Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 05

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De imagens impossiveis me mantinha.
Mas vós, Senhora, pois que minha estrella
Não foi melhor, vivei nesta alma minha;
Que não t[~e]e a Fortuna poder nella.

XLVII.
Se somente hora alguma em vós piedade
De tão longo tormento se sentíra,
Amor sofrêra mal que eu me partíra
De vossos olhos, minha Saudade.
Apartei-me de vós, mas a vontade,
Que por o natural na alma vos tira,
Me faz crer que esta ausencia he de mentira;
Porém venho a provar que he de verdade.
Ir-me-hei, Senhora; e neste apartamento
Lagrimas tristes tomarão vingança
Nos olhos de quem fostes mantimento.
Desta arte darei vida a meu tormento;
Que, em fim, cá me achará minha lembrança
Sepultado no vosso esquecimento.

XLVIII.
Oh como se me alonga de anno em ano
A peregrinação cansada minha!
Como se encurta, e como ao fim caminha
Este meu breve e vão discurso humano!
Mingoando a idade vai, crescendo o dano;
Perdeo-se-me hum remedio, que inda tinha:
Se por experiencia se adivinha,
Qualquer grande esperança he grande engano.
Corro apoz este bem que não se alcança;
No meio do caminho me fallece;
Mil vezes caio, e perco a confiança.
Quando elle foge, eu tardo; e na tardança,
Se os olhos ergo a ver se inda apparece,
Da vista se me perde, e da esperança.

XLIX.
Ja he tempo, ja, que minha confiança
Se desça de huma falsa opinião:
Mas Amor não se rege por razão;
Não posso perder, logo, a esperança.
A vida si; que huma aspera mudança
Não deixa viver tanto hum coração,
E eu só na morte tenho a salvação:
Si: mas quem a deseja não a alcança.
Forçado he logo que eu espere e viva.
Ali dura lei de Amor, que não consente
Quietação n'hum'alma que he captiva!
Se hei de viver, em fim, forçadamente,
Para que quero a gloria fugitiva
De huma esperança vãa que me atormente?

L.
Amor, com a esperança ja perdida
Teu soberano templo visitei:
Por signal do naufragio que passei,
Em lugar dos vestidos, puz a vida.
Que mais queres de mi, pois destruida
Me t[~e]es a gloria toda que alcancei?
Não cuides de render-me; que não sei
Tornar a entrar-me onde não ha sahida.
Vês aqui a vida, e a alma, e a esperança,
Doces despojos de meu bem passado,
Em quanto o quiz aquella que eu adoro.
Nellas podes tomar de mi vingança:
E se te queres inda mais vingado,
Contenta-te co'as lagrimas que chóro.

LI.
Apollo e as nove Musas, descantando
Com a dourada lyra, me influião
Na suave harmonia que fazião,
Quando tomei a penna, começando:
Ditoso seja o dia e hora, quando
Tão delicados olhos me ferião!
Ditosos os sentidos que sentião
Estar-se em seu desejo traspassando!
Assi cantava, quando Amor virou
A roda á esperança, que corria
Tão ligeira, que quasi era invisibil.
Converteo-se-me em noite o claro dia;
E se alguma esperança me ficou,
Será de maior mal, se for possibil.

LII.
Lembranças saudosas, se cuidais
De me acabar a vida neste estado,
Não vivo com meu mal tão enganado,
Que não espere delle muito mais.
De longo tempo ja me costumais
A viver de algum bem desesperado:
Ja tenho co'a Fortuna concertado
De soffrer os tormentos que me dais.
Atada ao remo tenho a paciencia
Para quantos desgostos der a vida;
Cuide quanto quizer o pensamento.
Que pois não posso ter mais resistencia
Para tão dura quéda, de subida,
Aparar-lhe-hei debaixo o soffrimento.

