Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 03

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Das fomes, dos perigos grandes, quando
Será o injusto mando executado[1]
Naquelle, cuja lyra sonorosa
Será mais affamada, que ditosa.
Neste porto se demorou algum tempo, ou convidado da boa hospitalidade, ou
por não achar embarcação em que seguir viagem: e aqui escreveo a paraphrase
do Psalmo que dissemos, e talvez, inserio no seu Poema as Estancias que
tratão deste naufragio: depois, quando achou opportunidade, partio para
Goa, onde chegou no principio do anno de 1561. E como quem se via cercado
de inimigos, e tinha exprimentado quão fragil escudo he por si só a
innocencia, para captar a benevolencia do Viso-Rei Dom Constantino, cuja
administração, com razão ou sem ella, havia sido censurada de alguns, lhe
dirigio a Epistola que começa: _Como nos vossos hombros tão constantes
etc._, em que, exaltando as virtudes e boas intenções deste Principe, o
exhorta com o exemplo dos grandes homens (e pudera tambem juntar o seu
proprio) a desprezar com animo igual as envenenadas settas da inveja e da
calumnia: e a Dom Antonio de Noronha (o que depois veio a ser Viso-Rei da
India, e não, como suppõe Faria e Sousa, o que foi morto em Africa)
escreveo outra sobre o desconcerto do mundo.
Neste vice-reinado chegou Luis de Camões a tal miseria, que se vio na
precisão de pedir uma camisa para cobrir o corpo. Que espectaculo!
O Valor e o Saber pedindo vão
Ás portas da cubiça e da vileza!
Todavia muito deveo a Dom Constantino, porque não foi inquietado. Mas no do
Conde do Redondo Dom Francisco Coutinho, que lhe succedeo, e que se dizia
amigo do poeta, e por elle havia sido louvado em umas Redondilhas, se lhe
movêrão novos trabalhos, e foi lançado em tão estreita e rigorosa prisão,
que nem espaço tinha para mover-se, nem ar para respirar, como consta da
Canção XI, onde fallando desta perseguição, e da que havia soffrido no
governo de Francisco Barreto, diz:
A piedade humana me faltava
A gente amiga ja contraria via
No perigo primeiro; e no segundo
Terra em que pôr os pés me fallecia,
Ar para respirar se me negava.
Qual fosse a natureza da accusação não consta; necessario he que fosse mui
grave, pois que a este chama elle o seu segundo perigo. Seus perseguidores
tambem ignorâmos quem fossem; mas he de presumir fossem homens poderosos, e
que no numero destes entrasse um Miguel Rodrigues Fios Seccos, homem
fidalgo e rico; pois que tendo o poeta mostrado a sua innocencia, e estando
a ponto de ser sôlto, o embargou na cadeia por certa somma que lhe
emprestára, e que muito bem sabia que elle lhe não podia pagar. Neste novo
embaraço, rindo-se como Democrito, da loucura e extravagancia dos homens,
recorreo Luis de Camões ao Viso-Rei, dirigindo-lhe aquelle jocoso
requerimento, que anda entre as suas Rimas; e teve por despacho a soltura.
Livre desta prisão, ainda que de seus serviços não tirava senão
perseguições e trabalhos, continuou a servir ainda por alguns annos, sem
nunca despir as armas, e portando-se em todas as acções e combates de
maneira, que seus proprios inimigos erão os maiores pregoeiros do seu
valor: até que, vendo-se ja sobre a idade, e com as fôrças quebradas de
tantas privações e fadigas, tomou a resolução de voltar á patria, para
terminar a carreira da sua vida no mesmo ponto, onde a havia começado. E
nestes pensamentos andava, quando Pedro Barreto se lhe appresentou, como
dissemos, e com rogos e promessas o persuadio a que fosse com elle para
Çofala. Mas de tal maneira cumprio o promettido, que o poeta chegando a
Moçambique, assentou resgatar-se daquelle captiveiro; e andava procurando
meios de se transportar ao Reino, quando, mui a proposito para o seu
intento, alli aportou a nao Santa Fe, em que vinhão alguns amigos seus,
como Heitor da Silveira e o Chronista Diogo do Couto e outros, que pela
honra de trazerem na sua companhia tão grande homem, lhe offerecêrão
passagem franca para Lisboa. Mas Pedro Barreto, como lhe chegasse isto aos
ouvidos, a exemplo do Fios Seccos, o mandou prender por duzentos cruzados,
que na India lhe dera para sua matalotagem, e agora lhe pedia como divida:
do que indignados aquelles generosos amigos se fintárão entre si, e
satisfazendo a somma exigida, resgastárão o poeta. Assim que (observa Faria
e Sousa) a pessoa de Luis de Camões e a honra de Pedro Barreto por duzentos
cruzados foi vendida.
