A Relíquia - 10

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montanhas de Moab ondulavam depois, suaves, d'um azul apenas mais denso
que o do céo: e uma fórma branca, que parecia tremer na vibração da luz,
devia ser a cidadella de Makeros sobre o seu rochedo, nos confins da
Idumêa. No terraço relvoso d'uma casa, ao pé das muralhas, uma figura
immovel, abrigada sob um alto guarda-sol franjado de guisos, olhava como
eu para esses longes da Arabia: e ao lado uma rapariga, ligeira e
delgada, com os braços nús erguidos, chamava um bando de pombas que
esvoaçavam em redor. A tunica aberta descobria-lhe o seiosinho cheio de
seiva: e era tão linda, morena e dourada pelo sol, que eu ia, no
silencio do ar, atirar-lhe um beijo... Mas recolhi, ouvindo Gamaliel que
dizia, como o homem do manto côr d'açafrão no Monte das Oliveiras: «Sim,
esta noite, em Bethania, Rabbi Jeschoua foi preso...»
Depois ajuntou, lento, com os olhos semi-cerrados, erguendo por entre os
dedos os longos fios da barba:
--Mas Poncius teve um escrupulo... Não quiz julgar um homem de Galilêa
que é subdito de Antipas Herodes... E como o Tetrarcha veio á Paschoa a
Jerusalem, Poncius mandou o Rabbi á sua morada, a Bezetha...
Os doutos oculos de Topsius rebrilharam d'espanto.
--Coisa estranha! exclamou, abrindo os braços magros. Poncius
escrupuloso, Poncius formalista! E desde quando respeita Poncius a
judicatura do Tetrarcha? Quantos pobres galileus não fez elle matar sem
licença do Tetrarcha, quando foi da revolta do aqueducto, quando espadas
romanas, por ordem de Poncius, misturaram nos pateos do Templo o sangue
dos homens de Nephtali ao sangue dos bois do Sacrificio!
Gamaliel murmurou sombriamente:
--O Romano é cruel, mas escravo da legalidade.
Então Osanias, filho de Beothos, disse com um sorriso molle e sem
dentes, agitando de leve, sobre a purpura das almofadas, as mãos
resplandecentes de anneis:
--Ou talvez seja que a mulher de Poncius proteja o Rabbi.
Gamaliel, surdamente, amaldiçoou o impudor da Romana. E como os oculos
de Topsius interrogavam o venerando Osanias elle admirou-se que o Doutor
ignorasse coisas tão conversadas no Templo, até pelos pastores que vem
da Idumêa vender os cordeiros da Offrenda. Sempre que o Rabbi prégava no
Portico de Salomão, do lado da porta de Suza, Claudia vinha vêl-o do
alto do terraço da Torre Antonia, só, envolta n'um véo negro... Menahem,
que guardava no mez de Tebeth a escadaria dos Gentis, vira a mulher de
Poncius acenar com o véo ao Rabbi. E talvez Claudia, saciada de Capreia,
de todos os cocheiros do Circo, de todos os histriões de Suburra, e dos
brinquedos d'Atalanta que fizeram perder a voz ao cantor Accius,
quizesse provar, vindo á Syria, a que sabiam os beijos d'um propheta de
Galilêa...
O homem vestido de linho alvo ergueu bruscamente a face, sacudindo o
capuz de sobre os cabellos revoltos: o seu largo olhar azul fulgurou por
toda a sala, n'um relampago, e apagou-se logo, sob a humildade grave das
pestanas que se baixaram... Depois murmurou, lento e severo:
--Osanias, o Rabbi é casto!
O velho riu, pesadamente. Casto, o Rabbi! E então essa galilêa de
Magdala, que vivera no bairro de Bezetha, e nas festas do Prurim se
misturava com as prostitutas gregas ás portas do theatro d'Herodes?... E
Joanna, a mulher de Khosna, um dos cozinheiros d'Antipas? E outra
d'Ephrain, Suzanna, que uma noite, a um gesto do Rabbi, a um aceno do
seu desejo, deixára o tear, deixára os filhos, e com o peculio
domestico, escondido na ponta do manto, o seguira até Cesarêa...?
