Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 04

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talvez porque tivesse em vista fazer essa mesma honra ás cinzas de tão
grande homem. Mas este projecto ficou depois em esquecimento até ao anno
de 1775, em que o grande terremoto, sovertendo aquella Igreja, confundio
os ossos debaixo das ruinas. Mas tempo virá em que a patria agradecida
erija á sua memoria um pomposo monumento, que seja digno della, digno de
tão insigne varão.


RIMAS.


RIMAS.

SONETOS.

I.
Em quanto quiz fortuna que tivesse
Esperança de algum contentamento,
O gosto de hum suave pensamento
Me fez que seus effeitos escrevesse.
Porém temendo Amor que aviso désse
Minha escriptura a algum juizo isento,
Escureceo-me o engenho co'o tormento,
Para que seus enganos não dissesse.
Ó vós, que Amor obriga a ser sujeitos
A diversas vontades! quando lerdes
N'hum breve livro casos tão diversos;
(Verdades puras são, e não defeitos)
Entendei que segundo o amor tiverdes,
Tereis o entendimento de meus versos.

II.
Eu cantarei de amor tão docemente,
Por huns termos em si tão concertados,
Que dous mil accidentes namorados
Faça sentir ao peito que não sente.
Farei que Amor a todos avivente,
Pintando mil segredos delicados,
Brandas iras, suspiros magoados,
Temerosa ousadia, e pena, ausente.
Tambem, Senhora, do desprêzo honesto
De vossa vista branda e rigorosa,
Contentar-me-hei dizendo a menor parte.
Porém para cantar de vosso gesto
A composição alta e milagrosa,
Aqui falta saber, engenho, e arte.

III.
Com grandes esperanças ja cantei,
Com que os deoses no Olympo conquistára;
Depois vim a chorar porque cantára,
E agora chóro ja porque chorei.
Se cuido nas passadas que ja dei,
Custa-me esta lembrança só tão cara,
Que a dor de ver as mágoas que passára,
Tenho por a mór mágoa que passei.
Pois logo, se está claro que hum tormento
Dá causa que outro na alma se accrescente,
Ja nunca posso ter contentamento.
Mas esta phantasia se me mente?
Oh ocioso e cego pensamento!
Ainda eu imagino em ser contente?

IV.
Despois que quiz Amor que eu só passasse
Quanto mal ja por muitos repartio,
Entregou-me á Fortuna, porque vio
Que não tinha mais mal que em mi mostrasse.
Ella, porque do Amor se avantajasse
Na pena a que elle só me reduzio,
O que para ninguem se consentio,
Para mim consentio que se inventasse.
Eis-me aqui vou com vário som gritando.
Copioso exemplario para a gente
Que destes dous tyrannos he sujeita;
Desvarios em versos concertando.
Triste quem seu descanso tanto estreita,
Que deste tão pequeno está contente!

V.
Em prisões baixas fui hum tempo atado;
Vergonhoso castigo de meus erros:
Inda agora arrojando levo os ferros,
Que a morte, a meu pezar, t[~e]e ja quebrado.
Sacrifiquei a vida a meu cuidado,
Que Amor não quer cordeiros nem bezerros;
Vi mágoas, vi miserias, vi desterros:
Parece-me que estava assi ordenado.
Contentei-me com pouco, conhecendo
Que era o contentamento vergonhoso,
Só por ver que cousa era viver ledo.
Mas minha Estrella, que eu ja agora entendo,
A Morte cega, e o Caso duvidoso
Me fizerão de gostos haver medo.

VI.
Illustre e digno ramo dos Menezes,
Aos quaes o providente e largo Ceo
(Que errar não sabe) em dote concedeo,
Rompessem os Maometicos arnezes;
Desprezando a Fortuna e seus revezes,
Ide para onde o Fado vos moveo;
Erguei flammas no mar alto Erythreo,
E sereis nova luz aos Portuguezes.
Opprimi com tão firme e forte peito
O Pirata insolente, que se espante
E trema Taprobana e Gedrosia.
Dai nova causa á côr do Arabo Estreito;
Assi que o Roxo mar, daqui em diante
O seja só com sangue de Turquia.

