Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 18

Total number of words is 4138
Total number of unique words is 1592
32.5 of words are in the 2000 most common words
48.1 of words are in the 5000 most common words
55.8 of words are in the 8000 most common words
Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
Limite faz, Arómata chamado:
Arómata outro tempo; que volvendo
A roda, a ruda lingua mal composta
Dos proprios outro nome lhe t[~e]e dado.
Aqui, no mar, que quer apressurado
Entrar por a garganta deste braço,
Me trouxe hum tempo e teve
Minha fera ventura.
Aqui nesta remota, aspera e dura
Parte do mundo, quiz que a vida breve
Tambem de si deixasse hum breve espaço;
Porque ficasse a vida
Por o mundo em pedaços repartida.
Aqui me achei gastando huns tristes dias,
Tristes, forçados, maos e solitarios,
De trabalho, de dor, e d'ira cheios:
Não tendo tãosomente por contrarios
A vida, o sol ardente, as ágoas frias,
Os ares grossos, férvidos e feios,
Mas os meus pensamentos, que são meios
Para enganar a propria natureza,
Tambem vi contra mi;
Trazendo-me á memoria
Alguma ja passada e breve gloria,
Qu'eu ja no mundo vi, quando vivi;
Por me dobrar dos males a aspereza;
Por mostrar-me que havia
No mundo muitas horas d'alegria.
Aqui'stive eu com estes pensamentos
Gastando tempo e vida; os quaes tão alto
Me subião nas asas, que cahia
(Oh vêde se seria leve o salto!)
De sonhados e vãos contentamentos
Em desesperação de ver hum dia.
O imaginar aqui se convertia
Em improvisos choros e em suspiros,
Que rompião os ares.
Aqui a alma captiva,
Chagada toda, estava em carne viva,
De dores rodeada e de pezares,
Desamparada e descoberta aos tiros
Da soberba Fortuna;
Soberba, inexoravel e importuna.
Não tinha parte donde se deitasse,
Nem esperança alguma, onde a cabeça
Hum pouco reclinasse, por descanso:
Tudo dor lhe era e causa que padeça,
Mas que pereça não; porque passasse
O que quiz o destino nunca manso.
Oh qu'este irado mar gemendo amanso!
Estes ventos, da voz importunados,
Parece que se enfreião:
Somente o Ceo severo,
As estrellas e o fado sempre fero,
Com meu perpétuo damno se recreião;
Mostrando-se potentes e indignados
Contra hum corpo terreno,
Bicho da terra vil e tão pequeno.
Se de tantos trabalhos só tirasse
Saber inda por certo que algum'hora
Lembrava a huns claros olhos que ja vi;
E s'esta triste voz, rompendo fóra,
As orelhas angelicas tocasse
Daquella em cuja vista ja vivi;
A qual, tornando hum pouco sôbre si,
Revolvendo na mente pressurosa
Os tempos ja passados
De meus doces errores,
De meus suaves males e furores,
Por ella padecidos e buscados,
E (pôsto que ja tarde) piedosa,
Hum pouco lhe pezasse,
E lá entre si por dura se julgasse:
Isto só que soubesse me seria
Descanso para a vida que me fica;
Com isto affagaria o soffrimento.
Ah Senhora! Ah Senhora! E que tão rica
Estais, que cá tão longe d'alegria
Me sustentais com doce fingimento!
Logo que vos figura o pensamento,
Foge todo o trabalho e toda a pena.
Só com vossas lembranças
Me acho seguro e forte
Contra o rosto feroz da fera morte;
E logo se me juntão esperanças
Com que, a fronte tornada mais serena,
Torno os tormentos graves
Em saudades brandas e suaves.
Aqui com ellas fico perguntando
Aos ventos amorosos, que respirão
Da parte donde estais, por vós Senhora;
Ás aves qu'alli voão, se vos virão,
Que fazieis, qu'estaveis praticando;
Onde, como, com quem, que dia e que hora.
Alli a vida cansada se melhora,
Toma espiritos novos, com que vença
A fortuna e trabalho,
Só por tornar a ver-vos,
Só por ir a servir-vos e querer-vos.
