A Filha do Arcediago - 17

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Vai extensa a carta, e parte para Cadiz o hiate que deve leval-a.
Adeus, meu querido amigo. Escreva-me, dizendo que se desvaneceram os
seus terrores. Viva para a sua dedicada irmã.
***

XI
_Roma, 28 d'abril de 1825_
Graças, minha querida amiga! A sua carta é um modelo de que deviam
servir-se os raros anjos, que receberam de Deus a divina missão de
consolar infelizes.
O meu coração sentira uma estranha alegria, duas horas antes de eu abrir
a carta de v. exc.ª Era o presentimento.
Tive uma hora de luz. Respirei o aroma de todas as flôres da vida.
Dilatava-se-me o coração. As palpitações eram impetuosas como as do
sangue, surprendido pela imagem de uma mulher, que se julga morta, e
para sempre perdida.
Era esta justamente a hora em que v. exc.ª devia assim fallar-me. Mezes
antes, esta linguagem faria a sua desgraça, que a minha está fadada
desde o seio de minha mãe.
Foi minha amiga, quanto podia sêl-o. Fui eu quem lhe esposou o seu
coração viuvo d'um esposo e d'uma filha. Eis aqui uma vaidade sancta,
que não deshonra um quasi moribundo. As suas revelações, senhora,
acolhe-as meu coração como um deposito sagrado que brevemente confiarei
ao tumulo.
A minha morte proxima não é uma chimera de imaginação ardente. Já lhe
disse que quero viver e não posso... Desfalleço, porque todos os meus
esforços são impotentes. Cravo as unhas na aresta do abysmo; mas o corpo
resvala, e a queda é infallivel.
Morro aos vinte e sete annos. Vou, envelhecido por toda a sorte de
tribulações. Resta-me saber o que é a indigencia: vai muito adiantada a
noite da vida para que a conheça. O meu dia eterno vai nascer, e a luz
matutina d'esse dia irradiou-se em volta de mim, quando as suas palavras
vieram povoar de bellas visões a solidão do meu quarto.
Foi o amor que me matou! Posso dizel-o com toda a ufania d'uma nobre
amargura: foi o amor que me matou! Esta grande alma não era para esta
sociedade. Offereci-lh'a, despresou-m'a... Lancei-lh'a aos pés...
calcaram-m'a... Fez-se-me uma villania, porque eu era muito nobre...
conheço que o era, porque tenho perdoado a todos aquelles que me
cortaram as carnes até me chegarem ao coração... Não me conheceram, e eu
não os conheci a tempo. Foi muito tarde que o mundo se me ostentou, qual
é. Eu tinha direitos a ser feliz, embora recebesse a felicidade pela
porta da deshonra. Não quiz. A minha pureza custou-me a vida, porque
fugi do mundo para a solidão a digerir o fel que me deram, e protestei
morrer antes de cuspil-o na face da sociedade.
Aconselho a infamia a todos os desgraçados, senão quizerem o martyrio.
Se forem insultados, indemnisem-se. Renunciem educação, honra, pundonor,
e dignidade, todas as vezes que a vingança depender da villania, da
deshonra, da impudencia, e do descaramento.
Desculpe-me v. exc.ª... Esqueci-me que estava escrevendo a uma senhora,
que não resolveu ainda os asquerosos problemas da infamia. A minha
cabeça é um vulcão. Não é ainda a demencia que me desvaira, mas póde
sêl-o a febre.
Ha tres dias que me não levanto. Estou quasi só. Tenho um medico alguns
minutos no dia, um frade portuguez que por aqui anda atraz da salvação
eterna, e um criado, que me serve um caldo, e não entende o que lhe
digo.
Eis-aqui a minha familia na vespera d'uma viagem infinita... Falta-me
aqui uma mulher, que me fosse esposa, mãe, ou irmã. Em Portugal, quando
estes ataques me annunciavam a morte, lembrei-me, muitas vezes, que o
meu derradeiro olhar encontraria os olhos de v. exc.ª
Aqui, será a sua imagem, o seu retrato, que me sorri, aquelle retrato
que v. exc.ª me concedeu a pedido da nossa pobre Helena...
