A Filha do Arcediago - 01

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A FILHA DO ARCEDIAGO
FILHA DO ARCEDIAGO
POR
CAMILLO CASTELLO BRANCO
TERCEIRA EDIÇÃO
PORTO
EM CASA DE CRUZ COUTINHO--EDITOR
18 E 20--CALDEIREIROS--18 E 20
1868
PORTO--TYPOGRAPHIA DO JORNAL DO PORTO rua Ferreira Borges, 31


Leitores! Se ha verdade sobre a terra, é o romance, que eu tenho a honra
de offerecer ás vossas horas de desenfado.
Se sois como eu, em cousas de romances (que no resto, Deus vos livre, a
vós, ou Deus me livre a mim) gostareis de povoar a imaginação de scenas,
que se viram, que se realisaram, e deixaram de si vestigios, que fazem
chorar, e fazem rir. Esta dualidade, que caracterisa todas as cousas
d'este globo, onde somos inquilinos por mercê de Deus, é de per si um
infallivel symptoma de que o meu romance é o unico verdadeiro.
Eu sou um homem, que sabe tudo e muitas outras cousas. Não espreito a
vida do meu proximo, nem ando pelos salões atraz d'uma ideia, que possa
estender-se por um volume de trezentas paginas, que, depois, vil espião,
venho vender-vos por 480 reis. Isso, nunca.
Tudo isto que eu sei, e muito mais que espero saber, é-me contado por
uma respeitavel senhora, que não vai ao theatro, nem aos cavallinhos, e
que tem necessidades organicas, mas todas honestas, e, entre muitas, é
predominada pela necessidade de fallar onze horas em cada dez. Desde que
tive a ventura de conhecel-a, não invejo a sorte de ninguem, porque vivo
debaixo das mesmas telhas com esta boa senhora, e posso satisfazer a
mais imperiosa necessidade da minha organisação, que é estar calado. É
que não podemos fallar ambos ao mesmo tempo.
E, depois, a sua conversação, escassa d'arrebiques, e despretenciosa,
abunda em riquezas naturaes, em thesouros impagaveis para o escriptor
publico, em estudos sociaes adquiridos no testemunho de factos da vida,
que não vieram ás locaes do jornalismo, porque a imprensa, ha poucos
annos que denuncia os casamentos, os obitos, e os suicidios.
Ingrato seria eu, se não significasse aqui, com toda a cordialidade de
que sou susceptivel, o meu reconhecimento á dita pessoa, que promette
elevar-me á importancia de escriptor veridico, n'um genero em que todos
os meus collegas mentem sempre.
No momento infausto em que os sêllos do tumulo me fecharem este livro do
passado, obliterar-se-ha a fecunda veia de romancista, d'onde tenho
havido uma barata immortalidade para mim, e para a minha collaboradora.
O publico, maravilhado da minha esterilidade, dirá então que os meus
romances eram d'ella; e um nome, hoje obscuro, será exhumado do
esquecimento para quinhoar da gloria dos escriptores-fêmeas d'esta nossa
terra tão escassa--ainda bem--d'esse contra-senso.


A FILHA DO ARCEDIAGO


CAPITULO I

Em 1815, um dos mais abastados mercadores de pannos da rua das Flores na
cidade do Porto, era o senhor Antonio José da Silva. E a 23 d'agosto, do
mesmo anno, o negociante da rua das Flores que mais suava, e bufava
afflicto com a calma, era o mesmo senhor Antonio José da Silva. O senhor
Antonio, como os seus caixeiros o chamavam, tinha razão para suar. As
bochechas balofas e tremulas, dilatadas pelo calor do estio,
ressumavam-lhe um succo oleoso, que descia em rêgos pelos tres rofêgos
da barba, e vinha adherir a camisa ás duas grandes esponjas, que
formavam os seios cabelludos do nosso amigo attribulado.
O senhor Silva inquieto, e resfollegando como um hippopótamo, passeava
no seu escriptorio. O seu traje era muito simples: andava de cuecas, e
alpercatas de estôpa com sola de cortiça. Este vestido, com quanto
singelissimo, e o primeiro talvez que se seguiu ao que trajou Adão no
Paraizo, dava-lhe ares d'um sátyro voluptuosamente gordo.
O negociante representava cincoenta e cinco annos, bem conservados. No
ôlho direito tinha muita vida; o esquerdo, porém, n'esta occasião tinha
um tersolho, e inflammado, de mais a mais, pelo calor.