Diz-me o tempo que a tudo dará talho:
Mas o desejo ardente, que detença
Nunca soffreo, sem tento
Me abre as chagas de novo ao soffrimento.
Assi vivo; e s'alguem te perguntasse,
Canção, porque não mouro;
Podes-lhe responder; que porque mouro.

CANÇÃO XI.
Vinde cá meu tão certo Secretario
Dos queixumes que sempre ando fazendo,
Papel, com quem a pena desaffógo.
As semrazões digamos, que vivendo
Me faz o inexoravel e contrário
Destino, surdo a lagrimas e a rôgo.
Lancemos ágoa pouca em muito fogo,
Accenda-se com gritos hum tormento,
Que a todas as memorias seja estranho.
Digamos mal tamanho
A Deos, ao mundo, á gente e, emfim, ao vento,
A quem ja muitas vezes o contei,
Tanto debalde como o conto agora.
Mas ja que para errores fui nascido,
Vir este a ser hum delles não duvido.
E, pois ja d'acertar estou tão fóra,
Não me culpem tambem se nisto errei.
Se quer este refúgio só terei,
Fallar e errar, sem culpa, livremente.
Triste quem de tão pouco está contente!
Ja me desenganei que de queixar-me
Não s'alcança remedio; mas quem pena,
Forçado lh'he gritar, se a dor he grande.
Gritarei; mas he debil e pequena
A voz para poder desabafar-me;
Porque nem com gritar a dor se abrande.
Quem me dará se quer que fóra mande
Lagrimas e suspiros infinitos,
Iguaes ao mal que dentro na alma mora?
Mas quem pôde algum'hora
Medir o mal com lagrimas, ou gritos?
Direi, emfim, aquillo que m'ensinão
A ira, e mágoa, e dellas a lembrança,
Que outra dor he por si mais dura e firme.
Chegae, desesperados, para ouvir-me;
E fujão os que vivem d'esperança,
Ou aquelles que nella se imaginão;
Porque Amor e Fortuna determinão
De lhes deixar poder para entenderem
Á medida dos males que tiverem.
Quando vim da materna sepultura
De novo ao mundo, logo me fizerão
Estrellas infelices obrigado:
Com ter livre alvedrio, mo não derão;
Qu'eu conheci mil vezes na ventura
O melhor, e o peor segui forçado.
E para que o tormento conformado
Me dessem com a idade, quando abrisse
Inda menino os olhos brandamente,
Mândão que diligente
Hum menino sem olhos me ferisse.
As lagrimas da infancia ja manavão
Com huma saudade namorada;
O som dos gritos, que no berço dava,
Ja como de suspiros me soava.
Co'a idade e fado estava concertado:
Porque quando por caso m'embalavão,
Se d'Amor tristes versos me cantavão,
Logo m'adormecia a natureza;
Que tão conforme estava co'a tristeza!
Foi minh'ama huma fera; que o destino
Não quiz que mulher fosse a que tivesse
Tal nome para mi; nem a haveria.
Assi criado fui, porque bebesse
O veneno amoroso de menino,
Que na maior idade beberia,
E por costume não me mataria.
Logo então vi a image e semelhança
Daquella humana fera tão formosa,
Suave e venenosa,
Que me criou aos peitos da esperança;
De quem eu vi despois o original,
Que de todos os grandes desatinos
Faz a culpa soberba e soberana.
Parece-me que tinha fórma humana,
Mas scintilava espiritos divinos.
Hum meneio, e presença tinha tal,
Que se vangloriava todo o mal
Na vista della: a sombra co'a viveza
Excedia o poder da natureza.
Que genero tão novo de tormento
Teve Amor, sem que fosse não somente
Provado em mi, mas todo executado?
Implacaveis durezas, que ao fervente
Desejo, que dá fôrça ao pensamento,
Tinhão de seu proposito abalado,
E corrido de ver-se e injuriado:
Aqui sombras phantasticas, trazidas
D'algumas temerarias esperanças;
As bem-aventuranças
Tambem nellas pintadas e fingidas.
Mas a dor do desprêzo recebido,
Que todo o phantasiar desatinava,
Estes enganos punha em desconcêrto.
