Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 16

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Com frescas sombras lá do ardor de cima,
Dizei, se a Corydon dizer ouvistes:
Primeiro ha de tornar o brando Lima
As ágoas de crystal á fonte clara,
Que no meu peito novo amor s'imprima.
Primeiro qu'eu te deixe, Phyllis chara,
Me ha de deixar a mi a propria vida.
Mas quem, por não deixar-te, a não deixára!
Pois tu, Phyllis, ma dás, eu offrecida
A tenho a teu querer; tu della ordena
Como, doce amor meu, fores servida.
Por ti me será branda a dura pena;
Por ti suave a dor, leve o tormento,
A que m'inclina o fado, ou me condena.
Ah falso Corydon! teu pensamento
Era enganar-me: dada a fé me tinhas;
E a fé co'as palavras leva o vento.
Mas (ai triste de mi!) tambem as minhas
O vento vai levando. O sol he pôsto.
Porque, ligeira luz, te não detinhas,
Em quanto em meu queixume achava gôsto?

ECLOGA XIV.

INTERLOCUTORES.
ERGASTO, DELIO, LAURENO.
ERGASTO.
Agora, ja que o Tejo nos redeia,
Neste penedo, donde mansamente
Murmurando se quebra a branda veia,
Espera, Delio, até que do Occidente
D'azul deixe a ribeira matizada
O sol, levando o dia a outra gente.
Entretanto daqui verás pintada
A praia de conchinhas d'ouro e prata,
E a ágoa dos mansos sopros encrespada.
Verás como do monte se desata
A vagarosa fonte por penedos,
Que pouco a pouco cava e desbarata;
E como move os frescos arvoredos
Favonio, que de flores pinta o prado;
E como s'estão rindo os campos ledos.
Ditoso o que do Ceo foi tão amado,
Que no campo alcançou passar a vida,
Livre de pena, livre de cuidado.
O rouxinol na vara, que vestida
De verdes folhas, sombra faz ao rio,
Lhe canta o doce verso sem medida.
Agora ao pé d'hum alamo sombrio
Vê como dous carneiros s'offerecem,
Os cornos inclinando, a desafio.
Como ao que vence todos obedecem
E folgão de o ver fóra de perigo;
E outros com face esquiva o aborrecem.
Ditoso aquelle, que co'o ferro antigo
Lavra os campos do pae, e se contenta,
Nos seus mólhos atando o louro trigo!
Este a furia do mar não exprimenta,
Nem corre, por achar a pedra rica,
A estranha praia, que outro sol aquenta.
Onde, quando a esperança o fortifica
Em adquirir mais ouro e mais riqueza,
Ouro, esperança, e vida a muitos fica.
Este vive quieto na pobreza;
E deste confiarei que a anteponha
A quanto o mundo mais procura e préza.
Comendo em mesa vil, não s'envergonha:
Antes bebe nas mãos a fonte pura,
Qu'em precioso metal cruel peçonha.
Oh feliz tempo d'ouro! Ind'aqui dura,
Inda conversa aqui com os humanos
A Justiça, fugindo á gente impura!
Quem visse bem tão claros desenganos,
E quanto mal nos vicios se apparelha,
No campo gastaria bem os anos.
Ao dia a nossa vida se assemelha,
Porque quando no mar o sol se banha
Se costuma tingir de côr vermelha.
Assi, se olharmos bem, sempre se ganha
Lá no occaso da mal gastada vida
Rubicunda vergonha em mágoa estranha.
DELIO.
A gloria, Ergasto meu, qu'he possuida,
Nunca sabe de nós ser tida em preço:
Só despois que se perde he conhecida.
E desta vida os bens, qu'eu não mereço,
Quando os perco e o mal da outra ja m'espera,
Com grandes mágoas d'alma os reconheço.
Oh se em ditosa sorte me coubera
Por favor ou destino das estrellas,
Qu'entre pastores, eu pastor vivêra!
Muitas vezes t'ouvira as luzes bellas
Cantar da linda Nise, nas quaes arde
Teu peito, sempre ufano d'arder nellas.