--Oh Osanias! gritou, batendo palmas folgazãs, o homem formoso que tinha
uma espada com pedrarias. Oh filho de Beothos, como tu conheces, uma a
uma, as incontinencias d'um Rabbi galileu, filho das hervas do chão e
mais miseravel que ellas! Nem que se tratasse d'Elius Lamma, nosso
Legado Imperial, que o Senhor cubra de males!
Os olhos d'Osanias, miudinhos como duas contas de vidro negro, reluziram
d'agudeza e malicia.
--Oh Manassés! É para que vós outros, os patriotas, os puros herdeiros
de Judas de Galaunitida, não nos accuseis sempre, a nós sadduceus, de
saber só o que se passa no Atrio dos Sacerdotes e nos eirados da casa
d'Hannan...
Uma tosse rouca reteve-o um espaço, suffocando, sob a ponta do manto em
que vivamente se embuçára. Depois, mais quebrado, com laivos rôxos na
face farinhenta:
--Que em verdade foi justamente na casa d'Hannan que ouvimos isto a
Menahem, passeando todos debaixo da vinha... E mesmo nos contou elle que
esse Rabbi de Galilêa chegava, no seu impudor, a tocar fêmeas pagãs, e
outras mais impuras que o porco... Um levita viu-o, na estrada de
Sichem, erguer-se afogueado, de traz da borda d'um poço, com uma mulher
da Samaria!
O homem coberto d'alvo linho ergueu-se d'um salto, todo direito e
tremulo; e no grito que lhe escapou havia o horror de quem surprehende a
profanação d'um altar!
Mas Gamaliel, com uma sêcca authoridade, cravou n'elle os olhos duros:
--Oh Gad, aos trinta annos o Rabbi não é casado! Qual é o seu trabalho?
Onde está o campo que lavra? Alguem jámais conheceu a sua vinha?
Vagabundeia pelos caminhos, e vive do que lhe offertam essas mulheres
dissolutas! E que outra coisa fazem esses moços sem barba de Sybaris e
de Lesbos, que passeiam todo o dia na via Judiciaria, e que vós outros,
Essenios, abominaes de tal sorte, que correis a lavar as vestes n'uma
cisterna se um d'elles roça por vós?... Tu ouviste Osanias, filho de
Beothos... Só Jehovah é grande! e em verdade te digo que quando Rabbi
Jeschoua, desprezando a Lei, dá á mulher adultera um perdão que tanto
captiva os simples, cede á frouxidão da sua moral e não á abundancia da
sua misericordia!
Com a face abrazada, e atirando os braços ao ar, Gad bradou:
--Mas o Rabbi faz milagres!
E foi o formoso Manassés, com um sereno desdem, que respondeu ao
Essenio:
--Socega, Gad, outros têm feito milagres! Simão de Samaria fez milagres.
Fêl-os Apollonius, e fêl-os Gabienus... E que são os prodigios do teu
galileu comparados aos das filhas do Grão Sacerdote Anius, e aos do
sabio Rabbi Chekiná?
E Osanias escarnecia a simplez de Gad:
--Em verdade, que aprendeis vós outros, Essenios, no vosso oasis
d'Engaddi? Milagres! Milagres até os pagãos os fazem! Vai a Alexandria,
ao porto do Eunotos, para a direita, onde estão as fabricas de papyros,
e vês lá Magos fazendo milagres por um drachma, que é o preço d'um dia
de trabalho. Se o milagre prova a divindade, então é divino o peixe
Oannes, que tem barbatanas de nacar e préga nas margens do Euphrates, em
noites de lua cheia!
