Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II - 19

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Porque do som dos proprios pés s'espantão.
Sahe o coelho, e lebre sahe manhosa
Da frondosa
Breve mata,
Donde a cata
Cão ligeiro.
Mas primeiro
Qu'ella ao contrário férvido s'entregue,
Ás vezes deixa em branco a quem a segue.
Luzem as brancas e purpúreas flores,
Com que o brando Favonio a terra esmalta;
O formoso jacintho alli não falta,
Lembrado dos antiguos seus amores.
Inda na flor se mostrão esculpidos
Os gemidos:
Aqui Flora
Sempre mora;
E com rosas
Mais formosas,
Com lirios e boninas mil fragrantes,
Alegra os seus amores circumstantes.
Aqui Narciso em líquido crystal
Se namora de sua formosura:
Nelle as pendentes ramas da'spessura
Debuxando-se estão ao natural.
Adonis, com que a linda Cytherêa
Se recrêa,
Bem florido,
Convertido
Na bonina,
Qu'Erycina
Por imagem deixou de qual sería
Aquelle por quem ella se perdia.
Lugar alegre, fresco, accommodado
Para se deleitar qualquer amante,
A quem com sua ponta penetrante
O cego Amor tivesse derribado;
E para memorar ao som das ágoas
Suas mágoas
Amorosas,
As cheirosas
Flores vendo,
Escolhendo,
Para fazer preciosas mil capellas,
E dar por grão penhor a Nymphas bellas.
Eu dellas, por penhor de meus amores,
Huma capella á minha deosa dava:
Que lhe queria bem, bem lhe mostrava
O bem-mequeres entre tantas flores:
Porém, como se fôra mal-mequeres,
Os poderes
Da crueldade
Na beldade
Bem mostrou;
Desprezou
A dadiva de flores; não por minha,
Mas porque muitas mais ella em si tinha.

CANÇÃO XVII.
A vida ja passei assaz contente,
Livre tinha a vontade e o pensamento,
Sem receios d'Amor, nem da Ventura:
Mas isto foi hum bem d'hum só momento;
E á minha custa vejo claramente,
Que a vida não dá algum de muita dura.
No tempo em qu'eu vivia mais segura
D'Amor e seu cuidado,
Por me ver n'hum estado
Em qu'eu cuidei que Amor não tinha parte;
Não sinto por qual arte
Me vejo entregue a elle de tal sorte,
Qu'em quanto tarda a morte,
A esperança do bem tenho perdida.
Ai quão devagar passa a triste vida!
Quantas vezes eu triste aqui ouvia
O meu Felicio, e outros mil pastores,
Queixar-se em vão de minha crueldade!
E mais surda então eu a seus clamores,
Que aspide surda, ou surda penedia,
Julgava os seus amores por vaidade.
Agora em pago disto a liberdade,
A vontade e o desejo
De todo entregue vejo
A quem, inda que brade, não responde;
Pois vejo que s'esconde
Ja debaixo da terra este qu'eu chamo,
Que he aquelle a quem amo,
Aquelle a quem agora estou rendida.
Ai quão devagar passa a triste vida!
Que gloria, Amor cruel, com meu tormento,
Que louvor a teu nome accrescentaste?
Ou que te constrangeo a tal crueza,
Que com tal pressa esta alma sujeitaste
A hum mal, onde não basta o soffrimento?
Mas se, Amor, es cruel de natureza,
Bastava usar comigo da aspereza
Que usas com outra gente:
Mas tu como somente
De ver-me estar morrendo te contentas,
Quando mais me atormentas,
Então desejas mais d'atormentar-me;
E não queres matar-me
Porque este mal de mi se não despida.
Ai quão devagar passa a triste vida!
Onde cousa acharei que alegre veja?
A quem chamarei ja que me responda?
Quem me dará remedio á dor presente?
Não ha bem, que de mi ja não s'esconda;
Nem algum verei ja, que a mi o seja,
Porqu'está quem o foi da vida ausente.
Eu alguma não vi tão descontente,
Que Amor tão mal tratasse,
Qu'inda não esperasse
A seus males remedio achar vivendo:
Eu só vivo soffrendo
Hum mal tão grave e tão desesperado,
Que tanto he mais pezado,
Quanto a vida com elle he mais comprida.