Aqui o adivinhar, e o ter por certo
Qu'era verdade quanto adivinhava,
E logo o desdizer-me de corrido;
Dar ás cousas que via outro sentido;
E para tudo, emfim, buscar razões:
Mas erão muitas mais as semrazões.
Não sei como sabía estar roubando
Co'os raios as entranhas, que fugião
Par'ella por os olhos subtilmente!
Pouco a pouco invisiveis me sahião;
Bem como do véo humido exhalando
Está o subtil humor o sol ardente.
O gesto puro, emfim, e transparente,
Para quem fica baixo e sem valia
Este nome de bello e de formoso;
O doce e piedoso
Mover d'olhos, que as almas suspendia,
Forão as hervas magicas, que o Ceo
Me fez beber: as quaes por longos anos
N'outro ser me tiverão transformado,
E tão contente de me ver trocado,
Que as mágoas enganava co'os enganos;
E diante dos olhos punha o véo,
Que m'encobrisse o mal que assi cresceo:
Como quem com affagos se criava
Daquella para quem crescido estava.
Pois quem póde pintar a vida ausente,
Com hum descontentar-me quanto via,
E aquell'estar tão longe donde estava;
O fallar sem saber o que dizia;
Andar sem ver por onde, e juntamente
Suspirar sem saber que suspirava?
Pois quando aquelle mal m'atormentava,
E aquella dor, que das Tartareas ágoas
Sahio ao mundo, e mais que todas doe,
Que tantas vezes soe
Duras íras tornar em brandas mágoas?
Agora co'o furor da mágoa irado,
Querer, e não querer deixar de amar;
E mudar n'outra parte, por vingança,
O desejo privado d'esperança,
Que tão mal se podia ja mudar?
Agora a saudade do passado,
Tormento puro, doce e magoado,
Que converter fazia estes furores
Em magoadas lagrimas d'amores?
Que desculpas comigo só buscava,
Quando o suave Amor me não soffria
Culpa na cousa amada, e tão amada!
Erão, emfim, remedios que fingia
O medo do tormento, qu'ensinava
A vida a sustentar-se d'enganada.
Nisto huma parte della foi passada;
Na qual se tive algum contentamento
Breve, imperfeito, timido, indecente,
Não foi senão semente
D'hum cumprido, amarissimo tormento.
Este curso contino de tristeza,
Estes passos vãamente derramados,
Me forão apagando o ardente gôsto,
Que tão de siso n'alma tinha pôsto,
Daquelles pensamentos namorados
Com que criei a tenra natureza,
Que do longo costume da aspereza,
Contra quem fôrça humana não resiste,
Se converteo no gôsto de ser triste.
Dest'arte a vida em outra fui trocando;
Eu não, mas o destino fero, irado;
Qu'eu, inda assi, por outra a não trocára.
Fez-me deixar o patrio ninho amado,
Passando o longo mar, que ameaçando
Tantas vezes m'esteve a vida chara.
Agora exprimentando a furia rara
De Marte, que nos olhos quiz que logo
Visse, e tocasse o acerbo fructo seu.
E neste escudo meu
A pintura verão do infesto fogo.
Agora peregrino, vago, errante,
Vendo nações, linguagens e costumes,
Ceos varios, qualidades differentes,
Só por seguir com passos diligentes
A ti, Fortuna injusta, que consumes
As idades, levando-lhes diante
Huma esperança em vista de diamante:
Mas quando das mãos cahe se conhece
Que he fragil vidro aquillo que apparece.
A piedade humana me faltava,
A gente amiga ja contrária via,
No perigo primeiro; e no segundo,
Terra em que pôr os pés me fallecia,
Ar para respirar se me negava,
E faltava-me, emfim, o tempo e o mundo.
Que segredo tão arduo e tão profundo,
Nascer para viver e para a vida,
Faltar-me quanto o mundo t[~e]e para ella!
E não poder perdella,
Estando tantas vezes ja perdida!