Nesta viagem vinha elle escrevendo muito n'um livro entitulado _Parnaso
de Luis de Camões_, que trazia ja mui adiantado: do qual diz Diogo do
Couto, a quem o poeta o mostrou, que era obra de inestimavel preço,
cheia de erudição e philosophia.
No anno de 1569 chegou emfim a Lisboa, onde então ardia o contagio, que
chamárão a grande peste. E não obstante este flagello do Ceo, que tinha
todos os animos occupados de terror, tal foi o seu contentamento em ver-se
restituido á patria, que escrevendo a um seu amigo do Porto, lhe dizia _que
ainda não podia crer tanta ventura_. Pensava Luis de Camões que nella
encontraria a felicidade e socego, que fóra della em vão procurára; mas
succedeo-lhe bem ao contrario, porque seus inimigos lhe movêrão tão crua
guerra, que todas as tormentas passadas lhe parecêrão bonança, como elle
expressamente nos diz (Egloga XI):
Tinha lá para mim que a vida tinha
Mais socegada cá e mais segura
Entre os meus, que com gosto a buscar vinha.
Foi de outro parecer minha ventura:
Discordias sos achei, achei dureza
Em lugar de socêgo e de brandura.
Achei as boas leis da natureza
Vencidas do interesse, e a gente cega
Tanto, que mais que o sangue, o gado préza.
Dizem que quando o mar bonança nega,
Correndo vai aquella nao mor p'rigo.
Que á desejada terra mais se chega.
Assi me aconteceo a mi comigo:
Seguro sempre ao longe, sempre ledo;
Triste ao perto, e tratado como imigo.
E a razão por que assim foi tratado Camões não he difficil de achar. O
escrever dos modernos foi sempre cousa arriscada: todos querem boa fama,
poucos fazem pola merecer; todos commettem erros, poucos, depois de os
commetterem, gostão de os ouvir contar. E assim para não ser perseguido
necessario he ou adular, ou callar. Mas o nosso Camões, que nunca voltou
cara aos perigos, se propoz não só fallar dos modernos, mas dos mesmos
contemporaneos; fazendo juramento solemne (que religiosamente guardou) de
não louvar senão quem o merecesse. Donde resultou que censurados e
não-louvados se unírão para o desgraçarem e perderem. E se antes de
publicar o seu poema, ja na India o perseguírão, muito peor lhe havia de
succeder depois; e isso mui bem prevío elle, quando o estava ordindo; pois
que, tendo invocado no principio da obra somente as Nymphas do Tejo; no fim
do Canto VII, quando ia concluir a narração dos feitos antigos para passar
aos contemporaneos, pede auxilio tambem ás do Mondego, dizendo (Est. 78):
Mas oh cego!
Eu que commetto insano e temerario
Sem vós, Nymphas do Tejo e do Mondego,
Por caminho tão arduo longo e vario!
Vosso favor invoco, que navego
Por alto mar com vento tão contrario,
Que, se não me ajudais, hei grande medo
Que o meu fraco batel se alague cedo.
e depois (Estancia 83):
Pois logo em tantos males he forçado
Que se vosso favor me não falleça,
Principalmente aqui, que sou chegado
Onde feitos diversos engrandeça.
Dai-mo vós sós, que eu tenho ja jurado
Que não o empregue em quem o não mereça,
Nem por lisonja louve algum subido,
Sob pena de não ser agradecido.
Mas não obstante conhecer a quanto se expunha, respeitando mais a fama
posthuma, que a ira dos poderosos, como se vio restituido á patria,
cuidou em imprimir o seu Poema. Porém algum obstaculo encontrou, porque
dous annos esteve sem sahir com elle á luz.
