A Relíquia - 17

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Margaride, abespinhado, franziu as sobrancelhas temerosas e mais negras
que o ebano:
--Ninguem n'esta sala, melhor que eu, snr. padre Negrão, saboreia o
grandioso!
E a titi, insaciavel, batendo com o leque:
--Está bem, está bem... Conta, filho, não te fartes! Olha, conta assim
uma coisa que te acontecesse com Nosso Senhor, que nos faça ternura...
Todos emmudeceram, reverentes. Eu então disse a marcha para Jerusalem
com duas estrellas na frente a guiar-nos, como acontece sempre aos
peregrinos mais finos e de boa familia: as lagrimas que derramára, ao
avistar, n'uma manhã de chuva, as muralhas de Jerusalem: e na minha
visita ao Santo Sepulchro, de casaca, com padre Potte, as palavras que
balbuciára diante do Tumulo, por entre soluços e no meio d'acolytos--«Oh
meu Jesus, oh meu Senhor, aqui estou, aqui venho da parte da titi!...»
E a medonha senhora, suffocada:
--Que ternura que faz!... Diante do tumulosinho!...
Então passei o lenço pela face excitada, e disse:
--N'essa noite recolhi ao hotel para rezar... E agora, meus senhores, ha
aqui um pontosinho desagradavel...
E contritamente confessei que, forçado pela Religião, pelo nome honrado
de Raposo, e pela dignidade de Portugal--tivera um conflicto no hotel
com um grande inglez de barbas.
--Uma bulha! acudiu com perversidade o vil Negrão, ancioso por empanar o
brilho de santidade com que eu deslumbrava a titi. Uma bulha, na cidade
de Jesus Christo! Ora essa! Que desacato!
Com os dentes cerrados encarei o torpissimo padre:
--Sim senhor! um chinfrim!... Mas fique v. s.^a sabendo que o snr.
patriarcha de Jerusalem me deu toda a razão, até me bateu no hombro e me
disse: «Pois Theodorico, parabens, vossê portou-se como um pimpão!» Que
tem agora v. s.^a a piar?
Negrão curvou a cabeça, onde a corôa punha uma lividez azulada de lua em
tempo de peste:
--Se Sua Eminencia approvou...
--Sim senhor! E aqui tem a titi porque foi a bulha!... No quarto ao lado
do meu havia uma ingleza, uma hereje, que mal eu me punha a rezar, ahi
começava ella a tocar piano, e a cantar fados e tolices e coisas
immoraes do _Barba-Azul_, dos theatros... Ora imagine a titi, estar uma
pessoa a dizer com todo o fervor e de joelhos: «Oh Santa Maria do
Patrocinio, faze que a minha boa titi tenha muitos annos de vida»--e vir
lá de traz do tabique uma voz d'excommungada a ganir: «_Sou o
Barba-Azul, olê! ser viuvo é o meu filé_!...» É d'encavacar!... De modo
que uma noite, desesperado, não me tenho em mim, sáio do corredor,
atiro-lhe um murro á porta, e grito-lhe para dentro: «Faz favor d'estar
calada, que está aqui um christão que quer rezar!...»
--E com todo o direito, affirmou o dr. Margaride. Vossê tinha por si a
lei!
--Assim, me disse o Patriarcha! Pois senhores, como ia contando, grito
isto para dentro á mulher, e ia recolher muito sério ao meu quarto,
quando me sae de lá o pai, um grande barbaças, de bengalorio na mão...
Eu fui muito prudente: cruzei os braços e, com bons modos, disse-lhe que
não queria alli escandalos ao pé do tumulo de Nosso Senhor, e o que
desejava era rezar em socego... E vai que me ha de elle responder? Que
se estava a... Emfim, nem eu posso repetir! Uma coisa indecente contra o
tumulo de Nosso Senhor... E eu, titi, passa-me uma oura pela cabeça,
agarro-o pelo cachaço...
--E magoaste-o, filho?
--Escavaquei-o, titi!