Emfim, não houve trance de fortuna,
Nem perigos, nem casos duvidosos,
Injustiças daquelles que o confuso
Regimento do mundo, antigo abuso,
Faz sôbre os outros homens poderosos,
Qu'eu não passasse, atado á fiel coluna
Do soffrimento meu, que a importuna
Perseguição de males em pedaços
Mil vezes fez á fôrça de seus braços.
Não conto tantos males, como aquelle
Que despois da tormenta procellosa,
Os casos della conta em porto ledo;
Qu'inda agora a fortuna fluctuosa
A tamanhas miserias me compelle,
Que de dar hum só passo tenho medo.
Ja de mal que me venha não m'arredo,
Nem bem que me falleça ja pretendo;
Que para mi não val astucia humana,
De fôrça soberana,
Da Providencia, emfim, Divina pendo.
Isto que cuido e vejo, ás vezes tomo
Para consolação de tantos danos.
Mas a fraqueza humana quando lança
Os olhos no que corre, e não alcança
Senão memoria dos passados anos;
As ágoas qu'então bebo, e o pão que como,
Lagrimas tristes são, qu'eu nunca domo,
Senão com fabricar na phantasia
Phantasticas pinturas d'alegria.
Que se possivel fosse que tornasse
O tempo para traz, como a memoria,
Por os vestigios da primeira idade;
E de novo tecendo a antigua historia
De meus doces errores, me levasse
Por as flores que vi da mocidade;
E a lembrança da longa saudade
Então fosse maior contentamento,
Vendo a conversação leda e suave,
Onde huma e outra chave
Esteve de meu novo pensamento,
Os campos, as passadas, os sinais,
A vista, a neve, a rosa, a formosura,
A graça, a mansidão, a cortezia,
A singela amizade, que desvia
Toda a baixa tenção, terrena, impura,
Como a qual outra alguma não vi mais...
Ah vãas memorias! onde me levais
O debil coração, qu'inda não posso
Domar bem este vão desejo vosso?
Não mais, Canção, não mais; qu'irei fallando,
Sem o sentir, mil annos; e se acaso
Te culparem de larga e de pezada;
Não póde ser (lhe dize) limitada
A ágoa do mar em tão pequeno vaso.
Nem eu delicadezas vou cantando
Co'o gôsto do louvor, mas explicando
Puras verdades ja por mi passadas.
Oxalá forão fábulas sonhadas!

CANÇÃO XII.
Nem roxa flor de Abril,
Pintor do campo ameno e da verdura,
Colhida entre outras mil,
Foi nunca assi agradavel á donzella
Cortez, alegre e bella,
De sua mãe cuidado e glória pura,
Como a mi foi a inculta formosura
Natural, que pudera
A Saturno render na sua Esphera.
Natural fonte agreste,
Não lavrada d'Artifice excellente,
Mas por arte celeste
Derivada de rustico penedo,
Não fez ja mais tão ledo
Cansado caçador por sesta ardente,
Quanto o cuidado a mi me fez contente
Do ver tão descuidado,
Que faz sereno a Jupiter irado.
Fructa, que sem concêrto
Naturalmente em ramos se pendura,
Achada por acêrto;
A quem pintada a vê de sangue e leite,
Não lhe dara o deleite,
Qu'essa graça me dá sem compostura,
Ornamento da mesma formosura,
E o toucado sem arte,
Que tornára pastor ao bravo Marte.
A manhãa graciosa,
Que derramando sahe d'entre os cabellos
A flor, o lirio, a rosa,
Sem ajuda d'ornato, ou d'artificio,
Não faz o beneficio,
Que faz a luz dos vossos olhos bellos
A quem os vê tão puros e singelos;
E esse innocente riso,
Por quem Apollo o Tejo torna Amphriso.
Outeiros coroados
Das árvores que fazem a espessura
Com os ramos copados
Alegre, que mão destra os não cultiva,
Graça tão excessiva
Não t[~e]e na sua natural verdura,
Quanta na d'esses olhos, clara e pura,
Deposita a esperança,
Com que Amor gôsto, a mãe tormento alcança.
Dos simples passarinhos
A musica sem arte concertada,
D'entre os verdes raminhos,
Tão suave não he, tão deleitosa
A quem na selva umbrosa
Com mente ouvindo-a está toda enlevada,
Quanto a mi essa falla doce agrada,
E o natural aviso,
Que roubão a Mercurio sceptro e siso.
