Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 09

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Sem tempo sua vida t[~e]e roubada,
Sem ter respeito áquella assi estremada
Gentileza de luz, que a noite escura
Tornava em claro dia; cuja alvura
Do sol a clara luz tinha eclipsada.
Do sol peitada foste, cruel morte,
Para o livrar de quem o escurecia;
E da lua, que ante ella luz não tinha.
Como de tal poder tiveste sorte?
E se a tiveste, como tão asinha
Tornaste a luz do mundo em terra fria?

CCXXXI.
Imagens vãas me imprime a phantasia;
Discursos novos acha o pensamento;
Com que dão á minha alma grão tormento
Cuidados de cem annos n'hum só dia.
Se fim grande tivessem, bem sería
Responder a esperança ao fundamento:
Mas o fado não corre tão a tento,
Que reserve á razão sua valia.
Caso e Fortuna pódem acertar;
Mas se por accidente dão victoria,
Sempre o favor da Fama he falsa historia.
Excede ao saber, determinar:
Á constancia se deve toda a gloria:
O ânimo livre he digno de memoria.

CCXXXII.
Quanta incerta esperança, quanto engano!
Quanto viver de falsos pensamentos!
Pois todos vão fazer seus fundamentos
Só no mesmo em qu'está seu proprio dano.
Na incerta vida estribão de hum humano;
Dão credito a palavras que são ventos;
Chórão despois as horas e os momentos,
Que rírão com mais gôsto em todo o ano.
Não haja em apparencias confianças;
Entendei que o viver he de emprestado;
Que o de que vive o mundo são mudanças.
Mudai, pois, o sentido e o cuidado,
Somente amando aquellas esperanças
Que durão para sempre com o amado.

CCXXXIII.
Mal, que de tempo em tempo vás crescendo,
Quem te visse de hum bem acompanhado!
A vida passaria descansado,
Da morte não temêra o rosto horrendo.
Se os vãos cuidados fôra convertendo
Em suspiros que dão outro cuidado,
Oh quão prudente, oh quão affortunado
A capella do louro irá tecendo!
Tempo he ja de esquecer contentamentos
Passados, co'a esperança que passou,
E de que triumphem novos pensamentos.
A fé, que viva n'alma me ficou,
Dê ja fim aos caducos ardimentos
A que o passado bem se condemnou.

CCXXXIV.
Oh quanto melhor he o supremo dia
Da mansa morte, que o do nascimento!
Oh quanto melhor he hum só momento,
Que livra de annos tantos de agonia!
De alcançar outro bem cesse a porfia;
Cesse todo applicado pensamento
De tudo quanto dá contentamento,
Pois só contenta ao corpo a terra fria.
O que do seu fez Deos seu despenseiro,
T[~e]e mais estreita conta que lhe dar:
Então parece rico o ovelheiro.
Triste de quem no dia derradeiro
T[~e]e o suor alheio por pagar,
Pois a alma ha de vender por o dinheiro!

CCXXXV.
Como podes (oh cego peccador!)
Estar em teus errores tão isento,
Sabendo que esta vida he hum momento,
Se comparada com a eterna for?
Não cuides tu que o justo Julgador
Deixará tuas culpas sem tormento,
Nem que passando vai o tempo lento
Do dia de horrendíssimo pavor.
Não gastes horas, dias, mezes, anos,
Em seguir de teus damnos a amisade
De que despois resultão mores danos.
E pois de teus enganos a verdade
Conheces, deixa ja tantos enganos,
Pedindo a Deos perdão com humildade.

CCXXXVI.
Verdade, Amor, Razão, Merecimento,
Qualquer alma farão segura e forte;
Porém Fortuna, Caso, Tempo, e Sorte,
T[~e]e do confuso mundo o regimento.
Effeitos mil revolve o pensamento,
E não sabe a que causa se reporte:
Mas sabe que o que he mais que vida e morte
Não se alcança de humano entendimento.
Doctos varões darão razões subidas;
Mas são as exp'riencias mais provadas:
E por tanto he melhor ter muito visto.
Cousas ha hi que passão sem ser cridas:
E cousas cridas ha sem ser passadas.
Mas o melhor de tudo he crer em Christo.

