A Relíquia - 03

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amor divino--a titi entranhára-se, pouco a pouco, d'um rancor invejoso e
amargo a todas as fórmas e a todas as graças do amor humano.
E não lhe bastava reprovar o amor como coisa profana: a snr.^a D.
Patrocinio das Neves fazia uma carantonha, e varria-o como coisa suja.
Um moço grave, amando sériamente, era para ella «uma porcaria!» Quando
sabia d'uma senhora que tivera um filho, cuspia para o lado,
rosnava--«que nojo!» E quasi achava a Natureza obscena por ter creado
dois sexos.
Rica, apreciando o conforto, nunca quizera em casa um escudeiro--para
que não houvesse na cozinha, nos corredores, _saias a roçar com calças_.
E apesar de irem embranquecendo os cabellos da Vicencia, de ser
decrepita e gaga a cozinheira, de não ter dentes a outra criada chamada
Eusebia, andava-lhes sempre remexendo desesperadamente nos bahús, e até
na palha dos enxergões, a vêr se descobria photographia d'homem, carta
d'homem, rasto d'homem, cheiro d'homem.
Todas as recreações moças; um passeio gentil com senhoras, em burrinhos;
um botão de rosa orvalhado offerecido na ponta dos dedos; uma decorosa
contradança em jucundo dia de Paschoa; outras alegrias, ainda mais
candidas, pareciam á titi perversas, cheias de sujidade, e chamava-lhes
_relaxações_. Diante d'ella já os sisudos amigos da casa não ousavam
mencionar d'essas emoventes historias, lidas nas gazetas, e em que
transparecem motivos d'amor--porque isso a escandalisava como o
desbragamento de uma nudez.
--Padre Pinheiro! gritou ella um dia furiosa, com os oculos chammejantes
para o desventuroso ecclesiastico, ao ouvil-o narrar d'uma criada que em
França atirára o filho á sentina. Padre Pinheiro! Faça favor de me
respeitar... Não é lá pela latrina! É pela outra porcaria!
Mas era ella propria que sem cessar alludia a desvarios e a peccados da
Carne--para os vituperar, com odio: atirava então o novello de linha
para cima da mesa, espetando-lhe raivosamente as agulhas de meia--como
se trespassasse alli, tornando-o para sempre frio, o vasto e inquieto
coração dos homens. E quasi todos os dias, com os dentes rilhados,
repetia (referindo-se a mim) que se uma pessoa do seu sangue, e que
comesse o seu pão, andasse atraz de saias, ou se désse a relaxações,
havia d'ir para a rua, escorraçado a vassoura, como um cão.
Por isso agora as minhas precauções eram tão apuradas que, para evitar
me ficasse na roupa ou na pelle o delicioso cheiro da Adelia, eu trazia
na algibeira bocados soltos d'incenso. Antes de galgar a triste
escadaria de casa, penetrava subtilmente na cavalhariça deserta, ao
fundo do pateo; queimava no tampo d'uma barrica vazia um pedaço da
devota resina; e alli me demorava, expondo ao aroma purificador as abas
do jaquetão e as minhas barbas viris... Depois subia; e tinha a
satisfação de vêr logo a titi farejar, regalada:
--Jesus, que rico cheirinho a igreja!
Modesto, e com um suspiro, eu murmurava:
--Sou eu, titi...
Além d'isso, para melhor a persuadir «da minha indifferença por saias,»
colloquei um dia, no soalho do corredor, como perdida, uma carta com
sêllo--certo que a religiosa D. Patrocinio, minha senhora e tia, a
abriria logo, vorazmente. E abriu, e gostou. Era escripta por mim a um
condiscipulo d'Arrayollos; e dizia, em letra nobre, estas cousas
edificantes: «Saberás que fiquei de mal com o Simões, o de philosophia,
por elle me ter convidado a ir a uma casa deshonesta. Não admitto
d'estas offensas. Tu lembras-te bem como já em Coimbra eu detestava taes
relaxações. E parece-me ser uma grandissima cavalgadura aquelle que, por
causa d'uma distracção que é _fogo-viste-linguiça_, se arrisca a penar,
por todos os seculos e seculos, amen, nas fogueiras de Satanaz, salvo
seja! Ora n'uma d'essas refinadissimas asneiras não é capaz de cahir o
teu do C.--_Raposo_.»