Não posso...
Ah!... esquecia-me dizer-lhe que a historia de Rosa Guilhermina é uma
bonita farça... Fez-me sorrir; mas, no coração, lamento-a!... É uma
mulher bem trivial!...
Adeus, minha querida irmã... Será o ultimo?...
_Paulo._

«--Eis-aqui a ultima carta, que eu recebi de Paulo--disse a senhora,
que me confiou a leitura, e as cópias de todas.
«--Que sentia v. exc.ª depois que a leu?
«--O que eu senti?... Nem já me recordo... Isto passou-se ha trinta
annos; e a memoria do coração, aos sessenta e seis, está embotada; mas,
se quer um facto que lhe exprima melhor que todas as palavras o que eu
senti, bastará dizer-lhe que, dous dias depois, parti para Roma...
«--Para Roma!...
«--Admira-se!?
«--Então v. exc.ª amava Paulo...
«--Se o amava!... Não se fazem essas perguntas a uma velha. O senhor ri
de mim, se eu deixar fallar o coração, como elle, ainda ha trinta annos,
lhe responderia.
«--Eu não posso rir do que a vida tem mais grave e triste...
«--O amor!... diz bem... É bem triste recordal-o; mas o ridiculo manda
suffocar as expansões d'um coração, que não envelheceu ainda. Dizem que
os cabellos brancos são veneraveis. Se o são, e só nos patriarchas, nos
prophetas, e nos apostolos... Quer que lhe diga que amei Paulo? Pois
sim... Amei-o muito... Conheci-o, já casada; mas eu fui uma esposa com
todas as virtudes, e com a resignação para todos os sacrificios.
A filha do general *** amava Paulo.
A minha casa era o unico local onde se reuniam. Impuz-me esta violencia,
e prestei-me ao doloroso serviço de os approximar, porque precisava
matar um veneno com outro veneno.
Helena morreu, e Paulo refugiou-se a chorar comigo. Eu e o tumulo d'ella
eramos o unico passatempo da sua atormentada existencia.
Enviuvei. Encontrei-o sempre a meu lado. Sondei com muita delicadeza a
sua alma, e achei-a fria. Reconheci que era meu amigo, porque eu lhe
fallava muito de Helena. Um homem assim não podia amar-me...
«--Porque não lhe revelou a sua alma?
«--Uma mulher, se não está gasta pela libertinagem, ou não é
prodigiosamente estupida, nunca faz semelhantes revelações. Se elle me
perguntasse se eu o amava, responder-lhe-ia que não, e córaria pela
vergonha da mentira, ou pelo remorso da offensa... Dizem-me que as
mulheres de hoje são faceis n'essas delações da sua alma. Se não é a
moda que as absolve, o pudor de certo não é... Emfim, eu nunca lhe disse
que o amava, nem elle me proporcionou occasiões de dizer-lh'o.
Um anno antes de conhecer essa mulher fatal...
«--Quem? Rosa Guilhermina?
«--Sim... Um anno antes de conhecel-a, raras vezes vinha a minha casa.
Vivia muito só: dizia-me nas suas frequentes cartas, que vivia namorado
da arte, que tinha muitos retratos de Helena, e que roubava á pintura o
tempo apenas necessario para visitar-lhe, em S. Francisco, a sepultura.
Relacionado com Rosa, Paulo, sem o pensar, ultrajou-me quanto era
possivel!... O ciume devorou-me alguns dias, e eu tive momentos de
detestar o infame caracter do infeliz moço... Habituada, porém, a
dominar-me, afivelei outra vez a mascara, e recebi-o com a mesma graça
em minha casa para ouvir-lhe as expansivas apologias de Rosa
Guilhermina.
Tenho remorsos de ter sentido uma cruel alegria, quando essa mulher o
despresou...
«--Naturalmente... alguma intriga...
«--Urdida por mim?...
«--O amor, muitas vezes, obriga...