CCXXXVII.
De Babel sôbre os rios nos sentámos,
De nossa doce patria desterrados,
As mãos na face, os olhos derribados,
Com saudades de ti, Sião, chorámos.
Os orgãos nos salgueiros pendurámos,
Em outro tempo bem de nós tocados;
Outro era elle, por certo, outros cuidados;
Mas por deixar saudades os deixâmos.
Aquelles que captivos nos trazião
Por cantigas alegres perguntavão:
Cantai (nos dizem) hymnos de Sião.
Sôbre tal pena, pena tal nos dão,
Pois tyranicamente pretendião
Que cantassem aquelles que choravão.

CCXXXVIII.
Sôbre os rios do Reino escuro, quando
Tristes, quaes nossas culpas o ordenárão,
Lagrimas nossos olhos derramárão,
Por ti, Sião divina, suspirando,
Os que hião nossas almas infestando,
De contino em error, as captivárão;
E em vão por nossos Psalmos perguntárão;
Que tudo era silencio miserando.
Dizendo estamos: Como cantaremos
As acceitas canções a Deos benino,
Quando a contrarios seus obedecemos?
Mas ja, Senhor só Santo, determino,
Deixando viciosissimos extremos,
Os cantos proseguir de Amor Divino.

CCXXXIX.
Em Babylonia sôbre os rios, quando
De ti, Sião sagrada, nos lembrámos,
Alli com grã saudade nos sentámos,
O bem perdido, miseros, chorando.
Os instrumentos musicos deixando,
Nos estranhos salgueiros pendurámos,
Quando aos cantares, que ja em ti cantámos,
Nos estavão imigos incitando.
Ás esquadras dizemos inimigas:
Como hemos de cantar em terra alhea
As cantigas de Deos, sacras cantigas?
Se a lembrança eu perder que me recrea
Cá nestas penosissimas fadigas,
_Oblivioni detur dextra mea._

CCXL.
Aponta a bella Aurora, luz primeira,
Que a grã nova nos deo do claro dia:
Vesti-vos, corações, ja de alegria,
E recebei da vida a Mensageira.
Da humana Redempção nasce a Terceira:
Alegra-te, Divina Monarchia;
Da terra terás cedo a companhia,
Do ceo verás tambem a nossa feira.
De tal obra se espanta a natureza,
Confuso fica de temor o inferno,
Vendo a que nasce isenta da defeza.
Lei geral era posta desde eterno;
Mas o Senhor da Lei toda limpeza
Para o Sacrario seu guardou Materno.

CCXLI.
Porque a terra no ceo agasalhasse,
O ceo na terra Deos agasalhou:
Lá não cabendo, cá se accommodou,
Porque lá, de cá indo, se alargasse.
Porqu'o homem a ser Deos por Deos chegasse,
Por o homem a ser homem Deos chegou:
Seu divino poder tanto humanou,
Porque o humano em divino se tornasse.
Vêde bem o que deo e recebeo:
Não se perca hum bem tanto da memoria:
Deo-nos a vida, a morte padeceo.
Trocou por nossa pena a sua gloria;
Deo-nos o triumpho qu'elle mereceo;
Porque amor foi auctor desta victoria.

CCXLII.
Qu'estilla a Arvore sacra? Hum licor santo.
Para quem? Para o genero he humano.
Que faz delle? Hum remedio soberano.
Para que? Para a culpa e triste pranto.
E que obra? Reduzir Lusbel a espanto.
Porque? Porque co'hum pomo fez grão dano.
Que foi? A morte deo com hum engano.
Tanto pôde? Sem falta pôde tanto.
Quem sobe a ella? Quem do ceo desceo.
A que desce? A subir a creatura.
Que quiz da terra? Só levá-la ao Ceo.
He escada para ir lá? E a mais segura.
Quem o obrigou? De amor só se venceo.
Que amava este Feitor? Sua feitura.

