Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 01

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CLASSICOS PORTUGUEZES.
TOMO II.
CAMÕES.
II.

PARIZ.--NA OFFICINA TYPOGRAPHICA DE FAIN E THUNOT,
Rua Racine, 28, junto ao Odeon.

OBRAS COMPLETAS
DE
LUIS DE CAMÕES,
CORRECTAS E EMENDADAS
PELO CUIDADO E DILIGENCIA
DE
J. V. Barreto Feito e J. G. Monteiro.

TOMO SEGUNDO.

LISBOA.
ACHA-SE TAMBEM EM PARIZ,
NA LIVRARIA EUROPEA DE BAUDRY,
3, quai Malaquais, près le pont des Arts.
1843


PREFAÇÃO.

Os que são versados na historia terão feito esta observação, que em todos
os povos que no mundo tem figurado, as armas precedêrão sempre ás letras.
Para haver Homeros, necessario foi que houvesse primeiro Achilles. O amor
da patria e da liberdade, e aquelle innato desejo, que mais ou menos
violento segundo as diversas indoles, arde no coração de todo homem, de se
elevar acima de seus iguaes por meio de acções grandiosas e sublimes,
excitárão as almas nobres a tentar grandes empresas; e as façanhas dos
heroes impellirão depois os bons engenhos a transmitti-las aos vindouros,
elegantemente escrevendo em prosa ou verso. E nunca vimos que prosperassem
muito as letras n'um povo indigno de historia. Assim que bem se póde dizer
que sempre a penna dos Escritores foi aparada pela espada dos Guerreiros:
testimunhas Grecia e Roma.
Portugal, des de o berço educado para as armas e endurecido na guerra, a
todas as nações modernas se avantajou em gloria militar. Com poucas forças
e meios não somente sustentou longas e terriveis guerras, mas não contente
de reconquistar e manter gloriosamente a sua independencia, emprehendeo
mores cousas: devassou mares virgens, descobrio novas regiões, venceo e
sujeitou a seu jugo muitos e mui poderosos Reis e povos; e tendo estendido
o seu imperio até aos ultimos confins da terra, excitando a admiração das
gentes com nunca vistos prodigios de industria, de valor, e de constancia
por espaço de quasi cinco seculos, longo tempo se manteve no apice da
grandeza e gloria humana: até que o ultimo Henrique, dessemelhante em tudo
do primeiro, preparada ja nos dous antecedentes reinados a encosta por onde
a illustre nação devia descer da altura a que subira; reunindo em si o Bago
e o Sceptro e manchando as mãos sagradas nas cousas temporaes, a despenhou
no abysmo, donde até hoje não ha podido mais levantar-se.
Tendo, pois, florescido tanto nas armas, razão era que florescesse tambem
nas letras. E com effeito, despertados os engenhos com o estrondo dos
feitos militares, um pouco mais tarde começárão ellas de nascer, e achando
o chão propicio, pouco a pouco se forão arraigando de maneira, que ja no
decimo terceiro seculo, reinando ElRei Dom Denis, desabrochárão suas
primeiras flores; tendo aquelle grande Rei a gloria de lhes haver dado o
primeiro impulso, escrevendo elle mesmo com summa elegancia para o tempo
algumas obras, como um Tratado entitulado _Dos principaes deveres da
Milicia_, e dous Cancioneiros, um dos quaes appareceo em Roma, reinando em
Portugal João III. E no decimo quarto produzírão ja um tão sazonado fructo,
como o Amadis de Gaula, obra de Vasco de Lobeira, que traduzida por
Bernardo Tasso, pae do Epico Italiano, tamanho brado deo na Italia, e da
qual o mesmo Epico diz (Defens. di Goffredo): _Per giudizio di molti e mio
particularmente è la più bella che si legga fra quelle di queste genere....
Perche nell'affetto e nei costumi se lascia addietro tutte l'altre, e nella
varietá de gli accidenti non cede ad alcuna, che dapoi nè daprima fosse
stato scritta._ E como tal a exceptuou Miguel de Cervantes na revista que
fez o Cura dos livros de Dom Quixote, dizendo: _Este livro fué el primero
de Caballarías que se escrevió en España, y todos los demas han tenido
principio y origen deste.... Es el mijor de todos los que deste genero se
han compuesto._
No decimo quarto se escreveo a Chronica do Condestavel e grande capitão
Dom Nuno Alvares Pereira (primeiro ensaio historico de que temos
noticia) que se imprimio em Lisboa em 1520.