Buscae pastor, ovelhas, que vos guarde;
Que o Ceo não quer qu'eu mais vos guarde e conte,
E despois vos recolha, sôbre a tarde.
Nãovos verei saltar junto da fonte,
Cabras minhas, ja meu querido gado,
Nem da rocha pender no verde monte.
ERGASTO.
Consente agora, ó Delio, que chorado
Em triste verso seja apartamento,
Que assi me deixa triste e magoado.
DELIO.
Não: que se dobrará meu sentimento.
Mas se queres, Ergasto, que m'esqueça
Partida, que lembrada he só tormento,
Canta aquelle Soneto, que começa:
_Quantas vezes do fuso s'esquecia_.
Que digas hum dos teus, não sei se o peça.
ERGASTO.
Se com m'ouvir, a dor se te allivia,
Eu o direi. Mas eis cá vem Laureno,
Que a cantar vezes mil me desafia.
Cantando venceo ja Tityro e Almeno:
E eu, inda que sei certo ser vencido,
Apostar a cantar com elle ordeno.
LAURENO.
Ergasto, pois o tempo se ha offrecido,
Celebremos amor e formosura,
Emquanto o gado á sombra está acolhido.
ERGASTO.
Postoque ja a victoria tens segura,
Não cantarei sem preço, porque saia
Mais ledo quem cantar com mais brandura.
LAURENO.
Eu hum vaso porei de lisa faia,
Divina obra de Alceo, que celebrado
Será sempre por claro nesta praia.
A vide, de que em roda está cercado,
Os roxos cachos cobre; e primor teve
Em pôr no meio a Dama e Pan cansado.
Parece que a beija-la o deos se atreve,
E que ainda dos beijos mal soffridos
Inclinado lhe foge o tronco leve.
ERGASTO.
Outro vaso porei d'hera cingido,
No qual Orpheo das aves esquecidas
E dos suspensos bosques he seguido.
Não cuido que de faia são sahidas
De tal arte, lavor de tal maneira:
Tambem obra he d'Alceo, das mais polidas.
Esta, das que me deo, foi a primeira;
Que a dar-ma o velho Alcido emfim s'abranda,
Ouvindo-me cantar nesta ribeira.
Ouvio-m'então, estando desta banda;
E dando-ma, dizia-me: Este seja
O premio, Ergasto, dessa Musa branda.
LAURENO.
Delio o nosso cantar pondere, e veja
Qual dos dous a voz dá mais docemente;
Que huma tal causa tal juiz deseja.
DELIO.
Se o meu juizo cada qual consente,
Tu, Ergasto, ao doce canto dá comêço;
Tu responde, Laureno, juntamente:
E eu fico que nenhum perca o seu preço.
ERGASTO.
Alcida, que na côr o leite puro,
E a rosa da manhãa deixas vencida,
Culpa he dos olhos teus, nelles o juro,
Est'amor de qu'estás tão offendida.
Castiga-os com me verem; qu'eu seguro
Que a vingança será delles sentida:
Nem temas tu d'os meus alegres serem,
Vendo tristes taes olhos por me verem.
LAURENO.
Violante minha, cuja côr iguala,
Mas antes vence os cravos, vence a neve;
Desta dor, que atéqui minha alma cala,
Teu amoroso riso a culpa teve.
Se só por viver della e por amá-la,
Julgas que algum castigo se me deve,
A ver-te sempre rindo me condena,
Pois crescendo o amor mais, mais cresce a pena.
ERGASTO.
Com a mãe, que maçãas colhendo andava,
Inda pequena, a bella Alcida vinha:
Eu os ramos da terra ja tocava,
Ja facil para amar o tempo tinha.
Não sei que fogo ou neve se passava
Daquelles olhos seus a est'alma minha,
Que me deixárão pôsto em tal extremo,
Que até de cuidar nelles ardo e tremo.
LAURENO.
No bosque a Violante vi hum dia,
Doce princípio destas doces dores;
A flor cahia nella, e parecia
Dizer cahindo: Aqui reinão amores.
Humilde em tanta gloria ella se ria,
E errando hião sôbre ella as várias flores:
Eu, que vencido fui d'hum error cego,
Áquelle honesto riso est'alma entrego.