CCXLIII.
Oh Arma unicamente só triumphante,
Propugnaculo só de nossas vidas,
Por quem forão ganhadas as perdidas
Com que o Tartaro horrendo andava ovante!
Sigua-se esta bandeira militante
Por quem são taes victorias conseguidas,
Por quantas almas, della divertidas,
No Ponente errão cá, lá no Levante.
Oh Arvore sublime, e marchetada
De branco e carmesi, de ouro embutida,
Dos rubis mais preciosos esmaltada,
E de trophéos mais claros guarnecida!
Á vida a morte vimos em ti dada,
Para qu'em ti se désse á morte a vida.

CCXLIV.
Aos homens hum só homem poz espanto,
E o poz a toda a humana natureza;
Que de homem teve o ser, de Anjo a pureza,
Porqu'antes que nascesse era ja Santo.
Propheta foi na Mãe; em fim, foi tanto,
Qu'entre os nascidos houve a mor alteza;
Que da Luz, sem a ver, vio a grandeza,
Tendo por trompa o Verbo Sacrosanto.
Aquella voz foi elle sonorosa,
No concavo dos Orbes resonante,
E que a Carne inculpavel baptizou;
Quem do mor Pae ouvio a voz amante;
Quem a subtil pergunta industriosa
Com sincera resposta socegou.

CCXLV.
Vós só podeis, sagrado Evangelista,
Angelico abrazado Seraphim,
E na sciencia mais alto Cherubim,
Do que he mais sabio Amor ser Coronista.
Divina e real Aguia, cuja vista
Vio o qu'he sem princípio, o qu'he sem fim,
De Jacob mais querido Benjamim,
Quem mais campêa de Joseph na lista.
Apostolo, e Propheta, e Patriarca,
Ao Principe dos Ceos o mais acceito,
Qu'em seu seio dormindo então mais via.
A quem o mesmo Deos por irmão marca;
Quem por filho da Mãe unica feito,
Em corpo e alma goza o claro dia.

CCXLVI.
Como louvarei eu, Seraphim santo,
Tanta humildade, tanta penitencia,
Castidade, e pobreza, e paciencia,
Com este meu inculto e rudo canto?
Argumento que ás Musas põe espanto,
Que faz muda a grandiloqua eloquencia.
Oh imagem, qu'a Divina Providencia
De si viva em vós fez para bem tanto!
Fostes de Santos huma rara mina;
Almas de mil a mil ao ceo mandastes
Do mundo, que perdido reformastes.
E não roubaveis só com a doutrina
As vontades mortaes, mas a Divina;
Pois os seus rubis cinco lhe roubastes.

CCXLVII.
Ditosas almas, que ambas juntamente
Ao ceo de Venus e de Amor voastes,
Onde hum bem que tão breve cá lograstes,
Estais logrando agora eternamente;
Aquelle estado vosso tão contente,
Que só por durar pouco triste achastes,
Por outro mais contente ja o trocastes,
Onde sem sobresalto o bem se sente.
Triste de quem cá vive tão cercado,
Na amorosa fineza, de hum tormento
Que a gloria lhe perturba mais crescida!
Triste, pois me não val o soffrimento,
E Amor para mais damno me t[~e]e dado
Para tão duro mal tão larga vida!

CCXLVIII.
Contente vivi ja, vendo-me isento
Deste mal de que a muitos queixar via:
Chamão-lhe amor; mas eu lhe chamaria
Discordia e semrazão, guerra e tormento.
Enganou-me co'o nome o pensamento:
(Quem com tal nome não se enganaria?)
Agora tal estou, que temo hum dia
Em que venha a faltar-me o soffrimento.
Com desesperação, e com desejo
Me paga o que por elle estou passando,
E inda está do meu mal mal satisfeito.
Pois sôbre tantos damnos inda vejo
Para dar-me outros mil hum olhar brando,
E para os não curar hum duro peito.

CCXLIX.
Deixa Apollo o correr tão apressado,
Não sigas essa Nympha tão ufano:
Não te leva o amor, leva-te o engano
Com sombras de algum bem a mal dobrado.
E quando seja amor, será forçado;
E se forçado for, será teu dano.
Hum parecer não queiras mais que humano
Em hum sylvestre adôrno ver tornado.
Não percas por hum vão contentamento
A vista que te faz viver contente;
Modera em teu favor o pensamento.
Porque menos mal he, tendo-a presente,
Soffrer sua crueza, e teu tormento,
Que sentir sua ausencia eternamente.

