Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 15

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Que sempre fertil seja a praia tua.
Tornando, emfim, á prática primeira,
Por dar-te, como queres, de mi conta,
Larga ta quero dar e verdadeira.
Apartar-te do gado leva em conta;
Que, pois com elle fica o pegureiro,
Que te detenha hum pouco, pouco monta.
O meu nome he Anzino: fui vaqueiro
Na grã serra da Estrella, que não tive;
Não sei se natural, ou se estrangeiro.
Hum pastor me criou, que ja não vive;
De todos por seu filho era julgado;
E eu tambem neste engano hum tempo estive.
Até que delle soube ser achado
Em huma anzina envolto em pobres panos;
E daqui veio, que Anzino fui chamado.
Neste meu desengano outros enganos
Fundou de novo a pouca dita minha,
Com que o vim a servir mais de sete annos.
Tinha muito de seu, e mais não tinha
De filhos, que huma filha bem formosa,
Á qual por morte delle tudo vinha.
Conversação doméstica e damnosa,
Na livre formosura e tenra idade,
Em ambos accendeu chamma amorosa.
Como ella de mi soube esta verdade,
Com outro amor, com outros exercicios,
Nella ganhei de novo outra vontade.
Amor mestre me fez de mil officios
Para meio do fim que desejava;
E delle sinal davão mil indicios.
Tecia alvos cestinhos, quando andava
Com as vaccas no prado: á noite hum cheio
De fructa, outro de flores lhe levava.
Nas mangas muitas vezes e no seio
As nozes lhe levei com as castanhas,
Quer do souto do pae, quer d'outro alheio.
Nos intricados bosques, nas montanhas,
Por seu amor as feras perseguia,
Fôrças agora usando, agora manhas.
Vivos os mansos cervos lhe trazia;
Vivas medrosas lebres fugitivas:
Ligeireza de pés não lhes valia.
Mas, se lhe dava as mansas feras vivas,
Mortas lhe dava as que por natureza,
Sem domar-se, são bravas, ou esquivas.
Certo dia achei eu n'huma aspereza,
Sem mãe, hum cervo branco e pequenino;
Trouxe-lho; ella o criou; inda hoje o préza.
Ou ja criação seja, ou ja destino,
Tanto que não o vê, geme e suspira.
Como menos fara o triste Anzino?
Tangia mal na frauta, mal na lira;
Despois tão bem tangia, qu'era espanto
A quem antes d'amor tanger m'ouvíra.
Ouvia celebrar sempre em meu canto
Ulina a sua rara formosura:
(Tal nome t[~e]e aquella, a que amo tanto.)
Contava-lhe meus males por figura:
Ficava eu, de medroso, frio e mudo;
Ficava ella suspensa; a historia escura.
Assi com tal temor, com tal estudo,
Amor fui grangeando longamente,
Á conta deste amor perdendo tudo.
Ella, dos meus desejos innocente,
O mesmo amor me tinha, tanto, digo;
Que no ser era todo differente.
Praticava seus gostos só comigo;
Seus desgostos tambem, seus pensamentos,
Com rara graça e com saber antigo.
Outras vezes, confusa nos intentos,
Os modos me notava, e me dizia:
Entre irmãos de que servem comprimentos?
Eu quizera, Senhora, (respondia)
Que soubesses de mi, qu'irmão não sendo,
Não com menos amor te serviria.
Tornou-me: Essa resposta não entendo:
O que não quiz o ceo, queres que seja?
Que castellos no vento andas fazendo?
Se me queres ver leda, não te veja
Soltar essas palavras ociosas:
Materia mais honesta nos sobeja.
Dizendo assi, nascião-lhe outras rosas
Naquellas proprias suas, sôbre a neve
Das suas faces mais que o sol formosas.
Destas quebras comigo algumas teve;
Cujas fôrças amor quebrava logo
N'outra conversação mais branda e leve.
Cresceo desta maneira o vivo fogo,
Que ardendo dentro na alma encurta a vida;
Cujo principio foi hum brinco, ou jôgo.
Mas ella neste tempo era pedida
De muitos a seu pae em casamento;
Nova dor para mi, mortal ferida!