Gad sorria com altivez e doçura. A sua indignação expirára sob a
immensidão do seu desdem. Deu um passo vagaroso, depois outro,--e
considerando, apiedadamente, aquelles homens enfatuados, endurecidos e
cheios d'irrisão:
--Vós dizeis, vós dizeis, vãos á maneira de moscardos que zumbem! Vós
dizeis, e vós não o ouvistes! Em Galilêa, que é bem fertil, bem verde,
quando elle fallava era como se corresse uma fonte de leite em terra de
fome e seccura: até a luz parecia um bem maior! As aguas, no lago de
Tiberiade, amansavam para o escutar; e aos olhos das crianças que o
rodeavam subia a gravidade d'uma fé já madura... Elle fallava: e como
pombas que desdobram as azas e vôam da porta d'um santuario, nós viamos
desprender-se dos seus labios, irem voar por sobre as nações do mundo
toda a sorte de cousas nobres e santas, a Caridade, a Fraternidade, a
Justiça, a Misericordia, e as fórmas novas, bellas, divinamente bellas,
do Amor!
A sua face resplandecia, enlevada para os céos, como seguindo o vôo
d'essas novas divinas. Mas já do lado, Gamaliel, Doutor da Lei, o
rebatia com uma dura auctoridade:
--Que ha d'original e d'individual em todas essas idéas, homem? Pensas
que o Rabbi as tirou da abundancia do seu coração? Está cheia d'ellas a
nossa doutrina!... Queres ouvir fallar de Amor, de Caridade, de
Igualdade? Lê o livro de Jesus, filho de Sidrah... Tudo isso o prégou
Hillel, tudo isso o disse Schemaia! Cousas tão justas se encontram nos
livros pagãos, que são, ao pé dos nossos, como o lôdo ao pé da agua pura
de Siloeh!... Vós mesmos os Essenios tendes preceitos melhores!... Os
Rabbis de Babylonia, d'Alexandria, ensinaram sempre leis puras de
Justiça e de Igualdade! E ensinou-as o teu amigo Iokanan, a quem chamaes
o Baptista, que lá acabou tão miseravelmente n'um ergastulo de
Makeros...
--Iokanan! exclamou Gad, estremecendo, como rudemente acordado da
suavidade d'um sonho.
Os seus olhos brilhantes humedeceram. Tres vezes, curvado para o chão,
com os braços abertos, repetiu o nome de Iokanan, como chamando alguem
d'entre os mortos. Depois, com duas lagrimas rolando pela barba,
murmurou muito baixo, n'uma confidencia que o enchia de terror e de fé:
--Fui eu que subi a Makeros a buscar a cabeça do Baptista! E quando
descia o caminho, com ella embrulhada no meu manto, ainda a outra,
Herodiade, estirada por sobre a muralha como a femea lasciva do tigre,
rugia e me gritava injurias!... Tres dias e tres noites segui pelas
estradas de Galilêa, levando a cabeça do justo pendurada pelos
cabellos... Ás vezes, detraz d'um rochedo, um anjo surgia todo coberto
de negro, abria as azas e punha-se a caminhar ao meu lado...
De novo a cabeça lhe pendeu, os seus duros joelhos resoaram nas lages: e
ficou prostrado, orando anciosamente, com os braços estendidos em cruz.
Então Gamaliel adiantou-se para o sabio Topsius; e, mais direito que uma
columna do Templo, com os cotovêlos collados á cinta, as mãos magras
espalmadas para fóra:
--Nós temos uma Lei, a nossa Lei é clara. Ella é a palavra do Senhor; e
o Senhor disse: «Eu sou Jehovah, o eterno, o primeiro e o ultimo, o que
não transmitte a outros nem o seu nome, nem a sua gloria: antes de mim
não houve Deus algum, não existe Deus algum ao meu lado, não haverá Deus
algum depois de mim...» Esta é a voz do Senhor. E o Senhor disse ainda:
«Se pois entre vós apparecer um propheta, um visionario que faça
milagres e queira introdizir outro Deus e chame os simples ao culto
d'esse Deus,--esse propheta e visionario morrerá!» Esta é a Lei, esta é
a voz do Senhor. Ora o Rabbi de Nazareth proclamou-se Deus em Galilêa,
nas synagogas, nas ruas de Jerusalem, nos pateos santos do Templo... O
Rabbi deve morrer.
