Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 11

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Por não fazer offensa a teus amores.
Os jogos dos pastores,
As lutas entr'a rama,
Nada me faz contente:
E sou ja do que fui tão differente,
Que quando por meu nome alguem me chama,
Pasmo, porque conheço
Qu'inda comigo proprio me pareço.
O gado, que apascento,
São n'alma os meus cuidados;
As flores, que no campo sempre vejo,
São no meu pensamento
Teus olhos debuxados,
Com qu'estou enganando o meu desejo.
Do frio e doce Tejo
As águas se tornárão
Ardentes e salgadas,
Despois que minhas lagrimas cansadas
Com seu puro licor se misturárão;
Como quando mistura
Hyppanis co'o Exampêo sua água pura.
Se ahi no mundo houvesse
Ouvires-me algum'hora,
Assentados na praia deste rio;
E d'arte te dissesse
O mal que passo agora,
Que pudesse mover-te o peito frio!..
Oh quanto desvario,
Qu'estou imaginando!
Ja agora meu tormento
Não póde pedir mais ao pensamento,
Qu'este phantasiar, donde penando
A vida me reserva.
Querer mais de meu mal será soberba.
Ja a esmaltada Aurora
Descobre o negro manto
Da sombra, que as montanhas encobria.
Descansa, frauta, agora,
Pois meu escuro canto
Não merece que veja o claro dia.
Não canse a phantasia
D'estar em si pintando
O gesto delicado,
Em quanto traz ao pasto o manso gado
Esse pastor, que lá só vem fallando.
Callar-me-hei somente;
Que o meu mal nem ouvir se me consente.
AGRARIO.
Formosa manhãa clara e deleitosa,
Que, como fresca rosa na verdura,
Te mostras bella e pura, marchetando
As Nymphas, espalhando teus cabellos
Nos verdes montes bellos; tu só fazes,
Quando a sombra desfazes triste e escura,
Formosa a espesura e a clara fonte,
Formoso o alto monte e o rochedo,
Formoso o arvoredo e deleitoso,
E emfim tudo formoso co'o teu rosto
D'ouro e rosas composto e claridade;
Trazes a saudade ao pensamento,
Mostrando em hum momento o roxo dia,
Com a doce harmonia nos cantares
Dos passaros a pares, que voando
Seu pasto andão buscando nos raminhos,
Para os amados ninhos que mantém.
Oh grande e summo bem da natureza!
Estranha subtileza de pintora,
Que matiza em hum'hora de mil côres
O ceo, a terra, as flores, monte e prado!
Oh tempo ja passado! quão presente
Te vejo abertamente na vontade!
Quão grande saudade tenho agora
Do tempo que a pastora minha amava,
E de quanto prezava a minha dor!
Então tinha o amor maior poder,
Quando em hum só querer nos igualava;
Porque quando hum amava a quem queria,
Logo eco respondia d'affeição
No brando coração da doce imiga.
Nesta amorosa liga concertavão
Os tempos, que passavão com prazeres.
Mostrava a flava Ceres por as eiras
Das brancas sementeiras ledo fruto,
Pagando seu tributo aos Lavradores;
E enchia aos pastores todo o prado
Pales do manso gado guardadora.
Hião Zéphyro e Flora passeando,
Os campos esmaltando de boninas;
Nas fontes cristallinas triste estava
Narciso, qu'inda olhava n'água pura
Sua linda figura e delicada:
Mas Eco, namorada de tal gesto,
Com pranto manifesto, seu tormento
No derradeiro accento lamentava.
Alli tambem se achava o sangue tinto
Do purpureo Jacintho; e o destrôço
De Adonis bello moço; morte fêa
Da bella Cytherêa tão chorada;
Toda a terra esmaltada destas rosas.
Hião Nymphas formosas por os prados;
E os Faunos namorados apos ellas,
Mostrando-lhes capellas de mil côres,
Ordenadas das flores que colhião:
As Nymphas lhe fugião espantadas,
As faldas levantadas, por os montes.
Via-sea água das fontes espalhar-se;
Vertumno transformar-se alli se via;
Pomona, que trazia os doces fruitos;
Alli pastores muitos, que tangião
As gaitas que trazião, e cantando
Estavão enganando as suas penas,
Tomando das Sirenas o exercicio.