Todos acclamaram a minha ferocidade. Padre Pinheiro citou leis canonicas
auctorisando a Fé a desancar a Impiedade. Justino, aos pulos, celebrou
esse John Bull desmantelado a sólida murraça lusitana. E eu, excitado
pelos louvores como por clarins d'ataque, bradava de pé, medonho:
--Lá impiedades diante de mim, não! Arrombo tudo, esborracho tudo... Em
coisas de religião sou uma fera!
E aproveitei esta santa cólera para brandir, como um aviso, diante do
queixo sumido do Negrão, o meu punho cabelludo e pavoroso. O macilento e
esgrouviado servo de Deus encolheu. Mas n'esse instante a Vicencia
entrava com o chá, nas pratas ricas de G. Godinho.
Então os dilectos amigos, com a torrada na mão, romperam em ardentes
encomios:
--Que instructiva viagem! É como ter um curso!
--E que bello bocadinho de noite aqui se tem passado!... Qual S. Carlos!
Isto é que é gozar!
--E como elle conta! Que fervor! que memoria!...
Lentamente o bom Justino, com a sua chavena fornecida de bolos,
acercára-se da janella, como a espreitar o céo estrellado: e d'entre as
franjas das cortinas os seus olhinhos luzidios e gulosos chamavam-me
confidencialmente. Fui, trauteando o _Bem-dito_; ambos mergulhámos na
sombra dos damascos; e o virtuoso tabellião, roçando o labio pelas
minhas barbas:
--Oh amiguinho, e de mulheres?
Eu confiava no Justino. Segredei para dentro do seu collarinho:
--De se deixarem lá os miolos, Justininho!
As suas pupillas faiscaram como as de um gato em janeiro; a chicara
ficou-lhe tremelicando na mão.
E eu, pensativo, repenetrando na luz:
--Sim, bonita noite... Mas não são aquellas estrellinhas santinhas que
nós viamos lá no Jordão!...
Então padre Pinheiro, tomando aos goles cautelosos a sua chalada, veio
timidamente bater-me no hombro... Lembrára-me eu, n'essas Santas Terras,
com tantas distracções, do seu frasquinho d'agua do Jordão?...
--Oh padre Pinheiro, pois está claro!... Trago tudo! E o raminho do
Monte Olivete para o nosso Justino... E a photographia para o nosso
Margaride... Tudo!
Corri ao quarto, a buscar essas dôces «lembrancinhas» da Palestina. E ao
regressar sustentando pelas pontas um lenço repleto de devotas
preciosidades, estaquei por traz do reposteiro ao sentir dentro o meu
nome... Suave gozo! Era o inestimavel dr. Margaride que afiançava á
titi, com a sua tremenda auctoridade:
--D. Patrocinio, eu não lh'o quiz dizer diante d'elle... Mas isto agora
é mais do que ter um sobrinho e um cavalheiro! Isto é ter, de casa e
pucarinho, um amigo intimo de Nosso Senhor Jesus Christo!...
Tossi, entrei. Mas a snr.^a D. Patrocinio ruminava um escrupulo
ciumento. Não lhe parecia delicado para Nosso Senhor (nem para ella) que
se repartissem estas Reliquias minimas antes de lhe ser entregue a ella,
como senhora e como tia, na capella, a Grande Reliquia...
--Porque saibam os meus amigos, annunciou ella com o seu chatissimo
peito impando de satisfação, que o meu Theodorico trouxe-me uma Santa
Reliquia, com que eu me vou apegar nas minhas afflicções, e que me vai
curar dos meus males!
--Bravissimo! gritou o impetuoso dr. Margaride. Com quê, Theodorico,
seguiu-se o meu conselho? Esgaravataram-se esses sepulchros?...
Bravissimo! É de generoso romeiro!
--É de sobrinho, como já o não ha no nosso Portugal! acudiu padre
Pinheiro junto ao espelho, onde estudava a lingua saburrenta...
--É de filho, é de filho! proclamava o Justino, alçado na ponta dos
botins.
Então o Negrão, mostrando os dentes famintos, babujou esta coisa
vilissima:
--Resta saber, cavalheiros, de que Reliquia se trata.