Elle lhe nomeava mais de cento:
Delles paternamente lhe rogava
Hum escolhesse a seu contentamento.
Com mil razões fingidas s'escusava,
Sendo só a razão, não ser contente;
Com que desgôsto ao pae, gôsto a mi dava.
Estando nós por huma sesta ardente
Á sombra d'huns madronhos repousando,
Affastados da casa e mais da gente,
Ja d'huma e d'outra cousa praticando;
Soltou com hum suspiro estas palabras:
Desde hontem para cá em mi não ando.
Logo que nosso pae tornou das labras,
Me disse que assentára de casar-me
Com Tityro, pastor de muitas cabras.
Que não buscasse causas d'escusar-me,
Como por muitas vezes ja fizera,
Pois tinha muitas mais de contentar-me.
Que afóra esta tenção, que a sua era,
O mesmo seus parentes lhe dizião,
A quem de seus intentos conta dera.
As ágoas, que dos olhos me corrião,
Em quanto elle me disse o que te digo,
Por mi, que fiquei muda, respondião.
Com seu chôro abrandou ao pae amigo;
Qu'emfim, deixando-a menos magoada,
Lhe disse que fallasse isto comigo.
Assi me disse; e que determinada
Estava a qualquer mal que lhe viesse.
Antes que ser com Tityro casada.
Que por mais de mil cabras que tivesse,
Jamais esta vontade mudaria;
Que buscava saber, não interesse.
E que de melhor mente casaria
Com hum qualquer pastor, pobre de gado,
Se nelle as partes visse, que em mi via.
Por extremo de mi lhe foi louvado
O pensamento seu; e sem detença
Tal resposta lhe dei acautelado:
Se a dar meu parecer me dás licença,
Hum pastor te darei de qualidade,
Que em nada de mi tenha differença;
Nem de menos saber, nem mais idade;
Nas manhas outro tal, e em corpo e gesto:
Da fazenda não sei a quantidade.
Se esse me fazes bom, daqui protesto
De não receber outro por marido:
Me respondia com sembrante honesto.
Pois sabe (respondi) que ja admittido
Me tens com gôsto teu por teu esposo;
Que com dar-te-me dou o promettido.
Não pude dizer mais, de vergonhoso,
Nem ella me deixou com ouvir tal,
Suspeitando de mi amor vicioso.
Logo me respondeo: Ah desleal!
Ah deshonesto irmão! isso pretendes?
Mas não irmão, imigo capital.
O ceo, que com injusto amor offendes,
Tome, cruel, de ti justa vingança,
Antes que de tamanho error t'emendes.
Andavas-me enganando na esperança
Com esses falsos e indevidos meios
Ao sangue nosso e minha confiança?
Fizeste verdadeiros os receios,
A que confusamente me levavas
De sombras enganosas com rodeios.
Desejo no teu peito agasalhavas
Tão torpe, tão infame, tão alheio
Do puro amor, a que obrigado estavas?
Não te desculpes, não; que ja não creio
Lagrimas, nem palavras, nem desculpas
De quem imaginou caso tão feio.
Timido respondi: De que me culpas?
Se ouvido me não dás, não tens razão;
Acaba de me ouvir o fim das culpas.
T[~e]e-me, Ulina, por teu, não por irmão:
Se me não queres crer esta verdade,
De teu pae saberás se minto, ou não.
Por filho me criou: a flor da idade
Gastei em o servir por teu respeito:
Ólha o que te merece esta vontade.
Se com ser isto assi tenho êrro feito
Em grangear-te; que a ti só desejo;
Eis este ferro aqui, eis este peito.
Isto ouvindo, mostrou hum ledo pejo,
Pondo os olhos no chão, formosa e branda;
E cuido qu'inda assi nos meus a vejo.
Disse-me: Em que revoltas o amor anda!
No bem, como no mal, tambem me enleia:
Inda agora o senti, ja reina e manda.
Como queres, Anzino, qu'eu te creia
Cousa que nem sonhada foi tégora?
Não sabes de quem ama, o que receia?
Fallarei com meu pae: fica-t'embora:
No desengano seu teu bem consiste;
Da palavra que dei não estou fóra.
Com isto me deixou alegre e triste.