«--A praticar villezas? O amor nobre, não... Eu não urdi intrigas...
Rosa despresou-o; porque o seu caracter era o caracter de sua mãe...
Anna do Carmo nascera nas palhas, fôra amante d'um padre, fôra adultera
mulher d'um livreiro, fôra repellida de casa de sua filha, e recebera-a
por fim, nos seus salões, sem vergonha do seu passado, nem resentimento
da sua dignidade. Filha de tal mãe, não podia apreciar o amor de Paulo,
que amára uma mulher, que morrera por elle.
Ia-me esquecendo o conto... Fui a Roma; cheguei lá vinte dias depois que
recebi a carta.
«--Encontrou-o?
«--Sepultado... Morrera seis dias antes... Ao lado da sua cabeceira
estava o meu retrato... É aquelle que alli se vê.»
Reparei... Ninguem diria que esta senhora podia ter sido tão bella!
Cahiam-lhe duas a duas as lagrimas... Eu quiz divertil-a d'esta dolorosa
situação, perguntando-lhe:
«--Demorou-se em Roma?
«--Tres dias... Voltei a Portugal, depois... Deixe-me chorar, porque ha
muitos annos que não fallei a ninguem n'este homem... Quer saber o resto
d'esta historia, que faz o seu romance?... Essa senhora de que faz
menção no seu prologo, póde contar-lh'a.
«--Com menos graça que v. exc.ª...
«--Pois eu lhe digo: Rosa Guilhermina morreu, ha seis annos em Lisboa,
com o titulo de viscondessa de ***. Seu marido ainda vive... É um dos
mais ricos proprietarios do paiz...
«--E Maria Elisa?
«--Essa mulher perdeu-se... Foi amante de S*** C***, que deu escandalo
no Porto, e perturbou a tranquillidade da sua casa, e da casa das suas
amantes, que eram quasi todas casadas. Depois, como elle morresse, Maria
Elisa, que vivera na companhia de Rosa, reagiu contra os conselhos de
José Bento, e abandonou a amiga para entregar-se a uma vida dissipada
sem ao menos a colorir com as variadas tinturas da hypocrisia. Tocou o
extremo grau de miseria; mas d'esta miseria prosaica e villã, e que não
póde ser historiada n'um romance. Não era fome nem nudez. Era a negação
para todos os sentimentos d'honra. Quando desceu tão abaixo recebeu uma
boa mesada de Rosa; mas dissipou-a com amantes. Por fim envelheceu. Rosa
tinha morrido, e o visconde de ***, que a soccorrera estimulado por sua
mulher, abandonou-a inteiramente.
«--E ainda vive?
«--Morreu já depois que o senhor principiou o seu romance. Foi
justamente no dia em que sahiu o quinto folhetim na _Concordia_.
«--Morreu miseravelmente?
«--Não, senhor. Quem lhe prestou os ultimos soccorros fui eu. Não lhe
faltou uma cama, um medico, uma enfermeira, e um padre até ao seu ultimo
momento.
«--Devia ser terrivel, nos ultimos dias, o olhar d'essa mulher para o
passado!...
«--Creio que não... A desgraça desmemoria... Por não sei que favor da
Providencia, a mulher que se degrada não tem já o senso intimo da sua
dignidade perdida. Cahiu, do leito á sepultura, impassivel como a pedra
que tomba insensivelmente do alto da serra ao fundo do abysmo...
«--Esqueceu-me perguntar-lhe como viveu Rosa com José Bento...
«--Honradamente, e parece que feliz.
«--Deixou filhos?
«--Do segundo marido nenhum.
«--E aquella Assucena, que tão linda me pintaram? Deve hoje ter trinta
annos...
«--Morreu ha dous... Quer saber a vida d'essa mulher?
«--Desejava...
«--Mas tem de fazer outro volume.
«--Pois a vida de Assucena dá para tanto?
«--É um triste romance... Ha de escrevel-o, e intitulal-o: A NETA DO
ARCEDIAGO.

FIM
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