Tive sêde, ardente sêde do sangue d'aquelle padre! Trespassei-o com dois
olhares mais agudos e faiscantes do que espetos em braza:
--Talvez v. s.^a, se é um verdadeiro sacerdote, se atire de focinho para
baixo a rezar, quando apparecer aquella maravilha!...
E voltei-me para a snr.^a D. Patrocinio, com a impaciencia de uma nobre
alma offendida que carece de reparação:
--É já, titi! Vamos ao Oratorio! Quero que fique tudo aqui assombrado!
Foi o que disse o meu amigo allemão: «Essa reliquia, ao destapar-se, é
de ficar uma familia inteira azabumbada!...»
Deslumbrada, a titi ergueu-se de mãos postas. Eu corri a prover-me d'um
martello. Quando voltei, o dr. Margaride, grave, calçava as suas luvas
pretas... E atraz da snr.^a D. Patrocinio, cujos setins faziam no
sobrado um ruge-ruge de vestes de prelado, penetrámos no corredor onde o
grande bico de gaz silvava dentro do seu vidro fôsco. Ao fundo a
Vicencia e a cozinheira espreitavam com os seus rosarios na mão.
O Oratorio resplandecia. As velhas salvas de prata, batidas pelas
chammas das velas de cera, punham no fundo do altar um brilho branco de
Gloria. Sobre a candidez das rendas lavadas, entre a neve fresca das
camelias--as tunicas dos Santos, azues e vermelhas, com o seu lustre de
sêda, pareciam novas, especialmente talhadas nos guarda-roupas do céo
para aquella rara noite de festa... Por vezes o raio d'uma aureola
tremia, despedia um fulgor, como se na madeira das imagens corressem
estremecimentos de jubilo. E na sua cruz de pau preto, o Christo,
riquissimo, macisso, todo d'ouro, suando ouro, sangrando ouro, reluzia
preciosamente.
--Tudo com muito gosto! Que divina scena! murmurou o dr. Margaride,
deliciado na sua paixão de grandioso.
Com piedosos cuidados colloquei o caixote na almofada de velludo:
vergado, rosnei sobre elle uma _Ave_; depois, ergui a toalha que o
cobria, e com ella no braço, tendo escarrado solemnemente, fallei:
--Titi, meus senhores... Eu não quiz revelar ainda a Reliquia que vem
aqui no caixotinho, porque assim m'o recommendou o snr. Patriarcha de
Jerusalem... Agora é que vou dizer... Mas antes de tudo, parece-me bem a
pêllo explicar que tudo cá n'esta Reliquia, papel, nastro, caixotinho,
prégos, tudo é santo! Assim por exemplo os préguinhos... são da Arca de
Noé... Póde vêr, snr. padre Negrão, póde apalpar! são os da Arca, até
ainda enferrujados... É tudo do melhor, tudo a escorrer virtude! Além
d'isso quero declarar diante de todos que esta Reliquia pertence aqui á
titi, e que lh'a trago para lhe provar que em Jerusalem não pensei senão
n'ella, e no que Nosso Senhor padeceu, e em lhe arranjar esta
pechincha...
--Commigo te has de vêr sempre, filho! tartamudeou a horrenda senhora,
enlevada.
Beijei-lhe a mão, sellando este pacto de que a Magistratura e a Egreja
eram veridicas testemunhas. Depois, retomando o martello:
--E agora, para que cada um esteja prevenido e possa fazer as orações
que mais lhe calharem, devo dizer o que é a Reliquia...
Tossi, cerrei os olhos:
--É a Corôa d'Espinhos!
Esmagada, com um rouco gemido, a titi aluiu sobre o caixote, enlaçando-o
nos braços tremulos... Mas o Margaride coçava pensativamente o queixo
austero; Justino sumira-se na profundidade dos seus collarinhos; e o
ladino Negrão escancarava para mim uma bocaça negra, d'onde sahia
assombro e indignação! Justos céos! Magistrados e Sacerdotes
evidenciavam uma incredulidade--terrivel para a minha fortuna!