Além do dito, o senhor Silva estava soffrendo um segundo tersolho no
espirito. Era uma paixão, uma paixão d'alma, a mocidade na velhice, essa
ancia impotente d'um coração, que quer romper os tecidos atrophiados de
cincoenta e cinco annos para dar quatro pulos em pleno ar.
Quem era a victima d'esta paixão impetuosa? Uma menina de quinze annos,
que a leitora enjoada das indecentes cuecas do senhor Silva, póde vêr,
no segundo andar d'esta mesma casa, sentada a costurar na varanda, com
uma gata malteza no regaço, e um papagaio ao lado, que lhe depenica os
sapatos de cordovão.
É uma bonita menina, para quem gosta d'um rosto oval, olhos azues, leite
e rosas na face, labios acerejados e pequenos, dentes como perolas,
olhar alegre e penetrante. Conversa com o papagaio, e o metal da sua voz
tem aquelle timbre sonoro e puro, que nos faz jurar na belleza de quem
falla, sem lhe vermos as feições. O papagaio salta-lhe á mão, e esta mão
é pequena, dedos longos, rosados nas extremidades, transparentes como o
collo de sua dona, onde o proprio Lucifer de Gautier choraria uma
segunda lagrima, por se vêr impossibilitado de armar ás boas mulheres
(quando é de suppôr que lhe não vão lá ter as peores...)
Concordemos em que Rosa Guilhermina era uma bonita moça, e desculparemos
a paixão fatal do infeliz negociante, que, no andar de baixo, está
fumegando por todos os orificios, e distillando por todos os póros.
Como veio esta menina para a casa do negociante?
Da seguinte maneira:
Quatro annos antes, o arcediago de Barroso, padre Leonardo Taveira,
amigo velho do senhor Silva, em expansiva conversa com o seu amigo, n'um
domingo de tarde, nas hortas de Campanhã (onde semanalmente saturavam as
respectivas massas adiposas com o excellente vinho verde de Cabeceiras
de Basto), quatro annos antes, vinha eu dizendo, fallava assim, com o
seu amigo, o rubicundo arcediago:
--Sabes tu, Silva, que me está dando bastante cuidado o futuro de Rosa!
--Deixa-te disso. Não tens tu, em minha mão, um bom patrimonio que lhe
dês?! Acho que vinte mil cruzados, afóra o juro de cinco por cento, ha
dez annos, capitalisado no proprio, a vencer até que ella faça os vinte
e cinco, acho eu que é um dote de lhe tirar o chapéo.
--Bom dote é; mas isso não é o que me dá cuidado. O que eu queria para
minha filha é um bom marido...
--Ó homem, já tratas disso!? Que idade tem a tua filha?
--Tem onze annos; d'aqui a três é mulher, e póde talhar futuros por sua
conta e risco. É o que eu não quero. A pequena está em mestra-de-dentro;
mas isto de mestras ensinam a cozer e a bordar, mas não sabem adivinhar
o coração d'uma rapariga, que... emfim, Silva, vou ser franco comtigo...
--Diz, padre Leonardo...
--Que é filha de tal pae e de tal mãe... Eu tenho sido o que tu sabes...
--Isso lá é verdade... tu tens sido levadinho da breca com o gado de
contrabando...
--E a mãe, se queres que te diga a verdade, tinha uma perfeita
embocadura...
--Diz-m'o a mim, Leonardo! Era uma namoradeira dos quatro costados...
Mas, emfim, está casada, e já não é a mesma.
--Caro me custou o casamento...
--Isso custou! O que tu déste ao francez p'ra montar a loja de livros,
ainda que não rendesse senão a sete por cento, podia hoje montar a
reis... deixa vêr... quatro vezes sete vinte e oito, vão dous, com cinco
cifras, faz... faz...
--Aguas passadas... não fallemos n'isso. Agora o que me importa é a
rapariga, já que fiz a asneira de a procurar na roda... Tira-me o somno,
Silva! Lembra-me ás vezes que esta pequena ha de ser a disciplina com
que hei de ser castigado por muitas asneiras que fiz...
--Isso lá é verdade. Diz o dictado: «Onde se fazem, ahi se pagam.» Já
vem dos velhos a experiencia... Sabes tu que mais? Casa a rapariga assim
que ella pozer as ventas no ar a contar os ventos. Não lhe dês tempo a
namoricos. Janella fechada, e marido entre mãos, era o systema de minha
mãe, que Deus haja, e minhas irmãs não deram desgosto á sua familia.
