Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 13

Total number of words is 4209
Total number of unique words is 1662
29.9 of words are in the 2000 most common words
43.6 of words are in the 5000 most common words
51.4 of words are in the 8000 most common words
Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
Contente a beber vai na fonte fria:
Está tudo contente, alegre tudo;
Eu só, só pensativo, triste e mudo.
Se ja d'alma e do corpo tens a palma,
E do corpo sem alma não tens dó,
Ha dó do corpo só, qu'está sem alma,
Pois sem alma não vive o corpo só.
Nas chammas e no ardor, no fogo e calma,
Na affeição, no querer eu sou hum só:
Não acharás vontade tão captiva;
Nem outra como a tua tão esquiva.
Se te apartas por não ouvir meu rôgo,
Onde estiveres te hei d'importunar:
Postoque vás por ágoa, ferro, ou fogo,
Comtigo em toda parte m'has d'achar;
Que o fogo em que ardo, e a ágoa em que m'affogo,
Emquanto eu vivo for, hão de durar;
Pois o nó, que m'enlaça, he de tal sorte,
Que não se ha de soltar em vida, ou morte.
Neste meu coração sempr'estaras,
Emquanto a alma estiver com elle unida:
Tambem o meu esprito possuirás
Despois que a alma do corpo for partida.
Por mais e mais que faças, não faras
Que deixe o amar-te nesta e ess'outra vida:
Impossivel sera qu'eternamente
Ausente estês de mim, estando ausente.
Cá m'acompanhará vossa memoria,
Se o rio, que se diz do esquecimento,
Da minha não borrar tão longa historia,
Tão grave mal, tão duro apartamento.
Até quando vos veja entrar na gloria,
Viverei n'hum contino sentimento:
E ainda então vereis (s'isto ser possa)
Esta minh'alma lá servir a vossa.
Aqui com grave dor, com triste accento,
Deo o triste pastor fim a seu canto:
Co'o rosto baixo e alto o pensamento,
Seus olhos começárão novo pranto:
Mil vezes parar fez no ar o vento,
E apiedou no ceo o coro santo:
As circumstantes sylvas s'inclinárão,
Condoidas das mágoas qu'escutárão.
Com h[~u]a mão na face, reclinado,
Tão enlevado em sua dor estava,
Que, como em grave somno sepultado,
Não via que ja o sol no mar entrava.
Berrando andava em roda o manso gado,
Que o seguro curral ja desejava:
Nas covas as raposas, e em seus ninhos
Se recolhem os simples passarinhos.
Ja sôbre hum sêcco ramo estava pôsto
O mocho com funesto e triste canto:
Ao som delle o pastor ergueo o rosto,
E vio a terra envolta em negro manto.
Quebrando então o fio de seu gôsto,
E o fio não quebrando de seu pranto,
Por não se descuidar de seu cuidado,
Levou para os curraes o manso gado.

ECLOGA VI

INTERLOCUTORES
AGRARIO, Pastor. ALICUTO, Pescador.
A rustica contenda desusada
Entr'as Musas dos bosques, das areias,
De seus rudos cultores modulada;
A cujo som attonitas e alheias
Do monte as brancas vaccas estiverão,
E do rio as saxatiles lampreias;
Desejo de cantar. Que se movêrão
Os troncos ás avenas dos pastores,
E ja sylvestres brutos suspendêrão.
Não menos o cantar dos pescadores
As ondas amansou do fundo pégo,
E fez ouvir os mudos nadadores.
E se por sustentar-se o moço cego
Nos trabalhos agrestes a alma inflama,
O que he mais proprio no ocio e no socêgo;
Mais maravilhas dando á voz da fama,
No mesmo mar undoso e vento frio
Brazas roxas accende a roxa flama.
Vós, ó ramo d'hum Tronco alto e sombrio,
Cuja frondente coma ja cobrio
De Luso todo o gado e senhorio;
E cujo são madeiro ja sahio
A lançar a forçosa e larga rede
No mais remoto mar que o mundo vio;
E vós, cujo valor tão alto excede,
Que, a cantá-lo com voz alta e divina,
A fonte do Parnaso move a sêde;
Ouvi da minha humilde çanfonina
A harmonia, que vós ja levantais
Tanto, que de vós mesmo a fazeis dina.
