Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 12

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Se más tenções puzerão nodoa fêa
Em nosso firme amor, d'inveja pura,
Porque pagarei eu a culpa alhea?
Quem desta fé, quem dest'amor não cura,
Nunca teve sujeito o coração;
Queo firme amor com a alma eterna dura.
BELISA.
Mal conheces, Almeno, huma affeição;
Que s'eu desse amor tenho esquecimento,
Meus olhos magoados to dirão.
Mas teu sobejo e livre atrevimento,
E teu pouco segredo, descuidando,
Foi causa deste longo apartamento.
Vês as Nymphas do Tejo, que mudando
Me vão ja pouco a pouco, o claro gesto
N'outra mais dura fórma traspassando.
Hum só segredo meu te manifesto:
Que te quiz muito em quanto Deos queria;
Mas de pura affeição, d'amor honesto.
E pois de teus descuidos e ousadia
Nasceo tão dura e aspera mudança,
Fólgo; que muitas vezes to dizia.
Fica-te embora, e perde a confiança
De ver-me nunca mais, como ja viste:
Que assi se desengana huma esperança.
ALMENO.
Oh duro apartamento! oh vida triste!
Oh nunca acontecida desventura!
Pois como, Nympha? assi te despediste?
Assi s'ha d'ir tornando (ah sorte dura!)
Nesta sylvestre e aspera rudeza
Tão branda e excellente formosura?
Tua nunca entendida gentileza,
E teus membros assi se transformárão,
Negando-se-lhe a propria natureza?
Dest'arte os teus cabellos se tornárão
(Deixando ja seu preço ao ouro fino)
Em fôlhas, que a côr t[~e]e do que negárão?
S'este consentimento foi divino,
Consinta-me tambem que perca a vida,
Antes que a mais m'obrigue o desatino.
Pois se a fortuna sempre embravecida
Em meu tormento tanto se desmede,
Não viva mais hum'alma tão perdida.
E vós, feras do monte, pois vos pede
Minha pena o remedio derradeiro,
Fartae ja de meu sangue vossa sêde.
E vós, pastores rudos deste outeiro,
Porque a todos, emfim, se manifeste
Que cousa he amor puro e verdadeiro;
Á sombra deste funebre cypreste
Me fareis hum sepulcro sem arrêo
De boninas que o prado ameno veste.
As desusadas musicas de Orphêo
Aqui me cantareis; e desta sorte
Não haverei inveja ao mausolêo.
E porqu'a minha cinza se conforte,
Em vossos metros doces e suaves
As exequias direis de minha morte.
Alli responderão as altas aves,
Não módulas no canto nem lascivas,
Mas de dor ora roucas, ora graves.
Não correrão as águas fugitivas,
Alegres por aqui, mas saudosas,
Que pareça que vem dos olhos vivas.
Nascerão por as praias deleitosas
Os asperos abrolhos em lugar
Dos roxos lirios, das pudicas rosas.
Não trarão as ovelhas a pastar
De redor do sepulcro os guardadores;
Pois nada comerião de pezar.
Virão os Faunos, guarda dos pastores,
Se morri por amores, perguntando;
Responderão os ecos: _Por amores_.
Dos que por aqui forem caminhando,
Hum epitaphio triste se lerá,
Qu'esteja minha morte declarando.
E no tronco de huma árvore estara,
N'huma rude cortiça pendurado
Escripto co'huma fouce, e assi dirá:
_Almeno fui, pastor de manso gado,
Em quanto o consentio minha ventura,
De Nymphas e pastores celebrado.
Se algum dia, por caso, na 'spessura
Se perder o amor e a affeição,
Tirem a pedra desta sepultura,
E em figura de cinza os acharão._

ECLOGA IV.

INTERLOCUTORES.
FRONDOSO e DURIANO.
Cantando por hum valle docemente
Descião dous pastores, quando Phebo
No reino Neptunino se escondia:
De idade cada qual era mancebo;
Mas velho no cuidado, e descontente
Do que lh'elle causava parecia.
O que cada hum dizia
Lamentando seu mal, seu duro fado,
Não sou eu tão ousado,
Que o pretenda cantar sem vossa ajuda:
Porque se a minha ruda
Frauta deste favor vosso for dina,
Posso escusar a fonte Caballina.
