A Filha do Arcediago - 05

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--Que arranjos?
--Os meus vestidos?
--Deixa os vestidos... Faz o que te digo. Não te afflijas... Has de ter
sempre que comer. Nem mais uma palavra, que não quero escandalos.
Anna do Carmo sahiu com a criada e o pequeno, que grunhia por ter sido
tirado a dormir do berço. O escrivão achou-se sósinho com os aguazis e
louvados. A livraria foi logo comprada pelo livreiro da loja visinha. Os
moveis arrematados, e ficou o escrivão com elles. As roupas comprou-as
uma adeleira. E a chave da casa foi entregue ao senhorio. Foi um dia
cheio para os visinhos!
A vingança do francez fôra uma vingança franceza; mas, de parte a parte,
concordemos em que a honra orçava os mesmos quilates. Parece que eram
dignos um do outro, e o arcediago digno de ambos, como vai vêr-se.
A mãe de Rosa vivia com o arcediago; mas tão cauta e escondida que se
não deixava vêr. Era um cuidado inutil; porque ninguem duvidava que os
braços do padre eram o refugio nato da esposa abandonada.
A immoralidade chegára aos ouvidos do bispo, que empregou os meios
brandos para chamar ao caminho da bem-aventurança aquelle Lovelace de
murça e meias vermelhas. O arcediago defendia-se como podia, e citava os
seus traiçoeiros denunciantes para que lhe provassem a calumnia infame.
Se fosse hoje, o senhor padre Leonardo Taveira teria escripto quatro
correspondencias para os periodicos, em que provocaria os maledicentes a
tirarem a mascara, ou serem convencidos de infamadores da honra alheia,
e vis calumniadores, como é do estylo.
N'aquelle tempo, porém, o infamado não tinha o respiradouro da gazeta, e
não podia andar de casa em casa apregoando a sua innocencia. Razão
porque a detracção se incorporava pouco e pouco, até ser recebida como
facto consummado.
Os conegos, que não eram mais virtuosos que elle, mostravam-se
escandalisados das torpezas do seu collega, e queriam que o prelado os
desultrajasse do odioso que reflectia na corporação. O bispo via-se
entalado entre certos compromissos que o prendiam ao arcediago, e as
instancias reiteradas do chantre, e do deão, que eram mais discretos nas
suas torpezas, porque nunca tinham cahido na immoralidade de dotar as
mães dos seus filhos para casarem.
A indignação pública urrou no paço episcopal; e o principe da igreja
receou que a mitra lhe cahisse com deshonra da cabeça, e metteu o
arcediago em processo.
Estas deploraveis scenas passavam-se, mezes depois que Rosa Guilhermina
e a sua amiga vieram de Ramalde para o Porto. Rosa observava a
inquietação de seu pae nas poucas horas que se demorava em casa.
Interrogaram-no ambas muitas vezes, e não poderam saber nunca a
afflicção que o atormentava.
O processo corria, quando o bispo deu uma audiencia secreta ao
arcediago. O fim d'essa prática d'amigo, e não de juiz, era
aconselhal-o, que fugisse immediatamente de Portugal, e que esperasse lá
fóra que a borrasca serenasse, e depois viria.
O arcediago annuiu.
Com as lagrimas nos olhos, e sua filha nos braços, revelou-lhe que uma
grande desgraça o obrigava a sahir da patria. Mandou-a entrar outra vez
no recolhimento. Estabeleceu uma pensão a Maria Elisa. Deixou outra a
Anna do Carmo, e partiu para Hespanha com todos os seus cabedaes,
excepto as quantias que o honrado negociante Antonio José da Silva
mensalmente devia repartir pelas tres, se eram só tres as pensionadas da
illustre victima de padre João Pires.
Anna do Carmo sabia que sua filha existia no convento; mas, por ordem
expressa do pae, não a procurava. Vivia com honra, e recebia
pontualmente a sua mesada.