Mas se agora que affabil m'escutais,
Não ouvirdes cantar com alta tuba
O que vos deve o mundo, que dourais;
E se os Reis avós vossos, que de Juba
Os Reinos debellárão, não ouvis
Que nas azas do excelso verso suba;
Se não sabem as frautas pastoris
Pintar de Toro os campos semeados
D'armas e corpos fortes e gentis;
Por hum Moço animoso sustentados,
Contra o indomito Rei de toda Hespanha,
Contra a fortuna vãa e injustos fados:
Hum Moço, cujo esfôrço, brio e manha,
Do Olympo fez descer o duro Marte,
E dar-lhe a quinta esphera, que acompanha;
Se não sabem cantar a menor parte
Do sapiente peito e grão conselho,
Que pôde, ó Reino illustre, descansar-te;
Peito, que ao douto Apollo faz, vermelho,
Deixar o sacro Monte e as nove Irmãas,
Porque a elle se affeitem como a espelho;
Saberão bem cantar, em nada vãas,
D'Alicuto as contendas e d'Agrario;
Hum d'escamas coberto, outro de lãas.
Vereis, Duque sereno, o estylo vário,
A nós novo, mas n'outro mar cantado
De hum, que só foi das Musas secretario:
O pescador Sincero, que amansado
T[~e]e o pégo de Prochyta co'o canto
Por as sonoras ondas compassado.
Deste seguindo o som, que póde tanto,
E misturando o antigo Mantuano,
Façamos novo estylo, novo espanto.
Partira-se do monte Agrario insano
Para onde a fôrça só do pensamento
Lh'encaminhava o lasso pêzo humano.
Embebido em hum longo esquecimento
De si, e do seu gado e pobre fato,
Apos hum doce sonho e fingimento,
Rompendo as sylvas horridas do mato,
Vai por cima d'outeiros e penedos,
Fugindo, emfim, de todo humano trato.
Ante os seus olhos leva os olhos ledos
Da branca Dinamene, qu'enverdece
Só co'o meneo valles e rochedos.
Ora se ri comsigo, quando tece
Na phantasia algum prazer fingido;
Ora falla; ora mudo s'entristece.
Qual a tenra novilha, que corrido
T[~e]e montanhas fragosas e espessuras,
Por buscar o cornigero marido;
E cansada nas humidas verduras
Cahir se deixa ao longo d'hum ribeiro,
Ja quando as sombras vem cahindo escuras;
E nem co'a noite ao valle seu primeiro
Se lembra de tornar, como sohia,
Perdida por o bruto companheiro:
Tal Agrario chegado, emfim, se via
Onde o grão pégo horrisono suspira
N'huma praia arenosa, humida e fria.
Tanto que ao mar estranho os olhos vira,
Tornando em si, de longe ouvio tocar-se
De douta mão não vista e nova lira.
Fez-lhe o som desusado desviar-se
Para onde mais soava, desejando
D'ouvir e conversar, e de provar-se.
Muito não tinha proseguido, quando
Em a concavidade d'hum penedo,
Que pouco a pouco fôra o mar cavando,
Topou hum pescador, que prompto e quedo,
N'huma pedra assentado, brandamente
Tangendo, faz o mar sereno e ledo.
Mancebo era d'idade florecente,
Pescador grande do alto, conhecido
Por o nome de toda humida gente:
Alicuto se chama: que perdido
Era por a formosa Lemnoria;
Nympha que t[~e]e o mar ennobrecido.
Por ella as redes lança noite e dia;
Por ella as ondas tumidas despreza;
Por ella soffre o sol e a chuva fria.
Co'o seu nome mil vezes a braveza
D'irados ventos amansou co'o verso,
Que remove das rochas a dureza.
E agora em som de voz, suave e terso,
Está seu nome aos ecos ensinando
Por estylo do agreste som diverso.
Ouvindo Agrario, attonito, affroxando
Da phantasia hum pouco seu cuidado,
Suspenso esteve os numeros notando.