Em vós tenho Helicon, tenho Pegáso;
Em vós tenho Calliope e Thalia;
E as outras sete irmãas, co'o fero Marte;
Em vós deixou Minerva sua valia;
Em vós estão os sonhos do Parnaso;
Das Pierides em vós s'encerra a arte.
Com qualquer pouca parte,
Senhora, que me deis d'ajuda vossa
Podeis fazer qu'eu possa
Escurecer ao sol resplandecente:
Podeis fazer que a gente
Em mi do grão poder vosso s'espante;
E que vossos louvores sempre cante.
Podeis fazer que cresça d'hora em hora
O nome Lusitano, e faça inveja
A Esmirna, que d'Homero s'engrandece.
Podeis fazer tambem que o mundo veja
Soar na ruda frauta o que a sonora
Cithara Mantuana só merece.
Ja agora me parece,
Que podem começar os meus pastores
A cantar seus amores.
Porqu'inda que presentes não estejão
As qu'elles ver desejão,
Mudança de lugar, menos d'estado,
Não muda hum coração do seu cuidado.
Ja deixava dos montes a altura,
E nas salgadas ondas s'escondia
O sol, quando Frondoso e Duriano,
Ao longo d'hum ribeiro, que corria
Por a mais fresca parte da verdura
Claro, suave e manso, todo o ano,
Lamentando seu dano,
Vinhão ja recolhendo o manso gado.
Hum estava callado,
Em quanto hum pouco o outro se queixava;
Apos elle tornava
A dizer de seu mal o que sentia;
E em quanto este fallava, aquelle ouvia.
Vinhão-se assi queixando aos penedos,
Aos sylvestres montes e á aspereza,
Que quasi de seus males se doião.
Alli as pedras perdião a dureza;
Alli correntes rios estar quedos,
Promptos ás suas queixas, parecião.
Somente as que podião
Estes males curar, pois os causavão,
O ouvido lhes negavão,
Por perderem de todo a esperança:
Mas elles, que mudança
D'amor com tantos damnos não fazião,
Com ellas fallando inda, assi dizião:
FRONDOSO.
Isto he o que aquella verdadeira
Fé, com que t'amei sempre, merecia,
Sem nunca te deixar hum só momento?
Como (cruel Belisa) t'esquecia
Hum mal, cuja esperança derradeira
Em ti só tinha pôsto o seu assento?
Não vias meu tormento?
Não vias tu a fé, com que t'amava?
Porque não t'abrandava
Est'amor, que me tu tão mal pagaste?
Mas pois ja me deixaste
Co'a esperança de ti toda perdida,
Perca, quem te perdeo, tambem a vida.
DURIANO.
Se os males que por ti tenho soffrido
(Oh Silvana, em meus males tão constante!)
Quizesses que algum'hora te dissera;
Inda que, qual durissimo diamante,
Fôra o teu cruel peito endurecido,
Creio que a piedade te movêra.
Ja agora em branda cera
Os montes são tornados e os penedos;
E os rios, qu'estão quedos,
Sentírão meus suspiros, minhas queixas.
Tu só, cruel, me deixas,
Qu'es mais, que montes e penedos, dura,
E fugitiva mais qu'a fonte pura.
FRONDOSO.
Ond'está aquella falla, que sohia
Só com seu doce tom, que me chegava,
Avivar-me os espiritos cansados?
Onde está o olhar brando, que cegava
O sol resplandecente ao meio dia?
Ond'estão os cabellos delicados,
Que ao vento espalhados
Escurecião o ouro, a mi matavão;
E a quantos os olhavão,
Causavão tambem novos accidentes?
Porque, cruel, consentes
Qu'outro goze da gloria a mi devida?
Perca, quem te perdeo, tambem a vida.
DURIANO.
Nenhum bem vejo, que a meu mal espere,
Se não fosse esperar que morte dura
Me venha emfim a dar a saudade.
Vejo faltar-me a tua formosura;
A vontade me diz que desespere,
Contradiz-me a razão esta vontade.