Rosa ignorava a existencia de sua mãe, tinha de longe a longe saudades
do pae; mas isso não era forte razão para que deixasse de comprar a
melhor edição do Cavalheiro de Faublás, que traduzia perfeitamente com a
sua amiga, graças aos cuidados do pae em mandal-a aprender o francez
durante um anno que esteve na casa do Laranjal.
Mr. Hemerin vivia em Paris, e vivia perfeitamente da quantia que lhe
fora dada com a condição de cohonestar as relações da mulher com o
padre: missão aliás christã que o maldito não quiz desempenhar
christãmente, e encarou com a melhor philosophia do mundo.
O arcediago vivia em Madrid, e gastava o seu tempo n'um convento de
Therezinhas, onde lhe não faltavam delicias para o espirito, e parece
que as melhores esperanças para tudo que os philosophos teimam em dizer
que não é espirito.
Padre João Pires, esse, contentissimo de ter resolvido o problema de
Sant'Thiago, veio um dia procurar o livreiro para comprar-lhe--_El sabio
instruido de la naturaleza_,--e soube, no livreiro visinho, a
catastrophe do arcediago.
Citou quatro textos em latim ácerca da obscenidade, disse tudo o que
sabia a tal respeito, confirmou minuciosamente todos os escandalos da
vida de padre Leonardo, e foi dizer missa á Misericordia, e ouvir de
confissão a senhora Angelica, que, por um triz, ia ficando sem
absolvição, por ter murmurado da senhora Anna Canastreira, e da mulher
do João Pereira, do chinó.
O senhor Antonio José da Silva, recobrado dos dissabores por que
passára, restaurava as banhas perdidas do seu lustroso cachaço, e
continuava a suar copiosamente.
E o senhor João Retrozeiro, finalmente, lia com o maior prazer a sua
mulher as cartas de seu filho José Bento, que estava no Rio de Janeiro
ganhando duzentos mil reis como segundo caixeiro de um armazem de
molhados, onde o não forçavam a conjugar o atrocissimo verbo _laudo_.


CAPITULO X

Corria tudo fastidiosamente regular e monótono, menos para o espirito
das duas amigas, que progrediam d'um modo admiravel na sciencia das
cousas, e na theoria do mundo estudada nos livros. Todas as suas
economias de tempo e dinheiro, que lhe sobejavam á farta, empregavam-nas
em novellas francezas, que uma criada, das que serviam cá fóra, lhes
introduzia no recolhimento, com pequena commissão.
Maria Elisa se dissermos que era uma litterata, não nos fica o remorso
de ter mentido. A prova de que o era dá-se com bem pouco: basta dizer
que duvidava da efficacia da reza, e dos preceitos mais fundamentaes da
sua religião da infancia. Fallava na religião natural, e sabia de cór a
_Voz da Razão_, e a _Pavorosa illusão da Eternidade_.
Rosa Guilhermina era litterata metade e mais um terço. Não acreditava na
reza, nem nos sanctos da regente: mas tinha fé na existencia de Deus!
Não era consummada como a sua amiga, que punha todo o desvelo em
instruil-a e aperfeiçoal-a.
Era corrido um anno. As meninas entravam nos dezesete, e já não eram as
creanças zombeteiras que traquinavam na cêrca, e irritavam as velhas da
casa com travessuras.
Convencidas de que eram senhoras, revestiram-se da dignidade propria,
deram-se um ar de pensadoras, mediam as suas palavras sentenciosas,
olhavam com desdenhosa insolencia a ignorancia das companheiras,
desdenhavam o beaterio de muitas que lhes não mereciam o favor das suas
reflexões, e, com algumas, dignaram-se descer até lhes confiarem o
segredo da philosophia, o dogma sublime da razão. Se quereis em duas
palavras comprehender a illustrada extravagancia das duas meninas, sabei
que o seu quarto era intitulado por ellas: _hotel de Rembouillet_.[1]
D. Rosa recebia regularmente extremosas cartas de seu pae, que não tinha
expressões com que podésse encarecer o talento de sua filha, manifestado
nas apparatosas cartas, que lhe enviava.