Ai quão devagar passa a triste vida!
Suaves ágoas, dura penedia,
Arvoredo sombrio, verde prado,
Donde eu ja tive livre o pensamento;
Frescas flores; e vós, meu manso gado,
Que ja m'acompanhastes na alegria,
Não me deixeis agora no tormento.
Se do mal meu vos toca sentimento,
Dae-me par'elle ajuda,
Qu'eu tenho a lingua muda,
O alento me vai ja desamparando.
Mas quando (ai triste!) quando
D'hum dia hum'hora me virá contente,
Qu'eu te veja presente,
Pastor meu, e comtigo est'alma unida?
Ai quão devagar passa a triste vida!
Mas não sei se he sobrado atrevimento
Querer-se est'alma minha unir comtigo,
Pois della foste ja tão desprezado.
Amor me livrará deste perigo;
Que despois que lá vires meu tormento,
Creio que t'haverás por bem vingado.
E s'inda em ti durar o amor passado,
E aquella fé tão pura,
Eu estou bem segura
Que has lá de receber-me brandamente.
Aprenda em mi a gente
Quão cara huma isenção com Amor custa:
A pena dá bem justa
A hum'alma que lhe he pouco agradecida.
Ai quão devagar passa a triste vida!


ODES.

ODE I.
Detem hum pouco, Musa, o largo pranto
Que Amor te abre do peito;
E vestida de rico e ledo manto,
Demos honra e respeito
Áquella, cujo objeito
Todo o mundo allumia,
Trocando a noite escura em claro dia.
O Delia, que a pezar da nevoa grossa,
Co'os teus raios de prata
A noite escura fazes que não possa
Encontrar o que trata,
E o que n'alma retrata
Amor por teu divino
Raio, por qu'endoudeço e desatino:
Tu, que de formosissimas estrellas
Corôas e rodeias
Tua candida fronte e faces bellas;
E os campos formoseias
Co'as rosas que semeias,
Co'as boninas que gera
O teu celeste humor na primavera:
Para ti guarda o sítio fresco d'Ilio
Suas sombras formosas;
Para ti o Erymantho e o lindo Pylio
As mais purpureas rosas;
E as drogas mais cheirosas
Desse nosso Oriente
Guarda a felice Arabia mais contente.
De qual panthera, ou tigre, ou leopardo
As asperas entranhas
Não temêrão teu fero e agudo dardo,
Quando por as montanhas
Mais remotas e estranhas
Ligeira atravessavas,
Tão formosa que a Amor d'amor matavas?
Pois, Delia, do teu ceo vendo estás quantos
Furtos de purídades,
Suspiros, mágoas, ais, musicas, prantos,
As conformes vontades,
Humas por saudades,
Outras por crus indicios
Fazem das proprias vidas sacrificios:
Ja veio Endymião por estes montes
O ceo, suspenso, olhando,
E teu nome, co'os olhos feitos fontes,
Em vão sempre chamando,
Pedindo (suspirando)
Mercês á tua beldade,
Sem que ache em ti hum'hora piedade.
Por ti feito pastor de branco gado
Nas selvas solitarias,
Só de seu pensamento acompanhado,
Conversa as alimarias,
De todo Amor contrárias,
Mas não como ti duras,
Onde lamenta e chora desventuras.
Das castas virgens sempre os altos gritos,
Clara Lucina, ouviste,
Renovando-lhe as fôrças e os espritos:
Mas os daquelle triste,
Ja nunca consentiste
Ouvi-los hum momento,
Para ser menos grave o seu tormento.
Não fujas, não de mi! Ah não t'escondas
D'hum tão fiel amante!
Ólha como suspirão estas ondas,
E como o velho Atlante
O seu collo arrogante
Move piedosamente,
Ouvindo a minha voz fraca e doente.
Triste de mi! Qu'alcanço por queixar-me,
Pois minhas queixas digo
A quem ja ergueo a mão para matar-me,
Como a cruel imigo?
Mas eu meu fado sigo,
Que a isto me destina,
E qu'isto só pretende e só m'ensina.