Mas o formoso Manassés, cujo languido olhar entenebrecia como um céo
onde vai trovejar, interpoz-se entre o Doutor da Lei e o historiador dos
Herodes. E nobremente repelliu a letra cruel da Doutrina:
--Não, não! Que importa que a lampada d'um sepulchro diga que é o sol?
Que importa que um homem abra os braços e grite que é um Deus? As nossas
leis são suaves: por tão pouco não se vai buscar o carrasco ao seu covil
a Gareb...
Eu, caridosso, ia louvar Manassés. Mas já elle bradava com violencia e
fervor:
--Todavia esse Rabbi de Galilêa deve decerto morrer, porque é um mau
cidadão e um mau judeu! Não o ouvimos nós aconselhar que se pague o
tributo a Cesar? O Rabbi estende a mão a Roma, o romano não é o seu
inimigo. Ha tres annos que préga, e ninguem jámais lhe ouviu proclamar a
necessidade santa de expulsar o Estrangeiro. Nós esperamos um Messias
que traga uma espada e liberte Israel, e este, nescio e verboso, declara
que traz só o _pão da verdade_! Quando ha um pretor romano em Jerusalem,
quando são lanças romanas que velam ás portas do nosso Deus, a que vem
esse visionario fallar do pão do céo e do vinho da verdade? A unica
verdade util é que não deve haver romanos em Jerusalem!...
Osanias, inquieto, olhou a janella cheia de luz, por onde as ameaças de
Manassés se evolavam, vibrantes e livres. Gamaliel sorria friamente. E o
discipulo ardente de Judas de Gamala clamava, arrebatado na sua paixão:
--Oh! Em verdade vos digo, embalar as almas na esperança do reino do céo
é fazer-lhes esquecer o dever forte para com o reino da terra, para esta
terra d'Israel que está em ferros, e chora e não quer ser consolada! O
Rabbi é traidor á patria! O Rabbi deve morrer!
Tremulo, agarrára a espada: e o seu olhar alargava-se, com uma
fulguração de revolta, como chamando avidamente os combates e a gloria
dos supplicios.
Então Osanias ergueu-se apoiado a um bastão que rematava n'uma pinha
d'ouro. Um penoso cuidado parecia agora anuvear a sua velhice leviana. E
começou a dizer, de manso e tristemente, como quem através do
Enthusiasmo e da Doutrina aponta o mandado inilludivel da Necessidade:
--Decerto, decerto, pouco importa que um visionario se diga Messias e
filho de Deus, ameace destruir a Lei e destruir o Templo. O Templo e a
Lei podem bem sorrir e perdoar, certos da sua eternidade... Mas, oh
Manassés, as nossas leis são suaves; e não creio que se deva ir acordar
o carrasco a Gareb, porque um Rabbi de Galilêa, que se lembra dos filhos
de Judas de Gamala pregados na cruz, aconselha prudencia e malicia nas
relações com o romano! Ó Manassés, robustas são as tuas mãos: mas pódes
tu com ellas desviar a corrente do Jordão da terra de Canaan para a
terra da Trakaunitida? Não. Nem pódes tambem impedir que as legiões de
Cesar, que cobriram as cidades da Grecia, venham cobrir o paiz de Judá!
Sabio e forte era Judas Macchabeo, e fez amizade com Roma... Porque Roma
é sobre a terra como um grande vento da natureza; quando elle vem, o
insensato offerece-lhe o peito e é derrubado; mas o homem prudente
recolhe á sua morada e está quieto. Indomavel era a Galacia; Filippe e
Perseu tinham exercitos na planicie; Antiochus o Grande commandava cento
e vinte elephantes e carros de guerra innumeraveis... Roma passou;
d'elles que resta? Escravos, pagando tributos...
