Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 07

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São as prizões de hum coração, que prêzo,
Seu mal ao som dos ferros vai cantando,
Como faz a serêa na tormenta

CXXXIX.
Por cima destas águas forte e firme
Irei aonde os Fados o ordenárão,
Pois por cima de quantas derramárão
Aquelles claros olhos pude vir-me.
Ja chegado era o fim de despedir-me;
Ja mil impedimentos se acabárão,
Quando rios de amor se atravessárão
A me impedir o passo de partir-me.
Passei-os eu com ânimo obstinado,
Com que a morte forçada gloriosa
Faz o vencido ja desesperado.
Em qual figura, ou gesto desusado,
Póde ja fazer medo a morte irosa
A quem t[~e]e a seus pés rendido e atado?

CXL.
Tal mostra de si dá vossa figura,
Sibela, clara luz da redondeza,
Que as fôrças e o poder da natureza
Com sua claridade mais apura.
Quem confiança ha visto tão segura,
Tão singular esmalte da belleza,
Que não padeça mal de mais graveza,
Se resistir a seu amor procura?
Eu, pois, por escusar tal esquivança,
A razão sujeitei ao pensamento,
A quem logo os sentidos se entregárão.
Se vos offende o meu atrevimento,
Inda podeis tomar nova vingança
Nas reliquias da vida que ficárão.

CXLI.
Na desesperação ja repousava
O peito longamente magoado,
E, com seu damno eterno concertado,
Ja não temia, ja não desejava;
Quando huma sombra vãa me assegurava
Que algum bem me podia estar guardado
Em tão formosa imagem, que o traslado
N'alma ficou, que nella se enlevava.
Que credito que dá tão facilmente
O coração áquillo que deseja,
Quando lhe esquece o fero seu destino!
Ah! deixem-me enganar; que eu sou contente;
Pois, postoque maior meu damno seja,
Fica-me a gloria ja do que imagino.

CXLII.
Diversos dões reparte o Ceo benino,
E quer que cada huma alma hum só possua;
Por isso ornou de casto peito a Lua,
Que o primeiro orbe illustra crystallino;
De graça a Mãe formosa do Menino,
Que nessa vista t[~e]e perdido a sua;
Pallas de sciencia não maior que a tua:
T[~e]e Juno da nobreza o imperio dino.
Mas junto agora o largo Ceo derrama
Em ti o mais que tinha, e foi o menos
Em respeito do Autor da natureza.
Que a seu pezar te dão, formosa dama,
Seu peito a Lua, sua graça Venos,
Sua sciencia Pallas, Juno sua nobreza.

CXLIII.
Gentil Senhora, se a Fortuna imiga,
Que contra mi com todo o Ceo conspira,
Os olhos meus de ver os vossos tira,
Porque em mais graves casos me persiga;
Comigo levo esta alma, que se obriga
Na mor pressa de mar, de fogo, e d'íra,
A dar-vos a memoria, que suspira
Só por fazer comvosco eterna liga.
Nesta alma, onde a fortuna póde pouco,
Tão viva vos terei, que frio e fome,
Vos não possão tirar, nem mais perigos.
Antes, com som de voz trémulo e rouco
Por vós chamando, só com vosso nome
Farei fugir os ventos, e os imigos.

CXLIV
Que modo tão subtil da natureza
Para fugir ao mundo e seus enganos!
Permitte que se esconda em tenros anos
Debaixo de hum burel tanta belleza!
Mas não póde esconder-se aquella alteza
E gravidade de olhos soberanos,
A cujo resplandor entre os humanos
Resistencia não sinto, ou fortaleza.
Quem quer livre ficar de dor e pena,
Vendo-a ja, ja trazendo-a na memoria,
Na mesma razão sua se condena.
Porque quem mereceo ver tanta gloria
Captivo ha de ficar; que Amor ordena
Que de juro tenha ella esta victoria.