A ultima, que elle lhe escrevera de Madrid, annunciava a sua proxima
vinda para Portugal. Bem informado, o arcediago sabia que as linguas
mordentes dos seus inimigos estavam cansadas, e que o processo, ao cabo
d'um anno, estava esquecido.
Depois da carta, que promettia a sua vinda, que devia abrir outra vez as
portas da clausura ás litteratas, as anciosas meninas receberam outra em
que o padre lhes dizia que, em determinado dia, viria abraçal-as, e que
fossem dispondo a sua immediata sahida para Lisboa, onde elle tencionava
estabelecer casa.
De igual theor recebeu a mãe de Rosa a fausta noticia, e cada qual não
tinha socego em preparar as suas cousas de modo que se não fizessem
esperar.
Era chegado o festivo dia. D. Rosa com a sua amiga, para não perderem
tempo, já tinham feito as suas despedidas; Anna do Carmo tinha fóra dos
bahús o indispensavel para as poucas horas de existencia no Porto; umas
e outras não sahiam da portaria ou da janella para felicitarem o amante
e o pae e o carinhoso protector, quando o senhor Antonio José da Silva
rolou a sua rotunda personagem no pateo do recolhimento.
Rosa, ao vêl-o pelo raro, recuou assustada da inesperada visita. O
negociante perguntou pela filha do arcediago de Barroso, e a porteira,
industriada pela menina, perguntou-lhe se o senhor arcediago tinha
vindo.
--O senhor arcediago--respondeu o negociante com a commoção de que era
susceptivel--o senhor arcediago... está na presença de Deus...
--Morreu?!--exclamaram as meninas.
--É verdade... Faz favor de me chamar a menina.
--Estou aqui, senhor Silva... Pois é verdade que morreu meu pae?
--Desgraçadamente... Acabo de receber um portador de Madrid... As suas
ultimas palavras, foram estas: «Eu morro... vão dizel-o á rua das
Flores, no Porto, a um negociante chamado Antonio José da Silva. Morreu
de uma apoplexia... Deus tenha a sua alma na bemaventurança...
--Isso é impossivel!...--atalhou Rosa, soluçando e chorando.
--Pois é tão certo como estarmos aqui, senhora D. Rosa... O peor é que o
grosso dinheiro que seu pae levou, sabe Deus porque mãos andará a estas
horas!...
--E eu fiquei pobre, não é assim?--atalhou a litterata, que considerava
a riqueza como o primeiro dogma dos sublimes dogmas da razão.
--Pobre... não, senhora--respondeu o negociante, enxugando uma lagrima
importuna.--A menina está perfilhada. Eu tenho a perfilhação em meu
poder. Ainda mesmo que não appareça o dinheiro, que elle levou, o seu
patrimonio vale bem quarenta a cincoenta mil cruzados. É a quinta de
Ramalde, são dous predios na cidade, e as pratas de seu pae, que estão
em minha casa, só essas valem bem seis mil cruzados, a olhos fechados. O
que é necessario é fazer-se um conselho de familia, e bom será que a
menina sáia do recolhimento para tomar conta da casa de seu pae.
Pergunta d'aqui, resposta d'acolá, convieram em que a menina sahisse,
passados tres dias, durante os quaes recebeu visitas no seu quarto, e
chorou alguns instantes sinceramente.
Maria Elisa, como philosopha e boa amiga, animou-a a resignar-se,
convencendo-a de que a morte era a condição da vida, e que as lagrimas
não resuscitavam ninguem. Rosa conveio n'isso em nome da illustração do
seu elevado espirito, e assentou em mostrar-se intrepida na dôr.