O comêço ja ouviste de meu dano,
Amigo Limiano: o fim amargo,
Em que não serei largo, escuita agora.
Fulgencia, outra pastora, que vizinha
Era d'amada minha e grande amiga,
(Não sei como isto diga que não moura)
Pastora branca e loura, que na serra
Era a segunda guerra dos pastores,
Por mal dos meus amores me quiz bem.
Fundava-se porém em casamento;
E deste fundamento lhe nascia,
Que, como me não via, o valle, o monte,
O bosque, o rio, a fonte rodeava.
Em busca minha andava aquella sesta;
Entrou pola floresta, onde nos vio;
E tudo nos ouvio quanto fallámos,
Entre huns espessos ramos escondida.
Cruelmente ferida dos ciumes,
Foi-se a fazer queixumes (descobrindo
Mais do qu'esteve ouvindo) ao pae d'Ulina.
Eis logo desatina o triste velho;
Eis que sem mais conselho a filha entrega,
Que com chôro se nega e com palabras,
Ao simple guarda cabras, por esposa.
Ah hora desditosa! ah sorte dura!
Daquella formosura desusada,
De tantos desejada, e de mi tanto
Servida com espanto e puro amor,
Quizeste, por mais dor, enriquecer
Quem não sabe entender o preço della?
Ó tu, serra d'Estrella, que tal viste,
Como te não abriste; e no teu centro
Me não cerraste dentro, estando vivo,
Porque mal tão esquivo não sentíra?
Oh cega, oh cruel ira! oh pae fingido!
Para me ver perdido me criaste?
Porque me não deixaste no deserto?
Menos crueza, certo, então usáras,
Inda que me deixáras (não te aggraves)
Ás cruas feras e aves da montanha.
Não vês que o ceo estranha isso que tratas?
Não vês que a ti te matas cobiçoso?
Na porta o novo esposo tropeçou;
Na casa não entrou co'o pé direito:
Gritou sobolo teito a noite inteira
A ave, qu'he mensageira de fins tristes.
O mesmo vós sentistes, cães da aldeia,
Quando por má estreia, juntos todos,
Com differentes modos huiviastes.
Serranas, qu'esperastes nestas vodas
Cantar alegres todas Hymeneos,
Dos vossos alvos seios, alvas flores,
Em lugar dos licores mais custosos,
Por cima dos esposos derramando;
Ou vendo estar bailando, estando quedas,
Ao som das gaitas ledas no terreiro
O moço tão ligeiro á maravilha,
Que quasi o pé não trilha o junco mole;
Qual será que console a triste amiga,
A quem a fôrça obriga do pae duro,
A quem o Amor puro obriga tanto,
Que n'hum contino pranto se consume?
Assi do grande cume da esperança
Com subita mudança derribado,
Me poz em tal estado a triste nova,
Como sabe por prova quem bem ama.
Levou a leve fama a minha dor
A Sincero pastor, meu grande amigo,
Que com rogos comsigo me levou,
Do monte, onde me achou, ja noite escura,
Chorando a desventura em que me via.
As vaccas, vindo o dia, derramadas,
De mi desamparadas, vem bramando,
Sinal n'aldeia dando em seu bramido
De qu'era ja perdido o pastor seu.
Tamanha pena deo á bella Ulina
(Bella, porém mofina) a pena minha,
Sôbre quantas ja tinha no seu peito,
Que mais do triste leito não s'ergueo.
Seu pae adoeceo tambem de nojo:
Da morte foi despojo ao dia quinto.
A dor que daqui sinto he sem medida.
Pois m'apartou da vida, a vida acabe,
Ou n'alma, onde não cabe, faça pausa.
Fulgencia, que foi causa destes males,
Des que montes e valles descobrio,
Despois que me não vio em toda a serra,
Deixou, deixando a terra, mágoa aos pais,
Que della nunca mais novas souberão.
Emfim, tal fim tiverão meus amores.
Chorárão os pastores juntamente
D'Ulina descontente a triste sorte,
Do pae a breve morte, e de Fulgencia
A vingadoura ausencia de seu êrro;
De mi este destêrro em que me pôs.
Mas mais chorastes vós, meus olhos tristes,
Quando de vossa luz, sem a do dia,
Por terras tão estranhas vos partistes.