--Tens razão, Antonio; mas quando o diabo está atraz da porta, não vale
nada fechar a janella... Olha lá... Queres tu casar com a minha Rosa?
--Homem, essa!... tu serás o espirito ruim que me appareces em corpo
d'homem? Não vês que tenho cincoenta feitos, e que nunca me deu na
cabeça a asneira de me casar?
--Alguma vez ha de ser a primeira...
--Isso lá é verdade; mas cada qual mede-se com as suas forças, e eu já
não estou homem para tropelias. O que eu quero é comer bem, é beber-lhe
melhor. Isto de creanças, casadas com velhos, não provam bem...
--Estás enganado com o mau exemplo da tua visinha Anna...
--Que pôz na cabeça do marido um chinó, porque elle era calvo... e eu
não estou menos calvo que o pobre João Pereira, que deu com o negocio em
pantana, por causa da mulher...
--Não meças tudo pela mesma rasa, Antonio. A pequena é docil, tem um
genio de pomba, vai para onde a levam, e será uma boa esposa. Ponto é
pilhal-a nos cueiros... Tu sabes melhor que eu o dote que ella tem...
--Não fallemos em dote, Leonardo... Eu, se casar com a tua filha, tanto
se me dá que ella tenha um como dous... A cousa não é essa... O peor é o
resto.
--Que resto?
--Eu te darei a resposta ámanhã.
Continuaram fallando largamente sobre o assumpto, em que o senhor Silva,
tres vezes, citou o chinó do seu visinho João Pereira.
No dia seguinte, o arcediago de Barroso encontrou o seu amigo
meditativo.
--Pensas ainda, Antonio?
--Estava pensando no nosso negocio. Isto de mulheres deve a gente
suppôl-as sempre mercadoria avariada... Mas, diz-me cá, a tua filha só
tem onze annos...
--Só, e d'aqui a dous tem treze...
--Se a cousa se arranjasse, não podia ser senão d'aqui a dous annos.
--De certo.
--Pois, então, fallaremos.
--Não que é preciso decidir-se a cousa já.
--Porquê?
--Se disseres que sim, a pequena ha de vir para tua casa já; quero que
seja educada por tua irmã, e que se afaça comtigo, para te ganhar
amizade, e o amor depois virá.
--Qual amor, nem qual carapuça! Ella póde lá ganhar-me amor!... Eu cá de
mim, se casar, o que quero é uma herdeira, porque tenho para ahi uns
sobrinhos, que se penteam muito, e que não querem estar ao mostrador a
medir covados de panno. Ha de me custar se elles vierem metter a mão no
que me custou a ganhar com honra e trabalho. Um d'elles metteu-se-lhe na
cabeça ir a Coimbra estudar para doutor!... Que tal está o catavento!
Meus paes foram lavradores, eu sou negociante, e quem houver de ficar
com a minha casa ha de vir para aqui. Quando penso n'isto, Leonardo,
parece-me que me fazia conta casar!... E, se eu tivesse um filho!...
isso então, digo-te que era ouro sobre azul! Se não fosse o medo, que
tenho ás bôcas do mundo, não engeitava aquelle rapagão da Thereza...
--É verdade, que fizestes á Thereza?
--Puz-lhe um estabelecimento de castanhas assadas na Ribeira. O diabo da
moça piscava o ôlho ao caixeiro, e pul-a fóra de casa. Eu cá poucas
vergonhas de portas a dentro não as quero.
--Tens razão; mas isso do filho é cousa muito natural...
--Ah! é verdade; isto do filho acho eu que é cousa muita natural; mas
dizias tu que á Rosinha...
--Viria para a tua companhia, e aos treze annos, ou mais cedo, com
licença do bispo, casas com ella...
--Homem... isto é uma carta tirada da baralha... Está dito, se a cousa
não dér de si, caso com a tua filha.
--Se a cousa não dér de si... dizes tu; que quer isso dizer?
--Sim, se não houver entrementes cousa que desarranje a minha saúde ou a
d'ella...
--Está visto, não é preciso tirar isso como condição.
Rosa Guilhermina veio para casa do senhor Antonio José da Silva.
O noivo predestinado affeiçoou-se á pequena com toda a effusão paterna.
Prodigalisava-lhe carinhos, que a menina recebia com indifferente
innocencia, mas com certo aborrecimento intimo, e até nojo da sua grande
cara, cujas belfas eram vermelhas como duas folhas de parra de moscatel,
no outono.