A titi leu, a titi gostou. E agora eu vestia a minha casaca, dizia-lhe
que ia ouvir a _Norma_, beijava com unção os ossos dos seus dedos;--e
corria, ao largo dos Caldas, á alcova da Adelia, a afundar-me
perdidamente nas beatitudes do Peccado. Alli, á meia luz que dava
através da porta envidraçada o candieiro de petroline da sala, os
cortinados de cambraia e as saias dependuradas tomavam brancuras
celestes de nuvem; o cheiro dos pós d'arroz excedia em doçura o olor dos
junquilhos mysticos; eu estava no céo, eu era S. Theodorico; e sobre os
hombros nús da minha amada desenrolavam-se as madeixas do seu cabello
negro, forte e duro como a cauda d'um corcel de guerra.
N'uma d'essas noites, eu sahia d'uma confeitaria do Rocio, de comprar
trouxas d'ovos para levar á minha Adelia--quando encontrei o dr.
Margaride que me annunciou, depois do seu abraço paternal, que ia a S.
Carlos vêr o _Propheta_.
--E você, vejo-o de casaca, naturalmente tambem vem...
Fiquei varado. Com effeito vestira a casaca, dissera á titi que ia gozar
o _Propheta_, opera de tanta virtude como uma santa instrumental
d'igreja... E agora tinha de soffrer o _Propheta_, deveras, entalado
n'uma cadeira da Geral, roçando o joelho do douto magistrado--em vez de
preguiçar n'um colchão amoroso, vendo a minha deusa, em camisa, comer o
seu docinho d'ovos.
--Sim, com effeito, tambem eu ia d'aqui para o _Propheta_, murmurei
aniquilado. Diz que é uma musicasinha de muita virtude... A titi gostou
muito que eu viesse.
Com o meu inutil cartucho de trouxas d'ovos, lá fui subindo,
melancolicamente, ao lado do dr. Margaride, a rua Nova do Carmo.
Occupamos as nossas cadeiras. E na sala resplandecente, branca e com
tons d'ouro, eu pensava saudosamente na alcova sombria da Adelia, e no
desalinho das suas saias--quando reparei que d'uma friza ao lado uma
senhora loura e madura, uma Ceres outonal, vestida de sêda côr de palha,
voltava para mim, a cada dôce arcada das rebecas, os seus olhos claros e
sérios.
Perguntei logo ao dr. Margaride se conhecia aquella dama «que eu
costumava encontrar ás sextas na igreja da Graça, visitando o Senhor dos
Passos, com uma devoção, um fervor...»
--O sujeito que está por traz, a abrir a bocca, é o visconde de Souto
Santos. E ella ou é a mulher, a viscondessa de Souto Santos, ou a
cunhada, a viscondessa de Villar-o-Velho...
Á sahida, a viscondessa (de Souto Santos ou de Villar-o-Velho) ficou um
momento á porta esperando a sua carruagem, embrulhada n'uma capa branca
que uma pennugem orlava, delicadamente; a sua cabeça pareceu-me mais
altiva, incapaz de rolar, tonta e pallida, n'um travesseiro d'amor; a
cauda côr de palha alastrava-se sobre as lages; era esplendida, era
viscondessa; e outra vez me procuraram, me trespassaram os seus olhos
claros e sérios.
A noite estava estrellada. E, descendo o Chiado em silencio ao lado do
dr. Margaride, eu pensava que, quando todo o ouro da titi fosse meu e
dourasse a minha pessoa, eu poderia então conhecer uma viscondessa de
Souto Santos ou de Villar-o-Velho, não na sua friza, mas na minha
alcova, já cahida a grande capa branca, despidas já as sêdas côr de
palha, alva só do brilho da sua nudez, e fazendo-se pequenina entre os
meus braços... Ai, quando chegaria a hora, dôce entre todas, de morrer a
titi?