Ouvia-se Salicio lamentar-se;
Da mudança queixar-se crua e fêa
Da dura Galathêa tão formosa:
E da morte invejosa Nemoroso
Ao monte cavernoso se querella,
Que a sua Elisa bella em pouco espaço
Cortou inda em agraço. Ah dura sorte!
Oh immatura morte, que a ninguem
De quantos vida t[~e]e jamais perdoas!
Mas tu, tempo, que voas apressado,
Hum deleitoso estado quão asinha
Nesta vida mesquinha transfiguras
Em mil desaventuras, e a lembrança
Nos deixas por herança do que levas!
Assi que se nos cevas com prazeres,
He para nos comeres no melhor.
Cada vez em peor te vás mudando:
Quanto v[~e]es inventando, qu'hoje approvas,
Logo á manhãa reprovas com instancia.
Oh perversa inconstancia e tão profana
De toda cousa humana inferior,
A quem o cego error sempre anda annexo!
Mas eu de que me queixo? ou eu que digo?
Vive o tempo comigo? ou elle tem
Culpa no mal que vem da cega gente?
Por ventura elle sente, ou elle entende
Aquillo que defende o ser divino?
Elle usa de contino seu officio,
Que ja por exercicio lhe he devido:
Dá-nos fructo colhido na sazão
Do formoso verão; e no inverno,
Com seu humor eterno congelado,
Do vapor levantado co'a quentura
Do sol, a terra dura lhe dá alento,
Para que o mantimento produzindo,
Estê sempre cumprindo seu costume.
Assi que não consume de si nada,
Nem muda da passada vida hum dedo:
Antes sempre está quedo no devido,
Porqu'este he seu partido e sua usança;
E nelle esta mudança he mais firmeza.
Mas quem a Lei despreza, e pouco estima,
De quem de lá de cima está movendo
O ceo sublime e horrendo, o mundo puro,
Este muda o seguro e firme estado
Do tempo, não mudado de verdade.
Não foi naquella idade d'ouro claro
O firme tempo charo e excellente?
Vivia então a gente moderada;
Sem ser a terra arada dava pão;
Sem ser cavado o chão as fructas dava;
Nem águas desejava, nem quentura;
Suppria então natura o necessario.
Pois quem foi tão contrário a esta vida?
Saturno, que, perdida a luz serena,
Causou, qu'em dura pena, desterrado,
Fosse do ceo lançado, onde vivia;
Porque os filhos comia, que gerava.
Por isso se mudava o tempo igual
Em mais baixo metal: e assi descendo
Nos veio, emfim, trazendo a este estado.
Mas eu, desatinado, aonde vou?
Para onde me levou a phantasia?
Qu'estou gastando o dia em vãas palavras?
Quero ora minhas cabras ir levando
Ao Tejo claro e brando; porque achar
No mundo qu'emendar, não he d'agora:
Basta que a vida fóra delle tenho:
Com meu gado me avenho, e estou contente.
Porém, se me não mente a vista, eu vejo
Nesta praia do Tejo estar deitado
Almeno, que enlevado em pensamentos,
As horas e os momentos vai gastando:
Vou-me a elle chegando, só por ver
Se poderei fazer que o mal que sente,
Hum pouco se lhe ausente da memoria.
ALMENO.
Oh doce pensamento! oh doce gloria!
São estes por ventura os olhos bellos,
Que t[~e]e de meus sentidos a victoria?
São estas, Nympha, as tranças dos cabellos,
Que fazem de seu preço o ouro alheio,
Como a mi de mi mesmo só com vellos?
He esta a alva columna, o lindo esteio,
Sustentador das obras mais que humanas,
Qu'eu nestes braços tenho, e não o creio?
Ah falso pensamento, que me enganas!
Fazes-me pôr a boca onde não devo,
Com palavras de doudo, ou quasi insanas!
Como a alçar-te tão alto assi me atrevo?
Taes azas dou-tas eu, ou tu mas dás?
Levas-me tu a mi, ou eu te levo?
Não poderei eu ir onde tu vás?