ERGASTO.
Pastores deste bosque, que buscais,
Anoitecendo, o lume por costume;
Chegae a mi; qu'eu fico, se chegais,
Que destes meus suspiros leveis lume.
Accesos sahem d'alma os doces ais
No ardor, que pouco a pouco me consume;
Mas nem as chammas, qu'em suspiros deito,
Accendérão jamais hum frio peito.
LAURENO.
Pastores, que buscais na sombra amada
A fonte, por fugir o ardor do estio,
Vinde a mi, porque d'ágoa destillada
Por meus olhos, se sólta hum largo rio;
Tal, que a sêde d'Amor nunca apagada,
Fartá-la ja de lagrimas confio.
Mas com chôro de tanta quantidade
Não movo aquelles olhos a piedade.
ERGASTO.
Se quando a minha Alcida est'alma visse
Nos meus olhos, d'Amor tão maltratada;
Se quando a grave dor fóra sahisse
Entre suspiros mil rôta e quebrada,
Sequer com brandos olhos m'admittisse,
Ficando de vergonha mais córada;
Ditoso fôra, vendo-a, juntamente
Com ser mais bella, deste amor contente.
LAURENO.
Se á vista de Violante derramadas
As lagrimas d'amor, que vive nellas,
Tal fôrça lhe fizessem, que orvalhadas
Lhe ficassem de dor ambas estrellas,
E as rosas entre a neve semeadas,
Co'o piedoso orvalho, inda mais bellas;
Ditoso me fizera. Hora ditosa,
Se a víra ser mais bella e ser piedosa!
ERGASTO.
Claros olhos, que ao sol fazeis inveja,
Que brandos vos mostreis ja vos não peço;
Mas que poder-vos ver paga me seja,
Se por tamanho amor tanto mereço:
Armados d'esquivança então vos veja
Cheios d'hum não sei que, com que pereço;
Que doce me será tal esquivança.
Doce o morrer, qu'em olhos taes s'alcança!
LAURENO.
Olhos, que vos moveis tão docemente,
Que traz vós todo o mundo ides levando,
Eu não sei se tomais do ceo luzente
O movimento seu, se lho estais dando:
Sei certo (e não m'engano,) sei somente
Que a vós de mi minh'alma ides passando:
Mas não posso entender como deixais
Ao descuido o que vós em vós levais.
ERGASTO.
Por mais que a minha soberana Alcida
(Minha não, porque só sua belleza
Vem a ser minha em ser de mi querida)
Me trate vezes mil com aspereza;
Huma só vez que della acho admittida
Minha pequena vista na grandeza
Da luz do rosto seu, sinto tal gloria,
Que de todo o penar perco a memoria.
LAURENO.
Quando a minha mais que unica Violante
(Se minha póde ser a que he tão sua)
Aquella santa luz hum breve instante
Me deixa ver, por mais que a veja crua;
A vista tanto em mi vejo a diante,
Que não he muito, não, que m'attribua
A soberba de ser hum'aguia nova,
Que do ceo no ôlho claro a vista prova.
DELIO.
Pastores, que alcançar pudestes tanto
Com vossa branda Musa, que ja nesta
Idade renovais o antigo canto;
Para vosso louvor, que verso presta?
Qu'hera digna será? que louro dino
Qu'em premio a cada qual adorne a testa?
Em parte paga Amor, se de contino
Por dentro a cada hum gasta os espritos,
Pois co'o divino canto o faz divino.
Nós veremos por annos infinitos
Nos altos troncos destas faias bellas
Os nomes vossos por memoria escritos.
De unicas flores mereceis capellas:
T[~e]e Alcida e Violante sós taes flores;
E, pois ellas as t[~e]e, dem-vo-las ellas.
Os vossos premios recolhei, pastores:
Cada qual igualmente o seu merece;
E ambos d'Apollo os mereceis maiores.
Recolhamos o gado; que anoitece.

ECLOGA XV.

INTERLOCUTORES.
SOLISO e SYLVANO.
SOLISO.