VII.
No tempo que de amor viver sohia,
Nem sempre andava ao remo ferrolhado;
Antes agora livre, agora atado,
Em várias flammas variamente ardia.
Que ardesse n'hum só fogo não queria
O Ceo porque tivesse exprimentado
Que nem mudar as causas ao cuidado
Mudança na ventura me faria.
E se algum pouco tempo andava isento,
Foi como quem co'o pêzo descansou
Por tornar a cansar com mais alento.
Louvado seja Amor em meu tormento,
Pois para passatempo seu tomou
Este meu tão cansado soffrimento!

VIII.
Amor, que o gesto humano na alma escreve,
Vivas faiscas me mostrou hum dia,
Donde hum puro crystal se derretia
Por entre vivas rosas e alva neve.
A vista, que em si mesma não se atreve,
Por se certificar do que alli via,
Foi convertida em fonte, que fazia
A dor ao soffrimento doce e leve.
Jura Amor, que brandura de vontade
Causa o primeiro effeito; o pensamento
Endoudece, se cuida que he verdade.
Olhai como Amor gera, em hum momento,
De lagrimas de honesta piedade
Lagrimas de immortal contentamento.

IX.
Tanto de meu estado me acho incerto,
Que em vivo ardor tremendo estou de frio;
Sem causa juntamente chóro e rio;
O mundo todo abarco, e nada apérto.
He tudo quanto sinto hum desconcêrto:
Da alma hum fogo me sahe, da vista hum rio;
Agora espero, agora desconfio;
Agora desvarío, agora acérto.
Estando em terra, chego ao ceo voando;
N'hum'hora acho mil annos, e he de geito
Que em mil annos não posso achar hum'hora.
Se me pergunta alguem, porque assi ando,
Respondo, que não sei: porém suspeito
Que só porque vos vi, minha Senhora.

X.
Transforma-se o amador na cousa amada,
Por virtude do muito imaginar:
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.
Se nella está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente póde descansar,
Pois com elle tal alma está liada.
Mas esta linda e pura semidea,
Que como o accidente em seu sojeito,
Assi com a alma minha se confórma;
Está no pensamento como idea;
E o vivo e puro amor de que sou feito,
Como a materia simples busca a fórma.

XI.
Passo por meus trabalhos tão isento
De sentimento grande nem pequeno,
Que só por a vontade com que peno
Me fica Amor devendo mais tormento.
Mas vai-me Amor matando tanto a tento,
Temperando a triaga co'o veneno,
Que do penar a ordem desordeno,
Porque não mo consente o soffrimento.
Porém se esta fineza o Amor sente
E pagar-me meu mal com mal pretende,
Torna-me com prazer como ao sol neve.
Mas se me vê co'os males tão contente,
Faz-se avaro da pena, porque entende
Que quanto mais me paga, mais me deve.

XII.
Em flor vos arrancou, de então crescida,
(Ah Senhor Dom Antonio!) a dura sorte
Donde fazendo andava o braço forte
A fama dos antiguos esquecida.
Huma só razão tenho conhecida
Com que tamanha mágoa se conforte:
Que se no Mundo havia honrada morte,
Não podieis vós ter mais larga vida.
Se meus humildes versos podem tanto
Que co'o desejo meu se iguale a arte,
Especial materia me sereis.
E celebrado em triste e longo canto,
Se morrestes nas mãos do fero Marte,
Na memoria das gentes vivireis.

XIII.
N'hum jardim adornado de verdura,
Que esmaltavão por cima várias flores,
Entrou hum dia a deosa dos amores,
Com a deosa da caça e da espessura.
Diana tomou logo h[~u]a rosa pura,
Venus hum roxo lyrio, dos melhores;
Mas excedião muito ás outras flores
As violas na graça e formosura.
Perguntão a Cupido, que alli estava,
Qual de aquellas tres flores tomaria
Por mais suave e pura, e mais formosa.
Sorrindo-se o menino lhes tornava:
Todas formosas são; mas eu queria
Viola antes que lyrio, nem que rosa.