Mas Alicuto, vendo-se estorvado
Por hum pastor da musica divina,
O rosto levantou bem socegado,
E disse assi: Vaqueiro da campina,
Que vens buscar ás arenosas praias,
Onde a bella Amphitrite só domina?
Que razão ha, pastor, para que saias
A este nosso escamoso e vil terreno
Dos teus floridos myrtos e altas faias?
Pois s'agora o mar vês brando e sereno,
E estender-se estas ondas por a areia,
Amansadas das mágoas, com que peno,
Logo verás o como desenfreia
Eolo o vento por o mar undoso,
De sorte que Neptuno se receia.
Responde Agrario: Oh musico e amoroso
Pescador! eu não venho a ver o lago
Bravo e quieto, ou vento brando e iroso;
Mas o meu pensamento, com que apago
As flammas ao desejo, me trazia
Sem ouvir e sem ver, suspenso e vago:
Até que a tua angelica harmonia
M'acordou, vendo o som, com que aqui cantas
A tua perigosa Lemnoria.
Mas se de ver-me cá no mar t'espantas,
Eu m'espanto tambem do estylo novo
Com que as ondas horrisonas quebrantas.
Porém se com verdade o louvo e approvo,
Desejo de o provar contra o sylvestre
Antigo pastoril, qu'eu mal renóvo.
E tu, que no tocar pareces mestre,
Bem julgarás se ha clara differença
Entr'o canto maritimo e o campestre.
Não ha (disse Alicuto) em mi detença:
Alvorôço antes ha, por mais que veja
Que a tua confiança só me vença.
Mas, porque saibas que nenhuma inveja
Os pescadores temos aos pastores
Do som que pelo mundo se deseja,
Toma a lyra na mão, que os moradores
Do vitreo fundo vendo estou juntar-se
Para ouvir nossos rusticos amores.
Bem vês por essa praia presentar-se
Nas conchas vária côr á vista humana;
E o mar vir por entr'ellas e tornar-se.
Socegada do vento a furia insana,
Encrespa brandamente o ameno rio,
Que seu licor aqui mistura e dana.
Estepenedo concavo e sombrio,
Que de cangrejos ves estar coberto,
Nos dá abrigo do sol, quieto e frio.
Tudo nos mostra, emfim, repouso certo,
E nos convida ao canto, com que os mudos
Peixes sahem ouvindo ao ar aberto.
Assi se desafião estes rudos
Poetas, nos officios discrepantes;
Nos engenhos porém subtis e agudos.
Eis ja mil companheiros circumstantes
Estavão para ouvir, e apparelhavão
Ao vencedor os premios semelhantes.
As bem sonantes lyras se tocavão;
Agrario começava, e da harmonia
Os pescadores todos s'admiravão;
E dest'arte Alicuto respondia.
AGRARIO.
Vós semicapros deoses do alto monte,
Faunos longevos, Satyros, Sylvanos;
E vós, deosas do bosque e clara fonte,
E dos troncos que vivem largos anos;
Se tendes prompta hum pouco a sacra fronte
A nossos versos rusticos e humanos,
Ou me dae ja a capella de loureiro,
Ou penda a minha lyra d'hum pinheiro.
ALICUTO.
Vós humidas deidades deste pégo,
Tritões ceruleos, Próteo, com Palemo;
Vós, Nereidas do sal em que navego,
Por quem do vento as furias pouco temo;
Se ás vossas sacras aras nunca nego
O congro nadador na pá do remo,
Não consintais, que a musica marinha
Vencida seja aqui na lyra minha.
AGRARIO.
Pastor se fez hum tempo o moço louro,
Que do sol as carretas move e guia;
Ouvio o rio Amphriso a lyra d'ouro,
Que o seu claro inventor alli tangia.
Io foi vacca; Jupiter foi touro:
Mansas ovelhas junto d'ágoa fria
Guardou formoso Adonis; e tornado
Em bezerro Neptuno foi ja achado.
ALICUTO.
Pescador ja foi Glauco, e deos agora
He do mar; e Protêo Phocas guarda.
Nasceo no pégo a deosa, que he senhora
Do amoroso prazer, que sempre tarda.
Se foi bezerro o deos, que cá se adora,
Tambem ja foi delfim. Se se resguarda,
Vê-se que os moços pescadores erão,
Que o escuro enigma ao primo Vate derão.