LIII.
Apartava-se Nise de Montano,
Em cuja alma, partindo-se, ficava;
Que o pastor na memoria a debuxava,
Por poder sustentar-se deste engano.
Por huma praia do Indico Oceano
Sôbre o curvo cajado se encostava,
E os olhos por as águas alongava,
Que pouco se doião de seu dano.
Pois com tamanha mágoa e saudade,
(Dizia) quiz deixar-me a que eu adoro,
Por testimunhas tómo ceo e estrellas.
Mas se em vós, ondas, mora piedade,
Levai tambem as lagrimas que chóro,
Pois assi me levais a causa dellas.

LIV.
Quando vejo que meu destino ordena
Que, por me exprimentar, de vós me aparte,
Deixando de meu bem tão grande parte,
Que a mesma culpa fica grave pena;
O duro desfavor, que me condena,
Quando por a memoria se reparte,
Endurece os sentidos de tal arte
Que a dor da ausencia fica mais pequena.
Mas como póde ser que na mudança
D'aquillo que mais quero, estê tão fóra
De me não apartar tambem da vida?
Eu refrearei tão aspera esquivança:
Porque mais sentirei partir, Senhora,
Sem sentir muito a pena da partida.

LV.
Despois de tantos dias mal gastados,
Despois de tantas noites mal dormidas,
Despois de tantas lagrimas vertidas,
Tantos suspiros vãos vãamente dados,
Como não sois vós ja desenganados,
Desejos, que de cousas esquecidas
Quereis remediar mortaes feridas.
Que Amor fez sem remedio, o Tempo, os Fados?
Se não tivereis ja longa exp'riencia
Das semrazões de Amor a quem servistes,
Fraqueza fôra em vós a resistencia.
Mas pois por vosso mal seus males vistes,
Que o tempo não curou, nem larga ausencia,
Qual bem delle esperais, desejos tristes?

LVI.
Naiades, vós que os rios habitais,
Que os saudosos campos vão regando,
De meus olhos vereis estar manando
Outros que quasi aos vossos são iguais.
Dryades, que com setta sempre andais
Os fugitivos cervos derribando,
Outros olhos vereis, que triumphando
Derribão corações, que valem mais.
Deixai logo as aljavas e águas frias,
E vinde, Nymphas bellas, se quereis,
A ver como de huns olhos nascem mágoas.
Notareis como em vão passão os dias;
Mas em vão não vireis, porque achareis
Nos seus as settas, e nos meus as ágoas.

LVII.
Mudão-se os tempos, mudão-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança:
Todo o mundo he composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
Continuamente vemos novidades,
Differentes em tudo da esperança:
Do mal ficão as mágoas na lembrança,
E do bem (se algum houve) as saudades.
O tempo cobre o chão de verde manto,
Que ja coberto foi de neve fria,
E em mi converte em chôro o doce canto.
E afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto,
Que não se muda ja como sohia.

LVIII.
Se as penas com que Amor tão mal me trata
Permittirem que eu tanto viva dellas,
Que veja escuro o lume das estrellas,
Em cuja vista o meu se accende e mata;
E se o tempo, que tudo desbarata,
Seccar as frescas rosas, sem colhellas,
Deixando a linda côr das tranças bellas
Mudada de ouro fino em fina prata;
Tambem, Senhora, então vereis mudado
O pensamento e a aspereza vossa,
Quando não sirva ja sua mudança.
Ver-vos-heis suspirar por o passado,
Em tempo quando executar-se possa
No vosso arrepender minha vingança.

LIX.
Quem jaz no grão sepulchro, que descreve
Tão illustres signaes no forte escudo?
Ninguem; que nisso, em fim se torna tudo:
Mas foi quem tudo pôde e tudo teve.
Foi Rei? Fez tudo quanto a Rei se deve:
Poz na guerra e na paz devido estudo.
Mas quão pezado foi ao Mouro rudo,
Tanto lhe seja agora a terra leve.
Alexandro será? Ninguem se engane:
Mais que o adquirir, o sustentar estima.
Será Hadriano grão Senhor do mundo?
Mais observante foi da Lei de cima.
He Numa? Numa não, mas he Joane.
De Portugal Terceiro sem segundo.