De frescos rios ágoa,
Que clara entre arvoredos se deriva,
Cahindo d'alta fragoa,
Esmaltando de perolas no prado
O verde delicado,
Com brando som aos olhos fugitiva,
Não nos alegra quanto a graça esquiva
D'essa luz soberana,
Que faz cortez a rustica Diana.
A tal luz (ó Canção, que ousaste vella!)
Vendo estás ja prostrado
Saturno triste, Jupiter irado,
Bravo Marte, aureo Apollo, Venus bella,
E Mercurio, e Diana, e toda estrella.

CANÇÃO XIII.
Oh pomar venturoso,
Onde co'a natureza
A subtil arte t[~e]e demanda incerta;
Qu'em sítio tão formoso
A maior subtileza
D'engenho em ti nos mostras descoberta!
Nenhum juizo acerta,
De cego e d'enlevado,
Se t[~e]e em ti mais parte
A natureza, ou arte;
Se Terra ou Ceo de ti t[~e]e mais cuidado,
Pois em feliz terreno
Gozas d'hum ar mais puro e mais sereno.
De teu formoso pêzo
Se mostra o monte ledo,
E o caudaloso Zezere t'estranha,
Porque ólhas com desprêzo
Seu crystal puro e quedo,
Que com Pera os teus pés rodeia e banha.
Em ti pintura estranha,
A que Apelles cedêra,
Enigmas intricados,
E myrtos animados
Vemos, que o proprio Escopas não fizera;
Em ti, co'a paz interna,
T[~e]e o santo prazer morada eterna.
Os jardins da famosa
Babel, tão nomeados,
Por maravilha o mundo não levante,
Inda que com gloriosa
Voz, qu'estão pendurados
Do instavel ar, a fama antigua cante:
Nem haja quem s'espante
Dos famosos d'Alcino;
Nem as mais doutas pennas
Cantem os de Mecenas,
Cultor de todo engenho peregrino;
Mas onde quer que vôe,
De ti só falle a Fama, e te pregôe.
Que s'era antiguamente
De pomos d'ouro bellos
O jardim das Hesperidas ornado;
E, a pezar da serpente
Que os guardou, só colhellos
Pôde o famoso Alcides, d'esforçado;
Tu, mais avantajado,
Mostras a hum'alma casta
Seguir o que deseja,
Fugir da torpe inveja
(Pomos d'ouro que o tempo não contrasta):
Emfim, co'a caridade
Vencer o Inferno, abrir a Eternidade.
Por tanto da ventura,
Para ti reservada,
Te deixe o Ceo gozar perpetuamente;
Porque sejas figura
Da gloria avantajada
Delle mesmo, e qu'em ti se represente;
Porqu'em quanto sustente
O ceo, o mar e a terra,
Seus feitos milagrosos,
Mysterios mais gloriosos,
Com que a morte das almas nos desterra,
Por onde em nossas almas
Com mais pompas triumpha e com mais palmas,
.......................
Goza, pois, longamente
Teu venturoso fado,
Da mãe do teu autor bem possuido:
Qu'em ti, sempre contente
De seu sublime estado,
A alma dos seus alegra e o sentido.
Cada qual preferido
Nas grandes qualidades
Ao sabio Nestor seja,
Para que o mundo os veja
Exceder as longuissimas idades;
E com a longa vida
Seja sua memoria ennobrecida.
Canção, pois mais famosas
Por ti não podem ser
Deste monte as estancias deleitosas;
Bem póde succeder
Que aquelle que os teus numeros governa,
Por querê-las cantar te faça eterna.

CANÇÃO XIV.
Quem com sólido intento
Os segredos buscar da natureza,
Quanto d'Athenas préza,
Entregue ao mar irado, ao leve vento:
Em forjar meu tormento,
Nova Philosophia,
D'experiencias feita, Amor m'ensina.
Das Leis do antigo tempo bem declina;
Que Amor a natureza em mi varía;
Donde escola de Sabios nunca vio
Em natural sogeito
Quanto Amor em meu peito descobrio.