AGRARIO.
Formosa Dinamene, se dos ninhos
Os implumes penhores ja furtei
Á doce Philomela; e dos murtinhos
Para ti (fera!) as flores apanhei;
E se os crespos madronhos nos raminhos
Com tanto gôsto ja te presentei,
Porque não dás a Agrario desditoso
Hum só revolver d'olhos piedoso?
ALICUTO.
Para quem trago d'ágoa em vaso cavo
Os curvos camarões vivos saltando?
Para quem as conchinhas ruivas cavo
Na praia, os brancos buzios apanhando?
Para quem de mergulho no mar bravo
Os ramos de coral vou arrancando,
Senão para a formosa Lemnoria,
Que co'hum só riso a vida me daria?
AGRARIO.
Quem vio o desgrenhado e crespo Inverno,
D'atras nuvens vestido, horrido e feio,
Ennegrecendo á vista o ceo superno,
Quando os troncos arranca o rio cheio;
Raios, chuvas, trovões, hum triste inferno,
Que ao mundo mostra hum pallido receio:
Tal o amor he cioso, a quem suspeita
Que outrem de seus trabalhos se aproveita.
ALICUTO.
Se alguem vê, se alguem ouve o sibilante
Furor lançando flammas e bramidos,
Quando as pasmosas serras traz diante,
Horrido aos olhos, horrido aos ouvidos:
A braços derribando o ja nutante
Mundo, co'os elementos destruidos:
Assi me representa a phantasia
A desesperação de ver hum dia.
AGRARIO.
Minha alva Dinamene, a primavera,
Que os deleitosos campos pinta e veste,
E rindo-se huma côr aos olhos gera,
Qu'em terra lhes faz ver o Arco celeste;
As aves, as boninas, a verde hera,
E toda a formosura amena agreste
Não he para os meus olhos tão formosa,
Como a tua, que abate o lirio e rosa.
ALICUTO.
As conchinhas da praia, que presentão
A côr das nuvens, quando nasce o dia;
O canto das Sirenas, que adormentão;
A tinta, que no Murice se cria;
O navegar por ondas, que se assentão
Co'o brando bafo, com que o sol s'enfria,
Não podem, Nympha minha, assi aprazer-me,
Como o ver-te, se em tanto chego a ver-me.
AGRARIO.
A deosa, que na Lybica lagôa
Em fórma virginal appareceo,
Cujo nome tomou, que tanto sôa,
Os olhos bellos t[~e]e da côr do ceo:
Garços os t[~e]e; mas huma, que a corôa
Das formosas do campo mereceo,
Da côr do campo os mostra graciosos.
Quem diz, que não são estes os formosos?
ALICUTO.
Perdoem-me as deidades; mas tu, diva,
Que no liquido marmore es gerada,
A luz dos olhos teus, celeste e viva,
T[~e]es por vício amoroso atravessada:
Nós petos lhe chamâmos; mas quem priva
De luz o dia, baixa e socegada
Traz a dos seus nos meus, qu'eu o não nego;
E com toda esta luz sempre estou cego.
Assi cantavão ambos os cultores
Do monte e praia, quando os atalhárão;
A hum pastores, a outro pescadores.
E quaesquer a seu Vate coroárão
De capellas idoneas e formosas,
Que as Nymphas lhes tecêrão e ordenárão:
A Agrario de murtinhos e de rosas;
A Alicuto d'hum fio de torcidos
Buzios, e conchas ruivas e lustrosas.
Estavão n'ágoa os peixes embebidos
Com as cabeças fóra; e quasi em terra
Os musicos delfins estão perdidos.
Julgavão os pastores que na serra
O cume e preço está do antigo canto;
Que quem o nega, contra as Musas erra.
Dizem os pescadores que outro tanto
T[~e]e na sonora frauta, quanto teve
O monte pastoril da antigua Manto.
Mas ja o pastor d'Admeto o carro leve
Molhava n'ágoa amara, e compellia
A recolher a roxa tarde e breve:
E foi fim da contenda o fim do dia.

ECLOGA VII.

INTERLOCUTORES.
SATYRO I. SATYRO II.