CXLV
Quando se vir com água o fogo arder,
Juntar-se ao claro dia a noite escura,
E a terra collocada lá na altura
Em que se vem os ceos prevalecer;
Quando Amor á Razão obedecer,
E em todos for igual huma ventura,
Deixarei eu de ver tal formosura,
E de a amar deixarei depois de a ver.
Porém não sendo vista esta mudança
No mundo, porque, em fim, não póde ver-se,
Ninguem mudar-me queira de querer-vos.
Que basta estar em vós minha esperança,
E o ganhar-se a minha alma, ou o perder-se,
Para dos olhos meus nunca perder-vos.

CXLVI.
Quando a suprema dor muito me aperta,
Se digo que desejo esquecimento,
He fôrça que se faz ao pensamento,
De que a vontade livre desconcerta.
Assi de êrro tão grave me desperta
A luz do bem regido entendimento,
Que mostra ser engano, ou fingimento,
Dizer que em tal descanso mais se acerta.
Porque essa propria imagem, que na mente
Me representa o bem de que careço,
Faz-mo de hum certo modo ser presente.
Ditosa he, logo, a pena que padeço,
Pois que da causa della em mi se sente
Hum bem que, inda sem ver-vos, reconheço.

CXLVII.
Na margem de hum ribeiro, que fendia
Com liquido crystal hum verde prado,
O triste pastor Liso debruçado
Sôbre o tronco de hum freixo assi dizia:
Ah Natercia cruel! quem te desvia
Esse cuidado teu do meu cuidado?
Se tanto hei de penar desenganado,
Enganado de ti viver queria.
Que foi de aquella fé que tu me déste?
D'aquelle puro amor que me mostraste?
Quem tudo trocar pôde tão asinha?
Quando esses olhos teus n'outro puzeste,
Como te não lembrou que me juraste
Por toda a sua luz que eras só minha?

CXLVIII.
Se me vem tanta gloria só de olhar-te,
He pena desigual deixar de ver-te;
Se presumo com obras merecer-te,
Grão paga de hum engano he desejar-te.
Se aspiro por quem es a celebrar-te,
Sei certo por quem sou que hei de offender-te;
Se mal me quero a mi por bem querer-te,
Que premio querer posso mais que amar-te?
Porque hum tão raro amor não me soccorre?
Oh humano thesouro! oh doce gloria!
Ditoso quem á morte por ti corre!
Sempre escrita estaras nesta memoria;
E esta alma viverá, pois por ti morre,
Porque ao fim da batalha he a victoria.

CXLIX.
Sempre a Razão vencida foi de Amor;
Mas, porque assi o pedia o coração,
Quiz Amor ser vencido da Razão.
Ora que caso póde haver maior!
Novo modo de morte, e nova dor!
Estranheza de grande admiração!
Pois, em fim, seu vigor perde a affeição,
Porque não perca a pena o seu vigor.
Fraqueza, nunca a houve no querer;
Mas antes muito mais se esforça assim
Hum contrário com outro por vencer.
Mas a razão que a luta vence, em fim,
Não creio que he razão; mas deve ser
Inclinação que eu tenho contra mim.

CL.
Coitado! que em hum tempo chóro e rio;
Espero e temo, quero e aborreço;
Juntamente me allegro e me entristeço;
Confio de huma cousa e desconfio.
Vôo sem azas; estou cego e guio;
Alcanço menos no que mais mereço;
Entaõ fallo melhor, quando emmudeço;
Sem ter contradiçaõ sempre porfio.
Possivel se me faz todo o impossivel;
Intento com mudar-me estar-me quedo;
Usar de liberdade, e ser captivo;
Queria visto ser, ser invisivel;
Ver-me desenredado, amando o enredo:
Taes os extremos são com que hoje vivo!

CLI.
Julga-me a gente toda por perdido,
Vendo-me, tão entregue a meu cuidado,
Andar sempre dos homens apartado,
E de humanos commercios esquecido.
Mas eu, que tenho o mundo conhecido,
E quasi que sôbre elle ando dobrado,
Tenho por baixo, rustico, e enganado
Quem não he com meu mal engrandecido.
Vá revolvendo a terra, o mar, e o vento,
Honras busque e riquezas a outra gente,
Vencendo ferro, fogo, frio e calma.
Que eu por amor sómente me contento
De trazer esculpido eternamente
Vosso formoso gesto dentro da alma.