CCL.
Nas Cidades, nos bosques, nas florestas,
Nos valles, e nos montes, teus louvores
Sempre te cantem musicos pastores
Nas manhãas frias, nas ardentes sestas.
E neste Templo donde manifestas
E repartes agora teus favores,
Com Psalmos, hymnos, e com varias flores
Sejão celebres sempre as tuas festas.
Estes te offreção pés, ess'outros mãos;
D'aquelles pendão sôbre os teus altares
Monstros do mar, de servidão prisões.
Que eu cuidados, enganos e affeições,
Muito maiores monstros, e milhares
Te deixo aqui de pensamentos vãos.

CCLI.
Vi queixosos de Amor mil namorados,
E nenhuns inda vi com seus louvores;
E aquelle que mais chora o mal de amores,
Vejo menos fugir de seus cuidados.
Se das dores de Amor sois mal tratados,
Porque tanto buscais de Amor as dores?
E se tambem as tendes por favores,
Porque dellas fallais como aggravados?
Não queirais alegria achar alg[~u]a
No Amor, porque he composto de tristeza,
Na fortuna que acheis mais agradavel.
Nella e nelle achei sempre a mesma l[~u]a,
Em quem nunca se vio outra firmeza,
Que não seja a de ser sempre mudavel.

CCLII.
Se lagrimas choradas de verdade
O marmore abrandar podem mais duro,
Porque as minhas que nascem de amor puro
Hum coração não rendem a piedade?
Por vós perdi, Senhora, a liberdade,
E nem da propria vida estou seguro.
Rompei desse rigor o forte muro,
Não passe tanto avante a crueldade.
Ao prezar de desprezos dae ja fim:
Não vos chamem cruel; nome devido
A quem se ri de quem suspira e ama.
Abrandai esse peito endurecido,
Por o que toca a vós, ja não por mim,
Que eu aventuro a vida, e vós a fama.

CCLIII.
Ja me fundei em vãos contentamentos,
Quando delles vivi todo enganado
De hum phantastico bem, e de hum cuidado,
De que só cuidão cegos pensamentos.
Passava dias, horas e momentos,
Deste enleio de amores tão pagado,
Que tinha só por bem-aventurado
Quem só por elles mais bebia os ventos.
Mas agora que ja cahi na conta,
Desengana-me quanto me enganava;
Que tudo o tempo dá, tudo descobre.
O Amor mais caudaloso menos monta.
Qu'he de gostos mais rico, eu ignorava,
Aquelle que de amores he mais pobre.

CCLIV.
Em huma lapa toda tenebrosa,
Adonde bate o mar com furia brava,
Sôbre h[~u]a mão o rosto, vi qu'estava
Huma Nympha gentil, mas cuidadosa.
Igualmente que linda, lastimosa,
Aljofar dos seus olhos distillava:
O mar os seus furores applacava
Com ver cousa tão triste e tão formosa.
Alguma vez na horrivel penedia
Os bellos olhos punha com brandura,
Bastante a desfazer sua dureza.
Com angelica voz assi dizia:
Ah! que falte mais vezes a ventura
Onde sobeja mais a natureza!

CCLV.
Se em mim, ó alma, vive mais lembrança
Que aquella só da gloria de querer-vos,
Eu perca todo o bem que lógro em ver-vos,
E de ver-vos tambem toda a esperança.
Veja-se em mi tão rustica esquivança,
Que possa indigno ser de conhecer-vos;
E, quando em mor empenho de aprazer-vos,
Vos offenda, se em mi houver mudança.
Confirmado estou ja nesta certeza:
Examine-me vossa crueldade,
Exprimente-se em mi vossa dureza.
Conhecei ja de mi tanta verdade;
Pois em penhor e fé desta pureza
Tributo vos fiz ser o que he vontade.

CCLVI.
Ilustre Gracia, nombre de una moza,
Primera malhechora en este caso
Á Mondoñedo, á Palma, al cojo Traso,
Sugeto digno de immortal coroza;
Si en medio de la Iglesia no reboza
El manto á vuestro rostro tan devaso,
Por vos dirán las gentes recio y paso:
Veis quien con el demonio se retoza.
Puede mover los montes sin trabajo;
Con palabras el curso al agua enfrena;
Por las ondas hará camino enjuto.
Averguenza su patria y rico Tajo,
Que por ella hombres lleva, mas que arena,
De que paga al infierno gran tributo.