Eu tremia, com suores--quando padre Pinheiro, muito sério, convicto, se
debruçou, apertou a mão da titi a felicital-a pela posição religiosa a
que a elevava a posse d'aquella Reliquia. Então, cedendo á forte
auctoridade liturgica de padre Pinheiro, todos, em fila, n'uma muda
congratulação, estreitaram os dedos da babosa senhora.
Estava salvo! Rapidamente, ajoelhei á beira do caixote, cravei o formão
na fenda da tampa, alcei o martello em triumpho...
--Theodorico! Filho! berrou a titi, arripiada, como se eu fosse
martellar a carne viva do Senhor.
--Não ha receio, titi! Aprendi em Jerusalem, a manejar estas coisinhas
de Deus!...
Despregada a táboa fina, alvejou a camada d'algodão. Ergui-a com terna
reverencia: e ante os olhos extaticos surgiu o sacratissimo embrulho de
papel pardo, com o seu nastrinho vermelho.
--Ai que perfume! Ai! ai, que eu morro! suspirou a titi a esvaír-se de
gosto beato, com o branco do olho apparecendo por sobre o negro dos
oculos.
Ergui-me, rubro de orgulho:
--É á minha querida titi, só a ella, que compete, pela sua muita
virtude, desembrulhar o pacotinho!...
Acordando do seu langor, trémula e pallida, mas com a gravidade d'um
pontifice, a titi tomou o embrulho, fez mesura aos santos, collocou-o
sobre o altar; devotamente desatou o nó do nastro vermelho; depois, com
o cuidado de quem teme magoar um corpo divino, foi desfazendo uma a uma
as dobras do papel pardo... Uma brancura de linho appareceu... A titi
segurou-a nas pontas dos dedos, repuxou-a bruscamente--e sobre a ara,
por entre os santos, em cima das camelias, aos pés da Cruz--espalhou-se,
com laços e rendas, a camisa de dormir da Mary!
A camisa de dormir da Mary! Em todo o seu luxo, todo o seu impudor,
enxovalhada pelos meus abraços, com cada préga fedendo a peccado! A
camisa de dormir da Mary! E pregado n'ella por um alfinete, bem evidente
ao clarão das velas, o cartão com a offerta em letra encorpada:--«_Ao
meu Theodorico, meu portuguezinho possante, em lembrança do muito que
gozámos_!» Assignado, _M. M._... A camisa de dormir da Mary!
Mal sei o que occorreu no florido Oratorio! Achei-me á porta,
enrodilhado na cortina verde, com as pernas a vergar, n'um desmaio.
Estalando, como achas atiradas a uma fogueira, eu sentia as accusações
do Negrão bradadas contra mim junto á touca da titi:--«Deboche!
escarneo! camisa de prostituta! achincalho á snr.^a D. Patrocinio!
profanação do Oratorio!» Distingui a sua bota arrojando furiosamente
para o corredor o trapo branco. Um a um, entrevi os amigos perpassarem,
como longas sombras levadas por um vento de terror. As luzes das velas
arquejavam, afflictas. E, ensopado em suor, entre as prégas da cortina,
percebi a titi caminhando para mim, lenta, livida, hirta, medonha...
Estacou. Os seus frios e ferozes oculos trespassaram-me. E através dos
dentes cerrados cuspiu esta palavra:
--Porcalhão!
E sahiu.
Rolei para o quarto, tombei no leito, esbarrondado. Um rumor d'escandalo
acordára o casarão severo. E a Vicencia surgiu diante de mim, enfiada,
com o seu avental branco na mão:
--Menino! Menino! A senhora manda dizer que sáia immediatamente para o
meio da rua, que o não quer nem mais um instante em casa... E diz que
póde levar a sua roupa branca e todas as suas porcarias!
Despedido!
Ergui a face molle da travesseira de rendas. E a Vicencia, atontada,
torcendo o avental:
--Ai, menino! Ai, menino! se não sae já para a rua, a senhora diz que
manda chamar um policia!