No decimo quinto escreveo ElRei Dom Duarte _O Leal Conselheiro_, que se
conserva na bibliotheca Real de París, e dous tratados entitulados, um _Da
Misericordia_, outro _Do Regimento da justiça e Officiaes della etc_. Seu
irmão o Infante Dom Pedro, Duque de Coimbra, que veio a ser depois Regente
do Reino durante a menoridade de Affonso 5.º, tambem escreveo algumas obras
politicas e moraes em prosa e verso, algumas das quaes se imprimírão em
Leiria 6 annos depois da invenção da imprensa, e traduzio do Latim e
dedicou a seu irmão Dom Duarte _Cicero de Officiis_, e _Vegetius de re
militari_. Ayres Telles de Menezes, que por esse mesmo tempo floresceo, foi
elegante poeta; e delle nos conservou Rezende no seu Cancioneiro algumas
poesias; e para que se veja a que estado de cultura e perfeição havia ja
então chegado a nossa bella lingua, transcreveremos aqui a seguinte
ODE
De pungentes estimulos ferido
O Regedor dos ceos e humilde terra,
Sôbre ti manda, desastrada Lysia,
Effeitos da sua íra.
A peste armada destruir teu povo
A um seu leve aceno vôa logo:
Estraga, fere, mata sanguinosa,
Despiedada e crua.
Despenhada no abysmo da ruina,
Fugir pretendes aos accesos raios,
Qual horrida phantasma, porém logo
Desfallecida cahes.
O açoute do Ceo lamenta, ó Lysia,
Mas inda muito mais os teus errores
Que provocar fizerão contra ti
Contagião mortal.
Dos Ceos apagar cuida a justa sanha
Da penitencia com as bastas ágoas,
Ja que revel e surda te mostraste
A seus mudos avisos.
Então verás ornada a nobre frente,
Como nos priscos tempos que passárão,
De esclarecidos louros, sinal certo
De teus almos triumphos.
Por esse mesmo tempo Fernão Lopes, Duarte Galvão, Gomes Eanes de Zurara
começárão a encommendar á memoria as façanhas dos Portuguezes,
escrevendo regularmente as Chronicas dos nossos Reis des de a fundação
da monarchia.
No principio do decimo sexto seculo Bernardim Ribeiro e Gil Vicente
introduzírão, aquelle o estilo bucolico, este as representações theatraes.
Francisco de Moraes escreveo o seu excellente Romance de Cavalleria, _O
Palmeirim de Inglaterra_, do qual o mesmo Cervantes (que erradamente o
attribue a ElRei Dom Duarte) faz o seguinte elogio: _Esta palma de
Inglaterra se guarde y se conserve, como cosa unica; y se haga para ella
otra caja de oro como la que halló Alejandro en los despojos de Dario, que
la diputó para guardar en ella las obras del poeta Homero. Este libro,
Señor compadre, tiene autoridad por dos cosas; la una porque él por si es
muy bueno, y la otra porque es fama que le compuso un Rey de Portugal.
Todas las aventuras del castillo de Miraguarda son bonisimas y de grande
arteficio, las razones cortesanas y claras, que guardan y miran el decoro
dei que habla con mucho entendimiento. Digo pues.... que este y Amadis de
Gaula queden libres del fuego; y todos los demas, sin hacer mas cala ni
cata, perescan_. Fernão Lopes de Castanheda e João de Barros, cognominado o
Livio Portuguez, escrevêrão a historia das nossas descobertas e conquistas
d'Asia. Sá de Miranda introduzio a verdadeira Comedia e a Satyra dos
costumes, em que sobretudo he insigne. E finalmente, quando ja Portugal se
avizinhava á fatal epocha da sua decadencia, veio tambem a produzir, como
Roma, o seu Virgilio, dando ás letras um Camões; genio criador e sublime,
que nascido para ser grande em tudo, se com soberano alento embocou a
trombeta heroica, não pulsou com menor destreza a lyra, nem tirou da frauta
sons menos harmoniosos e suaves.