CCLVII.
Qual t[~e]e a borboleta por costume,
Qu'enlevada na luz da acesa vella,
Dando vai voltas mil, até que nella
Se queima agora, agora se consume:
Tal eu correndo vou ao vivo lume
D'esses olhos gentis, Aonia bella;
E abrazo-me, por mais que com cautella
Livrar-me a parte racional presume.
Conheço o muito a que se atreve a vista,
O quanto se levanta o pensamento,
O como vou morrendo claramente;
Porém não quer Amor que lhe resista,
Nem a minh'alma o quer; qu'em tal tormento,
Qual em gloria maior está contente.

CCLVIII.
Lembranças de meu bem, doces lembranças
Que tão vivas estais nesta alma minha,
Não queirais mais de mi, se os bens que tinha
Em poder vêdes todos de mudanças.
Ai cego Amor! ai mortas esperanças
De qu'eu em outro tempo me matinha!
Agora deixareis quem vos sostinha;
Acabarão co'a vida as confianças.
Co'a vida acabarão, pois a ventura
Me roubou n'hum momento aquella gloria,
Que, quando tão grande he, tão pouco dura.
Oh se apoz o prazer fôra a memoria!
Ao menos estivera a alma segura
De ganhar-se com ella mais victoria.

CCLIX.
Formosos olhos, que cuidado dais
Á mesma luz do sol mais clara e pura;
Que sua esclarecida formosura,
Com tanta gloria vossa, atraz deixais;
Se por serdes tão bellos desprezais
A fineza de amor que vos procura,
Pois tanto vêdes, vêde que não dura
O vosso resplandor quanto cuidais.
Colhei, colhei do tempo fugitivo
E de vossa belleza o doce fruto;
Qu'em vão fóra de tempo he desejado.
E a mi, que por vós morro, e por vós vivo,
Fazei pagar a Amor o seu tributo,
Contente de por vós lho haver pagado.

CCLX.
Pues siempre sin cesar, mais ojos tristes,
En lágrimas tratais la noche el dia,
Mirad si es lágrima esta que os envia
Aquel sol por quien vos tantas vertistes.
Si vos me asegurais, pues ya la vistes,
Que es lágrima, será ventura mia;
Por empleadas bien desde hoy tendria
Las muchas que por ella sola distes.
Mas cualquier cosa mucho deseada,
Aunque viendo se esté, nunca es creida;
Y menos esta, nunca imaginada.
Pero della aseguro, si es fingida,
Que basta ser por lágrima enviada,
Para que sea por lágrima tenida.

CCLXI.
T[~e]e feito os olhos neste apartamento
Hum mar de saudosa tempestade,
Que póde dar saudade á saudade,
Sentimentos ao proprio sentimento.
Em dor vai convertido o soffrimento,
Em pena convertida a piedade;
A razão tão vencida da vontade,
Qu'escravo faz do mal o entendimento.
A lingua não alcança o qu'a alma sente.
E assi, se alguem quizer em algum'hora
Saber que cousa he dor não comprehendida,
Parta-se do seu bem, porque exprimente
Qu'antes de se partir, melhor lhe fôra
Partir-se do viver para ter vida.

CCLXII.
A peregrinação d'hum pensamento,
Que dos males fez hábito e costume,
Tanto da triste vida me consume,
Quanto cresce na causa do tormento.
Leva a dor de vencida ao soffrimento;
Mas a alma está, de entregue, tão sem lume,
Qu'enlevada no bem que haver presume,
Não faz caso do mal qu'está de assento.
De longe receei (se me valêra)
O perigo que tanto á porta vejo,
Quando não acho em mi cousa segura.
Mas ja conheço, (oh nunca o conhecêra!)
Qu'entendimentos presos do desejo
Não t[~e]e remedio mais que o da ventura.