Porém, pois ir não posso onde tu fores,
Quando fores, não tornes onde estás.
AGRARIO.
Oh que triste successo foi de amores,
O que a este pastor aconteceo,
Segundo ouvi contar a outros pastores!
Tanto emfim, por seu damno se perdeo,
Que o longo imaginar em seu tormento,
Em desatino Amor lh'o converteo.
Oh forçoso vigor do pensamento,
Que póde em outra cousa estar mudando
A fórma, a vida, o siso, o entendimento!
Está-se hum triste amante transformando
Na vontade daquella, que tanto ama,
De si a propria essencia transportando.
E nenhum'outra cousa mais desama,
Que a si, se vê qu'em si ha algum sentido,
Que deste fogo insano não se inflama.
Almeno, que aqui 'stá tão influido
No phantastico sonho, que o cuidado
Lhe traz sempre ante os olhos esculpido,
Está-se-lhe pintando, de enlevado,
Que t[~e]e ja da phantastica pastora
O peito diamantino mitigado.
Em este doce engano estava agora
Fallando como em sonho, mas achando
Ser vento o que sonhava, grita e chora.
Dest'arte andavão sonhos enganando
O pastor somnolento, que a Diana
Andava entre as ovelhas celebrando;
Dest'arte a nuvem falsa, em fórma humana,
O vão pae dos Centauros enganava:
(Que Amor quando contenta, sempre engana)
Como este, que comsigo só fallava,
Cuidando que fallava, de enleado,
Com quem lhe o pensamento figurava.
Não póde quem quer muito, ser culpado
Em nenhum êrro, quando vem a ser
Este amor em doudice transformado.
Amor não será amor, se não vier
Com doudices, deshonras, dissensões,
Pazes, guerras, prazer e desprazer;
Perigos, linguas más, murmurações
Ciumes, arruidos, competencias,
Temores, nojos, mortes, perdições.
Estas são verdadeiras penitencias
De quem põe o desejo onde não deve,
De quem engana alheias innocencias.
Mas isto t[~e]e o amor, que não se escreve
Senão donde he illicito e custoso;
E donde he mais o risco, mais se atreve.
Passava o tempo alegre e deleitoso
O Troiano pastor, em quanto andava
Sem ter alto desejo e perigoso.
Seus furiosos touros coroava,
E nos álamos altos escrevia
Teu nome (Enone) quando a ti só amava.
Os álamos crescião, e crescia
O amor qu'elle te tinha: sem perigo,
E sem temor, contente te servia.
Mas despois que deixou entrar comsigo
Illicito desejo e pensamento,
De sua quietação tão inimigo;
A toda a patria poz em detrimento
Com mortes de parentes e de irmãos,
Com crú incendio, e grande perdimento.
Nisto fenecem pensamentos vãos:
Tristes serviços mal galardoados,
Cuja glória se passa d'entre as mãos.
Lagrimas e suspiros arrancados
D'alma, todos se pagão com enganos:
E oxalá forão muitos enganados!
Andão com seu tormento tão ufanos,
Que gastão na doçura d'hum cuidado
Apos huma esperança muitos anos.
E talha tão perdido namorado,
Tão contente co'o pouco, que daria
Por hum só volver d'olhos todo o gado.
Em todo povoado e companhia,
Sendo ausentes de si, se vem presentes
Com quem lhes pinta sempre a phantasia.
Co'hum certo não sei que andão contentes,
E logo hum nada os torna, ao contrário,
De todo ser humano differentes.
Oh tyrannico Amor, oh caso vario,
Que obrigas a hum querer que sempre seja
De si contínuo e aspero adversario!
E qu'outr'hora nenhuma alegre esteja,
Senão quando do seu despôjo amado
Sua inimiga estar triumphando veja.
Quero fallar com este, qu'enredado
Nesta cegueira está sem nenhum tento.
Acorda ja, pastor, desacordado.
ALMENO.
Oh porque me tiraste hum pensamento,
Que agora estava aos olhos debuxando,
De quem aos meus foi doce mantimento?
AGRARIO.
Nesta imaginação estás gastando
O tempo e vida, Almeno? Perda grande!
Não vês quão mal os dias vás passando?