LX.
Quem póde livre ser, gentil Senhora,
Vendo-vos com juizo socegado,
Se o menino, que de olhos he privado,
Nas meninas dos vossos olhos mora?
Alli manda, alli reina, alli namora,
Alli vive das gentes venerado;
Que o vivo lume, e o rosto delicado,
Imagens são adonde Amor se adora.
Quem vê que em branca neve nascem rosas
Que crespos fios de ouro vão cercando,
Se por entre esta luz a vista passa,
Raios de ouro verá, que as duvidosas
Almas estão no peito traspassando,
Assi como hum crystal o sol traspassa.

LXI.
Como fizeste, ó Porcia, tal ferida?
Foi voluntaria, ou foi por innocencia?
He que Amor fazer só quiz exp'riencia
Se podia eu soffrer tirar-me a vida.
E com teu proprio sangue te convida
A que faças á morte resistencia?
He que costume faço da paciencia,
Porque o temor morrer me não impida.
Pois porque estás comendo fogo ardente,
Se a ferro te costumas? He que ordena
Amor que morra, e pene juntamente.
E t[~e]es a dor do ferro por pequena?
Si; que a dor costumada não se sente;
E não quero eu a morte sem a pena.

LXII.
De tão divino accento em voz humana,
De elegancias que são tão peregrinas,
Sei bem que minhas obras não são dinas;
Que o rudo engenho meu me desengana.
Porém da vossa penna illustre mana
Licor que vence as águas Caballinas;
E comvosco do Tejo as flores finas
Farão inveja á cópia Mantuana.
E pois, a vós de si não sendo avaras,
As filhas de Mnemosine formosa
Partes dadas vos t[~e]e ao mundo claras;
A minha Musa, e a vossa tão famosa,
Ambas se podem nelle chamar raras,
A vossa de alta, a minha de invejosa.

LXIII.
Debaixo desta pedra está metido,
Das sanguinosas armas descansado,
O Capitão illustre e assinalado
Dom Fernando de Castro esclarecido.
Este por todo o Oriente tão temido,
Este da propria inveja tão cantado,
Este, em fim, raio de Mavorte irado,
Aqui está agora em terra convertido.
Alegra-te, ó guerreira Lusitania,
Por est'outro Viriato que criaste,
E chora a perda sua eternamente.
Exemplo toma nisto de Dardania;
Que se a Roma com elle anniquilaste,
Nem por isso Carthago está contente.

LXIV.
Que vençais no Oriente tantos Reis,
Que de novo nos deis da India o Estado,
Que escureçais a fama que hão ganhado
Aquelles, que a ganhárão de infieis;
Que vencidas tenhais da morte as leis,
E que vencesseis tudo, em fim, armado,
Mais he vencer na patria, desarmado,
Os monstros e as Chimeras que venceis.
Sôbre vencerdes, pois, tanto inimigo,
E por armas fazer que sem segundo
No mundo o vosso nome ouvido seja;
O que vos dá mais fama inda no mundo,
He vencerdes, Senhor, no Reino amigo,
Tantas ingratidões, tão grande inveja.

LXV.
Vossos olhos, Senhora, que competem
Com o sol em belleza e claridade,
Enchem os meus de tal suavidade,
Que em lagrimas de vê-los se derretem.
Meus sentidos prostrados se submetem
Assi cegos a tanta magestade;
E da triste prisão, da escuridade,
Cheios de medo, por fugir, remetem.
Porém se então me vêdes por acêrto,
Esse aspero desprêzo com que olhais
Me torna a animar a alma enfraquecida.
Oh gentil cura! Oh estranho desconcêrto!
Que dareis co'hum favor que vós não dais,
Quando com hum desprêzo me dais vida?

LXVI.
Formosura do Ceo a nós descida,
Que nenhum coração deixas isento,
Satisfazendo a todo pensamento,
Sem que sejas de algum bem entendida;
Qual lingoa póde haver tão atrevida,
Que tenha de louvar-te atrevimento,
Pois a parte melhor do entendimento,
No menos que em ti ha se vê perdida?
Se em teu valor contemplo a menor parte,
Vendo que abre na terra hum paraiso,
Logo o engenho me falta, o esprito míngoa.
Mas o que mais me impede inda louvar-te,
He que quando te vejo perco a lingoa,
E quando não te vejo perco o siso.