Do seu Poema Epico ja n'outro lugar dissemos, não o que poderiamos dizer,
mas o que julgámos bastante. Diremos tambem agora alguma cousa de suas
poesias lyricas. E começaremos por observar que se nenhum escritor foi mais
desprezado e perseguido de seus compatriotas, tambem nenhuma nação ha sido
tão castigada, como a Portugueza das perseguições e desprezos, que soffreo
este grande homem, não della, mas do seu governo, e dos grandes e
poderosos, de cujos crimes he quasi sempre o povo quem vem a pagar as
penas. Porque não lhe tendo sido possivel, pela miseria em que viveo, dar á
luz as suas poesias sôltas, não as polio nem limou, nem deixou collecção
dellas; e assim as mais se perdêrão, e as outras, espalhadas por mãos de
muitos, se forão corrompendo nas copias, de sorte que inda as que menos
damno soffrêrão, andão hoje nas impressões mui diversas do que erão, quando
sahírão da penna de seu autor. E assim veio esta culpa de alguns a ter para
nós as mesmas consequencias, que teve a de Adam para a humanidade; isto he,
cahir dos culpados sôbre os innocentes e estender-se a todas as gerações. E
se não foi mais amplo este castigo, a Fernão Rodrigues Lobo Surrupita o
devemos. Este, com incansavel diligencia juntando algumas obras varias, que
pôde alcançar, as deo pela primeira vez á luz no anno de 1595, assim
desfiguradas como as achou: com o que não só evitou perderem-se estas, mas
com o seu exemplo instigou outros a proseguir na mesma diligencia: e assim
se forão descobrindo mais algumas, que pelo tempo adiante se forão dando ao
prelo. De modo que podemos dizer que em todos os estilos nos ficou do nosso
poeta apenas uma pequena amostra, para que pelo dedo se conhecesse o
gigante. Porém de tal quilate he o ouro, que essas pequenas reliquias
bástão para elevar o cume do nosso Parnaso a tal altura, que lhe não fique
superior o de nenhuma outra nação estranha.
Porque nos Sonetos he eminente o nosso poeta; e para lhe obter a palma
sôbre quantos neste genero de composição se tem exercido, bastaria,
quando outros muitos não tivesse de igual belleza, só este, que he o 72:
SONETO
Quando de minhas mágoas a comprida
Maginação os olhos me adormece,
Em sonhos aquella alma me apparece,
Que para mim foi sonho nesta vida.
Lá n'uma soidade, onde estendida
A vista pelo campo desfallece,
Corro apos ella; e ella então parece
Que de mim mais se alonga, compellida.
Brado: Não me fujais, sombra benina.
Ella, os olhos em mim co'um brando pejo
Como quem diz que ja não pode ser,
Torna a fugir-me: tórno a bradar: _Dina_...
E antes que diga _mene_, acordo, e vejo
Que nem um breve engano posso ter.
Diante deste desapparece toda a caterva de Sonetos que tem inundado Italia
e Hespanha. Impossivel parece que com palavras tão vulgares se podesse
pintar tão bella imagem, exprimir tal sentimento. Da outra banda do Lethes,
confinando com os Elysios, descortinou a imaginação de Virgilio umas
dilatadas campinas, a que na sua Lingua Latina chamou _Lugentes campi_, que
o nosso Franco Barreto traduzio: _Campos sem luz_, e nós diremos: _Campos
da Saudade_. Nestes campos e pela mesma Saudade parece que foi ditado este
maravilhoso Soneto, que em nossa fraca opinião inda não foi igualado, nem
será nunca excedido. E como este puderamos citar muitos.
Nas Canções deixou a perder de vista a Petrarca, Bembo, e a quantos a
este genero de composição se tem dado: o que melhor poderá ver quem
quizer comparar umas com outras.
Nas Odes, como em todo outro genero de poesia, todos sabem que ha diversos
estilos para os diversos assumptos. O que a cada um destes convem, a mesma
natureza delle o indica; e tanto erraria o que descrevesse um prado
florido, um ribeiro socegado, as graças de uma pastora, ou Diana exercendo
as dansas e choreas de suas nymphas pelos cabeços do monte Cynthio, no
mesmo estilo em que se deve descrever o mar impetuoso, o combate dos
Athletas, ou Jove fulminando os gigantes, como vice versa. Pindaro,
Anacreonte, e Horacio são os tres poetas que neste genero se nos propõe por
modelos. Mas que differença de estilo entre Horacio, Anacreonte, e Pindaro!