As aves no ar sereno,
O gado de Proteo nas ágoas pasce;
Vive o homem e nasce
Neste mundo, qual mundo mais pequeno:
Eu tudo desordeno,
Em todos dividido;
A boca no ar, na terra o entendimento:
Dá-me esse Amor, dá-me esta o pensamento;
O coração no fogo he consumido:
Mas a ágoa, que dos olhos sempre desce,
T[~e]e effeito tão vário,
Qu'em hum humor contrário o fogo cresce.
Da vista Amor sohia
Abrir ao coração segura entrada:
Lei he ja profanada;
Que quando a luz d'huns olhos me fería,
Amando o que não via,
Qual d'escopeta o lume,
Primeiro o querer vi, que a causa visse.
Quem o desejo co'a esperança unisse,
Cego iria apos cego e vil costume;
Qu'eu dest'alma, das leis do mundo isenta,
Morta a esperança vejo,
Onde sempre o desejo se sustenta.
Em vão se considera
Que hum semelhante a outro busca e ama,
E que foge e desama
Todo mortal a morte esquiva e fera:
Sigo huma linda fera,
Qu'esconde em vista humana
Coração de diamante e peito d'aço,
De meu sangue faminta; e satisfaço
Com cruel morte a sêde deshumana.
Assi que, sendo em tudo differente,
Corro apos minha sorte,
E se m'entrego á morte, estou contente.
Cahe em maior defeito
Quem cuida ser sciencia clara e certa,
Que a causa descoberta
Sempre produz a si conforme o effeito:
Rendeo-me hum lindo objeito,
Que, sendo neve pura,
Vivo me abraza, e o fogo interno aviva;
Qu'esta formosa fera fugitiva,
Com ser neve, do fogo s'assegura:
Donde infiro por certo (e cesse a fama
Vãa, mentirosa e leve)
Que não desfaz a neve ardente chama.
Bem no effeito se sente
Cessar, cessando a causa donde pende;
Que o fogo mais se accende,
Estando á vista, donde mais ausente;
Mas n'alma vivamente
A trazem debuxada,
De noite Amor, de dia o pensamento:
E quando Apollo deixa o claro assento,
Por entre sombras vejo a Nympha amada.
Pois se sem luz Amor os olhos ceva,
Cego, se não concede
Qu'em nada a Amor impede a escura treva.
Erra quem atrevido
Pregôa ser maior que a parte o todo:
Amor me t[~e]e de modo,
Qu'estou n'hum'alma minha convertido:
Desta gloria ha nascido
O temor de perdê-la:
E, postoque o receio a muitos finge
Lá na imaginação Chimera e Sfinge
De mal futuro, que urde imiga estrella,
Vejo em mi, por incognito segredo,
Quando estou mais contente,
Que só do bem presente nasce o medo.
T[~e]e-se por manifesto
Parecer-se ao sogeito o accidente;
Mas inda em mi se sente
O pensamento, a côr, o riso, o gesto;
E, tendo todo o resto
Da vida ja perdido
Neste tormento meu tão duro e esquivo,
A gostos morto estou, a penas vivo.
E, sendo morto ja, vive o sentido,
Porque sinta que n'alma despedida
Póde em meu mal unir-se
O ficar e o partir-se, a morte e a vida.
Destas razões, Canção, infiro e creio,
Que ou se mudou em tudo a fórma usada
Da natural firmeza,
Ou tenho a natureza em mi mudada.

CANÇÃO XV.
Qu'he isto? Sonho? Ou vejo a Nympha pura,
Que sempre na alma vejo?
Ou me pinta o desejo
O bem qu'em vão cad'hora m'assegura?
Mal póde a noite escura,
Amando a sombra fria,
Mandar-me em sonho a luz formosa e bella,
Que se não torne em dia,
De seus luzentes raios inflammada.
Oh vista desejada
De graciosa Nympha e viva estrella!
Que ha tanto que por este mar navego
(Sem ver meu claro Polo) escuro e cego.
Nesses formosos olhos, d'enlevada,
Minh'alma se escondeo,
Quando ordenava o Ceo
Que vivesse comigo desterrada.
