me dês um bom _traphik_.
Oh Deus magnifico de Judá! O facundo hebreu reclamava por cada figo um
tostão da moeda real da minha patria! Bradei-lhe:--«Irra, ladrão!»
Depois, guloso e tentado, offereci-lhe um drachma por todos os figos que
coubessem no forro largo d'um turbante. O homem levou as mãos ao seio da
tunica, para a despedaçar na immensidade da sua humilhação. E ia invocar
Jehovah, Elias, todos os Prophetas seus patronos--quando o sapiente
Topsius, enojado, interveio seccamente, mostrando-lhe uma miuda rodella
de ferro que tinha por cunho um lirio aberto:
--Na verdade Jehovah é grande! E tu és ruidoso e vazio como o ôdre cheio
de vento! Pois pelos figos do cesto inteiro te dou eu este _meah_. E se
não queres, conheço o caminho dos hortos tão bem como o do Templo, e sei
onde as aguas dôces de Enrogel banham os melhores pomares... Vai-te!
O homem logo, trepando anciosamente até ao parapeito de marmore, atulhou
de figos a ponta do albornoz que eu lhe estendera, carrancudo e digno.
Depois, descobrindo os dentes brancos, murmurou risonhamente que nós
eramos mais beneficos que o orvalho do Carmello!
Saborosa e rara me parecia aquella merenda de figos de Bephtagé, no
palacio de Herodes. Mas apenas nos accommodáramos com a fruta no regaço,
reparei em baixo n'um velhito magro, que cravava em nós humildemente uns
olhos ennevoados, queixosos, cheios de cansaço. Compadecido ia
arremessar-lhe figos e uma moeda de prata dos Ptolomeus--quando elle,
mergulhando a mão tremula nos farrapos que mal lhe velavam o peito
cabelludo, estendeu-me, com um sorriso macerado, uma pedra que reluzia.
Era uma placa oval d'alabastro tendo gravada uma imagem do Templo. E
emquanto Topsius doutamente a examinava, o velho foi tirando do seio
outras pedras de marmore, d'onyx, de jaspe, com representações do
Tabernaculo no deserto, os nomes das tribus entalhados, e figuras
confusas em relevo simulando as batalhas dos Machabeus... Depois ficou
com os braços cruzados; e no seu pobre rosto escavado pelos cuidados
luzia uma anciedade, como se de nós sómente esperasse misericordia e
descanso.
Topsius deduziu que elle era um d'esses Guebros, adoradores do fogo e
habeis nas artes, que vão descalços até ao Egypto, com fachos accesos,
salpicar sobre a Esphinge o sangue d'um gallo negro. Mas o velho negou,
horrorisado--e tristemente murmurou a sua historia. Era um pedreiro de
Naim, que trabalhára no Templo e nas construcções que Antipas Herodes
erguia em Bezetha. O açoite dos intendentes rasgára-lhe a carne; depois
a doença levára-lhe a força como a geada sécca a macieira. E agora, sem
trabalho, com os filhos de sua filha a alimentar, procurava pedras raras
nos montes--e gravava n'ellas nomes santos, sitios santos, para as
vender no Templo aos fieis. Em vespera de Paschoa, porém, viera um Rabbi
de Galilêa cheio de cólera que lhe arrancára o seu pão!...
--Aquelle! balbuciou suffocado, sacudindo a mão para o lado de Jesus.
Eu protestei. Como lhe poderia ter vindo a injustiça e a dôr d'esse
Rabbi, de coração divino, que era o melhor amigo dos pobres?
--Então vendias no Templo? perguntou o terso historiador dos Herodes.
--Sim, suspirou o velho, era lá, pelas festas, que eu ganhava o pão do
longo anno! N'esses dias subia ao Templo, offertava a minha prece ao
Senhor, e junto á porta de Suza, diante do Portico do Rei, estendia a
minha esteira e dispunha as minhas pedras que brilhavam ao sol...
Decerto, eu não tinha direito de pôr alli tenda: mas como poderia eu
pagar ao Templo o aluguer de um covado de lagedo para vender o trabalho
das minhas mãos! Todos os que apregôam á sombra, debaixo do portico,
sobre taboleiros de cedro, são mercadores ricos que podem satisfazer a
licença: alguns pagam um siclo d'ouro. Eu não podia com crianças em casa
sem pão... Por isso ficava a um canto, fóra do portico, no peor sitio.
Alli estava bem encolhido, bem calado; nem mesmo me queixava quando
homens duros me empurravam ou me davam com os bastões na cabeça. E ao pé
de mim havia outros, pobres como eu: Eboim, de Joppé, que offerecia um
oleo para fazer crescer os cabellos, e Osêas, de Ramah, que vendia
flautas de barro... Os soldados da Torre Antonia que fazem a ronda
passavam por nós e desviavam os olhos. Até Menahem, que estava quasi
sempre de guarda pela Paschoa, nos dizia:--«está bem, ficai, comtanto
que não apregoeis alto.» Porque todos sabiam que eramos pobres, não
podiamos pagar o covado de lage, e tinhamos nas nossas moradas crianças
com fome... Na Paschoa e nos Tabernaculos vêm da terra distante
peregrinos a Jerusalem; e todos me compravam uma imagem do Templo para
mostrar na sua aldeia, ou uma das pedras da lua que afugentam o
demonio... Ás vezes, ao fim do dia, tinha feito tres drachmas; enchia o
saião de lentilha e descia ao meu casebre, alegre, cantando os louvores
do Senhor!...
Eu, d'enternecido, esquecera a merenda. E o velho desafogava o seu longo
queixume:
--Mas eis que ha dias esse Rabbi de Galilêa apparece no Templo, cheio de
palavras de cólera, ergue o bastão e arremessa-se sobre nós, bradando
que aquella «era a casa de seu pai, e que nós a polluiamos!...» E
dispersou todas as minhas pedras, que nunca mais vi, que eram o meu pão!
Quebrou nas lages os vasos d'oleo d'Eboim, de Joppé, que nem gritava,
espantado. Acudiram os guardas do Templo. Menahem acudiu tambem; até,
indignado, disse ao Rabbi:--«És bem duro com os pobres. Que auctoridade
tens tu?» E o Rabbi fallou «de seu pai», e reclamou contra nós a lei
severa do Templo. Menahem baixou a cabeça... E nós tivemos de fugir,
apupados pelos mercadores ricos, que bem encruzados nos seus tapetes de
Babylonia, e com o seu lagedo bem pago, batiam palmas ao Rabbi... Ah!
contra esses o Rabbi nada podia dizer: eram ricos, tinham pago!... E
agora aqui ando! Minha filha, viuva e doente, não póde trabalhar,
embrulhada a um canto nos seus trapos: e os filhos de minha filha,
pequeninos, têm fome, olham para mim, vêem-me tão triste e nem choram. E
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