Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 14

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Com perder-se de todo e transformar-se
Em lagrimas, qu'emfim puderão tanto,
Que accrescentarão sempre o verde manto.
E s'entre as claras ágoas houve amores,
Os penedos tambem forão perdidos.
Olhae os dous conformes amadores
Lá no monte Ida em pedra convertidos:
Lethêa, por cahir em vãos errores
De sua formosura procedidos;
Oleno, porque a culpa em si tomava,
Por escusar a pena a quem amava.
Tomae exemplo, e vêde em Cypro aquella,
Por quem Iphis no laço poz a vida.
Tambem vereis em pedra a Nympha bella,
Cuja voz foi por Juno consumida,
E, se queixar-se quer de sua estrella,
A voz extrema só lhe he concedida.
E tu tambem, ó Daphnis, que trouxeste
Primeiro ao monte o doce verso agreste!
Tamanho amor lhe tinha a branda amiga,
Que em inimiga, emfim, se foi tornando:
Porque outra Nympha estranha ja o sogiga,
Suas magicas hervas vai buscando.
Olhae a quanto a crua dor obriga!
Por vingar-se, assi irada transformando
O foi em pedra. Oh dura confusão!
Despois lhe pezaria; mas em vão.
Olhae, Nymphas, as árvores alçadas,
A cuja sombra andais colhendo flores,
Como em seu tempo forão namoradas;
Do qu'inda agora o tronco sente as dores.
Vereis, entre as de fructo matizadas,
Como a côr das amoras he de amores:
O sangue dos amantes na verdura
Testimunha de Tisbe a sepultura.
E lá por a odorifera Sabêa
Não vêdes que de lagrimas daquella,
Que com seu pae se junta e se recrêa,
Arabia s'enriquece, e vive della?
Lembrai-vos da verde árvore Penêa,
Que foi ja n'outro tempo Nympha bella,
E Cyparisso angelico mancebo;
Ambos verdes com lagrimas de Phebo.
De Phrygia vêde o moço delicado
No mais alto arvoredo convertido,
Que tantas vezes fere o vento irado;
Galardão de seus erros merecido:
Pois, da alta Berecynthia sendo amado,
Por huma Nympha baixa foi perdido;
E a deosa, a quem perdeo do pensamento,
Quiz que tambem perdesse o entendimento.
O subito furor lhe figurava
Que as árvores e os montes se cahião;
Ja dos pudicos membros se privava,
Que os horrores a tanto o constrangião;
Ja indignado no monte se lançava:
De sua morte as feras se doião.
Dest'arte perdeo Atys na espessura,
Despois de tantas perdas, a figura.
Lembre-vos quando as gentes celebravão
Em Grecia as grandes festas de Liêo,
Onde as formosas Nymphas se juntavão,
E os sacros moradores do Licêo.
Todos em doce somno se occupavão
Por o monte, despois que anoiteceo;
Mas o deos do Hellesponto não dormia;
Que hum novo amor o somno lh'impedia.
Mas ella emfim, os braços estendendo,
Em ramos se lhe forão transformando;
Em raizes os pés se vão torcendo;
E o nome Loto só lhe vai ficando.
Vêde, Napêas, este caso horrendo,
Que vos está de longe ameaçando.
Assi tambem daquella, a quem seguia
O sacro Pan, a fórma se perdia.
Que vos direi de Filis, pois perdida
Da saudosa dor com que vivia,
Á desesperação emfim trazida
Do comprido esperar de dia em dia,
Por desatar do corpo a triste vida
Atava ao collo a cinta que trazia.
Mas o tronco sem fôlha por o monte
Rhodope abraça o lento Demophonte.
Nas boninas, tambem vereis Jacinto,
Porquem Phebo de si se queixa em vão;
Vereis o monte Idalio em sangue tinto
Do neto de seu pae, da mãe irmão.
Chora Venus a dor do moço extinto,
Maldiz o ceo e a terra, com razão;
A terra, porque logo não se abrio;
O ceo, porque tal morte permittio.
E tu, constante Clycie, a quem fallece
A fé de teus amores enganosos,
No louro amante, que de ti s'esquece,
S'esquecem os teus olhos saudosos.