CCLXIII.
Acho-me da fortuna salteado;
O tempo vai fugindo presuroso,
Deixando-me da vida duvidoso,
E cada instante mais desesperado.
Trocou-se o meu descuido em tal cuidado,
Que donde a gloria he mais, he mais penoso.
Nem vivo de perder-me receoso,
Nem de poder ganhar-me confiado.
Qualquer ave nos montes mais agrestes,
Qualquer fera na cova repousando,
T[~e]e horas de alegria: eu todas tristes.
Vós, saudosos olhos, que o quizestes,
(Pois com tormento Amor me está pagando)
Chorai, como que vêdes, o que vistes.

CCLXIV.
Se no que tenho dito vos offendo,
Não he a intenção minha de offender-vos;
Qu'inda que não pretenda merecer-vos,
Não vos desmerecer sempre pretendo.
Mas he meu fado tal, segundo entendo,
Que, por quanto ganhava em entender-vos,
Não me deixa atégora conhecer-vos,
Por a mi proprio m'ir desconhecendo.
Os dias ajudados da ventura
A cada qual de si dão desenganos,
E a outros soe da-lo a desventura.
Qual destas sirva a mi, dirão os danos
Ou gostos que eu tiver, em quanto dura
Esta vida, tão larga em poucos anos.

CCLXV.
Doce contentamento ja passado,
Em que todo o meu bem só consistia,
Quem vos levou de minha companhia,
E me deixou de vós tão apartado?
Quem cuidou que se visse neste estado
Naquellas breves horas d'alegria,
Quando minha ventura consentia
Que d'enganos vivesse meu cuidado?
Fortuna minha foi cruel e dura
Aquella que causou meu perdimento,
Com a qual ninguem póde ter cautella.
Nem se engane nenhuma creatura;
Que não póde nenhum impedimento
Fugir o que lh'ordena sua estrella.

CCLXVI.
Sempre, cruel Senhora, receei,
Medindo vossa grã desconfiança,
Que désse em desamor vossa tardança,
E que me perdesse eu, pois vos amei.
Perca-se, em fim, ja tudo o qu'esperei,
Pois n'outro amor ja tendes esperança.
Tão patente será vossa mudança,
Quanto eu encobri sempre o que vos dei.
Dei-vos a alma, a vida e o sentido;
De tudo o qu'em mi ha vos fiz senhora.
Prometteis, e negais o mesmo Amor.
Agora tal estou, que de perdido,
Não sei por onde vou, mas algum'hora
Vos dará tal lembrança grande dor.

CCLXVII.
Se a fortuna inquieta e mal olhada,
Que a justa lei do Ceo comsigo infama,
A vida quieta, qu'ella mais dasama,
Me concedêra honesta e repousada;
Pudéra ser que a Musa, alevantada
Com luz de mais ardente e viva flama,
Fizera ao Tejo lá na patria cama
Adormecer co'o som da lyra amada.
Porém, pois o destino trabalhoso,
Que m'escurece a Musa fraca e lassa,
Louvor de tanto preço não sustenta;
A vossa, de louvar-me pouco escassa,
Outro sogeito busque valeroso,
Tal qual em vós ao mundo se apresenta.

CCLXVIII.
Este amor, que vos tenho limpo e puro,
De pensamento vil nunca tocado,
Em minha tenra idade começado,
Tê-lo dentro nesta alma só procuro.
D'haver nelle mudança estou seguro,
Sem temer nenhum caso, ou duro fado,
Nem o supremo bem, ou baixo estado,
Nem o tempo presente, nem futuro.
A bonina e a flor asinha passa;
Tudo por terra o inverno e estio deita;
Só para meu amor he sempre Maio.
Mas ver-vos para mim, Senhora, escassa,
E qu'essa ingratidão tudo me engeita,
Traz este meu amor sempre em desmaio.

CCLXIX.
A formosura desta fresca serra,
E a sombra dos verdes castanheiros,
O manso caminhar destes ribeiros,
Donde toda a tristeza se desterra;
O rouco som do mar, a estranha terra,
O esconder do sol pelos outeiros,
O recolher dos gados derradeiros,
Das nuvens pelo ar a branda guerra:
Em fim, tudo o que a rara natureza
Com tanta variedade nos offrece,
M'está (se não te vejo) magoando.
Sem ti tudo me enoja, e me aborrece;
Sem ti perpetuamente estou passando
Nas mores alegrias môr tristeza.