ALMENO.
Formosos olhos, ande a gente e ande;
Que nunca vos ireis dest'alma minha,
Por mais qu'o tempo corra, a morte o mande.
AGRARIO.
Quem poderá cuidar que tão asinha
Se perca o curso assi do siso humano,
Que corre por direita e justa linha?
Que sejas tão perdido por teu dano,
Almeno meu, não he por certo aviso;
He só doudice grande, grande engano.
ALMENO.
Ó Agrario meu, que vendo o doce riso,
E o rosto tão formoso, como esquivo,
O menos que perdi foi todo o siso.
E não entendo, desque sou captivo,
Outra cousa de mi, senão que mouro:
Nem isto entendo bem, pois inda vivo.
Á sombra deste umbroso e verde louro
Passo a vida, ora em lagrimas cansadas,
Ora em louvores dos cabellos d'ouro.
Se perguntares porque são choradas,
Ou porque tanta pena me consume,
Revolvendo memorias magoadas;
Desque perdi da vida o claro lume,
E perdi a esperança e causa della,
Não chóro por razão, mas por costume.
Jamais pude co'o fado ter cautella;
Nem houve nunca em mi contentamento,
Que não fosse trocado em dura estrella.
Que bem livre vivia e bem isento,
Sem qu'ao jugo me visse submettido
De nenhum amoroso pensamento!
Lembra-me, amigo Agrario, que o sentido
Tão fóra d'amor tinha, que me ria
De quem por elle via andar perdido.
De várias côres sempre me vestia;
De boninas a fronte coroava;
Nenhum pastor cantando me vencia.
A barba então nas faces me apontava;
Na luta, na carreira, em qualquer manha,
Sempre a palma entre todos alcançava.
Da minha idade tenra, em tudo estranha,
Vendo (como acontece) affeiçoadas
Muitas Nymphas do rio e da montanha;
Com palavras mimosas e forjadas,
De solta liberdade e livre peito,
As trazia contentes e enganadas.
Mas não querendo Amor, que deste geito
Dos corações andasse triumphando,
Em quem elle criou tão puro affeito;
Pouco a pouco me foi de mi levando
Dissimuladamente ás mãos de quem
Toda esta injuria agora está vingando.
AGRARIO.
Deste teu caso, Almeno, eu sei mui bem
O princípio e o fim; que Nemoroso
Contado tudo isso, e mais, me tem.
Mas (quero-to dizer) se este enganoso
Amor he tão usado a desconcertos,
Que nunca amando fez pastor ditoso;
Ja que nelle estes casos são tão certos,
Porqu'os estranhas tanto, que de mágoa
Te chorão valles, montes e desertos?
Vejo-te estar gastando em viva fragoa,
E juntamente em lagrimas; vencendo
A grã Sicilia em fogo, o Nilo em ágoa.
Vejo que as tuas cabras, não querendo
Gostar as verdes hervas, se emmagrecem,
As tetas aos cabritos encolhendo.
Os campos, que co'o tempo reverdecem,
Os olhos alegrando descontentes,
Em te vendo, parece, se entristecem.
De todos teus amigos e parentes,
Que lá da serra vem por consolar-te,
Sentindo na alma a pena, que tu sentes,
Se querem de teus males apartar-te,
Deixando a choça e gado vás fugindo,
Como cervo ferido, a outra parte.
Não vês que Amor, as vidas consumindo,
Vive só de vontades enlevadas
No falso parecer d'hum gesto lindo?
Nem as hervas das águas desejadas
Se fartão; nem de flores as abelhas;
Nem este Amor de lagrimas cansadas.
Quantas vezes, perdido entr'as ovelhas,
Chorou Phebo de Daphne as esquivanças,
Regando as flores brancas e vermelhas?
Quantas vezes as asperas mudanças
O namorado Gallo t[~e]e chorado
De quem o tinha envolto em esperanças?
Estava o triste amante recostado,
Chorando ao pé d'hum freixo o triste caso,
Que o falso Amor lhe tinha destinado.
Por elle o sacro Pindo e o grão Parnaso,
Na fonte de Aganippe destillando,
Se fazião de lagrimas hum vaso.