Nenhum alegre estado permanece;
Que são do mundo os gostos mentirosos;
E á tua clara luz, por quem suspiras,
Ainda agora em herva os olhos víras.
Trago-vos estas cousas á lembrança,
Porque s'estranhe mais vossa crueza
Com ver que a criação e longa usança
Vos não perverte e muda a natureza.
Dou as lagrimas minhas em fiança,
Qu'em tudo quanto está na redondeza,
Cousa d'Amor isenta, se attentais,
Em quanto vos não virdes, não vejais.
Ja disse, que d'Amor sempre tiverão
As cousas insensiveis pena e gloria.
Vêde as sensiveis como se perdêrão.
E dir-vos-hei das aves larga historia:
As penas, qu'em su'alma se soffrêrão,
Nas azas lhes ficárão por memoria;
E aquelle altivo e leve movimento
Lhes ficou do voar do pensamento.
O doce rouxinol e a andorinha,
Donde lhes veio o ir-se transformando,
Senão do puro amor que o Thracio tinha,
Qu'em poupa ainda a amada vai chamando?
Clama sem culpa a misera avezinha,
Que n'areia de Phasis habitando,
Do rio toma o nome; e quando clama,
Cruel á mãe, ao pae injusto chama.
Vêde a que engeitou Pallas por fallar,
(Que dos amores he maior defeito)
E aquella, que succede em seu lugar,
Ambas aves; de amor usado effeito;
Huma, porque fugia ao deos do mar;
Outra, porque tentára o patrio leito:
E Scylla, que a seu pae poz em perigo,
Só por ser muito amiga do inimigo.
E Pico, a quem ficárão inda as côres
Da purpura Real, que antes vestia;
Esaco, que o seguir de seus amores
O trouxe a ver tão cedo o extremo dia:
Ou vêde os dous tão firmes amadores,
Que amor aves tornou na praia fria.
Do Rei dos ventos era genro o triste;
Mas contra o fado, emfim, nada resiste.
Estava a triste Halcyone, esperando
Com longos olhos o marido ausente;
Mas os ventos indomitos soprando,
Nas ágoas o affogárão tristemente.
Em sonhos se lh'está representando;
Que o coração preságo nunca mente:
Só do bem as suspeitas mentirão,
Mas as do mal futuro certas são.
Ao pranto os olhos seus a triste ensaia;
Buscando o mar com elles hia e vinha:
Quando o corpo sem alma achou na praia.
Sem alma o corpo achou, que n'alma tinha!
Ó Nereidas do Egêo, consolai-a,
Pois este pio officio vos convinha.
Consolai-a; sahi das vossas ágoas;
Se consolação ha em grandes mágoas.
Mas oh nescio de mi! qu'estou fallando
Das avezinhas mansas e amorosas?
Pois tambem teve Amor natural mando
Entr'as feras montezes venenosas.
O leão e a leoa, como, ou quando
Taes formas alcançárão temerosas?
Sabe-o da deosa Dindymene o templo,
E a que a Adonis o dava por exemplo.
Quem fosse a mansa vacca di-lo-hia;
Mas o grão Nilo o diga, pois a adora.
Que fórma teve á Ursa, saber-se-hia
Do Pólo Boreal, onde ella mora.
O caso d'Acteon tambem diria
Em cervo transformado; e melhor fôra
Se dos olhos perdêra a vista pura,
Que em seus galgos achar a sepultura.
Tudo isto Acteon vio na fonte clara,
Onde a si d'improviso em cervo vio:
Que quem assi dest'arte alli o topára,
Que se mudasse em cervo permittio.
Mas, como o triste Principe em si achára
A desusada fórma, se partio.
Os seus, desconhecendo-o, o vão chamando;
E, tendo-o alli presente, o vão buscando.
Co'os olhos e co'o gesto lhes fallava;
Que a voz humana ja perdida tinha.
Qualquer delles por elle então chamava,
E a multidão dos cães contr'elle vinha.
Hum cervo acude a ver (qualquer gritava)
Acteon, donde estás? acude asinha,
Que tardar tanto he este? (repetia)
_He este, he este_, o eco respondia.
Quantas cousas em vão estou fallando
(Oh Napêas esquivas!) sem que veja
O peito de diamante hum pouco brando
De quem meu damno tanto só deseja.