De quanto alento e gôsto me causava
A vista da manhãa resplandecente,
Com que toda a tristeza s'alegrava;
Que quando vinha o sol claro e luzente,
Bem claro então em mi se conhecia
Huma nova alegria differente;
Tanto agora me offende o novo dia,
Vendo que me não mostra a formosura,
De que só me mantinha e só vivia.
E não me quiz deixar triste ventura
Esperanças de mais tornar a vella!
Oh destino cruel! oh sorte dura!
Oh querida Natercia! oh Nympha bella,
Em quem, emfim, mostrou a natureza
O mais que se podia esperar della!
Se lá no assento da maior alteza
Te lembras de quem viste cá na terra,
Para te magoar sua tristeza;
Lembre-te de contino a cruel guerra,
Que contínua me faz tua lembrança,
Esquecido do gado, valle e serra.
Lembre-te que perdi a confiança
De ver os olhos teus, e juntamente
De todo o bem d'Amor toda a esperança.
Lembre-te que por ti de mi ausente
A crystallina fonte me he nojosa,
Com que ja n'outro tempo fui contente.
Que por ti a manhãa clara e formosa
Males cada momento me accrescenta;
Sendo-me em outros dias deleitosa.
Por ti o puro sol me descontenta;
Com seu canto m'offende a Philomella:
Mas, porque nelle chora, me contenta.
Por ti, Natercia pura, Nympha bella,
Na verdura suave deste prado
Os males multiplico só com vella.
Por ti não curo ja do manso gado:
Com o mesmo qu'então meu bem crescia,
Agora vai crescendo o meu cuidado.
Não sou ja, ja não sou quem ser sohia;
Mudou-se-me a vontade co'a ventura;
Mudou-se co'os tormentos a alegria;
Trocou-se o claro dia em noite escura:
Nem he muito que tudo se mudasse,
Pois se mudou a tua formosura.
Não via outro reparo, que cuidasse
Poder aproveitar ao meu tormento,
Nem outra gloria alguma em qu'esperasse,
Senão em quanto o triste pensamento
Se punha a contemplar tua beldade,
Sem lhe lembrar tão longo apartamento.
Agora que me falta a claridade,
Que de ver-te a minha alma recebia,
Ficando-me só della a saudade;
Qual ficará hum'alma, que sabía
Somente desta gloria contentar-se?
Gloria de que gozar não merecia!
Qual poderá ficar quem com lembrar-se
Mortalmente do bem qu'he ja passado,
Só t[~e]e por melhor vida á morte dar-se?
E qual se póde ver quem hum cuidado
Sostem, que he só da dor certa morada,
E nelle vive só desesperado?
Qual ha de ver-se, ó Nympha delicada,
Hum'alma que te via; e em te vendo
O fio lhe cortou a Parca irada?
A causa deste mal eu não a entendo:
Só entendo que, perdida essa luz pura,
Por perdida a não ver, vivo morrendo.
Vejo que me roubou fortuna escura
Hum bem por quem meu mal me contentava:
Lembra-te tu de tanta desventura.
Lembra-te tu, que só de ti'sperava
Remedio aos males meus; e então verás
Qual ficou quem em ti só confiava.
Lembre-te adonde estou, adonde estás,
E que tudo sem ti cá m'aborrece:
Dest'arte o estado meu entenderás.
SYLVANO.
Não sei por que razão nos amanhece
Este dia dos outros differente,
Com que toda a alegria s'entristece.
O manso gado vejo, que contente
Buscando hia nos campos a verdura,
E dos rios a limpida corrente:
Agora triste errar pola espessura,
Alheio d'herva verde e d'ágoa fria;
Sinal d'alguma grande desventura.
Suspensa está das aves a harmonia;
E em certo modo mostra que lá chora
A mesma sequidão da penedia.
A candida, rosada, bella aurora,
Que sempre os altos montes vem dourando,
Com hum pallor mortal se mostra agora.
Está-se nestas hervas enxergando
Tão triste côr, que della se conhece
Que algum mal se nos vai apparelhando.
Emfim, vejo que tudo s'entristece;
A causa ignoro. O ceo piedoso queira
Que menos seja o mal, do que parece.
Porque, desde que habíto esta ribeira,
Não m'acórdo de a ver tão carregada,
Nem de a ouvir murmurar desta maneira.