Escorraçado!
Atirei os pés incertos para o soalho. Mergulhei na algibeira uma escova
de dentes: topando nos moveis, procurei as chinelas que embrulhei n'um
numero da _Nação_. Sem reparo, agarrei d'entre as malas um caixote com
bandas de ferro:--e em ponta de botins desci a escada da titi, encolhido
e rasteiro, como um cão tinhoso vexado da sua tinha.
Mal transpuz o pateo, a Vicencia, cumprindo as ordens sanhudas da titi,
bateu-me nas costas com o portão chapeado de ferro--desprezivelmente e
para sempre!
Estava só na rua e na vida! Á luz dos frios astros contei na palma o meu
dinheiro. Tinha duas libras, dezoito tostões, um duro hespanhol e
cobres... E então descobri que a caixa, apanhada tontamente entre as
malas, era a das Reliquias menores. Complicado sarcasmo do Destino! Para
cobrir meu corpo desabrigado--nada mais tinha que taboinhas aplainadas
por S. José, e cacos de barro do cantaro da Virgem! Metti no bolso o
embrulho das chinelas; e, sem voltar os olhos turvos á casa de minha
tia, marchei a pé, com o caixote ás costas, na noite cheia de silencio e
d'estrellas, para a Baixa, para o _Hotel da Pomba d'Ouro_.
* * * * *
Ao outro dia, descórado e miserrimo á mesa da _Pomba_, remexia uma
sombria sôpa de grão e nabo--quando um cavalheiro, de collete de velludo
negro, veio occupar o talher fronteiro, junto d'uma garrafa d'agua de
Vidago, d'uma caixa de pilulas e d'um numero da _Nação_. Na sua testa,
immensa e arqueada como um frontão de capella, torciam-se duas veias
grossas: e sob as ventas largas, ennegrecidas de rapé, o bigode era um
tufo curto de pêllos grisalhos, duros como cêrdas d'escova. O gallego,
ao servir-lhe o nabo e grão, rosnou com estima: «Ora seja bem
apparecidinho o snr. Lino!»
Ao cozido este cavalheiro, abandonando a _Nação_ onde percorrêra
miudamente os annuncios, pousou em mim os olhos amarellentos de bilis e
baços, e observou que estavamos gozando desde os Reis um tempinho
d'appetite...
--De rosas, murmurei com reserva.
O snr. Lino entalou mais o guardanapo para dentro do collarinho lasso:
--E v. s.^a, se não é curiosidade, vem das provincias do Norte?
Passei vagarosamente a mão pelos cabellos:
--Não, senhor... Venho de Jerusalem!
D'assombrado o snr. Lino perdeu a garfada de arroz. E, depois de ter
ruminado mudamente a sua emoção, confessou que lhe interessavam muito
todos esses lugares santos porque tinha religião, graças a Deus! E tinha
um emprego, graças tambem a Deus, na Camara Patriarchal...
--Ah, na Camara Patriarchal! acudi eu. Sim, muito respeitavel... Eu
conheci muito um Patriarcha... Conheci muito o snr. Patriarcha de
Jerusalem. Cavalheiro muito santo, muito catita... Até nos ficamos
tratando de _tu_!
O snr. Lino offereceu-me da sua agua de Vidago--e conversámos das terras
da Escriptura.
--Que tal Jerusalem, como lojas?...
--Como lojas?... Lojas de modas?
--Não, não! atalhou o snr. Lino. Quero dizer lojas de santidade, de
reliquiarias, de coisinhas divinas...
--Sim... Menos mau. Ha o Damiani na Via Dolorosa que tem tudo, até ossos
de Martyres... Mas o melhor é cada um esquadrinhar, escavar... Eu
n'essas coisas trouxe maravilhas!
Uma chamma de singular cubiça avivou as pupillas amarelladas do snr.
Lino, da Camara Patriarchal. E de repente, com uma decisão d'inspirado:
--Andrésinho, a pinguinha de Porto... Hoje é brodio!