Ora, lendo nós muitas vezes e meditando attentamente esta producção divina,
sempre nos pareceo que em alguns lugares não estava como seu autor a havia
originalmente escrito; e agora achamos confirmada nossa suspeita. Porque,
estando ja concluida esta nossa edição, como obtivessemos um exemplar da de
1613 commentada pelo Licenciado Manoel Correa, contemporaneo e amigo do
poeta, ahi encontrámos na exposição á Estancia 81 do Canto 9º a seguinte
revelação: _Se o poeta (diz elle) se não alargára em algumas palavras, que
poderia escusar, o fingimento, este he poetico e excellente, como são todas
suas cousas. Por isso se lhe emendárão e declarárão algumas Oitavas._ E no
mesmo Canto, Estancia 71: _E assim como aqui vão impressas, as tinha elle
emendadas por conselho dos Religiosos de S. Domingos, com quem tinha grande
familiaridade_. E aqui temos que o Poema achou embaraço na censura da
Inquisição, e que para poder passar, foi preciso que seu autor por conselho
dos frades de S. Domingos, isto he, por ordem dos mesmos Inquisidores lhe
fizesse as alterações e emendas por elles exigidas. E portanto he fóra de
toda a duvida que a explicação da allegoria delle posta na boca de Tethys,
e o dizer ella mesma (Canto X, Estancia 82):
Porque eu, Saturno e Jano,
Jupiter, Juno, somos fabulosos,
Fingidos de mortal e cego engano;
a historia do milagre e martirio do Apostolo S. Thomé (Estancias 108 e
seguintes do mesmo Canto); e Baccho adorando a Christo (Canto II,
Estancia 12) são obra dos Senhores Inquisidores. Que felicidade não
he (dizia o grande Tacito) nascer o homem em tempos, em que lhe he
permittido sentir como quizer, e exprimir o que sente!
Compradas por um tal preço as licenças, e obtido privilegio, em 1572
sahio finalmente á luz este maravilhoso e desgraçado Poema, não como
queria o poeta, mas como os sabios Censores quizerão que apparecesse; e
póde ser que os muitos e notaveis erros de impressão que desfigurão as
duas edições que nesse mesmo anno se fizerão, procedessem de que
desgostado o autor de ver assim estragada a sua obra, não quizesse
cansar-se com a revisão das provas.
Achamos em escritores contemporaneos que ElRei por esta publicação lhe
fizera mercê de uma tença de 15$ reis mensaes, com a clausula inaudita
de tirar para a sua cobrança provisão cada tres annos, e de residir na
Corte. Mas se assim foi, não foi logo, senão alguns annos depois, porque
no de 1575 em uma Epistola que o poeta lhe dirigio, juntamente (ao que
parece) com um exemplar do seu Poema, por occasião de uma setta que o
Papa Gregorio XIII enviou a este Rei, ainda elle lhe supplicava se
dignasse dar-lhe algum premio, se não por justiça, ao menos por
caridade, como se vê dos seguintes versos:
Estes humildes versos, que pregão
São destes vossos Reinos com verdade,
Tenhão, se não merecem galardão,
Favor sequer da Regia Magestade:
Assim tenhais de quem ja tendes tanto,
Com o nome e reliquia, favor santo.
E esta graça, depois de concedida, veio a ser de nenhum effeito; porque os
monstros[2] que se havião apoderado da menoridade daquelle fatal Rei, e
pouco depois o arrastárão a sepultar comsigo a patria nos campos de
Alcacerquivir, tão célebres por essa desgraça nossa, se enraivecêrão contra
o poeta, porque tivera o nobre arrojo de aconselhar áquelle Principe,
tomasse as redeas do govêrno, e mandasse os frades rezar no côro, e tiverão
arte para inutilizar a mercê feita; de sorte que o infeliz, cansado de
andar de Herodes para Pilatus, costumava dizer que o só requerimento, que
jagora tinha a fazer a S. Magestade, era que lhe commutasse a mercê dos 15$
reis em 15$ açoutes nos ministros a cujo cargo estava o pagamento della.
Por outra parte os fidalgos, que estavão acostumados a desfrutar os
commodos da inercia e os premios da virtude, vendo que ousára quebrar seus
foros submettendo-os a uma rigorosa censura, lhe movêrão guerra de morte,
não obstante haver elle supprimido algumas Estancias em que os fustigava
mais forte: das quaes Faria e Sousa nos conservou a seguinte:
Oh inimigos maos da natureza,
Que injuriais a propria geração!
Degenerantes, baixos! Que fraqueza
De esforço, de saber e de razão
Vos fez que a clara estirpe, que se préza
De leal, fido e limpo coração,
Esqueçais dessa sorte? Mas respeito,
Que este dos nobres he o menor defeito.