XIV.
Todo animal da calma repousava,
Só Liso o ardor della não sentia;
Que o repouso do fogo, em que elle ardia,
Consistia na Nympha que buscava.
Os montes parecia que abalava
O triste som das mágoas que dizia:
Mas nada o duro peito commovia,
Que na vontade de outro posto estava.
Cansado ja de andar por a espessura,
No tronco de huma faia, por lembrança,
Escreve estas palavras de tristeza:
Nunca ponha ninguem sua esperança
Em peito feminil, que de natura
Somente em ser mudavel t[~e]e firmeza.

XV.
Busque Amor novas artes, novo engenho
Para matar-me, e novas esquivanças;
Que não póde tirar-me as esperanças,
Pois mal me tirará o que eu não tenho.
Olhai de que esperanças me mantenho!
Vêde que perigosas seguranças!
Pois não temo contrastes nem mudanças,
Andando em bravo mar, perdido o lenho.
Mas com quanto não póde haver desgôsto
Onde esperança falta, lá me esconde
Amor hum mal, que mata e não se vê.
Que dias ha que na alma me t[~e]e posto
Hum não sei que, que nasce não sei onde;
Vem não sei como; e doe não sei porque.

XVI.
Quem vê, Senhora, claro e manifesto
O lindo ser de vossos olhos bellos,
Se não perder a vista só com vellos,
Ja não paga o que deve a vosso gesto.
Este me parecia preço honesto;
Mas eu, por de vantagem merecellos,
Dei mais a vida e alma por querellos;
Donde ja me não fica mais de resto.
Assi que alma, que vida, que esperança,
E que quanto for meu, he tudo vosso:
Mas de tudo o interêsse eu só o levo.
Porque he tamanha bem-aventurança
O dar-vos quanto tenho, e quanto posso,
Que quanto mais vos pago, mais vos devo.

XVII.
Quando da bella vista e doce riso
Tomando estão meus olhos mantimento,
Tão elevado sinto o pensamento,
Que me faz ver na terra o Paraiso.
Tanto do bem humano estou diviso,
Que qualquer outro bem julgo por vento:
Assi que em termo tal, segundo sento,
Pouco vem a fazer quem perde o siso.
Em louvar-vos, Senhora, não me fundo;
Porque quem vossas graças claro sente,
Sentirá que não póde conhecellas.
Pois de tanta estranheza sois ao mundo,
Que não he de estranhar, Dama excellente,
Que quem vos fez, fizesse ceo e estrellas.

XVIII.
Doces lembranças da passada gloria,
Que me tirou fortuna roubadora,
Deixai-me descansar em paz hum'hora,
Que comigo ganhais pouca victoria.
Impressa tenho na alma larga historia
Deste passado bem, que nunca fôra;
Ou fôra, e não passára: mas ja agora
Em mi não póde haver mais que a memoria.
Vivo em lembranças, morro de esquecido
De quem sempre devêra ser lembrado,
Se lhe lembrára estado tão contente.
Oh quem tornar pudéra a ser nascido!
Soubera-me lograr do bem passado,
Se conhecer soubera o mal presente.

XIX.
Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida descontente,
Repousa lá no Ceo eternamente,
E viva eu cá na terra sempre triste.
Se lá no assento Ethereo, onde subiste,
Memoria desta vida se consente,
Não te esqueças de aquelle amor ardente,
Que ja nos olhos meus tão puro viste.
E se vires que póde merecer-te
Alg[~u]a cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remedio, de perder-te;
Roga a Deos que teus annos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.