LXVII.
Pois meus olhos não cansão de chorar
Tristezas não cansadas de cansar-me;
Pois não se abranda o fogo em que abrazar-me
Pôde quem eu jamais pude abrandar;
Não canse o cego Amor de me guiar
Onde nunca de lá possa tornar-me;
Nem deixe o mundo todo de escutar-me,
Em quanto a fraca voz me não deixar.
E se em montes, se em prados, e se em valles
Piedade mora alguma, algum amor
Em feras, plantas, aves, pedras, agoas;
Oução a longa historia de meus males,
E curem sua dor com minha dor;
Que grandes mágoas podem curar mágoas.

LXVIII.
Dai-me h[~u]a lei, Senhora, de querer-vos,
Porque a guarde sobpena de enojar-vos;
Pois a fé que me obriga a tanto amar-vos
Fara que fique em lei de obedecer-vos.
Tudo me defendei, senão só ver-vos
E dentro na minha alma contemplar-vos;
Que se assi não chegar a contentar-vos,
Ao menos nunca chegue a aborrecer-vos.
E se essa condição cruel e esquiva
Que me deis lei de vida não consente,
Dai-ma, Senhora, ja, seja de morte.
Se nem essa me dais, he bem que viva,
Sem saber como vivo, tristemente;
Mas contente estarei com minha sorte.

LXIX.
Ferido sem ter cura perecia
O forte e duro Télepho temido
Por aquelle que na agua foi metido,
E a quem ferro nenhum cortar podia.
Quando a Apollineo Oraculo pedia
Conselho para ser restituido,
Respondeo-lhe, tornasse a ser ferido
Por quem o ja ferira, e sararia.
Assi, Senhora, quer minha ventura;
Que ferido de ver-vos claramente,
Com tornar-vos a ver Amor me cura.
Mas he tão doce vossa formosura,
Que fico como o hydropico doente,
Que bebendo lhe cresce mór seccura.

LXX.
Na metade do ceo subido ardia
O claro, almo Pastor, quando deixavão
O verde pasto as cabras, e buscavão
A frescura suave da agua fria.
Com a folha das árvores, sombria,
Do raio ardente as aves se amparavão:
O módulo cantar, de que cessavão,
Só nas roucas cigarras se sentia.
Quando Liso pastor n'hum campo verde
Natercia, crua Nympha, só buscava
Com mil suspiros tristes que derrama.
Porque te vás de quem por ti se perde,
Para quem pouco te ama? (suspirava)
E o eco lhe responde: Pouco te ama.

LXXI.
Ja a roxa e branca Aurora destoucava
Os seus cabellos de ouro delicados,
E das flores os campos esmaltados
Com crystallino orvalho borrifava;
Quando o formoso gado se espalhava
De Sylvio e de Laurente por os prados;
Pastores ambos, e ambos apartados,
De quem o mesmo amor não se apartava.
Com verdadeiras lagrimas Laurente,
Não sei, (dizia) ó Nympha delicada,
Porque não morre ja quem vive ausente;
Pois a vida sem ti não presta nada.
Responde Sylvio: Amor não o consente:
Que offende as esperanças da tornada.

LXXII.
Quando de minhas mágoas a comprida
Maginação os olhos me adormece,
Em sonhos aquella alma me apparece,
Que para mi foi sonho nesta vida.
Lá n'huma soidade, onde estendida
A vista por o campo desfallece,
Corro apoz ella; e ella então parece
Que mais de mi se alonga, compellida.
Brado: Não me fujais, sombra benina.
Ella (os olhos em mi co'hum brando pejo,
Como quem diz, que ja não póde ser)
Torna a fugir-me: torno a bradar: _Dina_...
E antes que diga _mene_, acórdo, e vejo
Que nem hum breve engano posso ter.