E assim no ultimo quartel da vida se vio desamparado de todos e reduzido
a tão esqualida miseria, que um escravo (antes verdadeiro amigo) que de
Java trouxera, por nome Antonio, sahia de noute a pedir esmola para o
sustentar; e [~u]a mulata (Barbara se chamava ella) que pelas ruas de
Lisboa andava vendendo mexilhões, condoida do seu desamparo, lhe ia
todos os dias levar um pratinho do que trazia a vender, e de quando em
quando lhe deixava tambem algum vintem do que havia vendido. Que
desengano! De tantos que outrora se dizião seus amigos, só estes
achou fieis na sua adversa fortuna. _Tempora si fuerint nubila, solus
eris._ E neste estado de desesperação parece que foi escrita aquella
incomparavel Canção 11, que he um gemido da natureza, que retumbará no
mundo em quanto nelle houver quem falle ou entenda a lingua Portugueza.
Um só da classe dos fidalgos, Rui da Camara, dizem escritores
contemporaneos se dignára entrar na sua pobre morada: cuidarão nossos
Leitores que iria para o soccorrer? Pois não; foi para o reprehender. Ha
tanto (lhe disse o bom do fidalgo) que vos pedi me traduzisseis os sete
Psalmos Penitenciaes, e ainda os não traduzistes? Nenhuma desculpa
tendes que dar: tendo feito tantos versos e um tão formoso Poema, se me
não servis, não he porque não possais; he, sim, porque não quereis.
_Senhor_ (lhe respondeo o poeta) _quando eu fiz esse Poema e esses
versos, era moço e favorecido das Damas, e tinha o necessario á vida; e
agora não tenho espirito nem contentamento para nada, porque tudo isso
me falta, e em tal miseria me vejo, que ahi está o meu Antonio a
pedir-me um vintem para carvão, e não o tenho para lho dar_. Sabía este
Cavalheiro que Luis de Camões era poeta, para lhe pedir a traducção dos
sete Psalmos Penitenciaes, e não sabia que era pobre, para lhe dar uma
esmola.
Uma insigne affronta lhe fizerão ainda os Cortezãos: quando ElRei Dom
Sebastião ia partir para a sua fatal jornada de Africa, lhe lembrárão
levasse comsigo a Diogo Bernardes, para que este novo Tityro fosse
testimunha ocular de suas proezas, e sahindo das selvas, onde andava
homiziado, as celebrasse depois na tuba heroica. Mas tão generoso e
magnanimo era Luis de Camões, que, não obstante esta injuria, affirma
Severim de Faria, estava ja traçando outro poema, que pelos principios
promettia não ser inferior ao primeiro, se o resultado da empresa não
convertesse o canto em chôro.
Assim foi tratado este grande homem emquanto reinou Dom Sebastião, e muito
peor ainda depois que subio ao throno o Cardial Dom Henrique: e como pouco
depois viesse a cahir n'uma longa infirmidade, e por cúmulo de desgraça lhe
morresse o seu verdadeiro amigo Antonio, que era o unico esteio de seus
dias; opprimido de tantos males, o seguio elle poucos mezes depois á
sepultura, no anno de 1579, com cincoenta e cinco de idade. Querem uns que
morresse na mesma pobre casa onde morava, na rua de S. Anna, a qual depois
da sua morte nunca mais foi habitada, outros que no Hospital; mas como
todos concordão em que de casa de Dom Francisco Manoel lhe mandárão por
caridade um lençol para lhe servir de mortalha, he fóra de toda a duvida
que não morreo no hospital, porque todos os que morrem naquella piedosa
casa, ahi achão mortalha e sepultura.