Diz qu'em huma beldade,
Em quem mostrou o cabo a natureza,
Não ha tanta crueza,
Qu'hum tão constante amor desprezar queira,
E fé tão verdadeira;
Mas tu, que de razão jamais curaste,
Porqu'era dar-me a vida, ma tiraste.
FRONDOSO.
A quem, Belisa ingrata, t'entregaste?
A quem déste, cruel, a formosura,
Qu'a meu tormento só, só se devia?
Porqu'huma fé deixaste, firme e pura?
Porque tão sem respeito me trocaste
Por quem só nem olhar-te merecia?
O bem que t'eu queria,
E que não perderei se não por morte,
Não he de maior sorte,
Que quanto a cega gente estima e preza?
Só a tua crueza
Foi nisto contra mi endurecida.
Perca, quem te perdeo, tambem a vida.
DURIANO.
Levaste-me o meu bem n'hum só momento;
Levaste-me com elle juntamente
De cobrá-lo jamais a confiança:
Deixaste-me em lugar delle sómente
Huma contínua dor, hum grão tormento,
Hum mal, de que não póde haver mudança.
Tu, qu'eras a esperança
Dos males que, cruel, tu me causaste,
De todo te trocaste,
Com Amor conjurada em minha morte.
Porém se a minha sorte
Consente que por ti seja causada,
Morte não foi mais bem-aventurada.
FRONDOSO.
Não nasceste d'alguma pedra dura;
Não te gerou alguma Tigre Hyrcana;
Não te criaste, não, entre a rudeza,
A quem, cruel, sahiste deshumana?
No ceo formada foi tal formosura,
Onde a mesma brandura he natureza.
Pois, logo, essa dureza
Donde teve princípio, ou a tomaste?
Porque, dura, engeitaste
De hum verdadeiro amor, que tu bem vias,
A fé, que conhecias,
Por outra de ti nunca conhecida?
Perca, quem te perdeo, tambem a vida.
DURIANO.
Vai-se co'o seu pastor o manso gado,
Porque d'amor entende aquella parte,
Qu'a natureza irracional lh'ensina.
O rustico leão sem algum'arte,
Do natural instincto só ensinado,
Aonde sente amor, logo se inclina.
E tu, que de divina
Não tens menos queVenus e Cupido,
Porque sequer co'o ouvido
Hum amor verdadeiro não soccorres?
Ah! porque te não corres
De que o leão te vença em piedade,
Se não te vence Venus na beldade?
FRONDOSO.
A mi não me faltava o que se preza
Entre os celestes deoses, que formárão
A tua mais que humana formosura:
Em mi os voluntarios ceos faltárão;
Em mi se perverteo a natureza
D'huma cruel formosa creatura.
Mas, pois, Belisa dura,
Que do mais alto ceo a nós vieste,
E em teu peito celeste
Hum tal contrário pôde aposentar-se,
Não he contrário achar-se
Tamanha fé tão mal agradecida.
Perca, quem te perdeo, tambem a vida.
DURIANO.
Por ti a noite escura me contenta;
Por ti o claro dia m'aborrece;
Abrolhos me parecem frescas flores;
A doce Philomela m'entristece:
Todo contentamento m'atormenta
Com a contemplação de teus amores;
As festas dos pastores,
Que podem alegrar toda a tristeza.
Em mi tua crueza
Faz que o mal cada hora vá dobrando.
Oh cruel! até quando
Ha de durar em ti tal pensamento,
E a vida em mi, que soffre tal tormento?
FRONDOSO.
Fugiste d'hum amor tão conhecido,
Fugiste d'huma fé tão clara e firme;
E seguiste a quem nunca conheceste,
Não por fugir d'amor, mas por fugir-me;
Pois bem vês, quanto eu tinha merecido
Esse amor que tu a outro concedeste.
A mi não me fizeste
Alguma sem razão; que bem conheço
Que tanto não mereço:
Fizeste-a áquelle bem firme e sincero
Que sabes que te quero,
Em lhe tirar a gloria merecida.
Perca, quem te perdeo, tambem a vida.
DURIANO.
Cresce cad'hora em mi mais o cuidado,
E vejo qu'em ti cresce juntamente
Cad'hora mais de mi o esquecimento.
Oh Silvana cruel! porque consente
Esse peito formoso e delicado
Que s'esqueça hum tão aspero tormento?