O intonso Apollo o vinha alli culpando,
A sobeja tristeza perigosa
Com asperas palavras reprovando.
Gallo, porqu'endoudeces? que a formosa
Nympha, que tanto amaste, descobrindo
Por falsa a fé, que dava, e mentirosa;
Por as Alpinas neves vai seguindo
Outro bem, outro amor, outro desejo;
Como inimiga, emfim, de ti fugindo.
Mas o misero amante, que o sobejo
Mal empregado amor lhe defendia
Ter de tamanha fé vergonha ou pejo;
Da falsífica Nympha não sentia
Senão que o frio do gelado Rheno
Os delicados pés lhe offenderia.
Ora se tu vês claro, amigo Almeno,
Que d'Amor os desastres são de sorte,
Que para matar basta o mais pequeno,
Porque não pões hum freio a mal tão forte,
Qu'em estado te põe, que sendo vivo,
Ja não se entende em ti vida nem morte?
ALMENO.
Agrario; se do gesto fugitivo,
Por caso de fortuna desastrado,
Algum'hora deixar de ser captivo;
Ou sendo para as Ursas degradado,
Adonde Boreas t[~e]e o Oceano
Co'os frios Hyperboreos congelado;
Ou donde o filho de Climene insano,
Mudando a côr das gentes totalmente,
As terras apartou do trato humano;
Ou se ja por qualquer outro accidente
Deixar este cuidado tão ditoso,
Por quem sou de ser triste tão contente;
Este rio, que passa deleitoso,
Tornando para traz, irá negando
Á natureza o curso pressuroso.
As cabras por o mar irão buscando
Seu pasto; e andar-se-hão por a espessura
Das hervas os delfins apascentando.
Ora se tu vês, n'alma quão segura
Deste amor tenho a fé, para qu'insistes
Nesse conselho e prática tão dura?
Se de tua porfia não desistes,
Vae repastar teu gado a outra parte;
Qu'he dura a companhia para os tristes.
Huma só cousa quero encomendarte,
Para repouso algum de meu engano,
Antes que o tempo, emfim, de mi te aparte:
Que s'esta fera, qu'anda em traje humano,
Por a montanha vires ir vagando,
De meu despôjo rica e de meu dano,
Comos vivos espritos inflammando
O ar, o monte e a serra, que comsigo
Continuamente leva namorando;
Se queres contentar-me, como amigo,
Passando, lhe dirás: Gentil pastora,
Não ha no mundo vício sem castigo.
Tornada em puro marmore não fôra
A fera Anaxarete, se amoroso
Mostrára o rosto angelico algum'hora.
Foi bem justo o castigo rigoroso:
Porém quem te ama (Nympha) não queria
Nódoa tão feia em gesto tão formoso.
AGRARIO.
Tudo farei, Almeno, e mais faria
Por algum dia ver-te descansado,
Se s'acabão trabalhos algum dia.
Mas bem vês como Phebo ja empinado
Me manda que da calma iniqua e crua,
Recolha em algum valle o manso gado.
Tu nessa phantasia falsa e nua,
Para engano maior de teu perigo,
Não queres companhia mais que a sua.
Vou-me d'aqui, e fique Deos comtigo;
E ficarás melhor acompanhado.
ALMENO.
Elle comtigo vá, como comigo
Me fica acompanhando o meu cuidado.

ECLOGA III.

INTERLOCUTORES.
ALMENO e BELISA.
Passado ja algum tempo que os amores
D'Almeno, por seu mal, erão passados,
Porque nunca Amor cumpre o que promette;
Entr'huns verdes ulmeiros apartado,
Regando por o campo as brancas flores,
Em lagrimas cansadas se derrete:
Quando a linda pastora, que compete
Co'o monte em aspereza,
Co'o prado em gentileza,
Por quem o pastor triste endoudecia,
Por a praia do Tejo discorria
A lavar a beatilha e o trançado:
O sol ja consentia
Que sahisse da sombra o manso gado.
Ja acordado daquelle pensamento
Que tão desacordado sempre o teve,
Vio por acêrto o bem, que incerto tinha.
E porque donde amor a mais se atreve,
Alli mais enfraquece o entendimento,
Não lhe soube dizer o que convinha.