Pois, por mais que de mi me andais tirando,
E por mais longa emfim que a vida seja,
Nunca em mi se verá tamanha dor,
Que Amor a não converta em mais amor.
Aqui (formosas Nymphas) vos pintei
Todo d'amores hum jardim suave;
D'ágoas, de pedras, d'árvores contei,
De flores, d'almas, feras, de huma, outra ave.
Se este amor, que no peito aposentei,
Que dos contentamentos t[~e]e a chave,
Por dita em tempo algum determinasse
Que de tão longos damnos vos pezasse,
Quanto mais devagar vos contaria
De minha larga historia e não alheia?
E com quanta mais ágoa regaria,
Que o rio, de contente, a branca areia?
Novo contentamento me seria
Formar de meu cuidado a nova ideia:
E vós, gostando deste estado ufano,
Zombarieis então de vosso engano.
Mas com quem fallo ja? que estou gritando,
Pois não ha nos penedos sentimento?
Ao vento estou palavras espalhando;
A quem as digo, corre mais que o vento.
A voz e a vida a dor m'está tirando,
E o tempo não me tira o pensamento.
Direi, emfim, ás duras esquivanças
Que só na morte tenho as esperanças.
Aqui, sentido, o Satyro acabou,
Com huns soluços que a alma lhe arrancavão.
Os montes insensiveis, que abalou,
Nas ultimas respostas o ajudavão.
Então Phebo nas ágoas se encerrou
Co'os animaes que o mundo allumiavão;
E co'o luzente gado appareceo
A candida pastora por o ceo.

ECLOGA VIII.

PISCATORIA.
_Sereno._
Arde por Galatêa branca e loura
Sereno pescador pobre, forçado
D'huma estrella, que quer á míngoa moura.
Os outros pescadores t[~e]e lançado
No Tejo as redes: elle só fazia
Este queixume ao vento descuidado:
Quando virá (formosa Nympha) hum dia,
Em que te possa dar a conta estreita
Desta doudice triste e vãa porfia?
Não vês, que me foge a alma e que m'engeita,
Buscando em hum só riso d'essa boca,
Nos teus olhos azues mansa colheita?
Se ao teu esprito alg[~u]a mágoa toca,
Se d'amor fica nelle huma pégada,
Que te vai, Galatêa, nesta troca?
Dar-te-hei minh'alma: lá ma tens roubada:
Não ta demandarei: dá-me por ella
Huma só volta d'olhos descuidada.
Se muito te parece, e minha estrella
Não consentir ventura tão ditosa,
Dou-te as azas do Amor perdidas nella.
Que mais te posso dar, Nympha formosa,
Inda que o mar d'aljofar me cubríra
Toda esta praia leda e graciosa?
Amansão-se ondas, quebra o vento a ira:
Minha tormenta só nunca socega;
O meu peito arde em vão, em vão suspira.
Anda no romper d'alva a nevoa cega
Sôbre os montes d'Arrabida viçosos,
Em quanto o solar raio lhes não chega.
Eu, vendo apparecer outros formosos
Raios, que a graça e côr ao ceo roubárão,
Se os olhos cegos vi, vejo saudosos.
Quantas vezes as ondas se encrespárão
Com meus suspiros! quantas com meu pranto
As fiz parar de mágoa e me escutárão!
Se na fôrça da dor a voz levanto,
E ao som do remo, que ágoa vai ferindo,
Perante a lua meu cuidado canto;
Os maviosos delfins m'estão ouvindo;
A noite socegada; o mar callado:
Tu só foges d'ouvir-me, e te vás rindo.
Estranhas, por ventura, o mar cercado
Da fraca rede; a barca ao vento solta;
E hum pobre pescador aqui lançado?
Antes que o sol no ceo cerre huma volta
Se póde melhorar minha ventura,
Como a outros succede, n'ágoa envolta.
Igual preço não he da formosura
D'ouro a areia, que o rico Tejo espraia,
Mas hum amor, que para sempre dura.
Vejão teus olhos (bella Nympha) a praia;
Verás teu nome na mimosa areia.
Nunca sôbre elle o mar com furia saia!
Vento algum atégora o não salteia:
Tres dias ha que escripto aqui o deixou
Amor, e o veda a toda fôrça alheia.