Quando o gallego pousou a garrafa, com a sua data traçada á mão n'um
velho rotulo de papel almasso--o snr. Lino offertou-me um calice cheio.
--Á sua!
--Com a ajuda do Senhor!... Á sua!
Por cortezia, rilhado o queijo, convidei aquelle homem que graças a Deus
tinha religião, a entrar no meu quarto e admirar as photographias de
Jerusalem. Elle aceitou, com alvoroço: mas, apenas transpôz a porta,
correu sem etiqueta e gulosamente ao meu leito--onde jaziam espalhadas
algumas das Reliquias que eu desencaixotára essa manhã.
--O cavalheiro aprecia? indaguei, desenrolando uma vista do monte
Olivete, e pensando em lhe offertar um rosario.
Elle revirava em silencio, nas mãos gordas e de unhas roidas, um frasco
d'agua do Jordão. Cheirou-o, pesou-o, chocalhou-o. Depois, muito sério,
com as veias entumecidas na vastissima fronte:
--Tem attestado?
Estendi-lhe a certidão do frade Franciscano, garantindo como authentica
e sem mistura a agua do rio baptismal. Elle saboreou o venerando papel.
E enthusiasmado:
--Dou quinze tostões pelo frasquinho!
Foi, no meu intellecto de Bacharel, como se uma janella se abrisse e por
ella entrasse o sol! Vi inesperadamente, ao seu clarão forte, a natureza
real d'essas medalhas, bentinhos, aguas, lascas, pedrinhas, palhas, que
eu considerára até então um lixo ecclesiastico esquecido pela vassoura
da Philosophia! As Reliquias eram _valores_! Tinham a qualidade
omnipotente de _valores_! Dava-se um caco de barro--e recebia-se uma
rodella d'ouro!... E, illuminado, comecei insensivelmente a sorrir, com
as mãos encostadas á mesa como a um balcão de armazem:
--Quinze tostões por agua pura do Jordão! Boa! Em pouca conta tem v.
s.^a o nosso S. João Baptista... Quinze tostões! Chega a ser
impiedade!... V. s.^a imagina que a agua do Jordão é como agua do
Arsenal? Ora essa!... Tres mil reis recusei eu a um padre de Santa
Justa, esta manhã, ahi, ao pé d'essa cama...
Elle fez saltar o frasco na palma gorda, considerou, calculou:
--Dou quatro mil reis.
--Vá lá, por sermos companheiros na _Pomba_!
E quando o snr. Lino sahiu do meu quarto, com o frasco do Jordão
embrulhado na _Nação_, eu, Theodorico Raposo, achava-me fatalmente,
providencialmente, estabelecido vendilhão de reliquias!
D'ellas comi, d'ellas fumei, d'ellas amei, durante dois mezes, quieto e
aprazido na _Pomba d'Ouro_. Quasi sempre o snr. Lino surdia de manhã no
meu quarto, de chinelos, escolhia um caco do cantaro da Virgem ou uma
palhinha do Presepio, empacotava na _Nação_, largava a pecunia e abalava
assobiando o _De Profundis_. E evidentemente o digno homem revendia as
minhas preciosidades com gordo provento--porque bem depressa, sobre o
seu collete de velludo preto, rebrilhou uma corrente d'ouro.
No emtanto, muito habil e fino, eu não tentára (nem com supplicas, nem
com explicações, nem com patrocinios) amansar as beatas iras da titi e
repenetrar na sua estima. Contentava-me em ir á egreja de Sant'Anna,
todo de negro, com um ripanço. Não encontrava a titi, que tinha agora de
manhã no Oratorio missa do torpissimo Negrão. Mas lá me prostrava,
batendo contritamente no peito, suspirando para o Sacrario--certo que,
pelo Melchior sacristão, as novas da minha devoção inalteravel chegariam
á hedionda senhora.