--Quer você vir tomar o seu chá ao Martinho? perguntou-me o dr.
Margaride ao desembocarmos no Rocio. Não sei se você conhece a torrada
do Martinho... É a melhor torrada de Lisboa.
No Martinho, já silencioso, o gaz ia adormecendo entre os espelhos
baços; e havia apenas n'uma mesa do fundo um moço triste, com a cabeça
enterrada entre os punhos diante d'um capilé.
O Margaride encommendou o chá--e vendo-me olhar com inquietação os
ponteiros do relogio, affirmou-me que eu chegaria a casa ainda a horas
de fazer a minha tocante devoção com a titi.
--A titi agora, disse eu, não se importa que eu esteja até mais tarde...
A titi agora louvado seja Deus, tem mais confiança em mim.
--E você merece-o... Faz-lhe a vontade, é sisudo... Ella pouco a pouco
tem-lhe ganho amizade, segundo me diz o Casimiro...
Então lembrei-me da velha affeição que ligava o dr. Margaride ao padre
Casimiro, procurador da tia Patrocinio e seu zeloso confessor. E,
arrebatando a opportunidade, dei um leve suspiro, abri o meu coração ao
magistrado, largamente, como a um pai.
--É verdade, a titi tem-me amizade... Mas acredite v. exc.^a, dr.
Margaride, que o meu futuro inquieta-me ás vezes... Olhe que tenho
pensado mesmo em ir a um concurso para delegado. Até já indaguei se
seria difficil entrar como despachante na alfandega. Porque emfim a titi
é rica, é muito rica; eu sou seu sobrinho, unico parente, unico
herdeiro; mas...
E olhei anciosamente para o dr. Margaride, que, pelo loquaz padre
Casimiro, conhecia talvez o testamento da titi... O silencio grave em
que elle ficou, com as mãos cruzadas sobre a mesa, pareceu-me sinistro:
e n'esse instante o criado trouxe a bandeja do chá, sorrindo, e
felicitando o magistrado por o vêr melhor do seu catarrho.
--Deliciosa torrada! murmurou o doutor.
--Excellente torrada! suspirei eu cortezmente.
De vez em quando o dr. Margaride esfuracava um queixal; depois limpava a
face, os dedos; e recomeçava a mastigar devagar, com delicadeza e com
religião.
Eu arrisquei outra palavra timida.
--A titi, é verdade, tem-me amizade...
--A titi tem-lhe amizade, atalhou com a bocca cheia o magistrado, e você
é o seu unico parente... Mas a questão é outra, Theodorico. É que você
tem um rival.
--Rebento-o! gritei eu, irresistivelmente, com os olhos em chammas,
esmurrando o marmore da mesa.
O moço triste, lá ao fundo, ergueu a face de cima do seu capilé. E o dr.
Margaride reprovou com severidade a minha violencia.
--Essa expressão é impropria d'um cavalheiro, e d'um moço comedido. Em
geral não se rebenta ninguem... E além d'isso o seu rival não é outro,
Theodorico, senão Nosso Senhor Jesus Christo!
Nosso Senhor Jesus Christo? E só comprehendi, quando o esclarecido
jurisconsulto, já mais calmo, me revelou que a titi, ainda no ultimo
anno da minha formatura, tencionava deixar a sua fortuna, terras e
predios, a Irmandades da sua sympathia e a padres da sua devoção.
--Estou perdido! murmurei.
Os meus olhos, casualmente, encontraram, lá ao fundo, o moço triste
diante do seu capilé. E pareceu-me que elle se assemelhava a mim como um
irmão, que era eu proprio, Theodorico, já desherdado, sordido, com as
botas cambadas, vindo alli ruminar as dôres da minha vida, á noite,
diante d'um capilé.
Mas o dr. Margaride acabára a torrada. E estendendo regaladamente as
pernas, consolou-me, de palito na bocca, affavel e perspicaz.