Como homem que á aprazada briga vinha,
A quem de fóra engana
A confiança humana,
E despois, vendo o rosto a quem resiste,
Treme, e teme o perigo e não insiste;
Ja se arrepende, a audacia lhe fallece:
Dest'arte o pastor triste
Ousa, receia, esforça e enfraquece.
E tendo assi ja attonito o sentido,
Cometteo com furor desatinado,
E tirou da fraqueza coração.
Comettimento foi desesperado:
Qu'huma só salvação t[~e]e hum perdido,
Perder toda a esperança á salvação.
As mágoas, que passárão, se dirão:
Mas as qu'ella dizia,
Lembrando-lhe que via
As águas murmurar do Tejo amenas,
Remetto a vós, ó Tagides Camenas;
Qu'eu, de mágoa, não posso dizer tanto;
Porqu'em tamanhas penas
Me cansa a penna, e a dor m'impede o canto.
BELISA.
Que alegre campo e praia deleitosa!
Quão saudosa faz esta espessura
A formosura angelica e serena
Da tarde amena! Quão saudosamente
A sesta ardente abranda, suspirando,
De quando em quando o vento alegre e frio!
No fundo rio os mudos peixes sáltão;
Os ceos se esmaltão todos d'ouro e verde,
E Phebo perde a fôrça da quentura.
Por a espessura levão, passeando,
O gado brando ao som das çanfoninas,
Pizando as finas e formosas flores,
Os Guardadores, que cantando o gesto
Formoso e honesto das pastoras qu'amão,
Por o ar derramão mil suspiros vãos.
Hum louva as mãos, louva outro os raios bellos,
Outro os cabellos d'ouro, em som suave:
E a amorosa ave leva o contraponto.
Mas oh que conto e saudosa historia
Que na memoria aqui se m'offerece!
Se não m'esquece, ja deste lugar
Ouvi soar os valles algum dia,
E respondia o eco o nome em vão
N'hum coração, _Belisa_ retumbando.
Estou cuidando como o tempo passa,
E quão escaça he toda alegre vida;
E quão comprida, quando he triste e dura.
Nesta 'spessura longo tempo amei:
Se m'enganei com quem do peito amava,
Não me pezava de ser enganada.
Fui salteada, emfim, d'hum pensamento,
Que hum movimento tinha casto e são.
Conversação foi fonte dest'engano
Que, por meu dano, entrou com falsa côr.
Porque o amor na Nympha, que he segura,
Entra em figura de vontade honesta.
Mas que me presta agora dar desculpa?
Pois se houve culpa, foi do firme amor
Só, n'hum pastor, que nunca sol nem l[~u]a,
Ou serra alg[~u]a, desde o Ibero ao Indo,
Outro tão lindo vírão, tão manhoso.
Nest'amoroso estado, e fé que tinha
Nest'alma minha tão secretamente,
Vivi contente, amando e encobrindo.
Elle fingindo mentirosos danos,
Que são enganos que não custão nada;
Tendo alcançada ja no entendimento
A fé e intento meu só nelle pôsto;
(Que logo o rosto mostra os corações,
E as affeições co'os olhos se praticão
Que mais publicão muito, que palavras)
Com suas cabras sempre á parte vinha,
Ond'eu mantinha os olhos do desejo.
Tu, manso Tejo, e tu, florído prado,
Do mais passado, emfim, que aqui não digo,
Sereis, m'obrigo, testimunho certo;
Pois descoberto vos foi tudo e claro.
Oh tempo avaro! oh sorte nunca igual!
Quão grande mal quereis á humana gente!
Porque hum contente estado assi trocastes?
Vós me tirastes do meu peito isento
O pensamento honesto e repousado,
Ja dedicado ao côro de Diana;
Vós n'huma ufana vida me puzestes,
E alli quizestes que gozasse o dano
Do doce engano, que se chama amor,
Com cujo error passava o tempo ledo:
E vós tão cedo me tirais hum bem,
Que Amor ja tem impresso n'alma minha,
Despois qu'a tinha envolta em esperanças;
E com lembranças tristes me deixais?
Mal me pagais a fé que sempre tive.