Cuido que meia noite então seria;
Cantando os gallos ja na triste aldeia,
Chorava só quem della se partia.
Casa de meus suspiros sempre cheia,
(Disse eu, quando passei pela de Ulina)
Tal fructo colhe quem amor semeia!
Fortuna, a mi cruel, sempre benina
Em tudo seja áquella, que em ti mora,
Indaqu'em outros braços se reclina.
Fica-te aqui, minha alma, fica embora,
Que, pois assi o quiz fado inimigo,
Jamais te não verei dia nem hora.
Dalli nos ricos campos dei comigo,
Que das ágoas do Tejo são regados;
Onde te vi mais ledo, como digo.
Por ver se posso agora a meus cuidados
Achar algum repouso, algum socêgo,
Atravessando vou montes e prados.
Passei as claras ágoas do Mondego,
Das Lusitanas Musas charo ninho;
As do Douro despois em turvo pégo.
Daqui continuando meu caminho,
Espero ver a casa aos ceos acceita,
Na terra que da nossa aparta o Minho.
Onde vou visitar na urna estreita
Os santos ossos do Varão divino,
Que pretendeo do Mestre o mão direita.
Assi, d'hum lugar n'outro de contino,
O bem que ja cantei, chorando venho;
Tornei-me de vaqueiro, peregrino:
Tal hábito me vês, tal vida tenho.
LIMIANO.
Anzino, he breve o dia
Para poder contar
O que sinto de tua desventura.
E sei bem qu'erraria,
Se quizesse louvar
O grave estylo teu, tua brandura.
Aquella formosura,
Por quem alegre fôras;
Que tu ledo cantaste,
E que despois choraste
Tão triste, qu'ind'agora triste choras;
Vivendo eterna nella,
Será mágoa commum, e louvor della.
As mágoas deixo enfim;
Tambem louvores deixo,
Por grandes ellas, elles por pequenos.
Tu, por amor de mim,
(Dir-te-hei de que me queixo)
Repousa hoje comigo, quando menos:
Assi vejas serenos
Esses teus tristes lumes.
Abranda a dura mágoa,
Que tira fontes de ágoa
Do fogo em que chorando te consumes;
Dar-te-hei conta mais larga
Da vida que aqui passo tão amarga.
E mais saber desejo
Se a fama nos engana,
Que diz, que o grão pastor dos Lusitanos,
Com todos os do Tejo,
E com fato e cabana,
Reside ja nos campos Africanos;
Onde mil soberanos
Triumphos, delle dinos,
Lh'ordena a fatal sorte,
Com grande estrago e morte
Dos brutos mal nascidos Sarracinos,
Que de si despejados
Os curraes deixão ja cheios de gados.
Que sendo assi, te digo
Que não espero mais
Nesta para mi sempre ingrata terra.
Quem traz guerra comsigo
Entre seus naturais,
Não deve d'estranhar estranha guerra.
Sem mi de serra a serra
(O ceo assi o queira)
Logrem meus inimigos
Os valles e pacigos
Desta, donde nasci, fresca ribeira;
Na qual (se não m'engano)
Inda será chorado Limiano.
ANZINO.
Limiano, ja bem tenho entendido
Quanto sentes meu mal; mas eu te digo
Que o teu mal he de mi menos sentido.
Ácerca de ficar hoje comtigo,
Farei pois (ja qu'assi nos detivemos)
Tudo o que tu quizeres, como amigo.
E, pois o dia ja passado temos,
Vamos-nos mais chegando para o gado;
E lá nas outras cousas fallaremos.
Todavia de funda e de cajado
Te vai apercebendo a som de guerra;
Que não foi tal pastor cá do ceo dado,
Para não dar ao ceo tão larga terra.

ECLOGA XII.

INTERLOCUTORES.
DELIO, ALCIDO, GALASIO.
DELIO.
Agora, Alcido, em quanto o nosso gado
Pasce diante nós manso e seguro,
Sentemos-nos aqui neste abrigado.
Logremos este sol sereno e puro,
Que livre se nos dá, antes que venha
A noite fria com seu manto escuro.
O rico com seu ouro lá se avenha;
Não se farta a cobiça co'a riqueza:
Mais arde o fogo quando t[~e]e mais lenha.