Oh quanto ha ja que o Ceo me desengana!
Mas eu sempre porfio
Cada vez mais na minha teima insana.
Tendo livre alvedrio,
Não fujo o desvario;
Porque este em que me vejo
Engana co'a esperança o meu desejo.
Oh quanto melhor fôra que dormissem
Hum somno perennal
Estes meus olhos tristes, e não vissem
A causa de seu mal
Fugir, a hum tempo tal,
Mais que d'antes proterva,
Mais cruel que ursa, mais fugaz que cerva!
Ai de mi, que me abrazo em fogo vivo,
Com mil mortes ao lado;
E quando morro mais, então mais vivo!
Porque t[~e]e ordenado
Meu infelice fado,
Que quando me convida
A morte, para a morte tenha vida.
Secreta noite amiga, a que obedeço,
Estas rosas (por quanto
Meus queixumes me ouviste) te offereço,
E este fresco amaranto,
Humido ja do pranto,
E lagrimas da esposa
Do cioso Titão, branca e formosa.

ODE II.
Tão suave, tão fresca e tão formosa,
Nunca no ceo sahio
A Aurora no princípio do verão,
Ás flores dando a graça costumada,
Como a formosa mansa fera, quando
Hum pensamento vivo m'inspirou,
Por quem me desconheço.
Bonina pudibunda, ou fresca rosa,
Nunca no campo abrio,
Quando os raios do sol no Touro estão,
De côres differentes esmaltada,
Como esta flor, que os olhos inclinando,
O soffrimento triste costumou
Á pena que padeço.
Ligeira, bella Nympha, linda, irosa,
Não creio que seguio
Satyro, cujo brando coração
D'amores commovesse fera irada,
Qu'assi fosse fugindo e desprezando
Este tormento, donde Amor mostrou
Tão próspero comêço.
Nunca, emfim, cousa bella e rigorosa
Natura produzio,
Qu'iguale aquella fórma e condição,
Que as dores em que vivo estima em nada.
Mas com tão doce gesto, irado e brando,
O sentimento, e a vida m'enlevou,
Que a pena lhe agradeço.
Bem cuidei d'exaltar em verso, ou prosa,
Aquillo que a alma vio
Entre a doce dureza e mansidão,
Primores de belleza desusada;
Mas quando quiz voar ao ceo cantando,
Entendimento e engenho me cegou
Luz de tão alto preço.
Naquella alta pureza deleitosa
Que ao mundo s'encobrio;
E nos olhos Angelicos, que são
Senhores desta vida destinada;
E naquelles cabellos, que soltando
Ao manso vento, a vida me enredou,
M'alegro e m'entristeço.
Saudade e suspeita perigosa,
Que Amor constituio
Por castigo daquelles que se vão;
Temores, penas d'alma desprezada,
Fera esquivança, que me vai tirando
O mantimento que me sustentou,
A tudo me offereço.
Amor isento a huns olhos m'entregou,
Nos quaes a Deos conheço.

ODE III.
Se de meu pensamento
Tanta razão tivera d'alegrar-me,
Quanto de meu tormento
A tenho de queixar-me,
Puderas, triste lyra, consolar-me.
E minha voz cansada,
Qu'em outro tempo foi alegre e pura,
Não fôra assi tornada,
Com tanta desventura,
Tão rouca, tão pezada, nem tão dura.
A ser como sohia,
Pudera levantar vossos louvores;
Vós, minha Hierarchia,
Ouvíreis meus amores,
Qu'exemplo são ao mundo ja de dores.
Alegres meus cuidados,
Contentes dias, horas e momentos,
Oh quanto bem lembrados
Sois de meus pensamentos,
Reinando agora em mi duros tormentos!
Ai gostos fugitivos!
Ai gloria ja acabada e consumida!
Ai males tão esquivos!
Qual me deixais a vida!
Quão cheia de pezar! quão destruida!
Mas como não he morta
Ja esta vida? como tanto dura?
Como não abre a porta
A tanta desventura,
Qu'em vão com seu poder o tempo cura?