Feitos os treze annos de Rosa, o negociante sentiu abrirem-se-lhe as
valvulas do coração para lhe verterem nas veias um sangue mais quente.
Não era um fino amor o seu; mas era um amor que lhe afinava a voz
melodiosa de meiguices, que a pequena recebia sempre com tregeitos de
enfastiada.
A affeição não correspondida reagiu.
O coração, atufado pelos tecidos cellulares, do obeso amante, esperneou
nas cavidades do peito respectivo, e veio á superfície dos
acontecimentos com o ideal d'um Antony, com os ciumes d'um Othello, e
com a paixão escandecida d'um Mamfredo de cuecas, como tivemos o
dissabor de vêl-o no principio d'este capitulo.


CAPITULO II

Na tão indecente como attribulada situação, em que deixamos o senhor
Antonio, veio encontral-o o padre Leonardo Taveira, que voltava de resar
vesperas no côro da Cathedral.
O cálido negociante resfollegava como um tubarão, e improvisava uma
ventoinha de meia fralda da camisa. Cada vez mais indecente! Valha-nos
Deus, leitores, que muito amargo é o dizer a verdade inteira! Ha
momentos em que o escriptor publico se vê forçado a córar. Se me
visseis, n'este instante, julgar-me-ieis d'uma candura infantil.
O arcediago, porém, não se mostrou surprendido da attitude tragicamente
afflictiva do seu amigo. Cálido tambem, despiu a loba, arremessou o
cabeção, descalçou os sapatos de fivela, e refocillou os amplos pés
vermelhos nos propicios chinelos do escarlate mercador de pannos.
--Fostes a minha desgraça!-regougou o senhor Antonio, abanando o
ventilador com a mão esquerda, e enxugando com a toalha de mãos os
humidos torcicollos do pescoço.
--Fui a tua desgraça! Pois que é?-replicou o beneficiado, tapando com o
indicador da mão direita uma das ventas, para chilrear na esquerda uma
solemne pitada.
--Que é? ainda m'o perguntas? É a tua filha que me faz de fel e vinagre!
É uma ingrata que se me ri nas barbas, quando eu lhe faço meiguices!
--Ora deixa estar, que o remedio não está em Roma. Eu já te disse que
sou pae, e tenho direitos sobre minha filha. Queres ou não queres casar
com ella, Antonio?
--Perguntas-m'o agora que já não sei por onde me anda a cabeça!... Dava
trinta mil cruzados, e queria que a tua filha gostasse de mim! Isto
parece que foi inguiço, que me fizeram!...
--Eu te quebrarei o inguiço...
--Não sei como. A pequena, seja lá pelo que fôr, não me póde vêr, ha um
anno para cá. Aqui anda dente de coelho... Não sei, mas desconfio que
ella namora o filho do João Retrozeiro, que me está sempre a lêr por
detraz dos vidros.
--Devéras?
--Parece-me que sim. A minha Angelica já o desconfiou, e ralhou-lhe. A
senhora Rosinha levantou a cabeça, e disse que não dava satisfações a
ninguem.
--Ah! ella disse isso? Ora deixa-me com ella...
--Ouviste, Leonardo? não quero que lhe ralhes. É muito creança, e póde
ser que minha irmã se enganasse. Serão escrupulos de Angelica, que me
defumou com herva sancta e trevo nove vezes para me quebrar o feitiço em
que me tinha a criada Thereza. É uma pateta mulher. Não lhe digas nada
por ora a tal respeito. Aconselha-a que case comigo, e que me tenha
amor, que eu prometto dar-lhe todo o ouro e vestidos que ella quizer.
Hei de até leval-a ás comedias italianas, e não haverá fidalga que lhe
bote a barra adiante em aceios.
Já vêem, pela energia da expressão, que dôr tão sublime não devia ser a
que assim se exprimia por jactos de calorosa eloquencia! O senhor
Antonio José da Silva, superior á sua classe, sentia-se arrojadamente
grande pela angustia d'uma repulsa. Trinta mil cruzados déra elle pelo
amor de Rosa Guilhermina! Promettia leval-a ás comedias! Galardoava o
seu amor com vestidos que fizessem morder de inveja as fidalgas do
Porto! Eu quizera que Rosa lhe exigisse uma carruagem. Se o senhor
Antonio accedesse ao extravagante pedido, então, leitores seria eu o
primeiro a pedir uma data gloriosa, um cantinho, na historia da
civilisação da rua das Flores, para o senhor Antonio José.
A nada, porém, se movera a esquiva donzella.