CLII.
Olhos, aonde o Ceo com luz mais pura
Quiz dar de seu poder claros signais,
Se quizerdes ver bem quanto possais,
Vêde-me a mi que sou vossa feitura.
Em mi viva vereis vossa figura
Mais propria que em purissimos crystais,
Porque nesta alma he certo que vejais
Melhor que em hum crystal tal formosura.
De meu não quero mais que o meu desejo,
Se acaso por querer-vos mais mereço,
Porque o vosso poder em mi se asselle.
Do mundo outra memoria em mi não vejo:
Com lembrar-me de vós, delle me esqueço,
Com triumphardes de mi, triumpharei delle.

CLIII.
Criou a natureza Damas bellas,
Que forão de altos plectros celebradas;
Dellas tomou as partes mais prezadas,
E a vós, Senhora, fez do melhor dellas.
Ellas diante vós são as estrellas,
Que ficão com vos ver logo eclipsadas.
Mas se ellas t[~e]e por sol essas rosadas
Luzes de sol maior, felices ellas!
Em perfeição, em graça e gentileza,
Por hum modo entre humanos peregrino,
A todo bello excede essa belleza.
Oh quem tivera partes de divino
Para vos merecer! Mas se pureza
De amor vai ante vós, de vós sou dino.

CLIV.
Que esperais, esperança? Desespéro.
Quem disso a causa foi? H[~u]a mudança.
Vós, vida, como estais? Sem esperança.
Que dizeis, coração? Que muito quero.
Que sentis, alma, vós? Que amor he fero.
E, em fim, como viveis? Sem confiança.
Quem vos sustenta, logo? Huma lembrança.
E só nella esperais? Só nella espero.
Em que podeis parar? Nisto em que estou.
E em que estais vós? Em acabar a vida.
E ténde-lo por bem? Amor o quer.
Quem vos obriga assi? Saber quem sou.
E quem sois? Quem de todo está rendida.
A quem rendida estais? A hum só querer.

CLV.
Se como em tudo o mais fostes perfeita,
Foreis de condição menos esquiva,
Fôra a minha fortuna mais altiva,
Fôra a sua altiveza mais sujeita.
Mas quando a vida a vossos pés se deita,
Porque não a acceitais, não quer que eu viva:
Ella propria de si ja a mi me priva;
Que, porque me engeitais, tambem me engeita.
Se nisso contradiz vossa vontade,
Mandai-lhe vós, Senhora, que dê fim
Á minha profundissima tristeza.
Pois ella não mo dá, porque piedade
Tenha deste meu mal, mas porque em mim
Possais assi fartar vossa crueza.

CLVI.
Se algum'hora essa vista mais suave
Acaso a mi volveis, em hum momento
Me sinto com hum tal contentamento,
Que não temo que damno algum me aggrave.
Mas quando com desdem esquivo e grave
O bello rosto me mostrais isento,
Huma dor provo tal, hum tal tormento,
Que muito vem a ser que não me acabe.
Assi está minha vida, ou minha morte
No volver de esses olhos; pois podeis
Dar co'huma volta delles morte, ou vida.
Ditoso eu, se o Ceo quer, ou minha sorte,
Que ou vida, para dar-vo-la, me deis,
Ou morte, para haver morte querida!

CLVII.
Tanto se forão, Nympha, costumando
Meus olhos a chorar tua dureza,
Que vão passando ja por natureza
O que por accidente hião passando.
No que ao somno se deve estou velando,
E venho a velar só minha tristeza:
O chôro não abranda esta aspereza,
E meus olhos estão sempre chorando.
Assi de dor em dor, de mágoa em mágoa,
Consumindo-se vão inutilmente,
E esta vida tambem vão consumindo.
Sôbre o fogo de amor inutil ágoa!
Pois eu em chôro estou continuamente,
E do que vou chorando te vás rindo.
Assi nova corrente
Levas de chôro em foro;
Porque de ver-te rir, de novo chóro.