Certamente não he menor que a que vai do bucolico ao lyrico, ou do lyrico
ao epico. O nosso Camões, profundo conhecedor da natureza, e mestre em
todos os estilos, habilmente soube escolher aquelle que mais convinha ás
materias que tratava, sempre natural e facil, sempre elegante e florido, e
muitas vezes sublime. E as suas Odes, ainda que não tenhão o requisito, que
hoje se tem por essencial, de serem inintelligiveis, são pelos entendedores
summamente louvadas, e até não falta quem as prefira ás Canções; mas desta
opinião não somos, ainda que pensamos com Faria e Sousa, que a 4.ª, 6.ª,
9.ª e 10.ª tarde serão excedidas; e o mesmo diriamos da 1.ª se não andára
viciada.
No estilo bucolico, de que o poeta parece mais se aprazia, e em que des de
a puericia exerceo a sua Musa, he onde alguns lhe querem negar a palma,
para a concederem a Bernardes. Verdade he que Bernardes, depois da morte de
Camões, appareceo em publico mui bem ataviado; mas os que lhe conhecião os
cabedaes, admirados de o verem tão ricamente vestido, logo disserão uns
para os outros: _Donde vem a Pedro fallar gallego?_ e Manoel de Faria e
Sousa o chamou a juizo, e convencendo-o de furto, o condemnou a despir na
praça e restituir a seu dono parte dos vestidos roubados; sendo justo e de
razão que quem o alheio veste, na praça o dispa. Mas deixando a Bernardes
para outro processo, que intentamos fazer-lhe sobre estes mesmos roubos,
passemos a examinar se he ou não exacto o juizo, que Luis de Camões se não
mostrára tão grande poeta no genero pastoril, como no lyrico e heroico.
Surropita no seu prologo á primeira edição das Rimas foi o primeiro que
emittio esta opinião desfavoravel ao poeta, quanto ao estilo bucolico,
dizendo, depois de o louvar devidamente nos mais: _Oxalá pudera humilhar
a grandeza do seu engenho, conformando-se mais com o estilo bucolico!_
Da mesma sorte o julgou Faria e Sousa, a quem seguírão depois o Padre
Thomaz de Aquino e outros, que sem se darem ao trabalho de profundar as
cousas, querem decidir de tudo, sem appellação nem aggravo. Vejamos se
tem razão.
Assenta este juizo principalmente sobre a Egloga 1.ª, que o poeta reputava
pela melhor de quantas havia feito, e sobre a 6.ª, que elle de certo não
tinha pela peor. E este voto do mesmo autor, que era tão grande homem, e no
julgar de suas proprias obras nenhum interesse podia ter em exaltar umas
para abater outras, ja he de algum momento. Porque, sendo a poesia, como a
pintura, uma imitação da natureza, segue-se necessariamente que os melhores
poetas e pintores são os mais profundos observadores e conhecedores da
natureza, porque ninguem a póde perfeitamente imitar, sem que profundamente
a conheça. Grandes imitadores, e portanto profundos conhecedores da
natureza forão na poesia Homero, Virgilio, Camões etc., e na pintura
Apelles, Raphael e Miguel Angelo; e mais val o voto de qualquer destes
poetas ou pintores, que o de muitos milhões de versejadores ou borradores.
Disse Camões que a sua Egloga de Umbrano e Frondelio, que Surropita e Faria
tachárão de lavantada no estilo mais do que convinha ao genero bucolico,
lhe parecia a elle a melhor de quantas fizera, isto he, que nella estava
melhor imitada a natureza, que em todas as mais; e nós (se tambem nos he
permittido interpor nossa humilde opinião) a temos não só pela melhor de
quantas o poeta escreveo, mas de quantas havemos lido. E diremos o porque.
Preceito he, ditado pela mesma natureza, que tenha cada genero de poesia
seu estilo particular, e que o som da frauta se não confunda com o da lyra
ou da trombeta; mas tambem he preceito da natureza que, pois a choça e o
throno estão igualmente sujeitos aos revezes da fortuna, e na vida pastoril
pódem occorrer varios casos que dem assumpto ao poeta; se levante ou abaixe
o estilo segundo for mais ou menos alto o assumpto, e que se o pastor se
propõe louvar o Consul se tornem as florestas dignas delle.