Muito manhoso, tambem não procurára os amigos da titi--que deviam
prudentemente partilhar as paixões da sua alma para lograrem os favores
do seu testamento: assim poupava embaraços angustiosos a esses
benemeritos da Magistratura e da Egreja. Sempre que encontrava padre
Pinheiro ou dr. Margaride, cruzava as mãos dentro das mangas, baixava os
olhos, evidenciando humildade e compunção. E este retrahimento era
decerto grato aos amigos, porque uma noite, topando o Justino perto da
casa da Benta Bexigosa, o digno homem segredou junto da minha barba,
depois de se ter assegurado da solidão da rua:
--Ande-me assim, amiguinho!... Tudo se ha de arranjar... Que ella por
ora está uma fera... Oh diabo, ahi vem gente!
E abalou.
No emtanto, por intermédio do Lino, eu vendilhava reliquias. Bem
depressa porém recordado dos compendios de _Economia Politica_, reflecti
que os meus proventos engordariam se, eliminando o Lino, eu mesmo me
dirigisse ousadamente ao consumidor pio.
Escrevi então a fidalgas, servas do Senhor dos Passos da Graça, cartas
com listas e preços de Reliquias. Mandei propostas d'ossos de Martyres a
egrejas de provincia. Paguei copinhos d'aguardente a sacristães para que
elles segredassem a velhas com achaques--«P'ra coisas de Santidade não
ha como o snr. dr. Raposo, que vem fresquinho de Jerusalem!...» E
bafejou-me a sorte. A minha especialidade foi a agua do Jordão, em
frascos de zinco, lacrados e carimbados com um coração em chammas: vendi
d'esta agua para baptisados, para comidas, para banhos: e durante um
momento houve um outro Jordão, mais caudaloso e limpido que o da
Palestina, correndo por Lisboa, com a sua nascente n'um quarto da _Pomba
d'Ouro_. Imaginativo, introduzi _novidades_ rendosas e poeticas: lancei
no commercio com efficacia «o pedacinho da bilha com que Nossa Senhora
ia á fonte»: fui eu que acreditei na piedade nacional «uma das
ferraduras do burrinho em que fugira a Santa Familia.» Agora quando o
Lino de chinelos batia á porta do meu quarto, onde as medas de palhinhas
do Presepio alternavam com as pilhas de taboinhas de S. José, eu
entreabria uma fenda avara e ciciava:
--Foi-se... Esgotadinho!... Só para a semana... Vem-me ahi um caixotinho
da Terra Santa...
As veias frontaes do capacissimo homem inchavam n'uma indignação de
intermediario espoliado.
Todas as minhas Reliquias eram acolhidas com o mais forte fervor--porque
provinham «do Raposo, fresquinho de Jerusalem.» Os outros Reliquistas
não tinham esta esplendida garantia d'uma jornada á Terra Santa. Só eu,
Raposo, percorrêra esse vastissimo deposito de santidade. Só eu de resto
sabia lançar na folha sebacea de papel que authenticava a reliquia--a
firma floreada do snr. Patriarcha de Jerusalem.
Mas bem cedo reconheci que esta profusão de Reliquilharia saturára a
devoção do meu paiz! Atochado, empanturrado de Reliquias, este catholico
Portugal já não tinha capacidade--nem para receber um d'esses raminhos
seccos de flôres de Nazareth, que eu cedia a cinco tostões!
Inquieto, baixei melancolicamente os preços. Prodigalisei, no _Diario de
Noticias_, annuncios tentadores--«_Preciosidades da Terra Santa, em
conta, na tabacaria Rego, se diz_...» Muitas manhãs, com um casacão
ecclesiatico e um _cache-nez_ de sêda disfarçando a minha barba,
assaltei á porta das egrejas velhas beatas: offerecia pedaços da tunica
da Virgem Maria, cordeis das sandalias de S. Pedro: e rosnava com ancia,
roçando-me pelos manteletes e pelas toucas: «Baratinhos, minha senhora,
baratinhos... Excellentes para catarrhos!...»
Já devia uma carregada conta na _Pomba d'Ouro_; descia as escadas
sorrateiramente, para não encontrar o patrão; chamava com sabujice ao
gallego--«meu André, meu catitinha...»