As doces cantilenas, que cantavão
Os semicapros deoses, amadores
Das Napêas, que os montes habitavão,
Cantando escreverei: que se os amores
A sylvestres deidades maltratárão,
Ja ficão desculpados os pastores.
Vós, Senhor Dom Antonio, aonde achárão
O claro Apollo e Marte hum ser perfeito,
Em quem suas altas mentes assinárão;
Se o meu engenho he rudo, ou imperfeito,
Bem sabe onde se salva, pois pretende
Levantar com a causa o baixo effeito.
Em vós minha fraqueza se defende;
Em vós instilla a fonte do Pegáso,
O que o meu canto por o mundo estende.
Vêdes que as altas Musas do Parnaso
Cantando vos estão na doce lira,
Tomando-me das mãos tão alto caso.
Vêdes o louro Apollo, que me tira
De louvar vossa estirpe, e escurece
O que a vosso louvor meu canto aspira.
Ou por me haver inveja me fallece,
Ou por não ver soar na frauta ruda
O que a sonora cithara merece.
Pois sei dizer, Senhor, que a lingua muda,
Em quanto Progne triste o sentimento
Da corrompida irmãa co'o pranto ajuda;
E em quanto Galatea ao manso vento
Sólta os cabellos louros da cabeça,
E Tityro nas sombras faz assento;
E em quanto flor aos campos não falleça,
(Se não recebeis isto por affronta)
Fará que o Douro e o Ganges vos conheça.
E ja que a lingua nisto fica pronta,
Consenti que a minha Ecloga se conte,
Em quanto Apollo as vossas cousas conta.
No cume do Parnaso, duro monte,
De sylvestre arvoredo rodeado,
Nasce huma crystallina e clara fonte,
Donde hum manso ribeiro derivado,
Por cima d'alvas pedras mansamente
Vai correndo suave e socegado.
O murmurar das ondas excellente
Os passaros incita, que cantando
Fazem o verde monte mais contente.
Tão claras vão as ágoas caminhando,
Que no fundo as pedrinhas delicadas
Se podem, huma e huma, estar contando.
Não se verão em derredor pizadas
De fera ou de pastor, que alli chegasse,
Porque de espesso monte são vedadas.
Herva se não verá, que alli criasse
O monte ameno, triste ou venenosa,
Senão que lá no centro as igualasse.
O roxo lirio a par da branca rosa,
A cecem pura, a flor que dos amantes
A côr t[~e]e magoada e saudosa;
Alli se vem os myrtos circumstantes
Que a crystallina Venus encobrírão,
Escondendo-a dos Faunos petulantes.
Hortelãa, mangerona, alli respirão,
Onde nem frio inverno, ou quente estio,
As murchárão jamais, ou sêccas vírão.
Dest'arte vai seguindo o curso o rio,
O monte inhabitado e o deserto
Sempre com verdes árvores sombrio.
Aqui huma linda Nympha, por acêrto
Perdida da fragueira companhia,
A quem este lugar era encoberto;
Cansada ja da caça vindo hum dia,
Quiz descansar á sombra da floresta,
E tirar nas mãos alvas d'ágoa fria.
A novidade vendo manifesta
Do sítio, e como as árvores co'o vento
As calmas defendião da alta sesta;
Das aves o lascivo movimento,
Qu'em seus modulos versos occupadas
As azas dão ao doce pensamento;
Tendo notado tudo, ja passadas
As horas da grã sesta, se tornou
A buscar as irmãas, no centro, amadas.
Despois que largamente lhes contou
Do não visto lugar, que perto estava
E tanto por extremo a namorou,
Que ao outro dia fossem, lhes rogava,
A lavar-se em aquella fonte amena,
Que tão formosas ágoas destillava.
Ja tinha dado hum giro a luz serena
Do grão pastor d'Admeto, e já nascia
Aos ditosos amantes nova pena,
Quando as formosas Nymphas em porfia
Para o lugar do monte caminhavão,
Rompendo a manhãa roxa, alegre e fria.
D'huma os louros cabellos s'espalhavão
Por o formoso collo sem concêrto,
E com mil nós suaves s'enlaçavão;
Outra, levando o collo descoberto,
Por mais despejo em tranças os atára,
Havendo por pezado o desconcêrto.