Curvára-se, pesadamente, como um boi sob o jugo. Depois, fixando sobre
nós os olhos miudos que dardejavam um brilho inexoravel e frio,
proseguiu, sempre de manso e subtil:
--Mas em verdade vos digo, que esse Rabbi de Galilêa deve morrer! Porque
é o dever do homem que tem bens na terra e searas apagar depressa com a
sandalia, sobre as lages da eira, a fagulha que ameaça inflammar-lhe a
mêda... Com o romano em Jerusalem, todo aquelle que venha e se proclame
Messias, como o de Galilêa, é nocivo e perigoso para Israel. O romano
não comprehende o Reino do céo que elle promette: mas vê que essas
prédicas, essas exaltações divinas agitam sombriamente o povo dentro dos
porticos do Templo... E então diz: «na verdade este Templo, com o seu
ouro, as suas multidões, e tanto zelo, é um perigo para a auctoridade de
Cesar na Judêa...» E logo, lentamente, annulla a força do Templo
diminuindo a riqueza, os privilegios do seu sacerdocio. Já para nossa
humilhação, as vestes pontificaes são guardadas no erario da Torre
Antonia: ámanhã será o Candelabro d'ouro! Já o Pretor usou, para nos
empobrecer, o dinheiro do Corban! Ámanhã os dizimos da colheita, o dos
gados, o dinheiro da offrenda, o óbolo das trombetas, os tributos
rituaes, todos os haveres do sacerdocio, até as viandas dos sacrificios,
nada será nosso, tudo será do romano! E só nos ficará o bordão para
irmos mendigar nas estradas de Samaria, á espera dos mercadores ricos da
Decapola... Em verdade vos digo, se quizermos conservar as honras e os
thesouros, que são nossos pela antiga Lei, e que fazem o esplendor
d'Israel, devemos mostrar ao romano, que nos vigia, um Templo quieto,
policiado, submisso, contente, sem fervores e sem Messias!... O Rabbi
deve morrer!
Assim diante de mim fallou Osanias, filho de Beothos, e membro do
Sanhedrin.
Então o magro historiador dos Herodes, cruzando com reverencia as mãos
sobre o peito, saudou tres vezes aquelles homens facundos. Gad, immovel,
orava. No azul da janella uma abelha côr d'ouro zumbia em torno da flôr
de madresilva. E Topsius dizia com pompa:
--Homens que me haveis acolhido, a verdade abunda nos vossos espiritos
como a uva abunda nas videiras! Vós sois tres torres que guardaes Israel
entre as nações: uma defende a unidade da Religião, outra mantem o
enthusiasmo da Patria: e a terceira, que és tu, venerando filho de
Beothos, cauto e ondeante como a serpente que amava Salomão, protege uma
cousa mais preciosa que é a Ordem!... Vós sois tres torres: e contra
cada uma o Rabbi de Galilêa ergue o braço e lança a primeira pedrada!
Mas vós guardaes Israel e o seu Deus e os seus bens, e não vos deveis
deixar derrocar!... Em verdade, agora o reconheço, Jesus e o Judaismo
nunca poderiam viver juntos.
E Gamaliel, com o gesto de quem quebra uma vara fragil, disse, mostrando
os dentes brancos:
--Por isso o crucificamos!
Foi como uma faca acerada que, lampejando e silvando, se viesse cravar
no meu peito! Arrebatei, suffocado, a manga do douto historiador:
--Topsius! Thopsius! quem é esse Rabbi que prégava em Galilêa, e faz
milagres e vai ser crucificado?
O sabio doutor arregalou os olhos com tanto pasmo, como se eu lhe
perguntasse qual era o astro que d'além dos montes traz a luz da manhã.
Depois, seccamente:
--Rabbi Jeschoua bar Joseph, que veio de Nazareth em Galilêa, a quem
alguns chamam Jesus e outros tambem chamam o Christo.
--O nosso! gritei, vacillando, como um homem atordoado.
E os meus joelhos catholicos quasi bateram as lages, n'um impulso de
ficar alli cahido, enrodilhado no meu pavor, rezando desesperadamente e
para sempre. Mas logo como uma labareda chammejou por todo o meu sêr o
desejo de correr ao seu encontro e pôr os meus olhos mortaes no corpo do
meu Senhor, no seu corpo humano e real, vestido do linho de que os
homens se vestem, coberto com o pó que levantam os caminhos humanos!...