_Si canimus sylvas, sylvae sint Consule dignae._
Assim o entendeo e fez Virgilio, assim o entendeo e fez Camões, e assim
o estabeleceo depois em preceito o judicioso Boileau na sua arte poetica.
_L'Églogue quelquefois
Rend dignes du Consul la campagne et les bois._
E contra estas autoridades e a razão em que se ellas fundão mal podem
sustentar-se em campo os que pretendem que neste genero de poesia se não
possa tratar senão assumptos de lana caprina na lingoagem dos trivios.
Na sua Egloga 1.ª lamenta o nosso poeta as mortes de Dom Antonio de Noronha
e do Principe Dom João, que profundamente sentio, aquella como verdadeiro
amigo, esta como optimo cidadão, que ja de longe previa as consequencias de
tão desastrado acontecimento. E como o forte sentir produz o forte e
elevado pensar, algumas vezes se eleva, assim na sentença como na dicção,
até tocar as raias prescriptas a esta especie de poesia, mas não as
transcende nunca; nem as figuras e imagens de que se serve, as estranha o
estilo bucolico; e muito mais n'uma lingua, em que essas mesmas imagens e
figuras de tal sorte estão recebidas, que até os mais rudos camponezes rara
vez se exprimem sem ellas. Mas inda quando fossem alheias da linguagem
vulgar, quem as estranharia na poesia, que de sua natureza se deve levantar
do uso commum de fallar? Permitte-se a Virgilio dizer n'uma Egloga:
_Ipsae te, Tityre, pinus,
Ipsae te fontes, ipsae haec arbusta vocabant._
Estes pinheiros, Tityro, estas fontes,
Estes mesmos arbustos te chamavão.
e não se hade consentir a Camões dizer:
Canta agora, pastor, que o gado pasce
Entre as humidas hervas socegado,
E lá nas altas serras onde nasce,
O sacro Tejo á sombra recostado
Com seus olhos no chão, a mão na face,
Está para te ouvir apparelhado;
E com silencio triste estão as Nymphas
Dos olhos destillando claras lymphas?
Emfim nesta admiravel Egloga nada falta da parte do poeta; se alguma
cousa faltar, será da parte do leitor. Passemos agora á 6.ª
Nesta Egloga mistura o poeta o estilo pastoril e o piscatorio, de que elle
foi entre nós o primeiro introductor, e que levou a tal perfeição, que
desanimou os que depois se seguírão a ponto, que ficou quasi de todo
esquecido. He o seu argumento uma contenda entre um pastor e um pescador
sobre qual dos estilos deve ter a preferencia, cantando cada um a belleza
da sua amada. E ja daqui se vê que um e outro deve levantar o estilo quanto
puder, e pôr nesta porfia todo o seu cabedal, para não ficar vencido. Esta
Egloga he onde Faria mais se funda para dizer que o poeta se não podia
domar na força do seu enthusiasmo. Mas tão longe está de justificar este
juizo, que della mesma nos queremos servir para mostrar a pasmosa
facilidade, com que o poeta sabia variar de tom e passar de um estilo a
outro. E sem gastar mais palavras, passemos a analysar cada uma de suas
Estancias, porque a verdade he facil de ver-se, e por si mesma saltará aos
olhos.
Dá o pastor princípio á contenda, invocando as divindades campestres
deste modo:
AGRARIO.
Vós, semicapros deoses do alto monte,
Faunos longevos, Satyros, Sylvanos;
E vós, deosas do bosque e clara fonte,
E dos troncos que vivem largos anos;
Se tendes prompta um pouco a sacra fronte
A nossos versos rusticos e humanos,
Ou me dai ja a capella de loureiro,
Ou penda a minha lyra d'um pinheiro.
Sublime e admiravel invocação! Mas ouçamos agora o pescador
ALICUTO.
Vós, humidas deidades deste pégo,
Tritões ceruleos, Próteo, com Palemo;
Vós, Nereidas do sal em que navego,
Por quem do vento a furia pouco temo;
Se a vossas sacras aras nunca nego
O congro nadador na pá do remo,
Não consintais que a musica marinha
Vencida seja aqui na lyra minha.