Dinamene e Ephyre, a quem topára
Nuas Phebo em hum rio, e encobrirão
Seus delicados corpos n'ágoa clara;
Syrinx e Nyse, que das mãos fugírão
Do Tegêo Pan; Amanta e mais Elisa,
Destras nos arcos mais que quantas tirão;
A linda Daliana, com Belisa,
Ambas vindas do Tejo, que como ellas
Nenhuma tão formosa as hervas pisa:
Todas estas angelicas donzellas,
Por o viçoso monte alegres hião,
Quaes no ceo largo as nitidas estrellas.
Mas dous sylvestres deoses, que trazião
O pensamento em duas occupado,
A quem de longe mais que a si querião,
Não lhes ficava monte, valle ou prado,
Nem árvore, por onde quer que andavão,
Que não soubesse delles seu cuidado.
Quantas vezes os rios, que passavão,
Detiverão seu curso ouvindo os danos,
Que aos proprios duros montes magoavão!
Quantas vezes amor de tantos anos
Abrandára qualquer vontade isenta,
Se em Nymphas corações houvesse humanos!
Mas quem de seu cuidado se contenta,
Offereça de longe a paciencia;
Que Amor d'alegres mágoas se sustenta.
Que o moço Idalio quiz nesta sciencia
Que se compadecessem dous contrários.
Diga-o quem tiver delle experiencia.
Indo os deoses, emfim, por montes varios
Exercitando os olhos saudosos,
Ao crystallino rio tributarios;
Topárão dos pés alvos e mimosos
As pizadas na terra conhecidas,
As quaes forão seguindo pressurosos.
Mas, encontrando as Nymphas que despidas
Na clara fonte estavão, não cuidando
Que d'alguem fossem vistas ou sentidas,
Deixárão-se estar quedos, contemplando
As feições nunca vistas, de maneira
Que vissem, sem ser vistos, espreitando.
Porém a espessa mata, mensageira
Da cilada dos dous, com o rugido
Dos raminhos d'huma aspera aveleira,
Manifestando claro o escondido,
Todas huma alta grita levantárão,
Que o monte pareceo ser destruido.
Assi despidas logo se lançárão
Por a espessura tão ligeiramente,
Que mais que o proprio vento então voárão.
Qual o bando das pombas quando sente
A rapida aguia, cuja vista pura
Não obedece ao sol resplandecente;
Empresta-lhe o temor da mortedura
Nas azas novo alento; e, não parando,
Veloz rompendo o ar fugir procura:
Dest'arte as deosas timidas, deixando
De seu despôjo os ramos carregados,
Nuas por entre as sylvas vão voando.
Mas os amantes ja desesperados,
Que para as alcançar, emfim, se vião
Nada dos pés caprinos ajudados;
Com amorosos brados as seguião.
Hum só (que o outro ainda não tomava
Folego algum da pressa que trazião)
Desta sorte sentido se queixava:
SATYRO PRIMEIRO.
Ah Nymphas fugitivas,
Que só por não usar humanidade
Os perigos dos matos não temeis!
Para que sois esquivas?
Qu'inda de nós não peço piedade,
Mas dessas alvas carnes, que offendeis.
Ah Nymphas! não vereis
Que Eurydice, fugindo dessa sorte,
Fugio do amante, e não da fera morte?
Tambem assi Eperie foi mordida
Da vibora escondida.
Olhae a serpe occulta na herva verde.
Quem o rigor não perde, perde a vida.
Que tigre, ou que leão,
Que peçonhenta fera venenosa,
Ou qu'inimigo, emfim, vos vai seguindo?
D'hum brando coração,
Que preso dessa vista rigorosa
De si para vós foge, andais fugindo?
Olhae que em gesto lindo
Não se consente peito tão disforme;
Se não quereis que tudo se conforme.
Posto que bellas n'ágoa vos vejais,
Á fonte não creais,
Que vos traz enganadas por vingança
Desta nossa esperança, que enganais.
Mas ah! que não consinto
Que nem palavra minha vos offenda,
Postoque me desculpe a mágoa pura.