E ao mesmo tempo, mais do que treme a folha n'um aspero vento, tremia a
minha alma n'um terror sombrio:--o terror do servo negligente diante do
amo justo! Estava eu bastante purificado com jejuns e terços para
affrontar a face fulgurante do meu Deus? Não! Oh mesquinha e amarga
deficiencia da minha devoção! Eu não beijára jámais, com sufficiente
amor, o seu pé dorido e rôxo na sua igreja da Graça! Ai de mim! Quantos
domingos, n'esses tempos carnaes em que a Adelia, sol da minha vida, me
esperava na travessa dos Caldas, fumando e em camisa--não maldissera eu
a lentidão das Missas e a monotonia dos Septenarios! E sendo assim do
craneo á sola dos pés uma crosta de peccado, como poderia meu corpo não
tombar, já reprobo, já tisnado, quando os dois globos dos olhos do
Senhor, como duas metades do céo, se voltassem vagarosamente para mim?
Mas _vêr_ Jesus! Vêr como eram os seus cabellos, que pregas fazia a sua
tunica, e o que acontecia na terra quando os seus labios se abriam!...
Para além d'esses eirados onde as mulheres atiravam grão ás pombas;
n'uma d'essas ruas d'onde me chegava claro e cantado o pregão dos
vendedores de pães azymos--ia passando talvez n'esse temeroso instante,
entre barbudos, graves soldados romanos, Jesus, meu Salvador, com uma
corda amarrada nas mãos. A lenta aragem que balançava na janella o ramo
de madresilva, e lhe avivava o aroma, acabava talvez de roçar a fronte
do meu Deus, já ensanguentada d'espinhos! Era só empurrar aquella porta
de cedro, atravessar o pateo onde gemia a mó do moinho domestico,--e
logo, na rua, eu poderia _vêr_ presente e corporeo o meu Senhor Jesus
tão realmente e tão bem como o viram S. João e S. Matheus. Seguiria a
sua sacra sombra no muro branco--onde cahiria tambem a minha sombra. Na
mesma poeira que as minhas solas pisassem--beijaria a pégada ainda
quente dos seus pés! E abafando com ambas as mãos o barulho do meu
coração,--eu poderia surprehender, sahido da sua bocca ineffavel, um ai,
um soluço, um queixume, uma promessa! Eu saberia então uma palavra nova
do Christo, não escripta no Evangelho;--e só eu teria o direito
pontifical de a repetir ás multidões prostradas. A minha auctoridade
surgia, na Igreja, como a d'um Testamento novissimo. Eu era uma
testemunha inedita da Paixão. Tornava-me S. Theodorico Evangelista!
Então, com uma desesperada anciedade que espantou aquelles Orientaes de
maneiras mesuradas, eu gritei:
--Onde o posso vêr? Onde está Jesus de Nazareth, meu Senhor?
N'esse momento um escravo, correndo na ponta leve das sandalias, veio
cahir de bruços nas lages, diante de Gamaliel; beijava-lhe as franjas da
tunica, as suas costellas magras arquejavam; por fim murmurou, exhausto:
--Amo, o Rabbi está no Pretorio!
Gad emergiu da sua oração com um salto de fera, apertou em tôrno dos
rins a corda de nós, e correu arrebatadamente, com o capuz solto,
espalhando em redor o sulco louro dos seus cabellos revoltos. Topsius
traçára a sua capa branca, com essas pregas de toga latina que lhe davam
a solemnidade d'um marmore; e tendo comparado a hospitalidade de
Gamaliel á d'Abrahão, bradou-me triumphantemente:
--Ao Pretorio!