Mas para padecê-la
S'esforça o meu sogeito e convalece;
Que só para dizê-la,
A fôrça me fallece,
E de todo me cansa e m'enfraquece.
Oh bem affortunado
Tu, que alcançaste com lyra toante,
Orphêo, ser escutado
Do fero Rhadamante,
E co'os teus olhos ver a doce amante!
As infernaes figuras
Moveste com teu canto docemente;
As tres Furias escuras,
Implacaveis á gente,
Applacadas se vírão derepente.
Ficou como pasmado
Todo o Estygio Reino co'o teu canto;
E quasi descansado
De seu eterno pranto,
Cessou de alçar Sisypho o grave canto.
A ordem se mudava
Das penas que regendo está Plutão;
Em descanso se achava
A roda de Ixião,
E em glória quantas penas alli são.
De todo ja admirada
A Rainha infernal e commovida,
Te deo a desejada
Esposa, que perdida
De tantos dias ja tivera a vida.
Pois minha desventura,
Como ja não abranda hum'alma humana,
Qu'he contra mi mais dura,
E inda mais deshumana,
Que o furor de Callirrhoë profana?
Oh crua, esquiva e fera,
Duro peito, cruel e empedernido,
D'alguma tigre fera
Lá na Hircania nascido,
Ou d'entre as duras rochas produzido!
Mas que digo, coitado!
E de quem fio em vão minhas querellas?
Só vós, ó do salgado,
Humido Reino bellas
E claras Nymphas, condoei-vos dellas.
E d'ouro guarnecidas
Vossas louras cabeças levantando
Sôbre as ondas erguidas,
As tranças gottejando,
Sahindo todas, vinde a ver qual ando.
Sahi em companhia,
E cantando e colhendo as lindas flores;
Vereis minha agonia,
Ouvireis meus amores,
E sentireis meus prantos, meus clamores.
Vereis o mais perdido
E mais infeliz corpo qu'he gerado;
Qu'está ja convertido
Em chôro, e neste estado
Somente vive nelle o seu cuidado.

ODE IV.
Formosa fera humana,
Em cujo coração soberbo e rudo
A fôrça soberana
Do vingativo Amor, que vence tudo,
As pontas amoladas
De quantas settas tinha t[~e]e quebradas:
Amada Circe minha,
Postoque minha não, com tudo amada;
A quem hum bem que tinha
Da doce liberdade desejada,
Pouco a pouco entreguei,
E se mais tenho, mais entregarei;
Pois natureza irosa
Da razão te deo partes tão contrárias,
Que sendo tão formosa,
Folgues de te queimar em flammas várias,
Sem arder em nenh[~u]a
Mais qu'em quanto allumia o mundo a l[~u]a;
Pois triumphando vás
Com diversos despojos de perdidos,
Que tu privando estás
De razão, de juizo e de sentidos,
E quasi a todos dando
Aquelle bem que a todos vás negando;
Pois tanto te contenta
Ver o nocturno moço, em ferro envolto,
Debaixo da tormenta
De Jupiter em ágoa e vento sôlto,
Á porta, que impedido
Lhe t[~e]e seu bem, de mágoa adormecido;
Porque não tens receio
Que tantas insolencias e esquivanças
A deosa, que põe freio
A soberbas e doudas esperanças,
Castigue com rigor,
E contra ti se accenda o fero Amor?
Ólha a formosa Flora;
De despojos de mil suspiros rica,
Por o Capitão chora,
Que lá em Thessalia, emfim, vencido fica,
E foi sublime tanto,
Que altares lhe deo Roma e nome santo.
Ólha em Lesbos aquella
No seu salteiro insigne conhecida;
Dos muitos que por ella
Se perdêrão, perdeo a chara vida
Na rocha que se infama
Com ser remedio extremo de quem ama.
Por o moço escolhido,
Onde mais se mostrárão as tres Graças;
Que Venus escondido
Para si teve hum tempo entre as alfaças,
Pagou co'a morte fria
A má vida que a muitos ja daria.
E, vendo-se deixada
Daquelle por quem tantos ja deixára,
Se foi, desesperada,
Precipitar da infame rocha chara:
Que o mal de mal querida
Sabe que vida lhe he perder a vida.