--Nem tudo está perdido, Theodorico. Não me parece que esteja tudo
perdido... É possivel que a senhora sua tia tenha mudado d'idéa... Você
é bem comportado, amima-a, lê-lhe o jornal, reza o terço com ella...
Tudo isto influe. Que é necessario dizel-o, o rival é forte!
Eu gemi:
--É d'arromba!
--É forte. E devo acrescentar, digno de todo o respeito... Jesus Christo
padeceu por nós, é religião do Estado, não ha senão curvar a cabeça...
Olhe, quer você a minha opinião? Pois ahi a tem, franca e sem rebuço,
para lhe servir de guia... Você vem a herdar tudo, se D. Patrocinio, sua
tia e minha senhora, se convencer que deixar-lhe a fortuna a você é como
deixal-a á Santa Madre Igreja...
O magistrado pagou o chá, nobremente. Depois, na rua, já abafado no seu
paletot, ainda me disse baixinho:
--Com franqueza, que tal, a torrada?
--Não ha melhor torrada em Lisboa, dr. Margaride.
Elle apertou-me a mão com affecto--e separamo-nos, quando estava dando a
meia noite no velho relogio do Carmo.
Estugando o passo pela rua Nova da Palma, eu sentia agora bem
claramente, bem, amargamente, o erro da minha vida... Sim, o erro!
Porque até ahi, essa minha devoção complicada, com que eu procurára
agradar á titi e ao seu ouro, fôra sempre regular, mas nunca fôra
fervente. Que importava murmurar com correcção o terço diante de Nossa
Senhora do Rosario? Diante de Nossa Senhora em todas as suas
encarnações, e bem em evidencia para commover a titi, eu devia mostrar
habilmente uma alma ardendo em labaredas de amor beato, e um corpo
pisado, penitente, ferido pelos picos dos cilicios... Até ahi a titi
podia dizer com approvação: «É exemplar.» Era-me preciso, para herdar,
que ella exclamasse um dia, babada, de mãos postas: «É santo!»
Sim! eu devia identificar-me tanto com as coisas ecclesiasticas e
submergir me n'ellas de tal sorte, que a titi, pouco a pouco, não
podesse distinguir-me claramente d'esse conjunto rançoso de cruzes,
imagens, ripanços, opas, tochas, bentinhos, palmitos, andores, que era
para ella a Religião e o Céo; e tomasse a minha voz pelo santo ciciar
dos latins de missa; e a minha sobrecasaca preta lhe parecesse já
salpicada d'estrellas, e diaphana como a tunica de bem-aventurança.
Então, evidentemente, ella testaria em meu favor--certa que testava em
favor de Christo e da sua dôce Madre Igreja!
Porque agora, eu estava bem decidido a não deixar ir para Jesus, filho
de Maria, a aprazivel fortuna do commendador G. Godinho. Pois quê! Não
bastavam ao Senhor os seus thesouros incontaveis; as sombrias cathedraes
de marmore que atulham a terra e a entristecem; as inscripções, os
papeis de credito que a piedade humana constantemente averba em seu
nome; as pás d'ouro que os Estados, reverentes, lhe depositam aos pés
trespassados de pregos; as alfaias, os calices, e os botões de punho de
diamantes que elle usa na camisa, na sua igreja da Graça? E ainda
voltava, do alto do madeiro, os olhos vorazes para um bule de prata, e
uns insipidos predios da Baixa! Pois bem! disputaremos esses mesquinhos,
fugitivos haveres--tu, ó filho do Carpinteiro, mostrando á titi a chaga
que por ella recebeste, uma tarde, n'uma cidade barbara da Asia, e eu
adorando essa chaga, com tanto ruido e tanto fausto, que a titi não
possa saber onde está o merito, se em ti que morreste por nos amar de
mais, se em mim que quero morrer por não te saber amar bastante!...
Assim pensava, olhando de través o céo, no silencio da rua de S. Lazaro.