Que terão que dizer esses Senhores a estas duas Estancias? Dirão que são
demasiado sublimes, e que estão fóra do natural, porque a este simples,
a este natural, a este sublime não podem elles chegar. Mas não lhes
demos ouvidos, e continuemos a prestar attenção aos nossos contendores.
Vejamos com que despejo entrão na lide.
AGRARIO.
Pastor se fez um tempo o moço louro
Que do pae as carretas move e guia;
Ouvio o rio Amphryso a lyra d'ouro,
Que o seu claro inventor alli tangia.
Io foi vacca, Jupiter foi touro
Mansas ovelhas junto d'ágoa fria
Guardou formoso Adonis, e tornado
Em bezerro Neptuno foi ja achado.
A esta formosa Estancia em louvor da vida campestre oppõe o pescador a
seguinte, exaltando a sua profissão.
ALICUTO.
Pescador ja foi Glauco, e deos agora
He do mar, e Protêo phocas guarda;
Nasceo no pégo a deosa, qu'he senhora
Do amoroso prazer, que sempre tarda.
Se foi bezerro o deos que cá se adora,
Tambem ja foi delphim. Se se resguarda,
Vê-se que os moços pescadores erão,
Que o escuro enigma ao primo vate derão.
Agora passa o vaqueiro a queixar-se da frieza com que a sua pastora
recebe as suas finezas.
AGRARIO.
Formosa Dinamene, se dos ninhos
Os implumes penhores ja furtei
Á doce philomela, e dos murtinhos
Para ti (fera!) as flores apanhei;
E se os crespos madronhos nos raminhos
Com tanto gosto ja te presentei,
Porque não dás a Agrario desditoso
Um só revolver d'olhos piedoso?
Responde-lhe o seu adversario com uma Estancia do mesmo genero, segundo
os preceitos do canto amebeo, ou alternado.
ALICUTO.
Para quem trago d'ágoa em vaso cavo
Os curvos camarões vivos saltando?
Para quem as conchinhas ruivas cavo
Na praia, os brancos buzios apanhando?
Para quem de mergulho no mar bravo
Os ramos de coral vou arrancando,
Senão para a formosa Lemnoria,
Que co'um só riso a vida me daria?
Agora vão descrever, um as furias do ciume, outro as da desesperação de
ver galardoado o seu amor. Vejamos como sahem da empresa.
AGRARIO.
Quem vio o desgrenhado e crespo Inverno,
D'átras nuvens vestido, horrido e feio,
Ennegrecendo á vista o ceo superno,
Quando os troncos arranca o rio cheio;
Raios, chuvas, trovões, um triste inferno
Que ao mundo mostra um pallido receio:
Tal o amor he cioso a quem suspeita
Que outrem de seu trabalho se aproveita.
ALICUTO.
Se alguem vê, se alguem ouve o sibilante
Furor lançando flammas e bramidos,
Quando as pasmosas serras traz diante,
Horrido aos olhos, horrido aos ouvidos;
A braços derribando o ja nutante
Mundo co'os elementos destruidos;
Assim me representa a phantasia
A desesperação de ver um dia.
Estas Estancias diz Faria que as estranha o estilo bucolico. Mas se as
estranha necessariamente ha de ser ou pelos pensamentos ou pela dicção.
Pelos pensamentos seguramente não he, porque ninguem dirá que está fóra do
alcance de um pastor ou de um pescador o sentir a semelhança que tem as
furias do ciume, ou da desesperação com as tempestades do inverno, ou com o
mar agitado pelos ventos. Pela dicção tambem não, porque se o pensamento
não he estranho, tambem esta o não póde ser, quando tão perfeitamente se
lhe accommoda e ajusta, como aqui se observa; e muito mais quando as mesmas
figuras e imagens de que o poeta aqui usa, andão na boca do povo de sorte,
que nada he mais ordinario que ouvir dizer a um camponez _que o ceo está
toldado de negras nuvens etc._, ou a um marinheiro ou pescador _que o vento
traz todo o mar em serras diante de si; que parece querer destruir a terra
etc._ A differença está em que onde o pastor diria _coberto_ ou _toldado_,
diz o poeta _vestido_, e onde o marinheiro diria _abalado_, diz o poeta
_nutante_, para se levantar um pouco do uso commum de fallar. E portanto
não ha aqui impropriedade alguma; antes summa conveniencia de pensamentos e
palavras. E desta mutua conveniencia e propriedade resulta esta viveza de
pintura, esta sublimidade, de que se espanta Faria. Porém sem razão se
espanta, porque fóra do natural não ha sublime, e o que he natural não se
estranha. Nem se persuada ninguem que se o poeta aqui se elevou, foi porque
não podia domar-se; que mui de proposito o fez, por assim julgar que o
devia fazer. Porque não ha poeta, que melhor soubesse variar de tom, pintar
os objectos com propriedade e viveza, e seguir com a phrase o pensamento.