Com pouco se contenta a natureza.
Quem isto bem olhasse, certifico
Que não fugisse tanto da pobreza.
O sol tambem m'aquenta, como ao rico;
A fonte ágoa me dá, fructos a terra:
Com pouco mantimento farto fico.
Ah! que a má vaidade nos faz guerra!
(Para que gasto tempo em mais palabras?)
Os olhos da razão esta nos cerra.
Alcido, tens ovelhas, e tens cabras,
De que tiras da lãa, tiras do leite;
E não te faltão campos em que labras.
Inda tu queres mais? Amigo (eu hei-te
De fallar claro e sem lisongerias:
Não hajas medo tu, qu'eu as affeite)
Tu cantavas amor, amor tangias;
Faltava a tua frauta; agora he muda:
Que mal te mudou tanto em poucos dias?
ALCIDO.
Muda-se a idade, Delio; e se se muda
Com ella a condição, nada m'espanto;
O gôsto m'ajudou, ja não m'ajuda.
Se ja cantei amor, se amor não canto,
Culpas do tempo são, que vai mudando
O meu cantar alegre em triste pranto.
O tempo, que tão leve vai voando,
Delio, não torna mais; e assi fugindo,
Mil claros desenganos nos vai dando.
Pouco a pouco se veio descobrindo
O mal d'huma esperança vãa e incerta,
Que me deixou chorando, e foi-se rindo.
Quem nasce sem ventura, ou quem acerta
De fazer fundamento em peito alheio,
De mil contas que faz nenhuma he certa.
DELIO.
Pois se isso entendes tu, donde te veio
Sentir tão de verdade as sem-razões,
Não sendo d'outra cousa o mundo cheio?
ALCIDO.
Não queres tu que sintão corações
Obrigados com dor a sentimento,
Vendo a razão vencida d'affeições?
DELIO.
Emfim, todas as cousas querem tento:
Encobre a dor, e guarda-te d'extremos;
Que sempre trazem arrependimento.
Ao nosso doce canto nos tornemos:
Das nossas Nymphas, bellas inimigas,
Crueza e formosura celebremos.
ALCIDO.
Como cantarei eu novas cantigas
Em terra tão esteril, cheia d'ira,
Que nega flores, e que nega espigas?
Pendurei n'hum salgeiro a minha lira:
Ouvi-la ao som do vento he h[~u]a mágoa:
Em lugar de tanger, geme e suspira.
A Amarilia pintei, pintada trago-a
Aqui neste meu seio, e tambem chora:
Seus olhos me dão fogo, os meus dão-lhe ágoa.
Mas vejo vir Galasio.
DELIO.
Venha embora.
Galasio, queres tu cantar comigo?
GALASIO.
Eu nunca me roguei: menos agora.
DELIO.
Cantaremos d'Amor cruel imigo,
Ou brando e amoroso, em razão pôsto,
Tyranno e cego, e cego até comsigo?
GALASIO.
Cada qual cante do que for seu gôsto;
Quer mimos, quer rigores d'Amor fero;
Ou d'olhos verdes cante, ou d'alvo rosto.
ALCIDO.
Em quanto vós cantais, recolher quero
O gado; que são horas de ordenhar:
Á noite na malhada vos espero.
GALASIO.
Isso não: has d'ouvir para julgar
Qual de nós melhor canta e melhor sente.
DELIO.
Eu ja não cantarei, sem apostar.
Aposto o meu rafeiro, que Valente
Se chama, e com razão; que o lobo affasta,
Se não cantar mais branda e docemente.
GALASIO.
Hum cervo manso aposto.
DELIO.
Isso não basta:
Põe mais hum par da cabras.
GALASIO.
Deos me guarde;
Porque, Delio, este gado he da madrasta.
ALCIDO.
Fazeis-me vós juiz? Quereis que aguarde?
Ora cantae sem preço e sem inveja;
E seja logo, porque ja he tarde.
DELIO.
Learda minha, branca mais que a neve,
E muito mais corada que a grãa fina;
S'inda Amor a vencer-te não se atreve,
Que fara quem d'Amor por ti se fina?
Eu morro; e tu meu mal julgas por leve?