Quando cheguei a casa, senti que a titi estava no oratorio, sósinha, a
rezar. Enfiei para o meu quarto, surrateiramente; descalcei-me; despi a
casaca; esguedelhei o cabello; atirei-me de joelhos para o soalho--e fui
assim, de rastos, pelo corredor, gemendo, carpindo, esmurrando o peito,
clamando desoladamente por Jesus, meu Senhor...
Ao ouvir, no silencio da casa, estas lugubres lamentações de arrastada
penitencia, a titi veio á porta do oratorio, espavorida.
--Que é isso, Theodorico, filho, que tens tu?...
Abati-me sobre o soalho, aos soluços, desfallecido de paixão divina.
--Desculpe, titi... Estava no theatro com o dr. Margaride, estivemos
ambos a tomar chá, a conversar da titi... E vai de repente, ao voltar
para casa, alli na rua Nova da Palma, começo a pensar que havia de
morrer, e na salvação da minha alma, e em tudo o que Nosso Senhor
padeceu por nós, e dá-me uma vontade de chorar... Emfim, a titi faz
favor, deixa-me aqui um bocadinho só, no oratorio, para alliviar...
Muda, impressionada, ella accendeu reverentemente, uma a uma, todas as
velas do altar. Chegou mais para a borda uma imagem de S. José, favorito
da sua alma, para que fosse elle o primeiro a receber a ardente rajada
de preces que ia escapar-se, em tumulto, do meu coração cheio e ancioso.
Deixou-me entrar, de rastos. Depois, em silencio, desappareceu, cerrando
o reposteiro com recato. E eu alli fiquei, sentado na almofada da titi,
coçando os joelhos, suspirando alto--e pensando na viscondessa de Souto
Santos ou de Villar-o-Velho, e nos beijos vorazes que lhe atiraria por
aquelles hombros maduros e succulentos, se a podesse ter só um instante,
alli mesmo que fosse, no oratorio, aos pés de ouro de Jesus, meu
Salvador!
* * * * *
Corrigi então a minha devoção e tornei-a perfeita. Pensando que o
bacalhau das sextas-feiras não fosse uma sufficiente mortificação,
n'esses dias, diante da titi, bebia asceticamente um copo d'agua e
trincava uma côdea de pão: o bacalhau comia-o á noite, de cebolada, com
bifes á ingleza, em casa da minha Adelia. No meu guarda-roupa, n'esse
duro inverno, houve apenas um paletot velho, tão renunciado me quiz
mostrar aos culpados regalos da carne; mas orgulhava-me de ter lá,
purificando os cheviottes profanos, a minha opa rôxa de irmão do Senhor
dos Passos, e o devoto habito cinzento da Ordem Terceira de S.
Francisco. Sobre a commoda ardia uma lamparina perennal diante da
lithographia colorida de Nossa Senhora do Patrocinio: eu punha todos os
dias rosas dentro d'um copo, para lhe perfumar o ar em redor; e a titi,
quando vinha remexer nas minhas gavetas, ficava a olhar a sua padroeira,
desvanecida, sem saber se era á Virgem, ou se era a ella,
indirectamente, que eu dedicava aquelle preito da luz e o louvor dos
aromas. Nas paredes dependurei as imagens dos santos mais excelsos, como
galeria d'antepassados espirituaes de quem tirava o constante exemplo
das difficeis virtudes; mas não houve de resto no céo santo, por mais
obscuro, a quem eu não offertasse um cheiroso ramalhete de Padre-Nossos
em flôr. Fui eu que fiz conhecer á titi S. Telesforo, Santa Secundina, o
beato Antonio Estronconio, Santa Restituta, Santa Umbulina, irmã do grão
S. Bernardo, e a nossa dilecta e suavissima patricia Santa Basilissa,
que é solemnisada juntamente com S. Hypacio, n'esse festivo dia d'agosto
em que embarcam os cirios para a Atalaya.
Prodigiosa foi então a minha actividade devota! Ia a matinas, ia a
vesperas. Jámais falhei igreja ou ermida onde se fizesse a adoração ao
Sagrado Coração de Jesus. Em todas as exposições do Santissimo eu lá
estava, de rojos. Partilhava sofregamente de todos os desaggravos ao
Sacramento. Novenas em que eu rezei contam-se pelos lumes do céo. E o
Septenario das Dôres era um dos meus dôces cuidados.