Tal aborrecimento
Merece hum capital teu inimigo:
Não eu, que só comtigo
Estou contente, e nada mais desejo,
Se algum'hora te vejo.
Tu es hum só meu bem, huma só gloria,
Que nunca se m'aparta da memoria.
FRONDOSO.
Olhos, que vírão tua formosura;
Vida, que só de ver-te se sostinha;
Vontade, qu'em ti'stava transformada;
Alma, qu'ess'alma tua em si só tinha,
Tão unida comsigo, quanto a pura
Alma co'o debil corpo está liada;
E que agora apartada
Te vê de si com tal apartamento,
Qual será seu tormento?
Qual será aquelle mal que t[~e]e presente?
Maior he que o que sente
O triste corpo em última partida.
Perca, quem te perdeo, tambem a vida.
DURIANO.
Regendo em outro tempo o manso gado,
Tangendo a minha frauta nestes vales,
Passava a doce vida alegremente:
Não sentia o tormento destes males;
Menos sentia o mal deste cuidado;
Que tudo então em mi era contente.
Agora não somente
Desta vida suave m'apartaste.
Mas outra me deixaste,
Que ao duro mal que sinto ca no peito,
Me t[~e]e ja tão affeito,
Que sinto ja por gloria a minha pena,
Por natureza o mal, que me condena.
FRONDOSO.
Juntamente viver compridos anos,
Os fados te concedão, que quizerão
Ajuntar-te com tal contentamento.
Pois os bens para ti todos nascêrão,
Nascêrão para mi todos os danos,
Logra tu tua gloria, eu meu tormento.
Nenhum apartamento,
Belisa, me fara deixar d'amar-te;
Porqu'em nenhuma parte
Poderás nunca estar sem mi hum'hora.
Consente pois agora,
Qu'em pago desta fé tão conhecida,
Perca, quem te perdeo, tambem a vida.
DURIANO.
Veja-t'eu, crua, amar quem te desame,
Porque saibas que cousa he ser amada
De quem tanto aborreces e desprezas.
Veja-t'eu ser ainda desprezada
De quem tu mais desejas que te ame,
Porque sintas em ti tuas cruezas,
Sintas tuas durezas,
E quanto póde o seu cruel effeito
N'hum coração sujeito.
Porqu'em sentindo o mal, qu'eu sinto agora,
Espero qu'algum'hora
Faça o teu proprio mal de mi lembrar-te,
Ja que não pôde o meu nunca abrandar-te.
FRONDOSO.
Mil annos de tormento me parece
Cad'hora que sem ti, sem esperança
Vivo de poder mais tornar a ver-te.
A vida só me dá tua lembrança;
A vida sôbre tudo m'entristece;
A vida antes perdêra, que perder-te.
Mas eu se, por querer-te
Hum bem qu'em ti só t[~e]e seu firme assento,
Padeço tal tormento,
Qu'esperará de ti quem te desama,
Ou quem ao menos te ama
Com algum falso amor, ou fé fingida?
Perca, quem te perdeo, tambem a vida.
DURIANO.
Então, cruel, verás se te merece
Com tamanho desprêzo ser tratada
Hum'alma, que d'amar-te só se preza.
Mas como poderás ser desprezada,
Se o menos qu'em ti fóra se parece,
Póde abrandar dos montes a aspereza?
Porque se a natureza
Em ti o remate poz da formosura,
Qual será a pedra dura,
Qu'a teu valor resista brandamente?
Que fará a fraca gente,
Se ao humano parecer não se defende,
E a mesma Venus deosa ao teu se rende?
FRONDOSO.
E pois fé verdadeira, amor perfeito,
Tormento desigual e vida triste,
Junta com hum contino soffrimento,
E hum mal, em que o mal todo, emfim, consiste,
Não puderão mover teu duro peito
A mostrares sequer contentamento
De ver o meu tormento;
Antes tudo soberba desprezaste,
E a outrem t'entregaste
Por nada me ficar em qu'esperasse,
Senão quando acabasse
A vida, a pezar meu, ja tão comprida,
Perca, quem te perdeo, tambem a vida.
DURIANO.
Longo curso de tempo, e apartado
Lugar a hum coração, que vive entregue,
Não podem apartar de seu intento.