XX.
N'hum bosque, que das Nymphas se habitava,
Sibella, Nympha linda, andava hum dia;
E subida em huma árvore sombria,
As amarellas flores apanhava.
Cupido, que alli sempre costumava
A vir passar a sésta á sombra fria,
Em hum ramo arco e settas, que trazia,
Antes que adormecesse, pendurava.
A Nympha, como idoneo tempo víra
Para tamanha empresa, não dilata;
Mas com as armas foge ao moço esquivo.
As settas traz nos olhos, com que tira.
Ó Pastores! fugi, que a todos mata,
Senão a mim, que de matar-me vivo.

XXI.
Os Reinos e os Imperios poderosos,
Que em grandeza no mundo mais crescêrão;
Ou por valor de esfôrço florecêrão,
Ou por Barões nas letras espantosos.
Teve Grecia Themistocles famosos;
Os Scipiões a Roma engrandecêrão;
Doze Pares a França gloria derão;
Cides a Hespanha, e Laras bellicosos.
Ao nosso Portugal, que agora vemos
Tão differente de seu ser primeiro,
Os vossos derão honra e liberdade.
E em vós, grão successor e novo herdeiro
Do Braganção Estado, ha mil extremos
Iguaes ao sangue, e móres que a idade.

XXII.
De vós me parto, ó vida, e em tal mudança
Sinto vivo da morte o sentimento.
Não sei para que he ter contentamento,
Se mais ha de perder quem mais alcança.
Mas dou-vos esta firme segurança:
Que postoque me mate o meu tormento,
Por as aguas do eterno esquecimento
Segura passará minha lembrança.
Antes sem vós meus olhos se entristeção,
Que com cousa outra alguma se contentem:
Antes os esqueçais, que vos esqueção.
Antes nesta lembrança se atormentem,
Que com esquecimento desmereção
A gloria que em soffrer tal pena sentem.

XXIII.
Chara minha inimiga, em cuja mão
Poz meus contentamentos a ventura,
Faltou-te a ti na terra sepultura,
Porque me falte a mi consolação.
Eternamente as águas lograrão
A tua peregrina formosura:
Mas em quanto me a mim a vida dura,
Sempre viva em minha alma te acharão.
E se meus rudos versos podem tanto,
Que possão prometter-te longa historia
De aquelle amor tão puro e verdadeiro;
Celebrada serás sempre em meu canto:
Porque em quanto no mundo houver memoria,
Será a minha escriptura o teu letreiro.

XXIV.
Aquella triste e leda madrugada,
Cheia toda de mágoa e de piedade,
Em quanto houver no mundo saudade
Quero que seja sempre celebrada.
Ella só, quando amena e marchetada
Sahia, dando á terra claridade,
Vio apartar-se de huma outra vontade,
Que nunca poderá ver-se apartada;
Ella só vio as lagrimas em fio,
Que de huns e de outros olhos derivadas,
Juntando-se, formárão largo rio;
Ella ouvio as palavras magoadas,
Que puderão tornar o fogo frio,
E dar descanço ás almas condemnadas.

XXV.
Se quando vos perdi, minha esperança,
A memoria perdêra juntamente
Do doce bem passado e mal presente,
Pouco sentira a dor de tal mudança.
Mas Amor, em quem tinha confiança,
Me representa mui miudamente
Quantas vezes me vi ledo e contente,
Por me tirar a vida esta lembrança.
De cousas de que apenas hum signal
Havia, porque as dei ao esquecimento,
Me vejo com memorias perseguido.
Ah dura estrella minha! Ah grão tormento!
Que mal póde ser mor, que no meu mal
Ter lembranças do bem que he ja passado?

XXVI.
Em formosa Lethea se confia,
Por onde vaidade tanta alcança,
Que, tornada em soberba a confiança,
Com os deoses celestes competia.
Porque não fosse avante esta ousadia,
(Que nascem muitos erros da tardança)
Em effeito puzerão a vingança
Que tamanha doudice merecia.
Mas Oleno, perdido por Lethea,
Não lhe soffrendo Amor que supportasse
Duro castigo em tanta formosura,
Quiz a pena tomar da culpa alhea:
Mas, porque a Morte Amor não apartasse,
Ambos tornados são em pedra dura.