CCLXX.
Sustenta meu viver huma esperança
Derivada de hum bem tão desejado,
Que quando nella estou mais confiado,
Mor dúvida me põe qualquer mudança.
E quando inda este bem na mór pujança
De seus gostos me t[~e]e mais enlevado,
Me atormenta então ver eu qu'alcançado
Será por quem de vós não t[~e]e lembrança.
Assi que, nestas redes enlaçado,
A penas dou a vida, sustentando
Huma nova materia a meu cuidado.
Suspiros d'alma tristes arrancando,
Dos silvos d'huma pedra acompanhado,
Estou materias tristes lamentando.

CCLXXI.
Ja não sinto, Senhora, os desenganos,
Com que minha affeição sempre tratastes,
Nem ver o galardão, que me negastes,
Merecido por fé ha tantos anos.
A mágoa chóro só, só chóro os danos
De ver por quem, Senhora, me trocastes;
Mas em tal caso vós só me vingastes
De vossa ingratidão, vossos enganos.
Dobrada gloria dá qualquer vingança,
Que o offendido toma do culpado,
Quando se satisfaz com causa justa;
Mas eu de vossos males e esquivança,
De que agora me vejo bem vingado,
Não a quizera tanto á vossa custa.

CCLXXII.
Quando, Senhora, quiz Amor qu'amasse
Essa grã perfeição e gentileza,
Logo deo por sentença, que a crueza
Em vosso peito amor accrescentasse.
Determinou, que nada me apartasse,
Nem desfavor cruel, nem aspereza;
Mas qu'em minha rarissima firmeza
Vossa isenção cruel se executasse.
E, pois tendes aqui offerecida
Est'alma vossa a vosso sacrificio,
Acabai de fartar vossa vontade.
Não lhe alargueis, Senhora, mais a vida;
Acabará morrendo em seu officio,
Sua fé defendendo e lealdade.

CCLXXIII.
Eu vivia de lagrimas isento,
N'hum engano tão doce e deleitoso,
Qu'em qu'outro amante fosse mais ditoso
Não valião mil glorias hum tormento.
Vendo-me possuir tal pensamento,
De nenhuma riqueza era invejoso;
Vivia bem, de nada receoso,
Com doce amor e doce sentimento.
Cobiçosa a Fortuna, me tirou
Deste meu tão contente e alegre estado;
E passou-se este bem, que nunca fôra:
Em trôco do qual bem só me deixou
Lembranças, que me mátão cada hora,
Trazendo-me á memoria o bem passado.

CCLXXIV.
Indo o triste pastor todo embebido
Na sombra de seu doce pensamento,
Taes queixas espalhava ao leve vento,
Co'hum brando suspirar d'alma sahido:
A quem me queixarei, cego, perdido,
Pois nas pedras não acho sentimento?
Com quem fallo? A quem digo meu tormento?
Que onde mais chamo, sou menos ouvido.
Ó bella Nympha, porque não respondes?
Porque o olhar-me tanto m'encareces?
Porque queres que sempre me querelle?
Eu quanto mais te busco, mais te escondes!
Quanto mais mal me vês, mais te endureces!
Assim que co'o mal cresce a causa delle.

CCLXXV.
Dizei, Senhora, da belleza idêa,
Para fazerdes esse aureo crino,
Onde fostes buscar esse ouro fino?
De qu'escondida mina ou de que vêa?
Dos vossos olhos essa luz Phebêa,
Esse respeito, de hum Imperio dino?
Se o alcançastes com saber divino,
Se com encantamentos de Medéa?
De qu'escondidas conchas escolhestes
As perlas preciosas Orientais,
Que fallando mostrais no doce riso?
Pois vos formastes tal, como quizestes,
Vigiai-vos de vós, não vos vejais,
Fugi das fontes; lembre-vos Narciso.

CCLXXVI.
Na ribeira do Euphrates assentado,
Discorrendo me achei pela memoria
Aquelle breve bem, aquella gloria,
Que em ti, doce Sião, tinha passado.
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