Não m'acórdo que visse outra alvorada
Tão confusa sahir, como esta vejo,
De profunda tristeza acompanhada.
Agora aqui tomára quem sem pejo
A causa, se a soubesse, m'ensinasse,
Para satisfazer a meu desejo.
Porque não posso eu crer que resultasse
D'alguma baixa causa hum tal effeito,
Que até nos duros montes se enxergasse.
O coração cá dentro no meu peito
M'assegura, que tanta novidade
Não traz a origem de commum respeito.
Mas, por entre a confusa claridade,
Lá vejo vir Soliso com seu gado:
Delle espero entender toda a verdade.
Mas não posso cuidar neste cuidado,
Que nos olhos não mostre onde me chega
A dor de o ver de dores traspassado.
Mas aquelle, que a Amor cruel s'entrega,
Não he muito que passe hum tal tormento;
Porque todo mal dá, todo bem nega.
Em quanto este pastor o pensamento
Logrou, sem qu'em amores o empregasse,
Senão só em buscar contentamento;
Festa não se fazia em que faltasse
A sua frauta, qu'elle assi tangia,
Que outra nunca se ouvio que lhe igualasse.
Ja agora não he aquelle que sohia;
Vejo-o na condição todo mudado;
Mudada tambem delle está a alegria.
Não cura ja do seu querido gado;
Aborrecem-lhe as plantas, hervas, flores;
Aborrece-lhe a gente e o povoado.
Não lhe lembrão as festas dos pastores;
Apartando se vai pola espessura,
Enlevado somente em seus amores.
Contenta-se da noite triste e escura;
Odio t[~e]e com o sol puro e luzente.
Quem vio nunca tamanha desventura?
Com esta vai passando tão contente,
Que diz que, quando o mal mais o atormenta,
Se gôsto sentirp óde, então o sente.
Neste bosque huma Nympha se aposenta,
Por quem elle na vida anda morrendo;
E he causa desta dor que lhe contenta.
E segundo o que delle agora entendo,
Se a vista não m'engana o pensamento,
Ou de vãa phantasia estou pendendo;
Quando fôra maior o grão tormento,
Que Soliso padece, não pudera
Igualar-se com seu merecimento.
Quero chegar-me a elle, em quanto espera
Que vá descendo o vagaroso gado:
Saberei delle o que saber quizera.
Venho, Soliso, a ti com hum cuidado,
Que todo m'entristece; e com grão medo
De grão mal sôbre nós inopinado.
Vês tu como está agora este arvoredo
Triste e pezado, lugubre e sombrio?
Como o vento parece que está quedo?
Vês a commum corrente deste rio
Que ora tanto se pára, ora anda tanto,
Deixando de seu curso o certo fio?
Vês como a Philomella deixa o canto,
Com que incita os pastores namorados,
E multiplica Progne o triste pranto?
E vês, emfim, por todos esses prados
Desmaiadas as hervas, que sohião
Viçoso pasto dar aos nossos gados?
Todos estes sinaes, que não se vião
Nas Auroras a esta antecedentes,
Algum damno mortal nos annuncião.
Eu não sinto o que seja: se o tu sentes,
Não te seja o dizer-mo mui penoso;
E entenderei por ti taes accidentes.
SOLISO.
N'outro tempo me fôra deleitoso
Por extremo, Sylvano, gôsto dar-te;
Mas todo gôsto agora me he nojoso.
Bem quizera poder communicar-te
A causa deste horror; mas antes quero
Anojar-me a mi proprio, que anojar-te.
Porém ja sinto o fado tão severo,
Que quanto mais me ponho a declará-lo,
Mais então d'entendê-lo desespero.
E se acaso o entender para contá-lo,
Se quero começar, quer a ventura
Á fôrça de soluços atalhá-lo.
Que despois que me falta a formosura
Daquella illustre Nympha, que contente
Pudera bem fazer a noite escura,
Foi-me faltando o esprito juntamente:
Em suspirar só gasto a noite e dia,
Sem me fartar de ver-me descontente.
SYLVANO.