Porque foges, cruel, a quem te segue?
Não vês que teu fugir he escusado,
Pois sem mim não estás hum só momento?
Nenhum apartamento,
Inda que a alma do corpo se m'aparte,
Poderá ja ausentar-te
Dest'alma triste, que continuamente
Em si te t[~e]e presente.
Torna, cruel; não fujas a quem t'ama:
Vem a dar vida, ou morte a quem te chama.
A noite escura, triste e tenebrosa,
Que ja tinha estendido o negro manto,
D'escuridade a terra toda enchendo,
Fez pôr a estes pastores fim ao canto,
Que ao longo da ribeira deleitosa
Vinhão seu manso gado recolhendo.
Se aquillo, qu'eu pretendo
Deste trabalho haver, que he todo vosso,
Senhora, alcançar posso;
Não será muito haver tambem a gloria
E o louro da victoria,
Que Virgilio procura e haver pretende,
Pois o mesmo Virgilio a vós se rende.

ECLOGA V.
_Falla hum só pastor._
A quem darei queixumes namorados
Do meu pastor queixoso e namorado?
A branda voz, suspiros magoados,
A causa porque n'alma he magoado?
De quem serão seus males consolados?
Quem lhe fara devido gasalhado?
Só vós, Senhor famoso e excellente,
Especial em graças entr'a gente.
Por partes mil lançando a phantasia,
Busquei na terra estrella, que guiasse
Meu rudo verso; em cuja companhia
A santa piedade sempre andasse
Luzente e clara, como a luz do dia,
Que o rudo engenho meu m'allumiasse;
E em vossas perfeições, grão Senhor, vejo
Ainda além cumprido o meu desejo.
A vós se dem, a quem junto se ha dado
Brandura, mansidão, engenho e arte,
D'hum esprito divino acompanhado,
Dos sobrehumanos hum em toda parte:
Em vós as graças todas se hão juntado;
De vós em outras partes se reparte.
Sois claro raio, sois ardente chama;
Gloria e louvor do tempo, azas da fama.
Em quanto eu apparelho hum novo esprito,
E voz de cysne tal, que o mundo espante,
Com que de vós, Senhor, em alto grito
Louvores mil em toda parte cante;
Ouvi o canto agreste em tronco escrito,
Entre vaccas e gado petulante:
Que quando tempo for, em melhor modo
Ha de m'ouvir por vós o mundo todo.
As vãas querellas, brandas e amorosas,
Sejão de vós tratadas brandamente;
Verdades d'alma pouco venturosas,
Sahidas com suspiro vivo e ardente:
Em vossas mãos s'entregão valerosas,
Porqu'ao futuro vivão entr'a gente,
Chorando sempre a antigua crueldade,
Para mover as almas a piedade.
Ja declinava o sol contra o Oriente,
E o mais do dia ja era passado,
Quando o pastor co'o grave mal que sente,
Por dar allívio em parte a seu cuidado,
Se queixa da pastora docemente,
Cuidando de ninguem ser escutado.
Eu que o escutei, n'huma árvore escrevia
As mágoas que cantou; e assi dizia:
Ou tu do monte Pindaso es nascida,
Ou marmor te pario formosa e dura:
Não póde ser que fosse concebida
Dureza tal de humana creatura:
Ou quiçá qu'es em pedra convertida,
Ou tens da natureza tal ventura;
Porém não fez em ti boa impressão,
Só de marmor tornar-te o coração.
Ja, ja com minha voz rouca e chorosa
A gente mais austera moveria;
E com esta corrente lagrimosa
Os tigres em Hyrcania amansaria.
Se não fosses cruel, quanto formosa,
Meu longo suspirar t'abrandaria:
Mas suspirar por ti, mas bem querer-te,
Que fazem senão mais endurecer-te?
Se deixáras vencer a crueldade
De tua tão perfeita formosura;
Hum pouco víras bem minha vontade,
E víras a fé minha, limpa e pura,
Por ventura, que houveras ja piedade,
E tivera eu quiçá melhor ventura:
Mas nunca achou igual tua belleza,
Se não se foi em ti tua dureza.
Ja hum peito abrandára, que não sente,
Este meu grave mal, segundo he forte;
Se descêra do inferno ao Polo ardente,
A piedade movêra a propria morte.