Em todos os povos, qualquer que fosse a forma de seu govêrno, hão sido
sempre odiados e mais ou menos perseguidos, segundo as conjuncturas dos
tempos, os summos e verdadeiros Escritores; isto he, os que á força do
pensar e á elegancia do dizer unírão em summo grao o amor da verdade e da
justiça. Não puderão as leis de Athenas proteger a innocencia de Socrates
contra as calumnias de um Melito, Seneca em Roma não pôde evitar a morte
debaixo da tyrannia de um Nero; e a estes puderamos ajuntar uma infinidade
de escritores desta classe, philosophos, poetas e oradores, que em diversos
tempos e por diversos modos soffrêrão a mesma sorte. Mas Luis de Camões foi
mais infeliz que todos: se lhe não fizerão beber a cicuta, se lhe não
abrírão as veias, amargurarão-lhe a vida com toda a especie de desgosto, e
depois de o haverem trazido de masmorra em masmorra, e de degredo em
degredo envolto na mais esqualida miseria, com um refinamento de tyrannia,
cuja descoberta estava reservada aos tempos modernos, o obrigárão a
submetter seus escritos a uma junta de idiotas e hypocritas, e escurecer
elle mesmo sua propria fama, rejeitando o que lhe agradava, para adoptar o
que elles querião; e por fim de tudo o condemnárão a morrer de fome; morte
muito mais cruel. E o mais he que, não costumando a inveja apascentar-se em
cadaveres, ainda na sepultura não tem cessado de lhe inquietar as cinzas,
conspirando-se contra todos os que tem querido levantar o véo que encobre o
merecimento deste Escritor insigne. Primeiramente ao poema dos Lusiadas
pretendêrão os da facção perseguidora antepor o da Ulyssea que, ainda que
não destituido de merecimento, está mui longe não só de se lhe poder
comparar em cousa alguma, mas até de dever ser classificado entre as obras
de primeira ordem neste genero: depois como tivessem noticia que Manoel de
Faria e Sousa estava imprimindo em Madrid os seus commentarios, tiverão a
impudencia de lhe escrever, pedindo-lhe com todo o empenho desacreditasse a
Camões; e como este não désse ouvidos a tão infames supplicas, o
denunciárão ao Tribunal da SANTA INQUISIÇÃO; o que constando ao pobre
Faria, se foi valer dos Santos Inquisidores de Hespanha, para que
mitigassem a santa raiva dos de Portugal, escudando com o seu parecer um
folheto que escreveo em sua defesa delle, entitulado:
_Informacion en favor de Manuel de Faria y Sousa, Caballero de la Orden
de Christo, y de la Casa Real, sobre la acusacion que se hizo en el
Tribunal del Santo Oficio de Lisboa, á los Commentarios que docta y
judiciosa y Catolicamente escrevió á Las Lusiadas del doctissimo y
profundissimo y solidissimo Poeta Christiano Luis de Camoens, unico
ornamento de la Academia Española en este genero de Letras._
Deste folheto, que foi impresso em Madrid, anno de 1640, transcreveremos
aqui na sua mesma lingua adoptiva a seguinte passagem, para que se veja
com quanto encarniçamento foi perseguido pelo odio e pela inveja este
grande homem e todos os que o ousárão louvar:
_De los Acusadores, los mas declarados son dos, de cuya calidad y talento
no diremos algo, asi por ser notorio, como porque nos deban esta piadosa
cortesia. Diremos solo (por ser preciso á nuestra justicia) que son
enemigos patentes del Acusado, contra quien se levantaron, porque no los
celebró en estos Escritos, y les dió en ellos, y por cartas y de palabra á
entender su engaño..... Y tambien son enemigos notorios de la luz del
Poeta, como aves escuras, pues publican dilatados libelos difamatorios
contra él, sobre que tambien el Comentador los abomina en varios lances: y
á uno dellos doctrinó libremente por carta en respuesta de otra, con que le
persuadia á escrivir contra el proprio Poeta, al tiempo que comenzaba á
imprimir los Comentarios. De manera que lo que estos y otros pretenden
viendose ofendidos y alcanzados con la luz del Poeta, que de nuevo les dió
en los ojos, por haverla el Comentador sacado de la linterna en que estaba
escondida, no es vedar este libro por quitar de los ojos Catolicos la
representacion de las deidades, y lo osado de algunos discursos; sino por
quitar de sus mismos ojos el resplandor que se los hostija y de los de los
Letores aquellas cláusulas que descubren su flaquesa de vista._
_Ambos ellos son asistidos de personas mayores en nacimiento y fortuna (si
bien no mayores en el conocimiento destos estudios) que tambien se dan por
ofendidos de que no siguiese el Comentador su parecer en afrentar á un