Havia dias em que, sem repousar, correndo pelas ruas, esbaforido, eu ia
á missa das sete a Sant'Anna, e á missa das nove da igreja de S. José, e
á missa do meio dia na ermida da Oliveirinha. Descansava um instante a
uma esquina, de ripanço debaixo do braço, chupando á pressa o cigarro:
depois voava ao Santissirno exposto na parochial de Santa Engracia, á
devoção do Terço no convento de Santa Joanna, á benção do Sacramento na
capella de Nossa Senhora ás Picôas, á novena das Chagas de Christo, na
sua igreja, com musica. Tomava então a tipoia do _Pingalho_, e ainda
visitava, ao acaso, de fugida, os Martyres e S. Domingos, a igreja do
convento do Desagravo e a igreja da Visitação das Selesias, a capella de
Monserrate ás Amoreiras e a Gloria ao Cardal da Graça, as Flamengas e as
Albertas, a Pena, o Rato, a Sé!
Á noite, em casa da Adelia, estava tão derreado, mono e molle ao canto
do sofá,--que ella atirava-me murros pelos hombros, e gritava, furiosa:
--Esperta, morcão!
Ai de mim! Um dia veio, porém, em que a Adelia, em vez de me chamar
_morcão_, quando, esfalfado no serviço do Senhor, eu mal podia ajudal-a
a desatacar o collete--passou, sempre que os meus labios insaciaveis se
collavam de mais ao seu collo, a empurrar-me, a chamar-me _carraça_...
Foi isto pelas alegres vesperas de Santo Antonio, ao apparecerem os
primeiros manjaricões, no quinto mez da minha devoção perfeita.
A Adelia começára a andar pensativa e distrahida. Tinha ás vezes, quando
eu lhe fallava, um modo de dizer «hein?», com o olhar incerto e
disperso, que era um tormento para o meu coração. Depois um dia deixou
de me fazer a caricia melhor, que eu mais appetecia--a penetrante e a
regaladora beijoca na orelha.
Sim, decerto permanecia terna... Ainda dobrava maternalmente o meu
paletot; ainda me chamava _riquinho_; ainda me acompanhava ao patamar em
camisa, dando, ao descollar do nosso abraço, esse lento suspiro que era
para mim a mais preciosa evidencia da sua paixão;--mas já me não
favorecia com a beijoquinha na orelha.
Quando eu entrava abrazado--encontrava-a por vestir, por pentear, molle,
estremunhada e com olheiras. Estendia-me a mãosinha desamoravel,
bocejava, colhia preguiçosamente a viola: e emquanto eu, a um canto,
chupando cigarros mudos, esperava que se abrisse a portinha envidraçada
da alcova que dava para o céo--a deshumana Adelia, estirada no sofá, de
chinelas cahidas, beliscava os bordões, murmurando, por entre longos
_ais_, cantigas de estranha saudade...
N'um arranco de ternura, eu ia ajoelhar-me á beira do seu peito. E lá
vinha logo a dura, a regelada palavra:
--Está quieto, carraça!
E recusava-me sempre o seu carinho. Dizia-me: «não posso, estou com
azia.» Dizia-me: «adeus, tenho a dôr na ilharga.»
Eu sacudia os joelhos, recolhia ao Campo de Sant'Anna--espoliado,
miserrimo, chorando na escuridão da minha alma pelos tempos ineffaveis
em que ella me chamava _morcão_!
Uma noite de julho, macia como um velludo preto e pespontada
d'estrellas, chegando mais cedo a casa d'ella, encontrei a portinha
aberta. O candieiro de petroline, pousado no soalho do patamar, enchia a
escada de luz;--e dei com a Adelia, em saia branca, fallando a um rapaz
de bigodinho louro, embrulhado pelintramente n'uma capa á hespanhola.