Não vês tu como ja me desatina?
Ai triste! que me vem valles e montes,
Regados de meus olhos feitos fontes.
GALASIO.
Marfida, branca mais que o branco leite;
Vermelha muito mais que a rosa pura;
Assi descuido em ti nunca suspeite,
Assi me trates inda com brandura;
Que a cabana, que a vida e a alma engeite
Por ti, quando tu mais que marmor dura.
Testimunhas serão montes e valles,
A quem dou larga conta de meus males.
DELIO.
Quando a minha Learda desencolhe
Os seus cabellos d'ouro, longo, ondado,
O sol, de pura inveja, se recolhe,
Corrido de se ver menos dourado.
Livre pastor não ha, que bem os olhe,
Sem se achar logo nelles enlaçado.
Ai! não soltes, Learda, os teus cabellos,
Pois tanto prendem quantos ousão vellos.
GALASIO.
Os tristes corações se tornão ledos,
Ouvindo de Marfida o doce canto;
Os furiosos ventos estão quedos;
Não guia o claro sol seu carro em tanto.
Converte-se a dureza dos penedos
Em brando amor: Amor desfaz-se em pranto,
Vencido dessa voz, doce Marfida;
Mas tu nunca d'Amor foste vencida.
DELIO.
O campo de verdura vejo pobre;
O ceo chuivoso sempre, e turvo o rio;
Da sua leve folha a terra cobre
O bosque, que foi ja verde e sombrio.
Mas se Learda o rosto seu descobre,
Logo desapparece o tempo frio:
Comsigo a primavera traz Learda.
Ai quem a visse ja! Ai quanto tarda!
GALASIO.
A triste Progne ja despareceo;
A toda flor o frio foi imigo;
A doce Philomela emmudeceo,
Rouca de lamentar seu mal antigo.
Mas venha por aqui quem me venceo
Com hum só volver d'olhos; qu'eu m'obrigo,
Que as aves tornem logo a seus amores,
E os campos se matizem de mil flores.
DELIO.
A viva chamma, aquelle vivo ardor,
Que brando sinto ja pelo costume,
De noite dá de si tal resplandor,
Que os pastores vem delle a tomar lume.
Pasmados ficão, vendo em mi d'amor
O fogo, que me queima e não consume:
E tu, por quem eu ardo noite e dia,
Quando vês tal ardor ficas mais fria!
GALASIO.
Eu sempre chóro, e tanto ja chorei,
Vencido da grã dor que n'alma tinha,
Que mil vezes de lagrimas fartei
Meu gado, quando a fonte a buscar vinha.
Chorando as duras pedras abrandei;
Mas nunca a ti, cruel imiga minha,
Que, vendo que por ti m'estillo em ágoa,
Nenh[~u]a mágoa tens de minha mágoa.
DELIO.
Quando vires, Learda, o nosso Lima,
Que lá vai de meu chôro acompanhado,
Tornar com suas ágoas para cima,
De seu curso esquecido, costumado;
Então embora julga, então estima
Que tenho n'outra parte o meu cuidado.
Mas deixarão os rios de correr,
Primeiro que deixe eu de te querer.
GALASIO.
Estas serras, Marfida, por certeza
De minha firme fé só quero dar-te:
Quando com espantosa ligeireza
Daqui correr as vires a outra parte,
Então cuida que falta em mi firmeza,
Qu'então deixarei eu, meu bem, de amar-te.
Mas mudar-se daqui bem podem ellas,
E eu não mudar de mi graças tão bellas.
ALCIDO.
Se esta vontade minha não deseja
A vossos versos dar justos louvores,
Hora nunca na vida alegre veja.
Acceitae meu desejo, meus pastores:
Mais vos não póde dar quem traz o esprito
De todo entregue a damnos, mágoas, dores.
Mas porque dê de vós público grito
A leve fama, como vêdes, deixo
O vosso canto e o meu juizo escrito
No liso tronco deste verde freixo.
Delio neste lugar doce cantou
Com Galasio, que doce respondia:
Hum Learda, Marfida outro louvou,
Com inveja de qual melhor diria.
Alcido, que o seu canto bem notou
Por ver quem a victoria levaria,
Como livre juiz, deo por sentença,
Que não havia entr'elles differença.