Tomae-me, bravos mares;
Vós me tomae, pois outrem me deixou.
Disse: e dos altos ares
Pendendo, com furor s'arremessou.
Acude tu, suave,
Acude, poderosa e divina ave.
Toma-a nas azas tuas,
Menino pio, illesa e sem perigo,
Antes que nestas cruas
Ágoas cahindo apague o fogo antigo.
He digno amor tamanho
De viver, e ser tido por estranho.
Não: qu'he razão que seja
Para as lobas isentas, que amor vendem,
Exemplo onde se veja
Que tambem ficão presas as que prendem.
Assi o deo por sentença
Nemesis, que Amor quiz que tudo vença.

ODE V.
Nunca manhãa suave
Estendendo seus raios por o mundo,
Despois de noite grave,
Tempestuosa, negra, em mar profundo
Alegrou tanto nao, que ja no fundo
Se vio em mares grossos,
Como a luz clara a mi dos olhos vossos.
Aquella formosura,
Que só no virar delles resplandece;
E com que a sombra escura
Clara se faz, e o campo reverdece;
Quando o meu pensamento se entristece,
Ella e sua viveza
Me desfazem a nuvem da tristeza.
O meu peito, onde estais,
He para tanto bem pequeno vaso;
Quando acaso virais
Os olhos, que de mi não fazem caso,
Todo, gentil Senhora, então me abraso
Na luz que me consume,
Bem como a borboleta faz no lume.
Se mil almas tivera
Que a tão formosos olhos entregára,
Todas quantas pudera
Por as pestanas delles pendurára;
E, enlevadas na vista pura e clara,
(Postoque disso indinas)
Se andárão sempre vendo nas meninas.
E vós, que descuidada
Agora vivereis de taes querellas,
D'almas minhas cercada,
Não pudesseis tirar os olhos dellas;
Não póde ser que, vendo a vossa entr'ellas
A dor que lhe mostrassem,
Tantas huma alma só não abrandassem.
Mas, pois o peito ardente
Huma só póde ter, formosa Dama,
Basta que esta somente,
Como se fossem mil e mil, vos ama,
Para que a dor de sua ardente flama
Comvosco tanto possa,
Que não queirais ver cinza hum'alma vossa.

ODE VI.
Póde hum desejo immenso
Arder no peito tanto,
Que á branda e á viva alma o fogo intenso
Lhe gaste as nodoas do terreno manto;
E purifique em tanta alteza o esprito
Com olhos immortais,
Que faz que leia mais do que vê'scrito.
Que a flamma, que se accende
Alto, tanto allumia,
Que se o nobre desejo ao bem s'estende
Que nunca vio, o sente claro dia;
E lá vê do que busca o natural,
A graça, a viva côr,
N'outra especie melhor que a corporal.
Pois vós, ó claro exemplo
De viva formosura,
Que de tão longe cá noto e contemplo
N'alma, que este desejo sobe e apura;
Não creais que não vejo aquella imagem
Que as gentes nunca vem,
Se de humanos não tem muita vantagem.
Que se os olhos ausentes
Não vem a compassada
Proporção, que das côres excellentes
De pureza e vergonha he variada;
Da qual a Poesia, que cantou
Atéqui só pinturas
Com mortaes formosuras igualou;
Se não vem os cabellos
Que o vulgo chama de ouro;
E se não vem os claros olhos bellos,
De quem cantão que são de sol thesouro;
E se não vem do rosto as excellencias,
A quem dirão que deve
Rosa, e crystal, e neve as apparencias;
Vem logo a graça pura,
A luz alta e severa,
Que he raio da divina formosura,
Que n'alma imprime e fóra reverbera;
Assi como crystal do sol ferido,
Que por fóra derrama
A recebida flamma esclarecido.
E vem a gravidade,
Com a viva alegria
Que misturada t[~e]e de qualidade,
Que huma da outra nunca se desvia;
Nem deixa de ser huma receada
Por leda e por suave,
Nem outra, por ser grave, muito amada.