Novidade maior em mi sería
O espantar-me de ver-te estar queixando,
Que o ver em ti desejos d'alegria.
Responde-me ao que t'hia perguntando
Da causa desta singular tristeza:
Não gastes todo o tempo lamentando.
SOLISO.
Sempre em ti conheci huma dureza,
E austera inclinação, que bem declara
Quão conforme he teu nome á natureza.
Porque se o meu tormento t'alcançára,
O mor bem para ti o mor mal fôra;
E todo o mal maior te contentára.
Deixa que chore quem com gôsto chora:
Deixa-me lamentar meu triste fado;
Que a hum triste a hora de chôro he melhor hora.
Tu não trazes agora outro cuidado
Mais que buscar no valle a sombra fria,
Quando te offende o sol mais empinado.
Coitado de quem passa a noite e dia
Porfiando em morrer, e a sorte dura
Em fugir-lhe co'a morte só porfia!
Oh formosa Natercia! a excelsa altura
Do glorioso Olympo andas pizando;
E eu ausente da tua formosura!
SYLVANO.
Qu'he isso, que do ceo estás fallando?
Parece-me que ja não es Soliso,
Ou que de puro amar vás delirando.
SOLISO.
Quem ja perdeo aquelle doce riso,
Que siso produzia e dava vida,
Não he muito que perca a vida e siso.
SYLVANO.
Declara-me que cousa tens perdida,
De que tanto te queixas; que ao que sento,
Natercia destes valles he partida.
SOLISO.
Quão livre falla aquelle que o tormento
Alheio vê de fóra, mas não sente
Onde chega tamanho sentimento!
A gloria qu'eu perdi não me consente
Palavras naturaes, razões expertas,
Que possão declarar a dor presente.
Mas nesse teu error vejo que acertas;
Porque com nenhum mal deve turbar-se
Quem só delle esperanças logra certas.
SYLVANO.
A quem, Soliso meu, de declarar-se
Com outro em casos taes falta vontade,
Nunca faltão razões para escusar-se.
Não sei donde te vem tal novidade;
Pois negando-me agora o que te peço,
Suspeito que me negas a amizade.
Se pola que te guardo te aborreço,
Sabe que só hum cego entendimento
Ás amizades faz perder o preço.
Eu te deixarei só com teu tormento;
Mas não sem dor de ver que tanto a peito
Tomes hum tão damnoso pensamento.
SOLISO.
Outra he, certo, a razão, outro o respeito
Que negar-te me fez o que pedias:
Não creias que de ti tão mal suspeito.
Bem sei que o meu descanso pretendias;
E a mesma confiança faz negar-te
O que destes sinaes saber querias.
SYLVANO.
Não queiras mais, Soliso, prolongar-te;
Pois pende o gôsto meu da tua vida:
Se corre risco, dá-me delle parte.
SOLISO.
De todo a sinto ja desfallecida
Nas lembranças daquella breve historia,
Que foi para meus males tão comprida.
Ja me vence a tristissima memoria
Da gloria que presente me animava.
Quem pudera voar traz tanta gloria!
Natercia qu'estes montes alegrava,
E que á casta Diana fez inveja,
E que com sua vista o sol cegava;
Aquella a quem render-se só deseja
Aquelle que de bella mãe presume,
E a quem as armas dá com que peleja;
Natercia, que no mundo foi hum lume,
Onde a belleza de maior estado
Incendios aprendia por costume;
Natercia, por quem ando acompanhado
De mágoa tal, que só da morte dura
Espero o feliz fim de meu cuidado;
Ao ceo se foi co'aquella formosura,
Qu'era mostra do ceo, gloria da terra;
Qu'era o sogeito mor da mor ventura.
Ja não fara no prado ás almas guerra
Com a vista, senão com a lembrança;
Guerra em que o damno mais cruel s'encerra.
Ja de vê-la não tenhas esperança;
Qu'esta vida trocou de mal cercada
Por outra, em que do bem não ha mudança.
E a causa vês aqui de que a alvorada
Visses desta manhãa tão differente
De outra qualquer, de ti mais ponderada.
Dizer-te o mais não posso, porque sente
Est'alma no que disse tal tormento,
Qu'esta memoria apenas me consente.