O arcediago, commovido pela exclamação do seu futuro genro, subiu ao
segundo andar, e procurou, meio-colerico, a filha rebelde, que ensinava
o papagaio a dizer: _é o rei que vai á caça_.
--Á caça andava eu de ti...--disse affavelmente o pae, chegando uma
cadeira para junto de sua filha tambem risonha, que lhe beijava a mão.
--Ah! eu não sabia... Tenho estado aqui toda a tarde a trabalhar,
sósinha.
--A senhora Angelica não tem estado ao pé de ti?
--Não, meu pae. Creio que foi visitar o SS. Sacramento.
--Mas ella ainda é tua amiga como sempre foi...
--Eu sei cá... parece-me que não.
--Algum motivo lhe déste, Rosa...
--Eu? nenhum.
--Que disseste hoje ao senhor Antonio?
--Não me lembro... A que respeito?
--A respeito do teu casamento.
--Não fallemos n'isso, meu pae... Sou muito nova, não quero casar.
--_Não quero!_ isso é cousa que se diga a um pae?
--Vmc.e não ha de querer a minha desgraça... Eu não posso ser feliz
casando com o senhor Antonio... Antes quero ser criada de servir, ou
trabalhar para viver...
--Rosa, não sejas creança. Olha que tu, casada com este homem, és muito
rica, satisfazes todas as tuas vontades.
--Antes quero ser pobre... Tenho repugnancia em chamar meu marido a um
homem que eu poderia estimar como avô... Não posso, é impossivel, meu
pae. Mais facil me será morrer, que casar com elle.
--Visto isso, resistes á vontade de teu pae!
--Bem me custa; mas o pae ha de ter pena de mim; não ha de querer que eu
seja desgraçada toda a minha vida.
--Não quero, não; e por isso mesmo é que te mando casar com o senhor
Antonio José da Silva.
--Mate-me, se quizer; mas obrigar-me a casar, isso não.
--Das duas uma: ou casar, ou entrar já no recolhimento das orphãs em S.
Lazaro.
--Entrarei no recolhimento, vou para onde o pae quizer que eu vá, até
serei carmelita, se fôr da sua vontade.
Esta pertinaz resolução espantou o arcediago, e convenceu-o de que sua
filha estava innocente das suspeitas de Angelica, beata crendeira em
encantamentos, inguiços, e lobishomens. Se a pequena tivesse namoro com
o filho do João Retrozeiro, de certo não acceitaria com tanta presença
de espirito a condicional do recolhimento. Assim o pensava o licenciado,
que tinha muita experiencia do mundo, e essa muito cara, a julgar pelas
cifras que accumulou o negociante, orçando as despezas do casamento da
mãe de Rosa.
Teimoso, e esperançado nas boas maneiras, entrou em negociações
amigaveis com a menina. Pintou-lhe o melhor que pôde a vantagem de ser
brevemente uma viuva rica, e a liberdade que teria então de escolher um
marido mais galhardo. Repetiu a seducção dos vestidos, e dos diamantes;
encareceu as delicias do theatro; soprou-lhe a vaidade, imaginando-a
invejada pelas mulheres de todos os negociantes do Porto; emfim, por não
fechar o discurso sem uma immoralidade, com palavras equivocas,
dissertou pouco christãmente ácerca dos deveres da mulher casada.
Rosa insistiu na recusa. O padre irou-se outra vez; deixou cahir a
caixa, no excesso da indignação; verteu no peito da camisa quatro pingas
de rapé; escumou pelos cantos da bôca; pizou uma perna ao papagaio;
entalou o rabo da gata, que saltou, bufando, para o peitoril da varanda;
e acabou por dizer, em voz cavernosa, que Rosa, no dia seguinte, sem
mais delongas, seria fechada no recolhimento de S. Lazaro, para não vêr
sol nem lua.
O senhor Silva ouvira os ultimos berros, e zangou-se contra o padre. O
seu amor não lhe consentia um ultraje a Rosa, apesar de ingrata. Em
cuecas, e com a camisa em ventilador subia a escada; mas, a meio
caminho, olhou para si, e viu, na sua consciencia, que não estava
decente. Tornou atraz a enfiar as pantalonas de linho, quando o
arcediago descia com a cara côr de lagosta, e os olhos turgidos e
encarniçados como dois medronhos bravos.
--Não fazes senão asneiras, Leonardo--disse o negociante, impando com a
difficuldade de enfiar a côxa roliça nas pantalonas, que queria vestir
ás avessas, no auge da atrapalhação.