Senão veja-se nas Estancias logo seguintes como ja serpeia manso regato o
que inda ha pouco era rio caudaloso.
AGRARIO.
Minha alva Dinamene, a primavera
Que os deleitosos campos pinta e veste,
E rindo-se uma côr aos olhos gera,
Que em terra lhes faz ver o Arco celeste;
As aves, as boninas, a verde hera,
E toda a formosura amena agreste
Não he para os meus olhos tão formosa,
Como a tua, que abate o lirio e rosa.
ALICUTO.
As conchinhas da praia, que presentão
A côr das nuvens, quando nasce o dia;
O canto das Sirenas, que adormentão;
A tinta que no murice se cria;
O navegar por ondas, que se assentão
Co'o brando bafo, com que o sol s'enfria,
Não podem, Nympha minha, assi aprazer-me,
Como o ver-te, se em tanto chego a ver-me.
AGRARIO.
A deosa, que na Lybica lagôa
Em fórma virginal appareceo,
Cujo nome tomou, que tanto sôa,
Os olhos bellos t[~e]e da côr do ceo:
Garços os tem; mas uma, que a corôa
Das formosas do campo mereceo,
Da côr do campo os mostra graciosos.
Quem não diz que são estes os formosos?
ALICUTO.
Perdoem-me as deidades, mas tu diva
Que no liquido marmore es gerada,
A luz dos olhos teus, celeste e viva,
Tens por vicio amoroso atravessada:
Nós petos lhe chamâmos: mas quem priva
De luz o dia, baixa e socegada
Traz a dos seus nos meus, qu'eu o não nego,
E com toda esta luz sempre estou cego.
Agora diga quem nasceo para sentir as bellezas da natureza, se ha em
Theocrito ou Virgilio, ou algum outro poeta antigo ou moderno, um desafio
igual a este, ou se póde chegar a mais a perfeição humana. E eis-aqui as
duas Eglogas com que alguns individuos, que tendo olhos e tempo para ler
muito, os não tiverão para observar a natureza, e conhecer com que
ampliações ou restricções se devem entender e applicar os preceitos de
Aristoteles e Horacio, pretendêrão provar que o nosso poeta não possuia o
estilo bucolico. Certo que não ha na republica das Letras sevandijas mais
nojentas, que certos homens de espirito acanhado, que enfatuados com graos
de Doutores e titulos de Academicos, sem nunca terem produzido nem serem
capazes de produzir cousa alguma, se arrogão o direito de taxar o
merecimento e preço das obras dos grandes homens.
Mas inda quando fosse verdade que da frauta se não podesse tirar mais que
um som unico, e a respeito destas Eglogas a razão da parte delles, e não da
nossa estivesse, ousarião esses Aristarchos dizer que em todas as mais, e
com especialidade na 8.ª, 9.ª, 10.ª, 11.ª, 13.ª, 14.ª se não encontra o
verdadeiro estilo bucolico, e em tal perfeição que nenhuma inveja podemos
ter a Theocrito ou Virgilio? E se estes dous poetas que neste genero se
recommendão como modelos, julgárão não offender os preceitos d'arte,
aquelle em levantar o estilo a ponto de poder celebrar na humilde avena os
louvores de Ptolomeo Philadelpho e alguns dos trabalhos de Hercules, que
parecião mais proprio assumpto para uma Ode Pindarica, este de tornar a
selvas dignas do Consul, sem que por isso deixassem de ser olhados como
oraculos; por que lei ou com que autoridade pretendem esses guarda-portões
do Parnaso expulsar o nosso poeta do lugar que ao lado desses primeiros
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