Elle com suas mãos proprio ajudou
A escolher estas conchas, affirmando
Que o sol para ti só as matizou.
Hum ramo te colhi de coral brando:
Antes que o ar lhe désse, parecia
O que de tua boca estou cuidando.
Ditoso se o soubesse inda algum dia!

ECLOGA IX.

PISCATORIA.
_Palemo._
Despois que o leve barco ao duro remo,
Onde menos das ondas se temia,
Atou o pescador pobre Palemo;
Em quanto as negras redes estendia
Seu companheiro Alcão na branca arêa,
E Lico as longas cordas envolvia;
De cima d'huma rocha, a qual rodêa
O mar, quebrando nella de contino,
Começou a chamar por Galatêa.
Deixa o molle licor e crystallino,
(Dizia) ó Nympha, ja, que o sol deseja
Enxugar teu cabello d'ouro fino.
Inda que t[~e]e de ti tão grande inveja,
Não temas que te queime o rosto brando:
Basta para abrandar-se que te veja.
Não te detenhas mais, vem ja cortando
Com teu candido peito as brancas ondas,
Escumas menos brancas levantando.
Dar-te-hei (com condição que não t'escondas
De mi lá nessas humidas moradas,
E que algum'hora, branda me respondas)
Mil conchas n'hum cordão verde enfiadas,
Todas d'huma feição; não d'huma côr,
Pois dellas são azues, dellas rosadas.
Indaque seja pobre pescador,
Não sei se em desprezar-me muito acertas,
Pois rico do amor teu me fez Amor.
Para ti n'outras praias mais desertas
Irei pescar por entre pedras duras,
Que sempre verde musgo t[~e]e cobertas,
As pardas ostras, onde gottas puras
De fresco orvalho, dentro endurecidas,
Não podem da cobiça estar seguras.
Porque deixas de vir? porque duvídas?
Por ventura d'algum meu companheiro?
Inda as redes ao sol t[~e]e estendidas.
Toda a noite pescárão, e primeiro
Querem dormir a sesta nesta praia,
Que o barco polo mar levem ligeiro.
Eu, vigiando aqui como atalaia,
Te chamarei, até que de cansado
Hum dia desta rocha abaixo caia,
Deixando este lugar tão infamado
Com minha morte, que dos marinheiros
Com o dedo de lá será mostrado.
Dirão os naturaes e os estrangeiros:
Alli morreo Palemo. Ai triste historia!
Guardae a nao de alli, ventos ligeiros.
Antes que tal succeda, vê que gloria
Alcanças com deixar aos navegantes
Da tua ingratidão esta memoria.
Da nossa differença não te espantes:
Tu Nympha, eu pescador: Glauco, deos vosso,
Qual eu agora sou, tal era d'antes.
Tambem eu entre as hervas achar posso
Aquella, a quem o ceo deo tal virtude,
Que muda n'outro ser este ser nosso.
Mas este amor, qu'eu cá mudar não pude,
Inda que vá a morar lá nessas ágoas,
Não temas que a mudança em mi o mude.
Serão as vivas ondas vivas frágoas,
Em que estarei ardendo noite e dia,
Se não tiveres dó de tantas mágoas.
As horas naturaes da pescaria
Não vês que vão passando? Como as passas?
Quem deste passatempo te desvia?
Ah rigorosa Nympha! ah! não me faças
Dar em vão tantos gritos: vem; iremos
Ambos a levantar as verdes naças.
Ambos os anzoes curvos cobriremos
De mentirosas iscas, com que os peixes
A todo prazer nosso prenderemos.
Assi d'Amor cruel nunca te queixes,
E dessa formosura as mais formosas
Nymphas do mar azul vencidas deixes;
Que venhas (pois por ti com saudosas
Lagrimas vou gastando a vida e alma)
A tirar-me esperanças duvidosas.
A praia está callada, o mar em calma;
Por cima desta rocha brandamente
Zephyro respirando a desencalma.
Aqui não sinto cousa certamente
Porque deixes de vir, como sohías,
Senão, que não es tu disso contente.
Se desgostas das grossas pescarias,
Marisco appetitoso aqui não falta,
Ja sejão luas cheias, ja vazias.