Mas assi vive quem sem dita nace.
Mas ja a face alegre o sol esconde;
E não responde alguem a tantas mágoas,
Senão as ágoas, que dos olhos sahem.
As sombras cahem; vão-se as alimarias,
Fartas das várias hervas, seu caminho;
Buscão seu ninho os passaros sem dono:
Ja por o sono esquecem o comer.
Quero esquecer tambem tão doce historia,
Pois he memoria que traz mor cuidado.
Isto he passado; e se me deo paixão,
Os dias vão gastando o mal e o bem;
E não convém querer-me magoar
Do qu'emendar não posso ja com mágoas.
Nas claras ágoas deste rio brando,
Que vão regando o valle matizado,
Este trançado lavar quero emfim;
Que ja de mim m'esqueço co'a lembrança
Desta mudança, qu'esquecer não sei:
Bem qu'eu verei mudar a opinião,
Pois homens são: a quem o esquecimento
Depressa faz mudar o pensamento.
ALMENO.
Se a vista não m'engana a phantasia,
Como ja m'enganou mil vezes, quando
Minha ventura enganos me soffria;
Parece-me, que vejo estar lavando
Huma Nympha algum véo no claro Tejo,
Que se m'está Belisa figurando.
Não póde ser verdade isto que vejo;
Que facilmente aos olhos se figura
Aquillo que se pinta no desejo.
Oh acontecimento, qu'a ventura
Me dá para mor damno! Esta he, certo;
Que não he d'outrem tanta formosura.
Se poderei fallar-lhe de mais perto?
Mas fugir-me-ha. Não póde ser; qu'o rio
Para acolá não t[~e]e caminho aberto.
Oh temor grande! oh grande desvario,
Qu'a voz m'impede, e a lingua negligente
Assi m'está tornando, e o peito frio!
De quanto me sobeja, estando ausente,
Que para lhe fallar sempre imagino,
Tudo me falta quando estou presente.
Oh aspecto suave e peregrino!
Pois como? tão asinha assi s'esquece
Huma fé verdadeira, hum amor fino?
BELISA.
Oh altas semideas! pois padece
Em vosso rio a honra delicada
De quem tamanha fôrça não merece:
Ou seja por vós, Nymphas, preservada;
Ou em arvore alguma, ou pedra dura
Me deixai velozmente transformada.
ALMENO.
Ah Nympha! não te mudes a figura:
Nem vós, deosas, queirais qu'eu seja parte
De se mudar tão rara formosura.
Porqu'a quem falta a voz para fallar-te,
E a quem falta o despejo da ousadia,
Tambem faltarão mãos para tocar-te.
BELISA.
Que me queres, Almeno, ou que porfia
Foi a tua tão aspera comigo?
Minha vontade não to merecia.
Se com amor o fazes, eu te digo,
Qu'amor, que tanto mal me faz em tudo,
Não póde ser amor, mas inimigo.
Não es tu de saber tão falto e rudo,
Que tão sem siso amasses, como amaste.
ALMENO.
Onde viste tu, Nympha, amor sisudo?
Porque ja não te lembra que folgaste
Com meus tormentos tristes, e algum'hora
Com teus formosos olhos ja m'olhaste?
Como t'esquece ja (gentil pastora)
Que folgavas de ler nos freixos verdes
O que de ti 'screvia cada hora?
Porqu'a memoria tão á pressa perdes
Do amor que me mostravas, qu'eu não digo,
Se o vós, ó altos montes, não disserdes?
E como te não lembras do perigo,
A que só por m'ouvir t'aventuravas,
Buscando horas de sesta, horas d'abrigo?
Co'a maçãa da discordia me tiravas;
Qu'a Venus, qu'a ganhou por formosura,
Tu, como mais formosa, lha ganhavas.
E escondendo-te logo na'spessura,
Hias fugindo, como vergonhosa
Da namorada e doce travessura.
Não era esta a maçãa d'ouro formosa
Com qu'encoberta assi d'astucia tanta
Cydippe s'enganou por cubiçosa,
Nem a que o curso teve d'Atalanta;
Mas era aquella, com que Galathêa
O pastor captivou, como elle canta.
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