Pois se huma gotta d'agua brandamente
Torna brando hum penedo, duro e forte,
Tantas lagrimas minhas não farão
Hum pequeno sinal n'hum coração?
Na testa fonte viva tenho d'ágoa,
Que por meus olhos tristes se derrama;
E no peito de fogo viva fragoa,
Que tudo em si converte, tudo inflama:
Amor em de redor, por maior mágoa,
Voando mais accende a ardente chama.
Se queres ver se ardentes são seus tiros,
Ólha se são ardentes meus suspiros.
Quando grita e rumor grande se sente,
Porque fogo se ateia em casa, ou torre,
De pura compaixão vai toda a gente,
Ágoa ao fogo gritando; e cada hum corre.
Dest'arte anda o meu peito em chamma ardente,
E com a ágoa dos olhos se soccorre;
Que quem me abraza, outra ágoa me defende,
Porque com esta o fogo mais se accende.
Quando vemos que sahe lá no Oriente
O sol, seu curso antigo começando,
Formoso, intenso, puro, refulgente,
O monte, o campo, o mar, tudo alegrando;
Quando de nós s'esconde no Ponente,
E em outras terras sahe, allumiando,
Sempre, em quanto vai dando ao mundo giro,
Chórão por ti meus olhos, e eu suspiro.
Caminha o dia todo o caminhante,
E, emfim, lhe chega a noite, em que descança;
Trabalha na tormenta o navegante,
Traz-lhe a clara manhãa feliz bonança;
Recobra o fructo fertil e abundante
Da terra o lavrador, se nella cança:
Mas eu de meu cuidado e mal tão forte
Tormento espero só, só crua morte.
D'ouvir meu damno as rosas matutinas,
Condoidas se cerrão, s'emmurchecem;
Com meu suspiro ardente as côres finas
Perdem o cravo, o lyrio, e não florecem.
Co'a roxa aurora as pallidas boninas,
Em vez de se alegrarem, s'entristecem:
Deixão seu canto Progne e Philomena;
Que mais lhes doe, que a sua, a minha pena.
Responde o monte concavo a meus ais,
E tu como aspid, cerras-lhe o ouvido;
Os indomitos feros animais,
Sem humano sentir, mostrão sentido:
Mas em ti minhas dores desiguais
Nunca movem o peito endurecido:
Por muito que te chame, não respondes;
E quanto mais te busco, mais t'escondes.
Naquella parte donde costumavas
Apascentar meus olhos e teu gado;
Alli donde mil vezes me mostravas,
Qu'era o pastor de ti mais desejado,
Vezes mil te busquei, por ver se davas
Algum breve descanso a meu cuidado.
Busco-te em vão no valle, em vão no monte,
Qual o ferido cervo busca a fonte.
Este lugar de ti desamparado,
Com cujas sombras frias ja folgaste,
Agora triste, escuro he ja tornado;
Que todo o bem comtigo nos levaste.
Eras tu nosso sol mais desejado;
Não temos luz, despois que nos deixaste.
Torna, meu claro sol; torna, meu bem:
Qual he o Josué que te detém?
Despois que deste valle t'apartaste,
Não pasce ja algum gado, com seccura;
Seccou-se o campo, des que lhe negaste
Dos teus formosos olhos a luz pura;
Seccou-se a fonte, donde ja te olhaste,
Quando menos, que agora, aspera e dura;
Nega sem ti a terra, ouvindo gritos,
Ás cabras pasto e leite a os cabritos.
Sem ti, doce cruel minha inimiga,
A clara luz, escura me parece:
Este ribeiro, quando a dor m'obriga,
Com meu chorar por ti contino crece.
Não ha fera, a que a fome não persiga;
Algum prado sem ti ja não florece:
Cegos estão meus olhos; nada vem,
Porque não podem ver seu claro bem.
O campo, como d'antes, não s'esmalta
De boninas azues, brancas, vermelhas;
Falta ágoa ao pasto, e sentem d'ágoa a falta
As candidas pacíficas ovelhas:
Bem conhecem tambem que o ceo lhes falta
As doces e solícitas abelhas:
Com lagrimas, que manão dos meus olhos,
A terra nos produz duros abrolhos.