LXXIII.
Suspiros inflammados que cantais
A tristeza com que eu vivi tão ledo,
Eu morro e não vos levo, porque hei medo
Que ao passar do Letheio vos percais.
Escriptos para sempre ja ficais
Onde vos mostrarão todos co'o dedo,
Como exemplo de males; e eu concedo
Que para aviso de outros estejais.
Em quem, pois, virdes largas esperanças
De Amor e da Fortuna, (cujos danos
Alguns terão por bem-aventuranças)
Dizei-lhe, que os servistes muitos anos,
E que em Fortuna tudo são mudanças,
E que em Amor não ha senão enganos.

LXXIV.
Aquella fera humana que enriquece
A sua presunçosa tyrannia
Destas minhas entranhas, onde cria
Amor hum mal, que falta quando crece;
Se nella o Ceo mostrou (como parece)
Quanto mostrar ao mundo pretendia,
Porque de minha vida se injuria?
Porque de minha morte se ennobrece?
Ora, em fim, sublimai vossa victoria,
Senhora, com vencer-me e captivar-me:
Fazei della no mundo larga historia.
Pois, por mais que vos veja atormentar-me,
Ja me fico logrando desta gloria
De ver que tendes tanta de matar-me.

LXXV.
Ditoso seja aquelle que somente
Se queixa de amorosas esquivanças;
Pois por ellas não perde as esperanças
De poder n'algum tempo ser contente.
Ditoso seja quem estando ausente
Não sente mais que a pena das lembranças;
Porqu'inda que se tema de mudanças,
Menos se teme a dor quando se sente.
Ditoso seja, em fim, qualquer estado,
Onde enganos, desprezos e isenção
Trazem hum coração atormentado.
Mas triste quem se sente magoado
De erros em que não póde haver perdão
Sem ficar na alma a mágoa do peccado.

LXXVI.
Quem fosse acompanhando juntamente
Por esses verdes campos a avezinha,
Que despois de perder hum bem que tinha,
Não sabe mais que cousa he ser contente!
E quem fosse apartando-se da gente.
Ella por companheira e por vizinha,
Me ajudasse a chorar a pena minha,
E eu a ella tambem a que ella sente!
Ditosa ave! que ao menos, se a natura
A seu primeiro bem não dá segundo,
Dá-lhe o ser triste a seu contentamento.
Mas triste quem de longe quiz ventura
Que para respirar lhe falte o vento,
E para tudo, em fim, lhe falte o mundo!

LXXVII.
O culto divinal se celebrava
No templo donde toda criatura
Louva o Feitor divino, que a feitura
Com seu sagrado sangue restaurava.
Amor alli, que o tempo me aguardava
Onde a vontade tinha mais segura,
Com huma rara e angelica figura
A vista da razão me salteava.
Eu crendo que o lugar me defendia
De seu livre costume, não sabendo
Que nenhum confiado lhe fugia;
Deixei-me captivar: mas hoje vendo,
Senhora, que por vosso me queria,
Do tempo que fui livre me arrependo.

LXXVIII.
Leda serenidade deleitosa,
Que representa em terra hum paraiso;
Entre rubis e perlas doce riso,
Debaixo de ouro e neve côr de rosa;
Presença moderada e graciosa,
Onde ensinando estão despejo e siso
Que se póde por arte e por aviso,
Como por natureza, ser formosa;
Falla de que ou ja vida, ou morte pende.
Rara e suave, em fim, Senhora, vossa,
Repouso na alegria comedido;
Estas as armas são com que me rende
E me captiva Amor; mas não que possa
Despojar-me da gloria de rendido.

LXXIX.
Bem sei, Amor, que he certo o que receio;
Mas tu, porque com isso mais te apuras,
De manhoso mo negas, e mo juras
Nesse teu arco de ouro; e eu te creio.
A mão tenho metida no meu seio,
E não vejo os meus damnos ás escuras:
Porém porfias tanto e me asseguras,
Que me digo que minto, e que me enleio.
Nem somente consinto neste engano,
Mas inda to agradeço, e a mi me nego
Tudo o que vejo e sinto de meu dano.
Oh poderoso mal a que me entrego!
Que no meio do justo desengano
Me possa inda cegar hum moço cego?