Polos pés desta rocha dura e alta
Irei eu despegando huns como pés
D'hum pequeno animal, que nella salta.
E vivos te darei (se delles es
Amiga) mil cangrejos vagarosos,
Que verás ir andando de revés.
Não te darei ouriços espinhosos,
Porque te quero tanto, que receio
Qu'esses teus dedos piquem tão mimosos.
Faz d'aqui perto o mar hum largo seio,
Onde de ameijoas lisas, sem trabalho,
Podemos apanhar hum cesto cheio.
Mas além de tudo isto hum crespo galho
De vermelho coral te darei logo,
Que por dita arrastou o meu tresmalho.
Mas ai! qu'em vão te chamo, em vão te rógo;
Que nem tu a meus rogos tens respeito,
Nem eu, por mais que grite, desaffógo.
Hum coração em lagrimas desfeito
Como ja não te abranda? quem encerra
Crueza tal em tão formoso peito?
Não reina Amor no mar, como na terra?
Bem sabes que mil vezes ja venceo
A Neptuno teu Rei em clara guerra.
Sua formosa mãe onde nasceo,
Senão no proprio mar em que te banhas?
Onde Thetis por Péleo em fogo ardeo?
Se das pedras nascesses nas montanhas,
Se com leite de tigres te criáras,
Mais duras não tiveras as entranhas.
Apparecêras tu, e então tornáras
Logo a esconder-te, logo, se quizeras
Nas ondas, que de ti me são avaras.
Com h[~u]a mostra só que de ti deras,
A vida, que me foge em não te vendo,
Co'os teus formosos olhos detiveras.
Então víras os meus, donde correndo
De lagrimas se vem dous largos rios,
Que o mar tambem em si vai recolhendo.
Ah nescio pescador! que desvarios
Me deixo aqui dizer! a quem os digo!
A surdas ondas ja, ja a ventos frios.
Elles e ellas ja crescem: ja em p'rigo
O barco vejo: ai! ei-lo combatido.
Ellas e elles o levão ja comsigo.
Olhos, que lá me tendes o sentido,
A culpa he vossa só, que me não vêdes.
Mas, pois o pescador anda perdido,
Perca-se o barco seu, percão-se as redes.

ECLOGA X.

PISCATORIA.
_Meliso._
Encheo do mar azul a branca praia
Meliso pescador de mil querellas;
Meliso, que por Lilia arde e desmaia.
Despois que á luz da lua e das estrellas,
Sôbre dura fatexa o barco pôsto,
As redes recolheo, remos e velas:
Que gôsto, ó Lilia, (disse) ou que desgôsto
Te move a me negar, vendo qual ando,
Teus olhos côr do ceo, teu alvo rosto?
Se tu queres que pene desejando,
Se queres que no mar em fogo viva;
Ardendo sempre estê, sempre penando.
Mas ólha, ó branda Lilia, (antes esquiva)
Que não merece ser tão mal tratada
Hum'alma desses olhos tão captiva.
Vives dos meus cuidados descuidada:
Coitado de quem traz a duvidosa
Vida no mar e terra aventurada!
Bem podes com razão ser piedosa
Com quem não quer mor bem, que bem quererte,
Não sendo tão cruel como es formosa.
Ora deixa ja, ingrata, deixa ver-te
A meus cansados olhos, que de tantas
Lagrimas são movidos, sem mover-te.
Se tu me vences, e se tu m'encantas
Com tua doce falla, doce riso,
Porque foges de mi? porque te espantas?
Lembre-te a formosura de Narciso,
E qual pago lhe deo seu desamor:
Ólha que com amor disto te aviso.
Mas quando essa crueza tanta for,
Que mereça do ceo novo castigo,
Qual herva será digna de tal flor?
Amor que me persegue, Amor que sigo,
Me faz d'hum grave mal andar temendo;
D'hum mal, qu'eu sinto na alma e que não digo.
Quanto mais ledo ja te estive vendo
Aqui as mansas ondas esperando,
Que por chegar a ti vinhão correndo,
E da molhada areia despegando
Com a candida mão roxas conchinhas,
A fórma do teu pé nella deixando?
Daquellas, de que tu mais gôsto tinhas,
Muitas te trago aqui, postoque temo
Que menos o terás por serem minhas.