Hombre, que hoy se vé reconocido por admirable de toda la Clase literaria
de Europa; porque en toda ella solo ellos deshonran á Luis de Camoens. Solo
ellos (ellos solo lo creen) saben mas que las Academias universales, que á
una mano publican la excelencia de sus obras._
Tal foi o odio que sobre elle e seus escritos attrahio a justissima
censura, que o poeta faz do infame comportamento daquelles, que, tendo
mais razão que ninguem para amar e defender sua patria, nos campos
de Aljubarrota ousárão tomar as armas contra ella. Mas a maior de todas
as insolencias foi a que teve lugar em nossos dias. O notorio Padre
Macedo, que nestes ultimos tempos assalariado por estrangeiros e
inimigos da patria, como assassino publico, se occupava em denegrir com
calumnias a reputação de todo o Portuguez honrado, tomou a si (não
sabemos se de seu moto proprio, se instigado) a louca empresa de
derribar a Camões, tratando o mesmo assumpto da descoberta da India: fez
umas Oitavas ao Gama, e, como a rãa da fábula, perguntou a seus sequazes
se sera maior que Camões. Respondêrão-lhe que não. Tornou a fazer
outras, e repetindo a mesma pergunta, como lhe dessem a mesma resposta,
cheio de raiva pizou aos pés a corneta; e, considerando melhor sua
natureza e forças, dos heroes passou a cantar os burros. Com tudo o seu
Oriente deve conservar-se como monumento de orgulho, e tambem as suas
cartas a Attico, ainda que não seja senão pelo quinao, que ahi deo a
Camões naquelles versos da Est. 37 do Canto V:
Quando uma noute estando descuidados
Na cortadora prôa vigiando.
Se estavão descuidados, (diz elle) como estavão vigiando? Que ignorancia!
Estavão descuidados, porque o ceo estava limpo e o ar sereno, e não vião
indicio de tempestade, nem cousa que lhes désse cuidado; e estavão
vigiando, porque navegavão por mares desconhecidos, e porque era costume
dos nossos mareantes (o qual inda hoje se conserva, porque os bons costumes
não se devem perder) ter sempre de noute vigias de prôa. E quem assim sabia
a sua lingua, queria ser maior poeta que Camões?
Assim foi tratado em vida e depois de morto este Pregoeiro eterno da gloria
nacional por aquelles que no fundo da alma se conhecião reos de lesa-nação,
e por uns poucos de fanaticos e hypocritas. Mas da gente popular tão bem
recebida e apreciada foi a sua obra, que no mesmo anno se fizerão duas
impressões, e os soldados nas batalhas entoavão algumas Estancias della
como seu canto de guerra, e elle mesmo tão admirado e respeitado, que
quando apparecia em publico (o que era raro, porque nos ultimos tempos
vivia em grande retiro) paravão todos, sem tirar os olhos delle, até o
perderem de vista. E se morreo em tal desamparo (faça-se esta justiça aos
Portuguezes, que em serem compadecidos e generosos a nenhum outro povo
cedem) foi não só porque nessa desgraçada epocha se achavão todos os animos
possuidos de terror com a recente catastrophe, e as calamidades publicas
que se previão futuras, não davão lugar ao sentimento de males
particulares, mas muito principalmente porque a sua miseria não era
conhecida; pois que se mandava o seu Jao pedir esmola, era de noute, e sem
dizer para quem. Este e outros casos taes, não raros n'uma tão grande e
populosa cidade, derão causa á instituição de uma piedosa irmandade de
homens plebeos, (em quem ordinariamente se encontrão mais virtudes que nos
Grandes) a qual inda hoje existe, cujo fim he indagar pelos bairros se ha
algum pobre envergonhado, e apregoar de noute pelas ruas sua morada, para
que os cidadãos que puderem o mandem soccorrer. E o traductor infiel
(Mickle) que ousou arremendar Camões com trapos da sua fábrica, e deste
desastrado acontecimento tirou pretexto para desafogar o seu odio contra os
Portuguezes, que nenhum mal lhe fizerão, tratando-os de _nação barbara e
inculta_, devêra lembrar-se, que serem os bons sacrificados pelos maos, por
lhe conhecerem o merecimento, cousa he, que em toda a parte todos os dias
se vê; mas que no seculo desasete um Escritor insigne, com que hoje seus
compatriotas tanto blasonão, fosse igualmente infeliz, polo não saberem
apreciar, e que o seu livro, antes de impresso, fosse vendido pelo vil
preço de cinco Libras, e depois de impresso, jazesse tantos tempos
ignorado, de sorte que para saberem que o tinhão, fosse preciso haver quem
lho mostrasse, he caso que só em Inglaterra nos consta que succedesse.