XXVII.
Males, que contra mim vos conjurastes,
Quanto ha de durar tão duro intento?
Se dura, porque dure meu tormento,
Baste-vos quanto ja me atormentastes.
Mas se assi porfiais, porque cuidastes
Derribar o meu alto pensamento,
Mais póde a causa delle, em que o sustento,
Que vós, que della mesma o ser tomastes.
E pois vossa tenção com minha morte
He de acabar o mal destes amores,
Dai ja fim a tormento tão comprido.
Assi de ambos contente será a sorte;
Em vós por acabar-me, vencedores,
Em mim porque acabei de vós vencido.

XXVIII.
Está-se a Primavera trasladando
Em vossa vista deleitosa e honesta;
Nas bellas faces, e na boca e testa,
Cecens, rosas, e cravos debuxando.
De sorte, vosso gesto matizando,
Natura quanto póde manifesta,
Que o monte, o campo, o rio, e a floresta,
Se estão de vós, Senhora, namorando.
Se agora não quereis que quem vos ama
Possa colher o fructo destas flores,
Perderão toda a graça os vossos olhos.
Porque pouco aproveita, linda Dama,
Que semeasse o Amor em vós amores,
Se vossa condição produze abrolhos.

XXIX.
Sete annos de pastor Jacob servia
Labão, pae de Raquel, serrana bella:
Mas não servia ao pae, servia a ella,
Que a ella só por premio pertendia.
Os dias na esperança de hum só dia
Passava, contentando-se com vella:
Porém o pae, usando de cautella,
Em lugar de Raquel lhe deo a Lia.
Vendo o triste Pastor que com enganos
Assi lhe era negada a sua Pastora,
Como se a não tivera merecida;
Começou a servir outros sete annos,
Dizendo: Mais servíra, senão fôra
Para tão longo amor tão curta a vida.

XXX.
Está o lascivo e doce passarinho
Com o biquinho as pennas ordenando;
O verso sem medida, alegre e brando,
Despedindo no rustico raminho.
O cruel caçador, que do caminho
Se vem callado e manso desviando,
Com prompta vista a setta endireitando,
Lhe dá no Estygio Lago eterno ninho.
Desta arte o coração, que livre andava,
(Postoque ja de longe destinado)
Onde menos temia, foi ferido.
Porque o frecheiro cego me esperava,
Para que me tomasse descuidado,
Em vossos claros olhos escondido.

XXXI.
Pede o desejo, Dama, que vos veja:
Não entende o que pede; está enganado.
He este amor tão fino e tão delgado,
Que quem o t[~e]e, não sabe o que deseja.
Não ha cousa, a qüal natural seja,
Que não queira perpétuo o seu estado.
Não quer logo o desejo o desejado,
Só porque nunca falte onde sobeja.
Mas este puro affecto em mim se dana:
Que, como a grave pedra t[~e]e por arte
O centro desejar da natureza;
Assi meu pensamento por a parte,
Que vai tomar de mi, terreste e humana,
Foi, Senhora, pedir esta baixeza.

XXXII.
Porque quereis, Senhora, que offereça
A vida a tanto mal como padeço?
Se vos nasce do pouco que eu mereço,
Bem por nascer está quem vos mereça.
Entendei que por muito que vos peça,
Poderei merecer quanto vos peço;
Pois não consente amor que em baixo preço
Tão alto pensamento se conheça.
Assi que a paga igual de minhas dores
Com nada se restaura; mas devêsma
Por ser capaz de tantos desfavores.
E se o valor de vossos amadores
Houver de ser igual comvosco mesma,
Vós só comvosco mesma andai de amores.

XXXIII.
Se tanta pena tenho merecida
Em pago de soffrer tantas durezas;
Provai, Senhora, em mi vossas cruezas,
Que aqui tendes huma alma offerecida.
Nella experimentai, se sois servida,
Desprezos, desfavores e asperezas;
Que móres soffrimentos e firmezas
Sustentarei na guerra desta vida.
Mas contra vossos olhos quaes serão?
He preciso que tudo se lhes renda;
Mas porei por escudo o coração.
Porque em tão dura e aspera contenda
He bem que, pois não acho defensão,
Com meter-me nas lanças me defenda.