E vem do honesto siso
Os altos resplandores
Temperados co'o doce e ledo riso,
A cujo abrir abrem no campo as flores;
As palavras discretas e suaves,
Das quaes o movimento
Fara deter o vento e as altas aves:
Dos olhos o virar
Que torna tudo raso,
Do qual não sabe o engenho divisar
Se foi por artificio, ou feito acaso;
Da presença os meneios e a postura,
O andar e o mover-se,
Donde póde aprender-se formosura.
Aquelle não sei que,
Que aspira não sei como,
Qu'invisivel sahindo, a vista o vê,
Mas para o comprender não lhe acha tomo;
E que toda a Toscana Poesia,
Que mais Phebo restaura,
Em Beatriz, nem Laura nunca via:
Em vós a nossa idade,
Senhora, o póde ver,
S'engenho, se sciencia e habilidade,
Iguaes á vossa formosura der,
Qual a vi no meu longo apartamento,
Qual em ausencia a vejo.
Taes azas dá o desejo ao pensamento!
Pois se o desejo afina
Hum'alma accesa tanto,
Que por vós use as partes de divina;
Por vós levantarei não visto canto,
Que o Betis me ouça, e o Tibre me levante:
Que o nosso claro Tejo,
Envolto hum pouco o vejo e dissonante.
O campo não o esmaltão
Flores, mas só abrolhos
O fazem feio; e cuido que lhe faltão
Ouvidos para mi, para vós olhos.
Mas faça o que quizer o vil costume;
Que o sol, qu'em vós está,
Na escuridão dara mais claro lume.

ODE VII.
A quem darão de Pindo as moradoras,
Tão doctas como bellas,
Florecentes capellas
De triumphante louro, ou myrto verde;
Da gloriosa palma, que não perde
A presumpção sublime,
Nem por fôrça de pêzo algum se opprime?
A quem trarão nas faldas delicadas,
Rosas a roxa Cloris,
Conchas a branca Doris;
Estas, flores do mar; da terra aquellas,
Argenteas, ruivas; brancas e amarellas,
Com danças e corêas
De formosas Nereidas e Napêas?
A quem farão os Hymnos, Odes, Cantos,
Em Thebas Amphion,
Em Lesbos Arion,
Senão a vós, por quem restituida
Se vê da Poesia ja perdida
A honra e gloria igual,
Senhor Dom Manoel de Portugal?
Imitando os espritos ja passados,
Gentis, altos, Reais,
Honra benigna dais
A meu tão baixo, quão zeloso engenho.
Por Mecenas a vós celebro e tenho;
E sacro o nome vosso
Farei, se alguma cousa em verso posso.
O rudo canto meu, que resuscita
As honras sepultadas,
As palmas ja passadas
Dos bellicosos nossos Lusitanos
Para thesouro dos futuros anos,
Comvosco se defende
Da lei Lethêa, á qual tudo se rende.
Na vossa árvore ornada d'honra e glória
Achou tronco excellente
A hera florecente
Para a minha atéqui de baixa estima:
Nelle, para trepar, s'encosta e arrima;
E nella subireis
Tão alto, quanto os ramos estendeis.
Sempre forão engenhos peregrinos
Da Fortuna invejados;
Que quanto levantados
Por hum braço nas azas são da Fama,
Tanto por outro aquella, que os desama,
Co'o pêzo e gravidade
Os opprime da vil necessidade.
Mas altos corações dignos d'Imperio,
Que vencem a Fortuna,
Forão sempre coluna
Da sciencia gentil: Octaviano,
Scipião, Alexandre e Graciano,
Que vemos immortais;
E vós, que o nosso seculo dourais.
Pois, logo, em quanto a cithara sonora
S'estimar por o mundo,
Com som docto e jucundo;
E em quanto produzir o Tejo e o Douro
Peitos de Marte e Phebo crespo e louro,
Tereis glória immortal,
Senhor Dom Manoel de Portugal.

ODE VIII.
Aquelle unico exemplo
De fortaleza heroica e ousadia,
Que mereceo no templo
Da Fama eterna ter perpétuo dia;
O grão filho de Thetis, que dez anos
Flagello foi dos miseros Troianos;
Não menos ensinado
Foi nas hervas e Medica polícia,
Que destro e costumado
No soberbo exercicio da Milicia:
Assi que as mãos que a tantos morte derão,
Tambem a muitos vida dar puderão.