Vós a mais certa estrada
De ver a summa alteza,
Do efeito a causa abris a est'alma minha.
Assi mortal belleza
Só della nasce, e nella se resume;
Assi celeste lume
Lá dos ceos se deriva, e lá caminha.
Pois, como a Deos unir-me a vista possa,
Porque a negais, meu sol, a est'alma vossa?
Se me quereis prender a parte a parte,
Cabello ondado e louro,
Tecei-me a rede de ouro
Em que prendeo Vulcano a Cypria e Marte.
Des que com gentil arte
Vestis de flores bellas
A terra em que tocais co'a bella planta,
Quantas vezes com vellas
Quiz n'huma d'essas flores transformar-me?
Porque, vendo pizar-me
D'esse candido pé, que a neve espanta,
Póde ser que na flor mudado fôra
Que deo a Juno irada a linda Flora.
Mas onde te acolheste (ó doce vida!)
Mais leve e pressurosa,
Do que na selva umbrosa
Cerva d'aguda setta vai ferida?
Se para tal partida,
Meus olhos, vos abristes,
Cerrára-vos o somno eternamente,
Antes que ver-vos tristes,
Perdendo tão suave e doce engano!
Agora, com meu dano,
Vêdes, para mor mágoa, claramente,
Neste bem fugitivo e somno leve,
Que mal não ha mais longo, que hum bem breve.
Ditoso Endymião que a deosa chara,
Que a noite vai guiando,
Teve em braços sonhando!
Ah quem de sonho tal nunca acordára!
Tu só, Aurora avara,
Quando os olhos feriste,
Me mataste cruel d'inveja pura.
Mas se d'esta alma triste
A negra escuridão vencer quizeste,
Sabe qu'em vão nasceste;
Que para desfazer-se a nevoa escura
De meus olhos, importa estar presente
Outro sol, outra aurora, outro Oriente.
Se a luz de meu Planeta,
Não m'aviva, Canção, branda e quieta,
Qual flor de chuva, em breve consumida,
Verás desfeita em lagrimas a vida.

CANÇÃO XVI.
Por meio d'humas serras mui fragosas,
Cercadas de sylvestres arvoredos,
Retumbando por asperos penedos,
Correm perennes ágoas deleitosas.
Na ribeira de Buina, assi chamada,
Celebrada,
Porqu'em prados
Esmaltados
Com frescura
De verdura,
Assi se mostra amena, assi graciosa,
Qu'excede a qualquer outra mais formosa;
As correntes se vem, que acceleradas,
As hervas regalando e as boninas,
Se vão a entrar nas ágoas Neptuninas,
Por diversas ribeiras derivadas.
Com mil brancas conchinhas a aurea areia
Bem se arreia;
Voão aves;
Mil suaves
Passarinhos
Nos raminhos
Acordemente estão sempre cantando,
Com doce accento os ares abrandando.
O doce rouxinol n'hum ramo canta,
E d'outro o pintasirgo lhe responde;
A perdiz d'entre a mata, em que s'esconde,
O caçador sentindo, se levanta:
Voando vai ligeira mais que o vento;
Outro assento
Vai buscando;
Porém quando
Vai fugindo;
Retinindo,
Traz ella mais veloz a setta corre,
De que ferida logo cahe e morre.
Aqui Progne d'hum ramo em outro ramo,
Co'o peito ensanguentado anda voando,
Cibato para o ninho indo buscando;
A leda codorniz vem ao reclamo
Do sagaz caçador, que a rede estende,
E pretende
Com engano
Fazer dano
Á coitada,
Qu'enganada
D'huns esparzidos grãos de louro trigo,
Nas mãos vai a cahir de seu imigo.
Aqui sôa a calhandra na parreira;
A rôla geme; palra o estorninho;
Sahe a candida pomba do seu ninho;
O tordo pousa em cima da oliveira:
Vão as doces abelhas susurrando,
E apanhando
O rocio
Fresco e frio
Por o prado
D'herva ornado,
Com que o aureo licor fazem, que deo
Á humana gente a indústria d'Aristeo.