Portador da infausta nova, o negociante foi dar o tremendo golpe na
pobre esposa sem marido, e na amante sem amparo, que devia sentil-o mais
profundo. Ahi, sim: havia uma verdadeira dôr, a consciencia de
desamparo, a invalidez na quasi velhice sem refugio. Restava-lhe uma
esperança: era sua filha; mas essa filha não lhe bebera o leite, não lhe
sentira os beijos, não lhe vira as lagrimas, nunca lhe chamára mãe.
Por encurtar razões, o franco negociante foi-lhe dizendo que em seu
poder não estava dinheiro algum, e que tractasse ella de procurar o
amparo de sua filha que era a herdeira do arcediago.
Ao quarto dia, D. Rosa Guilhermina com a sua amiga occupavam a casa do
Laranjal, tomavam as antigas criadas, e consultavam-se no que deviam
fazer, ou se acceitariam as condições que algum impertinente tutor lhes
impozesse.
--Eu não posso dizer nada em tal assumpto--respondeu Elisa.--Sou
absolutamente estranha n'este objecto; não obstante, como tua amiga
intima, entendo que não deves sujeitar o teu coração ás barbaras leis
d'algum barbaro tutor.
Já vêem como era o estylo de Elisa; agora admirem o de Rosa:
--Dizes bem, minha terna amiga. Se a parca me roubou o pae, não serei
ludibrio da morte, porque vivo ainda. Não quero mais reclusão, nem o
convento para mim foi feito. Quero a liberdade, porque o meu coração é
livre. Eu e tu temos bastante philosophia para nos sabermos guiar na
estrada tortuosa do mundo. Conhecemos a sociedade pela leitura;
saberemos evitar os abysmos, renderemos os nossos corações aos ardentes
votos d'algum amor digno de nós, e viveremos juntas pelo espirito, assim
como temos vivido pela intelligencia.
Fallou bem. Tudo, que dissesse depois disto, seria uma redundancia. Não
ha nada a desejar aqui. Optima resolução, exemplar programma, e
invejavel talento!
Nomeado conselho de familia, a orphã foi consultada pelo tutor, homem
probo, escolhido pelo senhor Silva. A menina espivitada respondeu em
alto estylo, e o tutor retirou-se maravilhado da pupilla, e disse em
plena reunião dos membros do conselho de familia que ella era muito
_pronostica_, e que fallava com cabeça. Os outros membros não duvidaram
acredital-o, e consentiram em que a menina fosse entregue dos seus
rendimentos, e vivesse fóra do recolhimento.
Contentes da sua sorte, as duas litteratas, cada vez mais ricas de
sciencia, achavam já que o seu espirito não saboreava a simples nutrição
dos romances, e queriam mergulhar no oceano da sabedoria. Talhavam o seu
plano de instrucção; lastimavam a soledade em que viviam duas almas
devorando-se no proprio fogo, e sentiam a falta de uma sociedade mais
ampla que as admirasse, ou de espiritos illustrados que as conduzissem á
luminosa região das sciencias ignoradas ao seu desherdado sexo.
Tudo isto era muito bonito; a tal respeito diziam-se cousas admiraveis,
quando, no mais acalorado do projecto, D. Rosa Guilhermina Taveira
recebeu a seguinte carta:
_«Minha filha. Ignoras talvez que a morte de teu pae deixou n'este
mundo uma mulher desvalida. Esta mulher é tua mãe, e terá
brevemente necessidade d'um bocado de pão. Quando esse momento
vier, não o negues á infeliz Anna do Carmo, que irá mendigal-o á
tua porta. Vivo na rua Direita n.º 25.»_
Esta carta, lida em sobresalto, produziu em Rosa uma sensação
inqualificavel. Elisa, queria vêr esta carta, e a sua amiga não lh'a
mostrava.
--Será namoro?!--perguntou Elisa com azedume e admiração--Diz, Rosa! tu
não me respondes? Deixa-me vêr essa mysteriosa carta! É epistola
amorosa?