Digo, Nymphas, que minto:
Pois mal póde haver nunca quem pretenda
Negar-vos essa rara formosura.
Se amor de tanta dura
Por tanto mal tão pouco bem merece,
Não estranheis, minh'alma se endoudece:
Que se doudices falla d'improviso
Sem tento e sem aviso,
Queira Deos, que dureza tão crescida
Me não prive da vida além do siso.
Cousas grandes e estranhas
Por o mundo t[~e]e feito e faz natura,
Que a quem vos não vio, Nymphas, muito espantão.
Nas Libycas montanhas
As Scitales são feras, de pintura
Tão singular, que só co'a vista encantão.
As hienas levantão
A voz tão natural á voz humana,
Que a quem as ouve, facilmente engana.
E vós (ó gentis feras) cujo aspeito
O mundo t[~e]e sujeito,
Tendes de natureza juntamente
A vista e voz de gente, e fero o peito.
Das amorosas leis,
Com que liga natura os corações,
Andais fugindo (ó Nymphas) na espessura?
Como? E não vos correis
D'haver em vós tão duras condições,
Que possão mais que a próvida natura?
Se vossa formosura
He sobrenatural, não he forçado
Que assi tenha tambem o peito irado:
Antes ao puro Amor, em cuja mão
Os corações estão,
Por vossa gentileza tão formosa
Lhe deveis amorosa condição.
Amor he hum brando affeito,
Que Deos no mundo poz e a natureza,
Para augmentar as cousas que creou.
De Amor está sugeito
Tudo quanto possue a redondeza:
Nada sem este affecto se gerou.
Por elle conservou
A causa principal o mundo amado,
Donde o pae famulento foi deitado.
As cousas elle as ata e as confórma
Com o mundo, e reforma
A materia. Quem ha que não o veja?
Quanto meu mal deseja sempre fórma.
Entre as plantas do prado
Não ha machos e femias conhecidas,
Que junto huma da outra permanece?
Não estão carregados
Os ulmeiros das vides retorcidas,
Onde o cacho enforcado amadurece?
Não vêdes que padece
Tanta tristeza a rôla por a morte
Da sua amada e unica consorte?
Pois lá no Olympo, a quantos captivou
Cupido e maltratou?
Melhor qu'eu o dirá a subtil donzella,
Que ja na sua téla o debuxou.
Ah caso grande e grave!
Ah peitos de diamante fabricados,
E das leis absolutos naturais!
Aquelle amor suave,
Aquelle poder alto, que forçados
Os deoses obedecem, desprezais?
Pois quero que saibais,
Que contra o fero Amor nunca houve escudo:
Costume he seu tomar vingança em tudo.
Eu vos verei lançar em hum momento
Suspiros mil ao vento,
Lagrimas, triste pranto e nova dor
Por quem tenha outro amor no pensamento.
Mais quizera dizer
O desditoso amante, que ajudado
Se via então da mágoa e da tristeza;
Mas foi-lho defender
O outro companheiro, como irado
Com tão disforme e aspera dureza.
Aquillo que a rudeza
D'huma sciencia agreste lh'ensinára,
Disse, qual se em tal ponto despertára
D'horrendo sonho com pezado grito.
O mais que alli foi dito,
Vós, montes, o direis, e vós penedos;
Qu'em vossos arvoredos anda escrito.
SATYRO SEGUNDO.
Nem vós nascidas sois de gente humana,
Nem foi humano o leite que mamastes,
Mas de alguma disforme fera Hyrcana:
Lá no Caucaso horrendo vos criastes:
Daqui trouxestes a aspereza insana;
Daqui os calidos peitos congelastes.
Sois Esphinges nos gestos naturais,
Que de humanas os rostos só mostrais.
Se vós fostes criadas na espessura,
Onde não houve cousa que se achasse,
Agoa, pedra, arbor, flor, ave, alma, dura,
Qu'em seu passado tempo não amasse,
Nem a quem a affeição suave e pura
Nessa presente fórma não mudasse;
Porque não deixareis tambem memoria
De vós em namorada e longa historia?
Olhae como, na Arcadia soterrando
O namorado Alpheo su'ágoa clara,
Lá na ardente Sicilia vai buscando
Por debaixo do mar a Nympha chara.