ECLOGA XIII.
_Phyllis._
Pascei, minhas ovelhas: eu, em quanto
Aquelle passarinho canta ou chora,
Chamarei Corydon com triste pranto.
Se entre vós, bellas plantas, amor mora
(Plantas, ja vós amastes) tende mágoa
De mi, pois que m'ouvis queixar agora.
Ai cruel Corydon! cruel a frágoa
Em que vivo por ti! Não tens piedade
Dever meu peito fogo, os olhos ágoa?
Ja não amas a Phyllis? Ah crueldade!
Ai triste! E que farei? Em poucos dias
Mudaste tu de mi tua vontade.
A Phyllis ja deixaste, a quem trazias
No formoso verão formosas fruitas,
Sinal do grande bem que me querias?
Sabes, cruel, que tenho causas muitas
Para te convencer, de que queixar-me;
Por isso vás fugindo e não me escuitas.
Puderão os teus rogos abrandar-me:
Os meus (triste de mi!) mais te endurecem.
Ja não acho em que possa confiar-me.
Aquelles doces versos ja t'esquecem,
Que tu nos lisos álamos cortavas,
Onde com teus enganos inda crescem?
Arder por meu amor nelles mostravas:
Eu, crendo que era assi, não entendia
Quanto fingiste amar, quão pouco amavas.
Tristes meus fados forão, triste o dia
Em que nasci: coitada de mi triste,
Qu'em mágoa se tornou minha alegria!
Logo que a tua Galatêa viste,
Vi eu deste meu mal grandes agouros;
E tu da parte esquerda hum corvo ouviste.
E não t[~e]e Galatêa mais thesouros,
Nem t[~e]e mais formosura, inda que seja
Ou d'alvo rosto, ou de cabellos louros.
Á negra violeta t[~e]e inveja
O branco lirio, porque tal não tem
O cheiro, que vencido não se veja.
Tityro arde por mi; Tityro, a quem
Mil Nymphas dão capellas de mil flores;
Mas elle a mi só chama, a mi quer bem.
Eu desprézo por ti muitos pastores,
E tu por Galatêa me desprezas!
Tal pago dás, cruel, a meus amores?
Em que te mereci tantas cruezas,
Quantas usas comigo? Por ventura
Usei comtigo d'ira, ou d'asperezas?
Prouvera a Deos que tão isenta e dura
Me víras para ti, que nunca víras
Em mi sinal d'amor, ou de brandura!
S'eu fugíra de ti, tu me seguiras;
Por mi ardêras, não por huma ingrata,
Por quem choras em vão, em vão suspiras.
Bem me vinga de ti, pois te maltrata:
Mas eu te quero tanto, que desamo
(Por mais que tu me mates) quem te mata.
Respondem-me estes montes, quando chamo
Por ti com triste voz; Ecco responde
Das lagrimas, movida, que derramo.
E tu não me respondes, nem sei onde
Te leva esse desejo; mas bem sei
Que amor e desamor de mi t'esconde.
Ai triste Phyllis! triste! Onde acharei
Remedio a tanto mal? O fogo puro
Em que m'abrazo, com que abrandarei?
Ja fugíra daqui por mais que duro
Fosse o deixar o ninho em que nasci:
Mas não ha contra Amor lugar seguro.
A morte só (mil vezes isto ouvi
Á nossa Celia) por remedio espere
Aquelle que a Amor fez senhor de si.
Então, porque de todo desespere,
Este cego, a quem cegos nós seguimos,
A mi por ti, e a ti por outra fere.
S'eu morrêra no ponto em que nos vimos,
Não víra tanto mal. Mas que da sua
Sorte fugisse alguem, nós nunca ouvimos.
Eu me queixo de ti, e tu da tua
Galatêa te queixas; e não vês
Que mais piedosa te he, quando mais crua.
Sendo tu tão cruel, (tão cego es!)
Queres achar piedade? Como queres
Que te creião teu mal, se o meu não crês?
Qu'eu viva com pezar, tu com prazeres,
Não quer o justo Ceo. Ou ambos tristes,
Ou ledos ambos, si: mais não esperes.
Selvas, que n'outro tempo nos cobristes
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