--Não, minha amiga... É uma carta, que não te mostro!... Não devo
mostrar-t'a...
--Oh céos! que estranha carta é esta! Não sou eu, por ventura, a tua
amiga, a confidente dos teus segredos?
--És... mas ha segredos que se não dizem...
--Pois bem: eu calarei a minha ancia, e não farei jámais de amiga para
todos os teus cuidados, Rosa.
O portador esperava a resposta.
A filha de Anna do Carmo sahiu de ao pé da importuna confidente, tirou
da gaveta do seu tocador quatro cruzados novos, embrulhou-os em um
retalho de sêda preta, entregou-os ao portador, sem lhe dizer palavra, e
rasgou a carta.
Quando voltou, chorava Elisa, em ar de arrufada amante. Rosa, mais
tranquilla, se era possivel uma consciencia boa, depois de tão generosa
acção, serenou a susceptibilidade da sua melindrosa amiga com esta
revelação:
--Olha, querida amiga, faz comigo as pazes. Eu te digo o que se passa. A
carta, que recebi e devolvi pelo portador, era uma súpplica de uma pobre
amante de meu pae, que me pedia uma esmola. Fez-me tanta pena, que me
vestiu de luto o coração! Como pensei que era aquelle um deshonroso
segredo para meu pae, nem dizer-t'o a ti, cara amiga, eu julguei que me
era nobre. Ora aqui tens...
--E mandaste-lhe o beneficio supplicado?
--Mandei...
--Fizeste bem... Pobre mulher, abandonada, não devia achar fechadas as
portas da alma que sahiu do peito amante. Perdôa a meu resentimento,
querida Rosinha...
E com estas e outras finezas passaram uma hora, ao fim da qual voltava o
portador, que levára o dinheiro, e entregava á senhora D. Rosa
Guilhermina outra carta, acompanhando os quatro cruzados novos. A carta
dizia assim:
«_Minha filha. A esmola é muito avultada para uma mãe. Quando eu
tiver fome, irei pedir-te um bocadinho de pão._»
Rosa fez-se da côr do lacre, e fugiu de ao pé da sua amiga.


CAPITULO XI

Anna do Carmo, quando pensava em escrever a sua filha, dizia-lhe o
coração que a não procurasse, porque seria recebida com má vontade.
Fallava-lhe assim o coração, porque n'aquelle peito não batia o coração
de mãe.
E não.
A amante do arcediago vira, sem lagrimas, levar aquella menina do seu
ventre para os braços mercenarios de uma ama de expostos. Não estendeu
os seus, supplicando que lhe não roubassem a filha da sua alma, e da sua
deshonra. Não pediu ao pae desnaturado que lh'a désse em compensação da
renuncia, que ella fizera da sua dignidade. Não saltou, esvaída de
sangue, fóra do leito, procurando resgatar a creancinha que deveria
dar-lhe em amor de filha o premio da sua ignominia de amante.
Viu-a ir impassivel! Nunca lhe deu que pensar o destino da creança.
Nunca sentiu o remorso do infanticidio. Nunca se lembrou que a
desgraçada menina, que viu a chorar com frio e fome nas lages da rua,
poderia ser a sua filha.
Os annos correram. O arcediago lançou um olhar melancólico ao futuro.
Ambicionou uma herdeira, que fruisse o grosso cabedal que amontoava. E
lembrou-se de ter assignalado, cinco annos antes, aquella engeitada.
Procurou-a com zêlo de pae; encontrou-a entre as meninas desamparadas,
pallida de fome, e vestida de farrapos, apresentou-a a sua mãe, e sua
mãe encarou-a serenamente, deu-lhe um beijo frio, e aconselhou o pae que
a mandasse para um collegio.