CLVIII.
Eu me aparto de vós, Nymphas do Tejo,
Quando menos temia esta partida;
E se a minha alma vai entristecida,
Nos olhos o vereis com que vos vejo.
Pequenas esperanças, mal sobejo,
Vontade que razão leva vencida,
Presto verão o fim á triste vida,
Se vos não tórno a ver como desejo.
Nunca a noite entretanto, nunca o dia,
Verão partir de mi vossa lembrança:
Amor, que vai comigo, o certifica.
Por mais que no tornar haja tardança,
Me farão sempre triste companhia
Saudades do bem que em vós me fia.

CLIX.
Vencido está de amor Meu pensamento
O mais que póde ser, Vencida a vida,
Sujeita a vos servir e Instituida,
Oferecendo tudo A vosso intento.
Contente deste bem Louva o momento,
Ou hora em que se vio Tão bem perdida;
Mil vezes desejando, Assi ferida,
Outras mil renovar Seu perdimento.
Com esta pretenção Está segura
A causa que me guia Nesta empreza
Tão sobrenatural, Honrosa, e alta.
Jurando não querer Outra ventura,
Votando só por vós Rara firmeza,
Ou ser no vosso amor Achado em falta.

CLX.
Divina companhia, que nos prados
Do claro Eurotas, ou no Olympo monte,
Ou sôbre as margens da Castalia fonte
Vossos estudos tendes mais sagrados;
Pois por destino dos immoveis fados
Quereis qu'em vosso número me conte,
No eterno templo de Belorofonte
Ponde em bronze estes versos entalhados:
Soliso (porque em seculos futuros
Se veja da belleza o que merece
Quem de sábia doudice a mente inflama)
Seus escritos, da sorte ja seguros,
A estas aras em h[~u]a mão offrece,
E a alma em outra á sua bella dama.

CLXI.
Á la margen del Tajo, en claro dia,
Con rayado marfil peinando estaba
Natercia sus cabellos, y quitaba
Con sus ojos la luz al sol que ardia.
Soliso que, cual Clicie, la seguia,
Lejos de sí, mas cerca della estaba:
Al son de su zampoña celebraba
La causa de su ardor, y así decia:
Si tantas, como tú tienes cabellos,
Tuviera vidas yo, me las llevaras
Colgada cada cual del uno dellos.
De no tenerlas tú me consolaras,
Si tantas veces mil, como son ellos,
En ellos la que tengo me enredaras.

CLXII.
Por gloria tuve un tiempo el ser perdido;
Perdíame de puro bien ganado;
Gané cuando perdí ser libertado;
Libre agora me veo, mas vencido.
Vencí cuando de Nise fuí rendido;
Rendíme por no ser della dejado:
Dejóme en la memoria el bien pasado;
Paso agora á llorar lo que he servido.
Servia al premio de la luz que amaba;
Amándola esperábale por cierto;
Incierto me salió cuanto esperaba.
La esperanza se queda en desconcierto;
El concierto en el mal que no pensaba;
El pensamiento con un fin incierto.

CLXIII.
Revuelvo en la incesable fantasía
Cuando me he visto en mas dichoso estado,
Si agora que de Amor vivo inflamado,
Si cuando de su ardor libre vivia.
Entonces desta llama solo huia,
Despreciando en mi vida su cuidado;
Agora, con dolor de lo pasado,
Tengo por gloria aquello que temia.
Bien veo que era vida deleitosa
Aquella que lograba sin temores,
Cuando gustos de Amor tuve por viento.
Mas viendo hoy á Natercia tan hermosa,
Hallo en esta prision glorias mayores,
Y en perderlas por libre hallo tormento.

CLXIV.
Las peñas retumbaban al gemido
Del misero zagal, que lamentaba
El dolor que á su alma lastimaba,
De un obstinado desamor nacido.
El mar, que las batia, su bramido
Con los retumbos dellas ayuntaba;
Confuso son el viento derramaba,
En cavernosos valles repetido.
Responden a mi llanto duras peñas,
Ai de mí! (dijo) la mar brama y gime;
Los ecos suenan de tristeza llenos:
Y tú, por quien la muerte en mí se imprime,
De oir las ansias mias te desdeñas;
Y cuando lloro mas, te abrando menos.