Aqui as uvas luzidas, penduradas
Das pampinosas vides, resplandecem;
As frondiferas árvores se offrecem
Com differentes fructos carregadas:
Os peixes n'ágoa clara andão saltando,
Levantando
As pedrinhas,
E as conchinhas
Rubicundas,
Que as jucundas
Ondas comsigo trazem, crepitando
Por a praia alva com ruido brando.
Aqui por entre as serras se levantão
Animaes Calidoneos, e os veados
Na fugida inda mal assegurados,
You have read 1 text from Portuguese literature.
Next - Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 19
  • Parts
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 01
    Total number of words is 4573
    Total number of unique words is 1775
    32.4 of words are in the 2000 most common words
    47.3 of words are in the 5000 most common words
    54.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 02
    Total number of words is 4832
    Total number of unique words is 1535
    37.3 of words are in the 2000 most common words
    52.8 of words are in the 5000 most common words
    60.8 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 03
    Total number of words is 4680
    Total number of unique words is 1767
    35.0 of words are in the 2000 most common words
    47.5 of words are in the 5000 most common words
    53.7 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 04
    Total number of words is 4158
    Total number of unique words is 1492
    36.1 of words are in the 2000 most common words
    51.2 of words are in the 5000 most common words
    57.9 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 05
    Total number of words is 4246
    Total number of unique words is 1501
    33.8 of words are in the 2000 most common words
    48.3 of words are in the 5000 most common words
    55.8 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 06
    Total number of words is 4275
    Total number of unique words is 1462
    34.0 of words are in the 2000 most common words
    48.9 of words are in the 5000 most common words
    56.2 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 07
    Total number of words is 4189
    Total number of unique words is 1553
    32.0 of words are in the 2000 most common words
    46.0 of words are in the 5000 most common words
    51.8 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 08
    Total number of words is 4228
    Total number of unique words is 1708
    28.9 of words are in the 2000 most common words
    41.8 of words are in the 5000 most common words
    48.0 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 09
    Total number of words is 4126
    Total number of unique words is 1561
    32.3 of words are in the 2000 most common words
    45.4 of words are in the 5000 most common words
    52.7 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 10
    Total number of words is 4186
    Total number of unique words is 1539
    32.5 of words are in the 2000 most common words
    46.6 of words are in the 5000 most common words
    53.0 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 11
    Total number of words is 4159
    Total number of unique words is 1488
    32.3 of words are in the 2000 most common words
    47.4 of words are in the 5000 most common words
    54.0 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 12
    Total number of words is 4199
    Total number of unique words is 1389
    33.1 of words are in the 2000 most common words
    46.0 of words are in the 5000 most common words
    53.7 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 13
    Total number of words is 4209
    Total number of unique words is 1662
    29.9 of words are in the 2000 most common words
    43.6 of words are in the 5000 most common words
    51.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 14
    Total number of words is 4310
    Total number of unique words is 1587
    31.7 of words are in the 2000 most common words
    47.4 of words are in the 5000 most common words
    54.8 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 15
    Total number of words is 4247
    Total number of unique words is 1482
    36.5 of words are in the 2000 most common words
    51.9 of words are in the 5000 most common words
    59.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 16
    Total number of words is 4204
    Total number of unique words is 1402
    34.2 of words are in the 2000 most common words
    49.6 of words are in the 5000 most common words
    56.8 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 17
    Total number of words is 4140
    Total number of unique words is 1399
    34.7 of words are in the 2000 most common words
    49.7 of words are in the 5000 most common words
    56.7 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 18
    Total number of words is 4138
    Total number of unique words is 1592
    32.5 of words are in the 2000 most common words
    48.1 of words are in the 5000 most common words
    55.8 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 19
    Total number of words is 4093
    Total number of unique words is 1586
    31.7 of words are in the 2000 most common words
    47.1 of words are in the 5000 most common words
    55.3 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 20
    Total number of words is 4410
    Total number of unique words is 1335
    37.3 of words are in the 2000 most common words
    52.0 of words are in the 5000 most common words
    58.3 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 21
    Total number of words is 505
    Total number of unique words is 236
    55.8 of words are in the 2000 most common words
    67.5 of words are in the 5000 most common words
    73.3 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.