LXXX.
Como quando do mar tempestuoso
O marinheiro todo trabalhado,
De hum naufragio cruel sahindo a nado,
Só de ouvir fallar nelle está medroso:
Firme jura que o vê-lo bonançoso
Do seu lar o não tire socegado;
Mas esquecido ja do horror passado,
Delle a fiar se torna cobiçoso:
Assi, Senhora, eu que da tormenta
De vossa vista fujo, por salvar-me,
Jurando de não mais em outra ver-me;
Com a alma que de vós nunca se ausenta,
Me tórno, por cobiça de ganhar-me,
Onde estive tão perto de perder-me.

LXXXI.
Amor he hum fogo que arde sem se ver;
He ferida que doe e não se sente;
He hum contentamento descontente;
He dor que desatina sem doer;
He hum não querer mais que bem querer;
He solitario andar por entre a gente;
He hum não contentar-se de contente;
He cuidar que se ganha em se perder;
He hum estar-se preso por vontade;
He servir a quem vence o vencedor;
He hum ter com quem nos mata lealdade.
Mas como causar póde o seu favor
Nos mortaes corações conformidade,
Sendo a si tão contrário o mesmo Amor?

LXXXII.
Se pena por amar-vos se merece,
Quem della estará livre? quem isento?
E que alma, que razão, que entendimento
No instante em que vos vê não obedece?
Qual mor gloria na vida ja se offrece,
Que a de occupar-se em vós o pensamento?
Não só todo rigor, todo tormento
Com ver-vos não magôa, mas se esquece.
Porém se heis de matar a quem amando,
Ser vosso de amor tanto só pretende,
O mundo matareis, que todo he vosso.
Em mi podeis, Senhora, ir começando,
Pois bem claro se mostra e bem se entende
Amar-vos quanto devo e quanto posso.

LXXXIII.
Que levas, cruel Morte? Hum claro dia.
A que horas o tomaste? Amanhecendo.
E entendes o que levas? Não o entendo.
Pois quem to faz levar? Quem o entendia.
Seu corpo quem o goza? A terra fria.
Como ficou sua luz? Anoitecendo.
Lusitania que diz? Fica dizendo...
Que diz? Não mereci a grã Maria.
Mataste a quem a vio? Ja morto estava.
Que discorre o Amor? Fallar não ousa.
E quem o faz callar? Minha vontade.
Na Corte que ficou? Saudade brava.
Que fica lá que ver? Nenhuma cousa.
Que gloria lhe faltou? Esta beldade.

LXXXIV.
Ondados fios de ouro reluzente,
Que agora da mão bella recolhidos,
Agora sôbre as rosas esparzidos
Fazeis que a sua graça se accrescente;
Olhos, que vos moveis tão docemente,
Em mil divinos raios incendidos,
Se de cá me levais a alma e sentidos,
Que fôra, se eu de vós não fôra ausente?
Honesto riso, que entre a mór fineza
De perlas e coraes nasce e apparece;
Oh quem seus doces ecos ja lhe ouvisse!
Se imaginando só tanta belleza,
De si com nova gloria a alma se esquece,
Que será quando a vir? Ah quem a visse!

LXXXV.
Foi ja n'hum tempo doce cousa amar,
Em quanto me enganou huma esperança:
O coração com esta confiança
Todo se desfazia em desejar.
Oh vão, caduco e debil esperar!
Como, em fim, desengana huma mudança!
Que quanto he mor a bem-aventurança,
Tanto menos se crê que ha de durar.
Quem ja se vio com gostos prosperado,
Vendo-se brevemente em pena tanta,
Razão t[~e]e de viver bem magoado.
Mas quem ja t[~e]e o mundo exprimentado,
Não o magôa a pena, nem o espanta;
Que mal se estranhára o costumado.