CLXV.
En una selva al dispuntar del dia
Estaba Endimion triste y lloroso,
Vuelto al rayo del sol, que presuroso
Por la falda de un monte descendia.
Mirando al turbador de su alegría,
Contrario de su bien y su reposo,
Tras un suspiro y otro, congojoso,
Razones semejantes le decia:
Luz clara, para mi la mas escura,
Que con esse paseo apresurado,
Mi sol con tu teniebla escureciste;
Si allà pueden moverte en esa altura
Las quejas de un pastor enamorado,
No tardes en volver á dó saliste.

CLXVI.
Orfeo enamorado que tañia
Por la perdida Ninfa que buscaba,
En el Orco implacable donde estaba,
Con la arpa, y con la voz la enternecia.
La rueda de Ixion no se movia,
Ningun atormentado se quejaba;
Las penas de los otros ablandaba,
Y todas las de todos él sentia.
El son pudo obligar de tal manera,
Que en dulce galardon de lo cantado,
Los infernales Reyes condolidos,
Le mandáron volver su compañera,
Y volvióla á perder el desdichado;
Con que fueron entrambos los perdidos.

CLXVII.
Eu cantei ja, e agora vou chorando
O tempo que cantei tão confiado:
Parece que no canto ja passado
Se estavão minhas lagrimas criando.
Cantei; mas se me alguem pergunta, quando?
Não sei; que tambem fui nisso enganado.
He tão triste este meu presente estado,
Que o passado por ledo estou julgando.
Fizerão-me cantar manhosamente
Contentamentos não, mas confianças:
Cantava, mas ja era ao som dos ferros.
De quem me queixarei, se tudo mente?
Porém que culpas ponho ás esperanças,
Onde a fortuna injusta he mais qu'os erros?

CLXVIII.
Ai amiga cruel! que apartamento
He este que fazeis da patria terra?
Ai! quem do amado ninho vos desterra,
Gloria dos olhos, bem do pensamento?
His tentar da fortuna o movimento,
E dos ventos crueis a dura guerra?
Ver brenhas de ondas? feito o mar em serra
Levantado de hum vento e de outro vento?
Mas ja que vós partis, sem vos partirdes,
Parta comvosco o Ceo tanta ventura,
Que se avantaje áquella qu'esperardes.
E só desta verdade ide segura,
Que fazeis mais saudades com vos irdes,
Do que levais desejos por chegardes.

CLXIX.
Campo! nas syrtes deste mar da vida,
Apos naufragios seus taboa segura;
Claras bonanças em tormenta escura,
Habitação da paz, de amor guarida;
A ti fujo: e se vence tal fugida,
E quem mudou lugar, mudou ventura,
Cantemos a victoria; e na espessura
Triumphe a honra da ambição vencida.
Em flor e fructo de verão e outono;
Utilmente murmurão claras ágoas;
Alegre me acha aqui, me deixa o dia.
Amantes rouxinoes rompem-me o sono
Que ata o descanso: aqui sepulto mágoas
Que ja forão sepulcros de alegria.

CLXX.
Ah minha Dinamene! assi deixaste
Quem nunca deixar pôde de querer-te!
Que ja, Nympha gentil, não possa ver-te!
Que tão veloz a vida desprezaste!
Como por tempo eterno te apartaste
De quem tão longe andava de perder-te?
Puderão essas ágoas defender-te
Que não visses quem tanto magoaste?
Nem somente fallar-te a dura morte
Me deixou, qu'apressada o negro manto
Lançar sôbre os teus olhos consentiste.
Oh mar! oh ceo! oh minha escura sorte!
Qual vida perderei que valha tanto,
Se inda tenho por pouco o viver triste?