* * * * *
Muito tempo segui Topsius através da antiga Jerusalem, n'uma caminhada
offegante, todo perdido no tumulto dos meus pensamentos. Passámos junto
a um jardim de rosas, do tempo dos Prophetas, esplendido e silencioso,
que dois levitas guardavam com lanças douradas. Depois foi uma rua
fresca, toda aromatisada pelas lojas dos perfumistas, ornadas de
taboletas em fórma de flôres e d'almofarizes: um toldo de esteiras finas
assombreava as portas, o chão estava regado e juncado d'herva dôce e de
folhas d'anemonas: e pela sombra preguiçavam moços languidos, de
cabellos frisados em cachos, de olheiras pintadas, mal podendo erguer,
nas mãos pesadas d'anneis, as sêdas roçagantes das tunicas côr de cereja
e côr d'ouro. Além d'essa rua indolente abria-se uma praça, que
escaldava ao sol, com uma poeira grossa e branca, onde os pés se
enterravam: solitaria, no meio, uma vetusta palmeira arqueava o seu
penacho, immovel e como de bronze: e ao fundo, negrejavam na luz as
columnatas de granito do velho palacio de Herodes. Ahi era o Pretorio.
Defronte do arco d'entrada, onde rondavam, com plumas pretas no elmo
reluzente, dois legionarios da Syria--um bando de raparigas, tendo
detraz da orelha uma rosa e no regaço coifas d'esparto, apregoavam os
pães azymos. Sob um enorme guardasol de pennas, cravado no chão, homens
de mitra de feltro, com taboas sobre os joelhos e balanças trocavam a
moeda romana. E os vendedores d'agua, com os seus ôdres felpudos,
lançavam um grito tremulo. Entrámos: e logo um terror me envolveu.
Era um claro pateo, aberto sob o azul, ladeado de marmore, tendo de cada
lado uma arcada, elevada em terraço, com parapeito, fresca e sonora como
um claustro de mosteiro. Da arcaria ao fundo, encimada pela frontaria
austera do Palacio, estendia-se um velario, d'um estofo escarlate
franjado d'ouro, fazendo uma sombra quadrada e dura: dois mastros de pau
de sycomoro sustentavam-n'o, rematados por uma flôr de lotus.
Ahi apertava-se um magote de gente--onde se confundiam as tunicas dos
Phariseus orladas d'azul, o rude saião d'estamenha dos obreiros apertado
com um cinto de couro, os vastos albornozes listrados de cinzento e
branco dos homens de Galilêa, e a capa carmezim de grande capuz dos
mercadores de Tiberiade; algumas mulheres já fóra do abrigo do velario,
alçavam-se na ponta das chinelas amarellas, estendendo por cima do rosto
contra o sol, uma dobra do manto ligeiro: e d'aquella multidão sahia um
cheiro morno de suor e de myrrha. Para além, por cima dos turbantes
alvos apinhados, brilhavam pontas de lança. E ao fundo, sobre um sólio,
um homem, um magistrado, envolto nas pregas nobres d'uma toga pretexta,
e mais immovel que um marmore, apoiava sobre o punho forte a barba densa
e grisalha: os seus olhos encovados pareciam indolentemente adormecidos:
uma fita escarlate prendia-lhe os cabellos: e por traz, sobre um
pedestal que fazia espaldar á sua cadeira curul, a figura de bronze da
Loba Romana abria de travez a guela voraz. Perguntei a Topsius quem era
aquelle magistrado melancolico.
--Um certo Poncius, chamado Pilatus, que foi Prefeito em Batavia.
Lentamente caminhei pelo pateo, procurando, como n'um templo, fazer mais
subtil e respeitoso o ruido das minhas solas. Um grave silencio cahia do
céo rutilante: só, por vezes, rompia do lado dos jardins, aspero e
triste, o gritar dos pavões. Estendidos no chão, junto á balaustrada do
claustro, negros dormitavam com a barriga ao sol. Uma velha contava
moedas de cobre, acocorada diante do seu gigo de fruta. Em andaimes,
postos contra uma columna, havia trabalhadores compondo o telhado. E
crianças, a um canto, jogavam com discos de ferro que tiniam de leve nas
lages.
Subitamente, alguem familiar tocou no hombro do historiador dos Herodes.