O espirito ja debil, sem alento,
No pouco que te tenho referido,
Nas azas se sostem do pensamento.
Oh mundo! qual he aquelle tão perdido,
Qu'em ti crê, qual aquelle tão insano,
Vendo-te todo em damno instituido?
Deixas passar hum gôsto d'anno em ano,
Porque, com nosso opprobrio e tua gloria,
Nos faças mais patente o teu engano.
Sempre assi vai comtigo a mor victoria,
Deixando-nos somente por herança
D'hum possuido bem triste memoria.
Quem faz de ti alguma confiança,
Sabendo ja que quem de ti confia,
D'hum engano penoso emfim se alcança?
Aquelle da belleza novo dia
Cegaste, quando mais resplandecente
Triumphos mil d'Amor nos promettia.
De qual tigre cruel peito inclemente
Não se rompe de mágoa, morta aquella,
Que a tristeza mil vezes fez contente?
Quem, que vê eclipsada a vista bella,
Despois de visto haver sua beldade,
E não sabe morrer por hir traz ella?
Como não te applacou tão tenra idade
Ao cortar do seu fio, ó Parca dura,
Que agora o mundo matas de saudade?
Deixae, deixae, pastores, a verdura;
As frautas deixae ja, e os mansos gados;
E chorae todos vossa desventura.
E vós, sylvestres Faunos namorados,
Tambem chorar podeis, pois ja perdêrão
O objecto mais gentil vossos cuidados.
Nymphas, a quem os deoses concedêrão
Destes sagrados bosques a morada,
E em quem tamanhas graças escondêrão;
Se aquella piedade costumada,
De que mais vos prezais, não esquecestes,
Que sempre foi de vós tão venerada;
Se ja d'alheio damno vos doestes,
Do vosso proprio vos doei agora,
Pois com Natercia todo o bem perdestes.
Oh Naiades! das ágoas sahi fóra;
E de vós ágoa saia em mal tão forte,
Pois de vê-lo tambem o monte chora.
Oh Napêas! chorae a triste sorte
Dos miseros pastores, a quem nega
O fado por mais pena o mortal córte.
Oh Dryas! vós, a quem Amor s'entrega,
Tomae todo o cuidado deste pranto,
Pois sabeis onde a causa delle chega.
Deixae, ó Amadryas, entretanto
As plantas que guardais, por ajudar-me,
Pois deixa a Philomella o doce canto.
E vós, ó vida minha, pois curar-me
Ja não podeis, deixae-me juntamente,
Porque lembranças taes possão deixar-me.
Mas se dellas morreis, morro contente.


CANÇÕES.

CANÇÃO I.
Formosa e gentil Dama, quando vejo
A testa d'ouro e neve, o lindo aspeito,
A boca graciosa, o riso honesto,
O collo de crystal, o branco peito,
De meu não quero mais que meu desejo,
Nem mais de vós, que ver tão lindo gesto.
Alli me manifesto
Por vosso a Deos e ao mundo; alli m'inflamo
Nas lagrimas que chóro;
E de mi que vos amo,
Em ver que soube amar-vos me namóro;
E fico por mi só perdido de arte,
Qu'hei ciumes de mi por vossa parte.
Se por ventura vivo descontente
Por fraqueza d'esprito, padecendo
A doce pena qu'entender não sei,
Fujo de mi, e acolho-me correndo
Á vossa vista; e fico tão contente,
Que zombo dos tormentos que passei.
De quem me queixarei,
Se vós me dais a vida deste geito
Nos males que padeço,
Senão de meu sogeito,
Que não cabe com bem de tanto preço?
Mas inda isto de mi cuidar não posso,
D'estar muito soberbo com ser vosso.
Se por algum acêrto Amor vos erra
Por parte do desejo, commettendo
Algum nefando e torpe desatino;
E s'inda mais que ver, emfim, pretendo;
Fraquezas são do corpo, qu'he de terra,
Mas não do pensamento, qu'he divino.
Se tão alto imagino
Que de vista me perco, ou pecco nisto,
Desculpa-me o que vejo.
Porém como resisto
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