Quando o pae extremoso, cheio de saudades, mandava buscar sua filha de
seis annos, com os seus lindos cabellos louros, e os seus labios
radiosos de innocentes sorrisos de gratidão, Anna do Carmo achava
enfadonhas as repetidas visitas, e zangava-se asperamente se a menina
batia com a faca no prato, ou pedia doces para dar ás suas companheiras.
Espanta-vos esta dureza d'alma? Entrai na enfermaria das que vão ser
mães, debaixo das telhas da Misericordia. Reparai n'esta, que prepara
risonhamente o cueiro e a faxa que ha de levar seu filho ao monturo dos
filhos sem mãe. Olhai aquella que jura que o seu seio não tem nutrição
para que a não obriguem a crear o seu filho. Vêde além outra, que crava
as unhas no menino, que tem ao peito, para que os dolorosos vagidos da
creança accusem a fome, e a seccura d'aquelle seio, que tem dentro morto
o coração.
«Diante d'este quadro hediondo, tenho duvidado do amor materno!
Compungido por esta verdade atroz, tenho collocado a hyena n'um grau de
sensibilidade superior á mulher!» dizia-me um illustrado professor de
medicina[2], que me expunha estes lances com as lagrimas nos olhos.
Não duvideis, pois, mães! Anna do Carmo chegaria sua filha ao seio; mas
aquelle sangue não se alvoroçava nas arterias. Tocar-lhe-ia os labios
com os seus, mas aquelle beijo fôra sempre a banal formalidade, que se
barateia por ahi em cada cara que vos saúda.
Sobejavam-lhe razões para recear o desprêso da filha. A dura experiencia
dissera-lhe que o castigo sobre a terra era infallivel.
Se aquella mulher tivesse sido a mãe d'aquella menina, sentiria um
estimulo superior impellindo-a para ella. Iria, coberta de farrapos,
lançar-se nos braços de sua filha, radiante de velludos e brilhantes.
Iria, sem pejo, na presença de todo o mundo abraçar essa filha, com a
certeza de que Rosa exclamaria na presença de todo o mundo: «Esta
desgraçada mulher é minha mãe!» Pediu que lhe escrevessem uma carta; mas
essas poucas palavras, que parecem o enigma d'uma grande dôr, nem suas
eram. Foi uma cabeça fria, e um coração estranho, que as dictou; porque,
na alma d'ella, estava a irresolução gelada, o presagio do desprêso, o
espinho da consciencia, precursor d'um grande castigo.
Quando recebeu, como resposta á sua carta, o silencio, e quatro cruzados
novos, Anna do Carmo sentiu-se assaltada pelo orgulho que não era
orgulho de mãe. Era um rancor, que reagia ao desprêso, uma altivez que
caracterisa as almas pequenas, e não essa nobre independencia, que nos
manda atirar á cara do falso bemfeitor uma esmola, quando nos não é
delicadamente dada como quitação d'uma divida.
Foi ella quem repelliu a esmola; mas não foi ella quem redigiu o bilhete
que acompanhava a remessa. Por sua vontade, aquelle bilhete devia ser um
insulto e uma ameaça; mas a pessoa que o escrevera previu que a mãe de
Rosa seria brevemente uma mendiga, e precisaria de humilhar-se a
estranhos, por ter sido soberba com sua filha.
Rosa Guilhermina meditou aquelle bilhete, e sentiu em si uma
transformação repentina.
Ha pouco ainda, teve vergonha de declarar á sua amiga que sua mãe
existia, e vinha pedir-lhe uma esmola; e agora é ella que sente a dura
precisão de revelar a Elisa todo o seu segredo.
Elisa ouviu-a, e reprehendeu-a da inconfidencia, que a não lisongeava
nada. Depois, aconselhou-a que desse uma mesada a essa pobre mulher, se
a não queria receber em casa na qualidade de mãe.