LXXXVI.
Dos antigos Illustres, que deixárão
Hum nome digno de immortal memoria,
Ficou por luz do tempo a larga historia
Dos feitos em que mais se avantajárão.
Se com suas acções se cotejárão
Mil vossas, cada huma tão notoria,
Vencêra a menor dellas a mor gloria
Que elles em tantos annos alcançárão.
A gloria sua foi: ninguem lha tome:
Seguindo cada qual varios caminhos
Estatuas mereceo no heroico Templo.
Vós honra Portugueza e dos Coutinhos,
Clarissimo Dom João, com melhor nome
A vós encheis de gloria, a nós de exemplo.

LXXXVII.
Conversação doméstica affeiçoa,
Ora em fórma de limpa e sãa vontade,
Ora de huma amorosa piedade,
Sem olhar qualidade de pessoa.
Se despois, por ventura, vos magôa
Com desamor e pouca lealdade,
Logo vos faz mentira da verdade
O brando Amor, que tudo, em fim, perdoa,
Não são isto que fallo conjecturas
Que o pensamento julga na apparencia,
Por fazer delicadas escripturas.
Metida tenho a mão na consciencia,
E não fallo senão verdades puras
Que me ensinou a viva experiencia.

LXXXVIII.
Esfôrço grande, igual ao pensamento,
Pensamentos em obras divulgados,
E não em peito timido encerrados,
E desfeitos despois em chuva e vento;
Ánimo da cobiça baixa isento,
Digno por isto só de altos estados,
Fero açoute dos nunca bem domados
Povos do Malabar sanguinolento;
Gentileza de membros corporaes
Ornados de pudica continencia,
Obra por certo da celeste altura:
Estas virtudes raras e outras mais,
Dignas todas da Homerica eloquencia,
Jazem debaixo desta sepultura.

LXXXIX.
No mundo quiz o Tempo que se achasse
O bem que por acêrto, ou sorte vinha;
E por exprimentar que dita tinha,
Quiz que a Fortuna em mi se exprimentasse.
Mas porque o meu destino me mostrasse
Que nem ter esperanças me convinha,
Nunca nesta tão longa vida minha
Cousa me deixou ver que desejasse.
Mudando andei costume, terra, estado,
Por ver se se mudava a sorte dura;
A vida puz nas mãos de hum leve lenho.
Mas, segundo o que o Ceo me t[~e]e mostrado,
Ja sei que deste meu buscar ventura
Achado tenho ja que não a tenho.

XC.
A perfeição, a graça, o doce geito,
A Primavera cheia de frescura,
Que sempre em vós florece; a que a ventura,
E a razão entregárão este peito;
Aquelle crystallino e puro aspeito,
Que em si comprehende toda a formosura;
O resplandor dos olhos e a brandura,
Donde Amor a ninguem quiz ter respeito;
S'isto que em vós se vê, ver desejais,
Como digno de ver-se claramente,
Por muito que de Amor vos isentais;
Traduzido o vereis tão fielmente
No meio deste espirito onde estais,
Que vendo-vos sintais o que elle sente.

XCI.
Vós, que de olhos suaves e serenos,
Com justa causa a vida captivais,
E que os outros cuidados condemnais
Por indevidos, baixos e pequenos;
Se de Amor os domesticos venenos
Nunca provastes, quero que sintais
Que he tanto mais o amor despois que amais,
Quanto são mais as causas de ser menos.
E não presuma alguem que algum defeito,
Quando na cousa amada se apresenta,
Possa diminuir o amor perfeito:
Antes o dobra mais; e se atormenta,
Pouco a pouco desculpa o brando peito;
Que Amor com seus contrarios se accrescenta.

XCII.
Que poderei do mundo ja querer,
Pois no mesmo em que puz tamanho amor,
Não vi senão desgôsto e desfavor,
E morte, em fim; que mais não póde ser?
Pois me não farta a vida de viver,
Pois ja sei que não mata grande dor,
Se houver cousa que mágoa dê maior,
Eu a verei; que tudo posso ver.
A Morte, a meu pezar, me assegurou
De quanto mal me vinha: ja perdi
O que a perder o medo me ensinou.
Na vida desamor somente vi,
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