XXXIV.
Quando o sol encoberto vai mostrando
Ao mundo a luz quieta e duvidosa,
Ao longo de huma praia deleitosa
Vou na minha inimiga imaginando.
Aqui a vi os cabellos concertando;
Alli co'a mão na face, tão formosa;
Aqui fallando alegre, alli cuidosa;
Agora estando quêda, agora andando.
Aqui esteve sentada, alli me vio,
Erguendo aquelles olhos, tão isentos;
Commovida aqui hum pouco, alli segura.
Aqui se entristeceo, alli se rio:
E, em fim, nestes cansados pensamentos
Passo esta vida vãa, que sempre dura.

XXXV.
Hum mover de olhos, brando e piedoso,
Sem ver de que; hum riso brando e honesto,
Quasi forçado; hum doce e humilde gesto,
De qualquer alegria duvidoso:
Hum despejo quieto e vergonhoso;
Hum repouso gravissimo e modesto;
Huma pura bondade, manifesto
Indicio da alma, limpo e gracioso:
Hum encolhido ousar; huma brandura;
Hum medo sem ter culpa; hum ar sereno;
Hum longo e obediente soffrimento:
Esta foi a celeste formosura
Da minha Circe, e o magico veneno
Que pôde transformar meu pensamento.

XXXVI.
Tomou-me vossa vista soberana
Adonde tinha as armas mais á mão,
Por mostrar a quem busca defensão
Contra esses bellos olhos, que se engana.
Por ficar da victoria mais ufana,
Deixou-me armar primeiro da razão.
Bem salvar-me cuidei, mas foi em vão,
Que contra o Ceo não val defensa humana.
Com tudo, se vos tinha promettido
O vosso alto destino esta victoria,
Ser-vos ella bem pouca está entendido.
Pois, indaque eu me achasse apercebido,
Não levais de vencer-me grande gloria,
Eu a levo maior de ser vencido.

XXXVII.
Não passes, caminhante. Quem me chama?
H[~u]a memoria nova e nunca ouvida,
De hum que trocou finita e humana vida
Por divina, infinita, e clara fama.
Quem he, que tão gentil louvor derrama?
Quem derramar seu sangue não duvida,
Por seguir a bandeira esclarecida
De hum capitão de Christo que mais ama.
Ditoso fim, ditoso sacrificio,
Que a Deos se fez e ao mundo juntamente!
Pregoando direi tão alta sorte.
Mais poderás contar a toda a gente
Que sempre deo na vida claro indicio
De vir a merecer tão santa morte.

XXXVIII.
Formosos olhos, que na idade nossa
Mostrais do Ceo certissimos signais,
Se quereis conhecer quanto possais,
Olhai-me a mim, que sou feitura vossa.
Vereis que do viver me desapossa
Aquelle riso com que a vida dais:
Vereis como de Amor não quero mais,
Por mais que o tempo corra, o damno possa.
E se ver-vos nesta alma, emfim, quizerdes,
Como em hum claro espelho, alli vereis
Tambem a vossa angelica e serena.
Mas eu cuido que, só por me não verdes,
Ver-vos em mim, Senhora, não quereis:
Tanto gôsto levais de minha pena!

XXXIX.
O fogo que na branda cera ardia,
Vendo o rosto gentil, que eu na alma vejo,
Se accendeo de outro fogo do desejo
Por alcançar a luz que vence o dia.
Como de dous ardores se encendia,
Da grande impaciencia fez despejo,
E remettendo com furor sobejo,
Vos foi beijar na parte onde se via.
Ditosa aquella flamma que se atreve
A apagar seus adores e tormentos
Na vista a quem o sol temores deve!
Namorão-se, Senhora, os Elementos
De vós, e queima o fogo aquella neve
Que queima corações e pensamentos.