Rosa optou pela mesada, e escreveu immediatamente uma carta a sua mãe
com a direcção que lhe fôra indicada. Esta carta chegou nos assomos
freneticos de Anna do Carmo. Sahiu com a carta para que lh'a lêssem:
ouviu-a cada vez mais colerica, supposto que as phrases fossem brandas,
e carinhosas. A offerta da filha era mais uma boa mesada, que
permittisse a decencia de sua mãe. Anna tomou a carta com arremêsso,
rasgou-a, e disse á portadora:
«Diga a essa desavergonhada que não preciso de suas mesadas; e que, se
torna a mandar aqui alguem, que atiro pelas escadas abaixo quem cá
vier... Pegue lá... dê-lhe a carta rasgada.»
D. Rosa, quando ouviu similhante resposta, voltou-se para a sua amiga,
como quem pede um conselho:
--Não tens mais passo algum a dar--disse Elisa.--Mulher que assim
responde não é tua mãe: isso é uma impostora! Faz de conta que este
incidente não veio perturbar a nossa felicidade... Será tua mãe: mas só
te conhece agora, que és rica, e ella pobre. Tal mulher não é digna de
chamar-te filha!... Que lhe deves tu? O nascimento? Grande favor!... Se
teu pae não tivesse esta riqueza, que te deixou, o que serias tu? Uma
filha sem mãe, abandonada de todos, e despresivel aos olhos da propria
que te atirou ao mundo como quem atira ao chão as rosas murchas, que lhe
serviram de prazer e ornato!...
Quer fosse o estylo assoprado de Maria Elisa, quer fosse a negação
completa do coração de Rosa a essa estranha mulher, que lhe chamava
filha, o certo é que os escrupulos e temores desappareceram, e o
importuno successo não impressionou muitos dias o espirito da leviana
moça, que se demorava pouco nas mesquinharias d'este globo.
O rapido desvanecimento das ideias funebres do caso, deve-se á visita da
senhora Angelica que não veio mais cedo por ter estado ás portas da
morte com um catarrho, que lhe cahira nos bofes, como ella se explicava
subindo as escadas.
--A snr.ª D. Angelica por aqui!--disse Rosa descendo a recebel-a.
--Deixemo-nos de _dom_. Cada qual é como cada um. Eu cá sou filha de
negociante, e não quero essas trapalhadas da fidalguia. Então, como
passa a minha menina?
--Muito boa, e a snr.ª Angelica doentinha, não é assim?
--Deus louvado, vou melhor dos bofes, mas, acho que tenho aqui no
costado, salvo tal logar, um lobinho, que hei de queimar com a massa.
Elisa tinha o lenço na bôca, para suffocar o riso.
--Então, esta menina é que é a sua amiga?
--Tenho a gloria de merecer tal nome--respondeu Elisa.
--Por muitos annos e bons... Então vmc.e de quem é filha, ainda que eu
seja confiada?
--Meus paes ceifou-os a dura fouce da parca.
--A Parca? não conheço essa senhora. Sua mãe chama-se a snr.ª Parca?
--Não, senhora--atalhou Rosa, porque a sua amiga não podia responder,
suffocando com uma gargalhada.--A mãe d'esta menina, e tambem o pae,
morreram já.
--Ah! sim? pois Deus lhes falle n'alma, e elles a abençoem no céo, que é
bem galantinha... Porque não vai ser freira, minha menina?
--As almas livres não querem ferros. Umas nascem para o culto dos
templos, outras vêem o altar de Deus na natureza.
--Ella que diz?--perguntou a velha a Rosa.
--Diz que não nasceu para freira.
--Não diga isso, menina, que é peccado. Todos nascemos para o serviço de
Deus, e deve ir para carmelita, que é uma ordem muito apertada, e
ganha-se o céo, com a pobreza, e a paciencia.
--O céo ganha-se com os vôos do espirito.
--Que é? os avôs do esprito? Não creia n'isso; nas carmelitas não ha
espritos ruins... Ri-se? ora queira Deus que não chore ainda... Quem lhe
disse que andavam espritos nas carmelitas? Olha as sanctinhas!
coitadas!... É cousa que não consta é esprito nas carmelitas...