Torna pois ja, pastora, ao nosso prado,
Se restituir-lhe queres a alegria:
Alegrarás o valle, o campo, o gado,
E aquelle espelho teu da fonte fria.
Torna, torna, meu sol tão desejado,
Faras a noite escura, claro dia;
E alegra ja esta vida magoada,
Em que só tua ausencia he Parca irada.
Vem, como quando o raio transparente
Deste nosso horizonte, qu'escondido,
Deixa hum certo temor á mortal gente,
Causado de ver o Orbe escurecido;
E quando torna a vir claro e luzente,
Alegra o mundo todo entristecido:
Que assi he para mi tua luz pura
Claro sol, como a ausencia noite escura.
Mas tu 'squecida ja do bem passado,
E do primeiro amor, que me mostraste,
Teu coração de mi t[~e]es apartado,
Não menos que do valle t'apartaste.
Não te quero eu a ti mais qu'a meu gado?
Não sou eu mesmo aquelle que tu amaste?
Onde o meu êrro viste, ou desvario,
Que pôde merecer-te hum tal desvio?
Bem vês que por Amor se move tudo,
E que delle não ha quem seja isento;
O mais simple animal, mais baixo e rudo,
O demais levantado pensamento:
Debaixo d'ágoa fria o peixe mudo
Tambem lá t[~e]e d'ardor seu movimento.
Pois as aves, que no ar cantando vôão,
Não menos humas d'outras s'affeiçôão.
A musica do leve passarinho
Que sem concêrto algum sólta e derrama,
De hum raminho saltando a outro raminho,
Mostra que por amor suspira e chama.
Em quanto no secreto amado ninho
Não acha aquelle, que só busca e ama,
No canto, a nós alegre, triste chora,
Porque teme perder a quem namora.
A fera, que he mais fera, e o leão,
Sempre acha outro leão, sempre outra fera,
Em quem possa empregar huma affeição,
Que o conversar no peito seu lhe gera:
Tambem sabe sentir sua paixão,
Tambem suspira, morre, desespera;
Acena, salta, brada, ferve e geme;
E não temendo a nada, a Amor só teme.
O cervo, qu'escondido e emboscado,
Temendo ao cobiçoso caçador,
Está na selva, monte, bosque, ou prado,
Alli donde anda e vive, vive amor.
De temor e d'amor acompanhado,
Com justa causa amor t[~e]e e temor:
Temor a quem para feri-lo vinha,
Amor a quem ja, ja ferido o tinha.
Pois se a fera insensivel, que não sente,
Tambem sente d'Amor a frecha dura,
Porqu'a ti não t'abranda hum fogo ardente,
Que procede da tua formosura?
Porqu'escondes a luz do sol á gente,
Que nesses olhos trazes bella e pura?
Mais pura, mais suave, mais formosa,
Que, lyrio, que jasmim, que cravo e rosa.
Póde ser, se me visses, que sentiras
Ver liquidar hum peito em triste pranto;
E bem pouco fizeras, se me viras,
Pois eu só por te ver suspiro tanto:
As mágoas, os suspiros, que m'ouviras
Te puderão mover a grande espanto,
A dor, a piedade, a sentimento,
E a mais, que para mais he meu tormento.
Os pensamentos vãos, que o vento leve:
O suspirar em vão tambem ao vento;
Hum esperar á calma, á chuva, á neve,
E nunca poder ver-te hum só momento;
Tormento he, que somente a ti se deve.
E se póde inda haver maior tormento,
Quem te vio, e se vê de ti ausente,
Muito mais passará mais levemente.
Faz mossa a pedra dura em sua dureza
Com a ágoa que lhe toca brandamente;
Abranda o ferro forte a fortaleza,
Se lhe toca tambem o fogo ardente:
Em ti só desconheço a natureza;
Que, a ser de pedra ou ferro totalmente,
Ja teu peito cruel fôra desfeito
Das ágoas e das chammas do meu peito.
Quando a formosa Aurora mostra a fronte,
Alegra toda a terra, vendo o dia;
Quando Phebo apparece no horizonte,
Manifesta tambem grande alegria;
Contente pasce o gado ao pé do monte,
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