Ella empallideceu, elle encolheu--quando eu surgi, grande e barbudo, com
a minha bengala na mão. Depois a Adelia, sorrindo, sem perturbação, vera
e limpida, apresentou-me «seu sobrinho Adelino.» Era filho da mana
Ricardina, a que vivia em Vizeu, e irmão do Theodoriquinho... Tirando o
chapéo, apertei na palma larga e leal os dedos fugidios do snr. Adelino:
--Estimo muito conhecel-o, cavalheiro. Sua mamã, seu mano, bons?
N'essa noite a Adelia, resplandecente, tornou a chamar-me _morcão_,
restituiu-me o beijinho na orelha. E toda essa semana foi deliciosa como
a d'um noivado. O verão ardia; e começára na Conceição Velha a novena de
S. Joaquim. Eu sahia de casa á hora repousante em que se regam as ruas,
mais contente que os passaros chalrando nas arvores do campo de
Sant'Anna. Na salinha clara, com todas as cadeiras cobertas de fustão
branco, encontrava a minha Adelia de chambre, fresca de se ter lavado,
cheirando a agua de colonia, e aos lindos cravos vermelhos que a
toucavam; e depois das manhãs calorosas, nada havia mais idyllico, mais
dôce que as nossas merendas de morangos na cozinha, ao ar da janella,
contemplando bocadinhos verdes de quintaes e ceroulas humildes a seccar
em cordas... Ora uma tarde que assim nos apraziamos, ella pediu-me oito
libras.
Oito libras!... Descendo á noite a rua da Magdalena, eu ruminava quem
m'as poderia emprestar sem juro e rasgadamente. O bom Casimiro estava em
Torres, o prestante _Rinchão_ estava em Paris... E pensava já no padre
Pinheiro (cujas dôres de rins eu lamentava sempre com affecto) quando
avistei a escapar-se, todo encolhido, todo surrateiro, d'uma d'essas
viellas impuras onde Venus Mercenaria arrasta os seus chinelos--o José
Justino, o nosso José Justino, o piedoso secretario da confraria de S.
José, o virtuosissimo tabellião da titi!...
Gritei logo: «boas noites, Justininho!» E regressei ao Campo de
Sant'Anna, tranquillo, gozando já a repenicada beijoca que me daria a
Délinha, quando eu risonho lhe estendesse na mão as oito rodellas
d'ouro. Ao outro dia cedo, corri ao cartorio do Justino, a S. Paulo,
contei-lhe a pranteada historia d'um condiscipulo meu, tisico,
miseravel, arquejando sobre uma enxerga, n'uma fetida casa d'hospedes,
ao pé do largo dos Caldas.
--É uma desgraça, Justino! Nem dinheiro tem para um caldinho... Eu é que
o ajudo: mas, que diabo, estou a tinir... Faço-lhe companhia, é o que
posso; leio-lhe orações, e _Exercicios da vida christã_. Hontem á noite
vinha eu de lá... E acredite você, Justino, que nem gósto d'andar por
aquellas ruas, tão tarde... Jesus, que ruas que indecencia, que
immoralidade!... Aquelles beccos d'escadinhas, hein?... Eu hontem bem
percebi que você ia horrorisado: eu tambem... De sorte que esta manhã
estava no oratorio da titi, a rezar pelo meu condiscipulo, a pedir a
Nosso Senhor que o ajudasse e que lhe désse algum dinheiro, e vai
pareceu-me ouvir uma voz lá de cima da cruz a dizer: «entende-te com o
Justino, falla ao nosso Justininho, elle que te dê oito libras para o
rapaz...» Fiquei tão agradecido a Nosso Senhor! De modo que aqui venho,
Justino, por ordem d'Elle.
O Justino escutava-me, branco como os seus collarinhos, dando estalinhos
tristes nos dedos;--depois, em silencio, estendeu-me uma a uma sobre a
carteira as oito moedas d'ouro. Assim eu servi a minha Adelia.
Fugaz foi porém a minha gloria!