CLXXI.
Guardando em mi a Sorte o seu direito.
Em verde me cortou minha alegria.
Oh quanto feneceo naquelle dia,
Cuja triste lembrança arde em meu peito!
Quando mais o imagino, bem suspeito
Que a tal bem tal desconto se devia,
Por não dizer o mundo que podia
Achar-se em seus enganos bem perfeito.
Pois se a Fortuna o fez por descontar-me
Aquelle gôsto, em cujo sentimento
A memoria não faz senão matar-me;
Que culpas póde dar-me o pensamento,
Se a causa qu'elle t[~e]e de atormentar-me,
Tenho eu de soffrer mal o seu tormento?

CLXXII.
Cantando estava hum dia bem seguro,
Quando passava Sylvio, e me dizia:
(Sylvio, pastor antiguo que sabia
Por o canto das aves o futuro)
Liso, quando quizer o fado escuro,
A opprimir-te virão em hum só dia
Dous lobos; logo a voz e a melodia
Te fugirão, e o som suave e puro.
Bem foi assi; porque hum me degolou
Quanto gado vacum pastava e tinha,
De que grandes soldadas esperava.
E por mais damno o outro me matou
A cordeira gentil, qu'eu tanto amava,
Perpétua saudade da alma minha.

CLXXIII.
O ceo, a terra, o vento socegado,
As ondas que se estendem por a areia,
Os peixes que no mar o somno enfreia,
O nocturno silencio repousado;
O Pescador Aonio que, deitado
Onde co'o vento a água se meneia,
Chorando, o nome amado em vão nomeia,
Que não póde ser mais que nomeado,
Ondas, (dizia) antes que Amor me mate,
Tornae-me a minha Nympha, que tão cedo
Me fizestes á morte estar sujeita.
Ninguem responde; o mar de longe bate;
Move-se brandamente o arvoredo;
Leva-lhe o vento a voz, qu'ao vento deita.

CLXXIV.
Ah Fortuna cruel! ah duros Fados!
Quão asinha em meu damno vos mudastes!
Com os vossos cuidados me cansastes,
E agora descansais co'os meus cuidados.
Fizestes-me provar gostos passados,
E vossa condição nelles provastes:
Singelos em hum'hora mos levastes,
Deixando em seu lugar males dobrados.
Quanto melhor me fôra que não vira
Os doces bens de Amor? Ah bens suaves!
Quem me deixa sem vós, porque me deixa?
De queixar-te, alma minha, te retira:
Alma, de alto cahida em penas graves,
Pois tanto amaste em vão, em vão te queixa.

CLXXV.
Quanto tempo, olhos meus, com tal lamento
Vos hei de ver tão tristes e aggravados?
Não bástão meus suspiros inflammados,
Que sempre em mi renovão seu tormento?
Não basta consentir meu pensamento
Em mágoas, em tristezas e em cuidados,
Senão que haveis de andar tão maltratados,
Que lagrimas tenhais por mantimento?
Não sei porque tomais esta vingança,
Mostrando-vos na ausencia tão saudosos,
Se sabeis quanto póde huma esperança.
Olhos, não aggraveis outros formosos,
Tornando hum puro amor em esquivança,
Pois ficais por esquivos desdenhosos.

CLXXVI.
Lembranças, que lembrais o bem passado
Para que sinta mais o mal presente,
Deixae-me, se quereis, viver contente,
Morrer não me deixeis em tal estado.
Se de todo, comtudo, está do Fado,
Que eu morra de viver tão descontente,
Venha-me todo o bem por accidente,
E todo o mal me venha por cuidado.
Que muito melhor he perder-se a vida,
Perdendo-se as lembranças da memoria,
Pois fazem tanto damno ao pensamento.
Porque, em fim, nada perde quem perdida
A esperança t[~e]e ja daquella gloria
Que fazia suave o seu tormento.

CLXXVII.
Quando os olhos emprégo no passado,
De quanto passei me acho arrependido;
Vejo que tudo foi tempo perdido,
Que tudo emprêgo foi mal empregado.
Sempre no mais damnoso mais cuidado;
Tudo o que mais cumpria, mal cumprido;
De desenganos menos advertido
Fui, quando de esperanças mais frustrado.
Os castellos que erguia o pensamento,
No ponto que mais altos os erguia,
Por esse chão os via em hum momento.
Que erradas contas faz a phantasia!
Pois tudo pára em morte, tudo em vento,
Triste o que espera! triste o que confia!