E punha toda a minha esperança n'um renovamento da Fé! A menor noticia
de festa de egreja me regosijava como um acrescimo de devoção no povo.
Odiava ferozmente os republicanos e os philosophos que abalam o
Catholicismo--e portanto diminuem o valor das reliquias que elle
instituiu. Escrevi artigos para a _Nação_, em que bradava: «Se vos não
apegaes aos ossos dos Martyres, como quereis que prospere este paiz?» No
café do Montanha dava murros sobre as mesas: «É necessario Religião,
caramba! Sem Religião nem o bifezinho sabe!» Em casa da Benta Bexigosa
ameaçava as raparigas, se ellas não usassem os seus bentinhos e os seus
escapularios, de não voltar alli, de ir a casa da D. Adelaide!... A
minha inquietação pelo «pão de cada dia» foi mesmo tão aspera que de
novo solicitei a intervenção do Lino--homem de vastas relações
ecclesiasticas, parente de capellães de convento. Outra vez lhe mostrei
o meu leito juncado de reliquias. Outra vez lhe disse, esfregando as
mãos: «Vamos a mais negocio, amiguinho! Aqui tenho sortimento fresco,
chegadinho de Sião!»
Mas, do digno homem da Camara Patriarcal, só colhi recriminações
acerbas...
--Essa léria não péga, senhor! gritou elle, com as veias a estalar de
cólera na fronte esbrazeada. Foi v. s.^a que estragou o commercio!...
Está o mercado abarrotado, já não ha maneira de vender nem um cueirinho
do menino Jesus, uma reliquia que se vendia tão bem! O seu negocio com
as ferraduras é perfeitamente indecente... Perfeitamente indecente! É o
que me dizia n'outro dia um capellão, primo meu: «São ferraduras de mais
para um paiz tão pequeno!...» Quatorze ferraduras, senhor! É abusar!
Sabe v. s.^a quantos prégos, dos que pregaram Christo na cruz, v. s.^a
tem impingido, todos com documentos? Setenta e cinco, senhor!... Não lhe
digo mais nada... Setenta e cinco!
E sahiu, atirando a porta com furor, deixando-me aniquilado.
Venturosamente, n'essa noite, encontrei o _Rinchão_ em casa da Benta
Bexigosa, e recebi d'elle uma consideravel encommenda de reliquias. O
_Rinchão_ ia desposar uma menina Nogueira, filha da snr.^a Nogueira,
rica beata de Beja e rica proprietaria de porcos: e elle «queria dar um
presente catita á carola da velha, tudo coisinhas da Cartilha e do Santo
Sepulchro.» Arranjei-lhe um lindo cofre de reliquias (ahi colloquei o
meu septuagesimo sexto prégo) ornado das minhas graciosas flôres seccas
de Galilêa. Com a generosa pecunia que me deu o _Rinchão_ paguei á
_Pomba d'Ouro_; e tomei prudentemente um quarto na casa d'hospedes do
Pitta, á travessa da Palha.
Assim, diminuia a minha prosperidade. O meu quarto agora era nos altos,
no quinto andar, com um catre de ferro, e uma poltrona vetusta cujo
miôlo de estopa fetida rompia entre a chita esgaçada. Como unico ornato
pendia sobre a commoda, n'um caixilho enfeitado de borlas, uma
lithographia de Christo crucificado, a côres; nuvens negras de tormenta
rolavam-lhe aos pés; e os seus olhos claros, arregalados, seguiam e
miravam todos os meus actos, os mais intimos, mesmo o delicado aparar
dos callos.
Havia uma semana que, assim installado, farejava Lisboa á busca do pão
incerto, com botas a que se começava a romper a sola, quando uma manhã o
André da _Pomba d'Ouro_ me trouxe uma carta que lá fôra deixada na
vespera, com a marca «urgente». O papel tinha tarja preta: o sinete era
de lacre negro. Abri, tremendo. E vi a assignatura do Justino.
«Meu querido amigo. É meu penoso dever, que cumpro com lagrimas,
participar-lhe que sua respeitavel tia e minha senhora inesperadamente
succumbiu...»
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