D'ahi a dias estando no Montanha, regalado, a gozar uma carapinhada--o
criado veio avisar-me que uma mocinha trigueira e de chale, a snr.^a
Marianna, esperava por mim á esquina... Santo Deus! A Marianna era a
criada da Adelia. E corri, a tremer, certo de que a minha bem-amada
ficára soffrendo da sua abominavel dôr na sua branca ilharga. Pensei
mesmo em começar o Rosario das dezoito apparições de Nossa Senhora de
Lourdes, que a titi considera efficacissimo em casos de pontada ou de
touros tresmalhados...
--Ha novidade, Marianna?
Ella levou-me para dentro d'um pateo onde cheirava mal; e ahi, com os
olhos vermelhos, destraçando furiosamente o chale, rouca ainda da bulha
que tivera com a Adelia, rompeu a contar-me coisas torpes, execrandas,
sordidas. A Adelia enganava-me! O snr. Adelino não era sobrinho: era o
querido, o _chulo_. Apenas eu sahia, elle entrava: a Adelia
dependurava-se-lhe do pescoço, n'um delirio; e chamavam-me então o
_carraça_, o _carola_, o _bode_, vituperios mais negros, cuspindo sobre
o meu retrato. As oito libras tinham sido para o Adelino comprar fato de
verão; e ainda sobrára para irem á feira de Belem, em tipoia descoberta,
e de guitarra... A Adelia adorava-o com pieguice e com furor:
cortava-lhe os callos; e os suspiros da sua impaciencia, quando elle
tardava, lembravam o bramar das cervas, nos mattos quentes, em maio!...
Duvidava eu? Queria uma evidencia? Que fosse n'essa noite, tarde, depois
da uma hora, bater á portinha da Adelia!
Livido, apoiado ao muro, eu mal sabia se o cheiro que me suffocava vinha
do canto escuro do pateo--se das immundicies que borbulhavam da bocca da
Marianna, como d'um cano d'esgoto rebentado. Limpei o suor, murmurei, a
desfallecer:
--Está bom Marianna, obrigadinho, eu verei, vá com Deus...
Cheguei a casa tão sombrio, tão murcho, que a titi perguntou-me, com um
risinho, se eu «malhára abaixo da egoa.»
--Da egoa?... Não, titi, credo! Estive na igreja da Graça...
--É que vens tão enfiado, assim com as pernas molles... E então o Senhor
hoje estava bonito?
--Ai, titi, estava rico!... Mas não sei porquê, pareceu-me tão
tristinho, tão tristinho... Até eu disse ao padre Eugenio: «Ó Eugeninho,
o Senhor hoje tem desgosto!» E disse-me elle: «Que quer você, amigo? É
que vê por esse mundo tanta patifaria!» E olhe que vê, titi! Vê muita
ingratidão, muita falsidade, muita traição!
Rugia, enfurecido: e cerrára o punho como para o deixar cahir, punidor e
terrivel, sobre a vasta perfidia humana. Mas contive-me, abotoei devagar
a quinzena, recalquei um soluço.
--Pois é verdade, titi... Fez-me tanta impressão aquella tristeza do
Senhor que fiquei assim um bocado amarfanhado... E de mais a mais tenho
tido um desgosto: está um condiscipulo meu muito mal, coitadinho, a
espichar...
E outra vez, como diante do Justino (aproveitando reminiscencias do
Xavier e da rua da Fé), estirei a carcassa d'um condiscipulo sobre a
podridão d'uma enxerga. Disse as bacias de sangue, disse a falta de
caldos... Que miseria, titi, que miseria! E então um moço tão
respeitador das coisas santas, que escrevia tão bem na _Nação_!...
--Desgraças, murmurou a tia Patrocinio, meneando as agulhas da meia.
--É verdade, desgraças, titi. Ora como elle não tem familia e a gente da
casa é desleixada, nós os condiscipulos é que vamos por turnos
servir-lhe d'enfermeiros. Hoje toca-me a mim. E queria então que a titi
me désse licença para eu ficar fóra, até cerca das duas horas... Depois
vem outro rapaz, muito instruido, que é deputado.
A tia Patrocinio permittiu:--e até se offereceu para pedir ao patriarcha
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