CLXXVIII
Ja cantei, ja chorei a dura guerra
Por Amor sustentada longos anos;
Vezes mil me vedou dizer seus danos,
Por não ver quem o segue o muito que erra.
Nymphas, por quem Castalia se abre e cerra;
Vós que fazeis á morte mil enganos,
Concedei-me ja alentos soberanos
Para que diga o mal que Amor encerra:
Para que aquelle, que o seguir ardente,
Veja em meus puros versos hum exemplo
De quanto em glorias promettidas mente.
Qu'inda qu'em triste estado me contemplo,
Se neste assumpto me inspirais, contente
Darei a minha lyra ao vosso templo.

CLXXIX
Os meus alegres, venturosos dias
Passárão, como raio, brevemente;
Movem-se os tristes mais pezadamente
Apos das fugitivas alegrias.
Ah falsas pretenções! vãas phantasias!
Que me podeis ja dar que me contente?
Ja de meu triste peito a chamma ardente
O tempo reduzio a cinzas frias.
Nellas revolvo agora erros passados;
Que outro fructo não deo a mocidade,
A quem vergonha e dor minha alma deve
Revolvo mais de toda a mais idade,
Desejos vãos, vãos choros, vãos cuidados,
Para que leve tudo o tempo leve.

CLXXX.
Horas breves de meu contentamento,
Nunca me pareceo, quando vos tinha,
Que vos visse mudadas tão asinha
Em tão compridos annos de tormento.
As altas tôrres, que fundei no vento,
Levou, em fim, o vento que as sostinha:
Do mal, que me ficou, a culpa he minha,
Pois sôbre cousas vãas fiz fundamento.
Amor com brandas mostras apparece,
Tudo possivel faz, tudo assegura;
Mas logo no melhor desapparece.
Estranho mal! estranha desventura!
Por hum pequeno bem que desfallece,
Hum bem aventurar, que sempre dura!

CLXXXI.
Onde acharei lugar tão apartado,
E tão isento em tudo da ventura,
Que, não digo eu de humana criatura,
Mas nem de feras seja frequentado?
Algum bosque medonho e carregado,
Ou selva solitaria, triste e escura,
Sem fonte clara, ou placida verdura;
Em fim, lugar conforme a meu cuidado?
Porque alli nas entranhas dos penedos,
Em vida morto, sepultado em vida,
Me queixe copiosa e livremente.
Que, pois a minha pena he sem medida,
Alli não serei triste em dias ledos,
E dias tristes me farão contente.

CLXXXII.
Aqui de longos damnos breve historia
Verão os que se jactão de amadores:
Reparo póde ser das suas dores
Não apartar as minhas da memoria.
Escrevi, não por fama, nem por gloria,
De que outros versos são merecedores,
Mas por mostrar seus triumphos, seus rigores
A quem de mi logrou tanta victoria.
Crescendo foi a dor co'o tempo, tanto
Que em número me fez, alheio de arte,
Dizer do cego Amor, que me venceo.
Se ao canto dei a voz, dei a alma ao pranto;
E dando a penna á mão, esta só parte
De minhas tristes penas escreveo.

CLXXXIII.
Por sua Nympha Céphalo deixava
A Aurora, que por elle se perdia,
Postoque dá principio ao claro dia,
Postoque as roxas flores imitava.
Elle, que a bella Procris tanto amava,
Que só por ella tudo engeitaria,
Deseja de tentar se lhe acharia
Tão firme fé, como ella nelle achava.
Mudado o trage, tece hum duro engano;
Outro se finge, preço põe diante;
Quebra-se a fé mudavel, e consente.
Oh subtil invenção para seu dano!
Vêde que manhas busca hum cego amante
Para que sempre seja descontente!

CLXXXIV.
Sentindo-se alcançada a bella esposa
De Céphalo no crime consentido,
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