Assi tambem vereis passar nadando
Atys, que Galatêa tanto amára,
Por onde do Cyclopea grande mágoa
Converteo do mancebo o sangue em ágoa.
Virae os olhos, Nymphas, á Erycina
Espessura; vereis alli mudar-se
Egeria, e em fonte clara e crystallina
Por a morte de Numa distillar-se.
Olhae que a triste Byblis vos ensina,
You have read 1 text from Portuguese literature.
Next - Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 14
  • Parts
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 01
    Total number of words is 4573
    Total number of unique words is 1775
    32.4 of words are in the 2000 most common words
    47.3 of words are in the 5000 most common words
    54.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 02
    Total number of words is 4832
    Total number of unique words is 1535
    37.3 of words are in the 2000 most common words
    52.8 of words are in the 5000 most common words
    60.8 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 03
    Total number of words is 4680
    Total number of unique words is 1767
    35.0 of words are in the 2000 most common words
    47.5 of words are in the 5000 most common words
    53.7 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 04
    Total number of words is 4158
    Total number of unique words is 1492
    36.1 of words are in the 2000 most common words
    51.2 of words are in the 5000 most common words
    57.9 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 05
    Total number of words is 4246
    Total number of unique words is 1501
    33.8 of words are in the 2000 most common words
    48.3 of words are in the 5000 most common words
    55.8 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 06
    Total number of words is 4275
    Total number of unique words is 1462
    34.0 of words are in the 2000 most common words
    48.9 of words are in the 5000 most common words
    56.2 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 07
    Total number of words is 4189
    Total number of unique words is 1553
    32.0 of words are in the 2000 most common words
    46.0 of words are in the 5000 most common words
    51.8 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 08
    Total number of words is 4228
    Total number of unique words is 1708
    28.9 of words are in the 2000 most common words
    41.8 of words are in the 5000 most common words
    48.0 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 09
    Total number of words is 4126
    Total number of unique words is 1561
    32.3 of words are in the 2000 most common words
    45.4 of words are in the 5000 most common words
    52.7 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 10
    Total number of words is 4186
    Total number of unique words is 1539
    32.5 of words are in the 2000 most common words
    46.6 of words are in the 5000 most common words
    53.0 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 11
    Total number of words is 4159
    Total number of unique words is 1488
    32.3 of words are in the 2000 most common words
    47.4 of words are in the 5000 most common words
    54.0 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 12
    Total number of words is 4199
    Total number of unique words is 1389
    33.1 of words are in the 2000 most common words
    46.0 of words are in the 5000 most common words
    53.7 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 13
    Total number of words is 4209
    Total number of unique words is 1662
    29.9 of words are in the 2000 most common words
    43.6 of words are in the 5000 most common words
    51.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 14
    Total number of words is 4310
    Total number of unique words is 1587
    31.7 of words are in the 2000 most common words
    47.4 of words are in the 5000 most common words
    54.8 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 15
    Total number of words is 4247
    Total number of unique words is 1482
    36.5 of words are in the 2000 most common words
    51.9 of words are in the 5000 most common words
    59.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 16
    Total number of words is 4204
    Total number of unique words is 1402
    34.2 of words are in the 2000 most common words
    49.6 of words are in the 5000 most common words
    56.8 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 17
    Total number of words is 4140
    Total number of unique words is 1399
    34.7 of words are in the 2000 most common words
    49.7 of words are in the 5000 most common words
    56.7 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 18
    Total number of words is 4138
    Total number of unique words is 1592
    32.5 of words are in the 2000 most common words
    48.1 of words are in the 5000 most common words
    55.8 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 19
    Total number of words is 4093
    Total number of unique words is 1586
    31.7 of words are in the 2000 most common words
    47.1 of words are in the 5000 most common words
    55.3 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 20
    Total number of words is 4410
    Total number of unique words is 1335
    37.3 of words are in the 2000 most common words
    52.0 of words are in the 5000 most common words
    58.3 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 21
    Total number of words is 505
    Total number of unique words is 236
    55.8 of words are in the 2000 most common words
    67.5 of words are in the 5000 most common words
    73.3 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.