Foi Luis de Camões de mediana estatura; cabellos (quando moço) tão louros,
que tiravão a açafroados; olhos vivissimos; nariz comprido, alto no meio, e
grosso na ponta; rosto cheio, beiços grossos, e um tanto carregado da
fronte; pelo que ao primeiro aspecto inculcava severidade; mas na
conversação e trato era summamente affavel e jovial. Era liberal com os
amigos, honrador dos benemeritos, rigido censor dos vicios, intrepido nos
perigos, constante nas adversidades. Em todos os trances de fortuna
conservou sempre a mesma serenidade de alma: de maneira que ja no leito da
morte escrevendo a um seu amigo, lhe dizia gracejando: _Quem ouvio dizer,
que em tão pequeno theatro, como o de um pobre leito, quizesse a fortuna
representar tão grandes desventuras? E eu, como se ellas não bastassem, me
ponho ainda da sua parte; porque procurar resistir a tantos males,
pareceria especie de desavergonhamento._ Emfim, de todas as virtudes foi
ornado este grande homem; e a que nelle mais sobresahia, era um extremoso e
desinteressado amor de patria, que da maneira mais evidente se manifestou
em todo o discurso da sua trabalhosa vida, e nos ultimos momentos della,
como lampada moribunda, inda despedio de si maior clarão: pois ja nos
parocismos da morte, passando em resenha todas as suas acções, parece que
nenhuma outra mágoa sentia, senão a de haver soltado n'um transporte d'ira
aquellas palavras: _Ingrata patria, não possuirás meus ossos_. Porque
julgava elle, que por maiores aggravos que um cidadão haja recebido da sua
patria, nunca, nem por pensamento, deve procurar vingança. E querendo na
sua derradeira hora deixar-nos um testimunho deste seu arrependimento,
vendo-se em tal desamparo, sem ter ninguem a seu lado, escreveo a Dom
Francisco de Almeida, que na comarca de Lamego andava allistando gente, uma
carta onde se lião estas memoraveis palavras: _Emfim, acabarei a vida; e
aqui verão todos que tão amante fui da minha patria, que não contente de
morrer nella, quiz tambem morrer com ella._
Foi enterrado sem distincção alguma na Igreja das Religiosas de S.ta
Anna da Ordem de S. Francisco; e assim jazêrão seus ossos confundidos
com os do vulgo sem nome até ao anno de 1595, em que Dom Gonçalo
Coutinho lhe mandou pôr sobre a sepultura uma campa lisa de marmore, e
nella gravar este letreiro:
AQUI JAZ LUIS DE CAMÕES,
PRINCIPE
DOS POETAS DE SEU TEMPO.
VIVEO POBRE E MISERAVELMENTE,
E ASSI MORREO
ANNO DE MDLXXIX.
ESTA CAMPA LHE MANDOU AQUI PÔR
DOM GONÇALO COUTINHO, NA QUAL SE
NÃO ENTERRARÁ PESSOA ALGUMA.
Alguns annos depois lhe mandou abrir na mesma campa Martim Gonçalves da
Camara o seguinte Epitaphio:
_Naso Elegis, Flaccus Lyricis, Epigrammate Marcus,
Hic jacet heroe carmine Virgilius.
Ense simul calamoque auxit tibi, Lysia, famam.
Unam nobilitant Mars et Apollo manum.
Castalium fontem traxit modulamine: at Indo
Et Gangi telis obstupefecit aquas.
India mirata est, quando aurea carmina, lucrum
Ingenii, haut gazas, ex Oriente tulit.
Sic bene de patria meruit, dum fulminat ense:
At plus, dum calamo bellicosa facta refert.
Hunc Itali, Galli, Hispani vertere poetam:
Quaelibet hunc vellet terra vocare suum.
Vertere fas, aequare nefas: aequabilis uni
Est sibi: par nemo, nemo secundus erit._
Achamos em Pedro Mariz que um fidalgo Alemão escrevêra a um seu
correspondente de Lisboa que lhe soubesse que sepultura tinha Camões, e
quando a não tivesse sumptuosa, tratasse com a cidade lhe désse
licença para trasladar seus ossos para Alemanha, onde lhe faria um
tumulo superbissimo, igual aos dos mais famosos antigos. Mas o Senado da
Camara attendendo á dignidade da nação, não consentio na proposta,
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