Era o formoso Manassés; e com elle vinha um velho magnifico, d'uma
nobreza de Pontifice, a quem Topsius beijou filialmente a manga da
simarra branca, bordada de verdes folhas de parra. Uma barba de neve,
lustrosa d'oleo, cahia-lhe até á faxa que o cingia; e os hombros largos
desappareciam sob a esparsa abundancia dos cabellos alvos, sahindo do
turbante como uma pura romeira de arminhos reaes. Uma das mãos, cheia de
anneis, apoiava-se a um forte bastão de marfim; e a outra conduzia uma
criança pallida, que tinha os olhos mais bellos que estrellas, e
semelhava junto ao ancião um lirio á sombra d'um cedro.
--Subi á galeria, disse-nos Manassés. Tereis lá repouso e frescura...
Seguimos o Patriota; e eu perguntei cautelosamente a Topsius quem era o
outro tão velho, tão augusto.
--Rabbi Robam, murmurou com veneração o meu douto amigo. Uma luz do
Sanhedrin, facundo e subtil entre todos, e confidente de Kaipha...
Reverente, saudei tres vezes Rabbi Robam--que se sentára n'um banco de
marmore, pensativo, aconchegando sobre o seu vasto peito ancestral a
cabeça da criança mais loura que os milhos de Joppé. Depois continuámos
devagar pela galeria sonora e clara: na sua extremidade brilhava uma
porta sumptuosa de cedro com chapas de prata lavradas: um Pretoriano de
Cesarêa guardava-a, somnolento, encostado ao seu alto escudo de vime.
Ahi, commovido, caminhei para o parapeito: e logo meus olhos mortaes
encontraram lá em baixo--a fórma encarnada do meu Deus!
Mas, oh rara surpreza da alma variavel, não senti extasis nem terror!
Era como se de repente me tivessem fugido da memoria longos, laboriosos
seculos de Historia e de Religião. Nem pensei que aquelle homem sêcco e
moreno fosse o Remidor da Humanidade... Achei-me inexplicavelmente
anterior nos tempos. Eu já não era Theodorico Raposo, christão e
bacharel: a minha individualidade como que a perdera, á maneira d'um
manto que escorrega, n'essa carreira anciosa desde a casa de Gamaliel.
Toda a antiguidade das coisas ambientes me penetrára, me refizera um
_sêr_; eu era tambem um antigo. Era Theodoricus, um Lusitano, que viera
n'uma galera das praias resoantes do Promontorio Magno, e viajava, sendo
Tiberio imperador, em terras tributarias de Roma. E aquelle homem não
era Jesus, nem Christo, nem Messias,--mas apenas um moço de Galilêa que,
cheio d'um grande sonho, desce da sua verde aldeia para transfigurar
todo um mundo e renovar todo um céo, e encontra a uma esquina um
Nethenim do Templo que o amarra e o traz ao Pretor, n'uma manhã
d'audiencia, entre um ladrão que roubára na estrada de Sichem e outro
que atirára facadas n'uma rixa em Emath!
N'um espaço ladrilhado de mosaico, em face do sólio onde se erguia o
assento curul do Pretor sob a Loba Romana--Jesus estava de pé, com as
mãos cruzadas e frouxamente ligadas por uma corda que rojava no chão. Um
largo albornoz de lã grossa, em riscas pardas, orlado de franjas azues,
cobria-o até aos pés, calçados de sandalias já gastas pelos caminhos do
deserto e atadas com correias. Não lhe ensanguentava a cabeça essa corôa
inhumana de espinhos, de que eu lêra nos Evangelhos; tinha um turbante
branco, feito d'uma longa faxa de linho enrolada, cujas pontas lhe
pendiam de cada lado sobre os hombros; um cordel amarrava-lh'o por baixo
da barba encaracolada e aguda. Os cabellos sêccos, passados por traz das
orelhas, cahiam-lhe em anneis pelas costas; e no rosto magro,
requeimado, sob sobrancelhas densas, unidas n'um só traço, negrejava com
uma profundidade infinita o resplendor dos seus olhos. Não se movia,
forte e sereno diante do Pretor. Só algum estremecimento das mãos presas
trahia o tumulto do seu coração; e ás vezes respirava longamente, como
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