Hum temor tal me chega a tal extremo,
Que, vencido d'hum triste esquecimento,
No mar me cahe da mão o duro remo.
E quando a branca vela sólto ao vento,
Tão descuidado vou do fiel leme,
Que me leva a perder meu pouco tento.
Mas quem arde por ti, quem por ti treme,
Os seus maiores riscos não receia,
Os teus que sente mais, muito mais teme.
Despois que te não vi, (não sei que creia
Desta tardança tua e morte minha)
Sendo a lua vazia, he quasi cheia.
O tempo, que nos gostos passa asinha,
Detem-se neste mal da saudade,
Por me dobrar a dor que d'antes tinha.
Não desprezes, ó Lilia, huma vontade,
Que por te contentar tudo despreza,
Tudo julga, sem ti, por pouquidade.
Se pretendes amor, ja tens certeza
Que não podes ser nunca mais amada
Dos que vencidos traz tua belleza.
Se por ventura estás affeiçoada
A gentil parecer, a bom engenho,
A ninguem nestas partes devo nada.
Se fazes caso d'honra, ólha que venho
De geração d'honrados pescadores;
Se de riqueza, barco e redes tenho.
Por erros julgarás estes louvores;
E oxalá não os julgues por doudice!
Mas quem siso quer ter não tenha amores.
E mais tudo foi pouco quanto disse,
Pondo os olhos no muito que meu fado
Nos teus, que ver desejo, quiz que visse.
Aconteceo-me hum caso desusado,
(Inda que d'huma cousa n'outra salto)
Digno, por ser de amor, de ser contado.
Pescando hontem á tarde no mar alto,
Suspenso nessa rara formosura,
A quem com mil lembranças nunca falto,
Comecei a cantar: Lilia, mais dura
Que a mais inculta rocha rodeada
Do mar, de cujo encontro está segura;
Mais alva que jasmins, e mais córada
Que purpureas serejas polo Maio;
Mais loura que manhãa desentrançada;
Não vês... dizer queria que desmaio,
Quando (cousa que mal me será crida)
No mar, vencido d'hum, do barco caio?
Alli tivera fim a triste vida,
Se d'hum brando delfim, que me escuitava,
Não fôra, por ser tua, soccorrida.
Parece que tambem vencido estava
Do mal, de que me via andar vencido,
Quem em tamanho risco m'ajudava.
Trouxe-me sôbre si adormecido,
Nadando ao som das ondas mansamente,
Até que me sentio em meu sentido.
Livre deste mortal, bravo accidente,
Tal foi o espanto meu, tal meu temor,
Que d'outro me livrei escaçamente.
Mas logo o amoroso nadador
Me poz junto do barco, que tão perto
Esteve de ficar sem pescador.
O sol era de todo ja coberto,
Quando eu, entrando nelle, sahi fóra
Do perigo, onde tive o fim tão certo.
Porém outro maior me cansa agora,
De que mal sahirei, se te não vir
Amanhecer aqui co'a nova aurora.
Não póde ella tardar em descobrir
As suas louras tranças dasatadas,
Das quaes as tuas bem se podem rir.
Pois por cima das ondas, acordadas,
As Halcyoneas ouço lamentar-se,
Do seu antigo damno inda lembradas.
E sinto o fresco orvalho derramar-se
Mais congelado e frio; e Venus bella
Polo Oriente ja vejo levantar-se.
Bem podes, Lilia, competir com ella,
E com Pallas e Juno em gentileza;
Em amor não, pois elle nasceo della:
Desterrou-o de ti tua aspereza,
Que desterra de mi prazer e vida,
Deixando em seu lugar mágoa e tristeza.
No silencio da noite, que convida
A descanso commum, tanto me cança,
Que não sei se remedio ou morte pida.
Se tu quizesses dar-me huma esperança
De te servir de mi ou tarde, ou cedo,
Nunca me negaria o mar bonança.
Polas inchadas ondas, que põe medo,
Eu só, sem mais ajuda, levaria
Sempre á fôrça de braço o barco quedo.
Tão seguro por ellas andaria,
Como polo seu campo o lavrador
No mais quieto, claro e bello dia.
Ólha que não ha destro pescador,
Que mais manhoso as redes desencolha,
Nem os tortos anzoes isque melhor.