E não se desprezou
Aquelle fero e indomito mancebo
Das Artes qu'ensinou
Para o languido corpo o intonso Phebo;
Que se o temido Heitor matar podia,
Tambem chagas mortaes curar sabía.
Taes Artes aprendeo
Do semiviro Mestre e docto velho,
Onde tanto cresceo
Em virtude, e em sciencia e em conselho,
Que Telepho, por elle vulnerado,
Só delle pôde ser despois curado.
Pois vós, ó excellente
E illustrissimo Conde, do ceo dado
Para fazer presente
D'altos Heroes o seculo passado;
E em quem bem trasladada está a memoria
De vossos ascendentes, a honra e glória:
Postoque o pensamento
Occupado tenhais na guerra infesta,
Ou co'o sanguinolento
Taprobano, ou Achem, que o mar molesta,
Ou co'o Cambaico, occulto imigo nosso,
Que qualquer delles teme o nome vosso;
Favorecei a antiga
Sciencia que ja Achilles estimou;
Olhae que vos obriga
O ver qu'em vosso tempo rebentou
O fructo daquell'Orta onde florecem
Plantas novas, que os doctos não conhecem.
Olhae qu'em vossos anos
Huma Orta produze várias hervas
Nos campos Indianos,
As quaes aquellas doctas e protervas,
Medêa e Circe, nunca conhecêrão,
Postoque a lei da Magica excedêrão.
E vêde carregado
D'annos e traz a vária experiencia
Hum velho, qu'ensinado
Das Gangeticas Musas na sciencia
Podaliria subtil, e arte sylvestre,
Vence ao velho Chiron, d'Achilles mestre.
O qual está pedindo
Vosso favor e amparo ao grão volume,
Qu'impresso á luz sahindo,
Dara da Medicina hum vivo lume;
E descobrir-nos-ha segredos certos,
A todos os Antiguos encobertos.
Assi que não podeis
Negar a que vos pede benigna aura:
Que se muito valeis
Na sanguinosa guerra Turca e Maura,
Ajudae quem ajuda contra a morte;
E sereis semelhante ao Grego forte.

ODE IX.
Fogem as neves frias
Dos altos montes quando reverdecem
As árvores sombrias;
As verdes hervas crecem,
E o prado ameno de mil côres tecem.
Zephyro brando espíra;
Suas settas Amor afia agora;
Progne triste suspira,
E Philomela chora:
O ceo da fresca terra se namora.
Ja a linda Cytherêa
Vem, do côro das Nymphas rodeada;
A branca Pasitêa Despida e delicada,
Com as duas irmãas acompanhada.
Em quanto as officinas
Dos Cyclopas Vulcano está queimando,
Vão colhendo boninas
As Nymphas, e cantando,
A terra co'o ligeiro pé tocando.
Desce do aspero monte
Diana, ja cansada da espessura,
Buscando a clara fonte,
Onde por sorte dura
Perdeo Actêo a natural figura.
Assi se vai passando
A verde Primavera e o sêcco Estio;
O Outono vem entrando;
E logo o Inverno frio,
Que tambem passará por certo fio.
Ir-se-ha embranquecendo
Com a frigida neve o sêcco monte;
E Jupiter chovendo
Turbará a clara fonte:
Temerá o marinheiro a Orionte.
Porque, emfim, tudo passa;
Não sabe o Tempo ter firmeza em nada;
E a nossa vida escassa
Foge tão apressada,
Que quando se começa he acabada.
Que se fez dos Troianos
Heitor temido, Enêas piedoso?
Consumírão-te os anos,
Ó Cresso tão famoso,
Sem te valer teu ouro precioso.
Todo o contentamento
Crias qu'estava em ter thesouro ufano!
Oh falso pensamento!
Que á custa de teu dano
Do sabio Solon crêste o desengano.
O bem que aqui se alcança,
Não dura por passante, nem por forte:
Que a bem-aventurança
Duravel, de outra sorte
Se ha de alcançar na vida para a morte.
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