--Isso creio eu; mas por isso mesmo é que a materia me não convida. O
grande espirito é Deus.
--Jesus! que heresia! A menina parece-me douda!...
--Não é, não, snr.ª Angelica... É porque ella falla sempre em alto
estylo...
--_Estylo!_... que é isso de estylo!...
--A sua linguagem é mais sublime que a costumada entre pessoas sem
luzes.
--Sem luzes!... Eu não vos entendo, raparigas! Vmc.es aprenderam o
latim?
--Não, minha senhora--disse Elisa--a nossa lingua é portugueza, e as
nossas phrases tem o toque da superioridade, que nem todos os espiritos
alcançam!...
--E ella a dar-lhe com os espritos!... Parecem-me doudas! Quem vos
ensinou esse palavriado de latinorios e berliques-berloques que ninguem
entende? É isso o que vós aprendeis no recolhimento? Deixai-vos d'essas
tolices, e fallai como a outra gente da nossa laia.
--Da nossa?--disse Elisa--Não lisongeia a miscellanea.
--Miscellanea!... quem é a miscellanea? Eu não a entendo!... Ella que
diz, Rosa?
--Diz que as pessoas instruidas...
--Pessoas estruidas, Deus nos livre d'ellas... Olha como ella se ri!...
Esta rapariga tem aduella de menos, não tem, Rosinha?
--Tem aduella de mais... É uma senhora muito esperta, sabe francez, e
faz poesias.
--Eu a arrenego! pois ella é como os homens, que vão alli berrar debaixo
das janellas das freiras, a botar versos para cima?
--É verdade... Eu faço versos; a musa favorece-me: o Pégaso vôa comigo á
apolinea fonte, e converso com os deuses na Castallia.
--Ella parece lá d'esses reinos estrangeiros!--disse, torcendo o nariz,
a snr.ª Angelica.
--Sou lusitana, não nego a patria. Nasci nas margens do patrio Douro.
--Nasceu no Douro? Então isso como foi? Sua mãe teve-a no rio? Vinha,
talvez no barco... pobre mulhersinha!... E ella a rir-se!... Ella não
está boa!...
--Desaperta-me, Rosa, que eu arrebento--exclamou, suffocada de riso,
Elisa.
--Eu não n'o disse? Eu logo vi que ella não estava boa!... Isto é cousa
má que se lhe metteu no corpo... Dizem que o demonio ás vezes falla de
modo que só o entendem os padres. Quer a menina que eu vá chamar-lhe um
fradinho de muita virtude, para lhe lêr os inzorcismos?
--Minha alma detesta o frade.
--É frade de testa... e de cabeça... é muito sabio... Eu vou buscal-o...
A snr.ª Angelica atirava com a côca da mantilha para a cabeça, e
preparava-se para sahir em cata do frade, quando Rosa, perdida tambem
com riso, lhe acenou que não fosse.
A parvoice sinceramente estupenda estava pintada na indescriptivel
physionomia da velha.
--Sabeis que mais? não me entendo comvosco! Não sei o que pareceis! Ou
vós estaes doudas, ou a graça de Deus vos desamparou!
--Venha cá, snr.ª Angelica, fallemos sérias... Eu sou sua amiga, e Maria
Elisa tambem o é. Nenhuma de nós está vexada do espirito mau... é porque
vmc.e não nos entende, e pensa que a nossa linguagem não é do mundo dos
mortaes. Eu sou a mesma Rosa, muito sua amiga, e sinto immenso prazer em
vêl-a n'esta sua casa, e quero que venha cá muitas vezes.
--Agora já entendo o que me diz... A gente deve fallar como falla todo o
mundo. O latim é lá cousa dos prégadores, e dos doutores. Uma mulher em
sabendo a ladainha e a _Magnifica_, sabe o latim preciso para a
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