Os peixes deixarei em tua escolha:
Aquelles de que fores mais amiga,
Nunca te faltarão de fôlha a fôlha.
Não sei, Lilia formosa, que mais diga,
Que mova amor em ti, que mova mágoa;
Sei que mágoa, e que amor a mais obriga.
Mas antes que o sol dê naquella frágoa,
Onde meus ais dilata a triste Ecco,
Vou-me segurar mais o barco na ágoa,
Porque de baixa mar não fique em sêcco.

ECLOGA XI.

INTERLOCUTORES.
ANZINO e LIMIANO.
Parece-me, pastor, se mal não vejo,
Que ja te vi mais ledo andar outr'hora
Nos largos campos do famoso Tejo.
LIMIANO.
Podia ser; que muito tempo fóra
Andei desta ribeira, patria minha,
Onde triste me vez andar agora.
Tinha lá para mi, que a vida tinha
Mais socegada cá e mais segura,
Entre os meus, que com gôsto a buscar vinha.
Foi d'outro parecer minha ventura:
Discordias sós achei, e achei dureza,
Em lugar de socêgo, e de brandura.
Achei as boas leis da natureza
Vencidas do interesse; e a gente cega,
Tanto, que mais que o sangue, o gado préza.
Dizem que quando o mar bonança nega,
Correndo vai aquella não mor prigo,
Que á desejada terra mais se chega.
Assi m'aconteceo a mi comigo;
Seguro sempre ao longe, sempre ledo;
Triste ao perto, e tratado como imigo.
ANZINO.
Sempre (podes-me crer este segredo)
Desejei de te ver; mas com desgôsto,
Inda te não quizera ver tão cedo.
Prestando para cousas de teu gôsto,
Como camaleão não mudo côres;
Qual he meu coração, tal he meu rosto.
LIMIANO.
Não são logo assi, não, outros pastores,
Que de promessas vãas te fazem rico,
E nunca fructo dão: tudo são flores.
Mas desejo saber com quem pratíco,
Porque não caia em falta, e porque entenda
A quem tamanho amor devendo fico.
ANZINO.
Antes que tempo nisso se dispenda,
Busquemos hum lugar mais fresco e frio,
Que da calma, que cahe, bem nos defenda.
LIMIANO.
Vamos alli, que alli bosque sombrio
Nos dara fresco abrigo, assento o prado,
Formosa vista o valle, o monte, o rio:
O rio, que verás tão socegado,
Que te parecerá que se arrepende
De levar ágoa doce ao mar salgado.
Nem cabra, nem ovelha alli offende
Herva, folha, nem flor, ou ferro duro:
A planta polo ar livre se estende.
Verás cahindo em gottas crystal puro
No vão d'huma caverna carcomida,
Por entre o musgo molle, verde-escuro.
ANZINO.
Quem traz á saudade a alma rendida,
A saudade busca, onde descansa;
Maso descanso della encurta a vida.
Com tudo, quem do ceo na terra alcansa
Poder gozar-se desta liberdade,
Que mais deseja ter? que mais o cansa?
Affirmo-te de mi esta verdade,
Que muitos valles vi, muitas ribeiras;
Mas esta me dobrou a saudade.
Oh que viçosas murtas! que oliveiras!
Que freixos! como estão d'hera cingidos!
Quantas voltas lhes dá de mil maneiras!
Os lirios junto d'ágoa bem nascidos
Quanta graça que t[~e]e entre as boninas,
Sem ordem, com mais graça, entremetidos!
Vem encrespando as ágoas crystallinas
A branda viração; a fôlha treme;
O movimento apenas determinas.
A rôla seu amor suspira e geme;
Escondida se queixa Philomella:
Parece que do campo inda se teme.
Espanta a quem se atreve, ver aquella
Rocha por cima d'ágoa pendurada
Como ja se não deixa cahir nella.
Ó ribeira do Lima, celebrada
De mil brandos espritos sempre sejas,
Sempre de brandas Nymphas povoada.
Fujão longe de ti duras invejas;
Peçonha de pastores, morte sua:
Tudo sintas amor, tudo amor vejas.
De dia o claro sol, de noite a lua,
Em teu favor inspirem de maneira,
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