XL.
Alegres campos, verdes arvoredos,
Claras e frescas águas de crystal,
Que em vós os debuxais ao natural,
Discorrendo da altura dos rochedos:
Sylvestres montes, asperos penedos
Compostos de concêrto desigual;
Sabei que sem licença de meu mal
Ja não podeis fazer meus olhos ledos.
E pois ja me não vêdes como vistes,
Não me alegrem verduras deleitosas,
Nem águas que correndo alegres vem.
Semearei em vós lembranças tristes,
Regar-vos-hei com lagrimas saudosas,
E nascerão saudades de meu bem.

XLI.
Quantas vezes do fuso se esquecia
Daliana, banhando o lindo seio,
Outras tantas de hum aspero receio
Salteado Laurenio a côr perdia.
Ella, que a Sylvio mais que a si queria,
Para podê-lo ver não tinha meio.
Ora como curára o mal alheio
Quem o seu mal tão mal curar podia?
Elle, que vio tão clara esta verdade,
Com soluços dizia (que a espessura
Inclinavão, de mágoa, a piedade):
Como póde a desordem da natura
Fazer tão differentes na vontade
Aos que fez tão conformes na ventura?

XLII.
Lindo e subtil trançado, que ficaste
Em penhor do remedio que mereço,
Se só comtigo, vendo-te, endoudeço,
Que fôra co'os cabellos que apertaste?
Aquellas tranças de ouro que ligaste,
Que os raios do sol t[~e]e em pouco preço,
Não sei se ou para engano do que peço,
Ou para me matar as desataste.
Lindo trançado, em minhas mãos te vejo,
E por satisfação de minhas dores,
Como quem não t[~e]e outra, hei de tomar-te.
E se não for contente o meu desejo,
Dir-lhe-hei que nesta regra dos amores
Por o todo tambem se toma a parte.

XLIII.
O cysne quando sente ser chegada
A hora que põe termo á sua vida,
Harmonia maior, com voz sentida,
Levanta por a praia inhabitada.
Deseja lograr vida prolongada,
E della está chorando a despedida:
Com grande saudade da partida,
Celebra o triste fim desta jornada.
Assi, Senhora minha, quando eu via
O triste fim que davão meus amores,
Estando posto ja no extremo fio;
Com mais suave accento de harmonia
Descantei por os vossos desfavores
_La vuestra falsa fe, y el amor mio._

XLIV.
Por os raros extremos que mostrou
Em sábia Pallas, Venus em formosa,
Diana em casta, Juno em animosa,
Africa, Europa e Asia as adorou.
Aquelle saber grande que juntou
Esprito e corpo em liga generosa,
Esta mundana máchina lustrosa,
De sós quatro elementos fabricou.
Mas fez maior milagre a natureza
Em vós, Senhoras, pondo em cada h[~u]a
O que por todas quatro repartio.
A vós seu resplandor deo sol e l[~u]a:
A vós com viva luz, graça e pureza,
Ar, Fogo, Terra e Agua vos servio.

XLV.
Tomava Daliana por vingança
Da culpa do pastor que tanto amava,
Casar com Gil vaqueiro; e em si vingava
O êrro alheio, e perfida esquivança.
A discrição segura, a confiança
Das rosas que o seu rosto debuxava,
O descontentamento lhas mudava;
Que tudo muda huma aspera mudança.
Gentil planta disposta em sêcca terra;
Lindo fructo de dura mão colhido;
Lembranças de outro amor, e fé perjura,
Tornárão verde prado em serra dura;
Interêsse enganoso, amor fingido,
Fizerão desditosa a formosura.

XLVI.
Grão tempo ha ja que soube da Ventura
A vida que me tinha destinada;
Que a longa experiencia da passada
Me dava claro indicio da futura.
Amor fero e cruel, Fortuna escura,
Bem tendes vossa fôrça exprimentada:
Assolai, destrui, não fique nada;
Vingai-vos desta vida, que inda dura.
Soube Amor da Ventura, que a não tinha,
E porque mais sentisse a falta della,
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