--Eu não faço asneiras. Sou pae, e quero ser obedecido.
--Que vaes tu fazer?
--Ámanhã ha de entrar no recolhimento por força.
--Deixa-te d'isso; não afflijas a rapariga por minha causa. Eu não
consinto...
--Não preciso do teu consentimento. O caso agora é comigo, não é
comtigo. Veremos quem vence.
--Então não ha outro remedio, Leonardo?
--Nenhum. Está de pedra e cal. Não quer casar por bem nem por mal. Diz
que tem repugnancia em ser tua mulher.
--Sim?!-atalhou o senhor Silva atrozmente ferido na sua vaidade--pois,
n'esse caso, faz o que quizeres, e tira-m'a quanto antes de casa.
--Olha cá, Antonio... Eu parece-me que a pequena, em se vendo fechada no
recolhimento, onde não conhece ninguem, nem tem janella para a rua,
mudará de vontade, e quererá casar...
--Comigo? Isso nunca! Deus me livre! _Má mez_ para ella! Lembras-te do
chinó do meu visinho?
--Ora deixa-te d'isso, meu amigo. Nem todos os maridos são calvos... nem
todas as mulheres fazem marrafas. Dá tempo ao tempo. Quem lida com
mulheres, lida com o diabo. É preciso atural-as. Sabes lá o que eu tenho
soffrido com ellas?
--Eu é que não estou para brincadeiras... Estava muito socegado, ha tres
annos; para que vieste tu inquietar-me com o negocio, que me propozeste
em Campanhã? Guarda a tua filha, que eu morrerei solteiro.
O senhor Antonio José da Silva, dizendo isto, melhor avisado, bebia uma
limonada, e o arcediago de Barroso calçava os sapatos de fivela.
N'este momento entrava a senhora Angelica, de mantilha, e camandulas de
pau preto pendentes nas mãos, que trazia sobre o seio em postura
beatifica.
--D'onde vens, Angelica?-perguntou o irmão.
A beata resmungou, e subiu para o segundo andar.
Espionemos d'onde vinha a senhora Angelica.


CAPITULO III

Que Rosa Guilhermina estava, mais ou menos, possessa de feitiços, era um
evangelho para a senhora Angelica. Que a filha do peccado, como a beata
lhe chamava, seduzida pelo demonio, namorasse o filho do retrozeiro,
isso é que não era liquido.
Para os feitiços deixára Deus na terra pessoas virtuosas, mulheres
sabias, que os desmanchavam; e para adivinhar o coração da pequena bem
sabia a irmã do senhor Antonio que o remedio não estava longe.
A senhora Angelica ouvira a conversação do seu Antonio com Rosa
Guilhermina, na manhã do dia em que se passaram as scenas ridiculamente
funebres do capitulo anterior. Cousas ouviu ella que a obrigaram a
benzer-se tres vezes, e queimar arruda no seu quarto, e no da pequena.
Parece que a timida sexagenaria receava que o espirito mau, que vexava
Rosa, viesse, por variar, entreter-se com o seu corpo immaculado.
Feitas as abluções, e comido o jantar, que benzeu tres vezes, e devorou
com as pernas em cruz, receosa d'um ataque subterraneo do demonio,
compoz a coca da mantilha, armou-se do rosario abençoado por Gregorio
XVI, prendeu duas figas e um chispo de veado na alça do collête, e
sahiu.
Da rua das Flores a Miragaya dava saltinhos como uma franga com as azas
cortadas. Ao pé da antiga casa da Companhia, n'uma porta baixa de casa
terrea, bateu a senhora Angelica. A porta foi aberta por uma velha
inqualificavel, indefinivel, mistura de todos os animaes repulsivos
desde a santopeia até á cegonha. Era a senhora Escolastica, benzedeira,
adivinha, mulher sabia, que praticava com o invisivel por meio da
peneira e das cartas.
--Venha com Deus, devota de Nosso Senhor. Já sei ao que vem.
--Já? Louvado seja Deus!
--A Rosinha não quer casar.
--Nem á mão de Deus padre... Aqui anda feitiço. Queria que vmc.e me
dissesse se o filho do retrozeiro, que se chama José, será o manfarrico
que faz doudejar a cabeça da rapariga.
--Vamos a isso--disse a senhora Escolastica, carregando duas vezes de
simonte a venta esquerda, que parecia um mexilhão aberto, e folheando um
surrado baralho de cartas.
A senhora Escolastica benzeu-se, e pronunciou a seguinte oração, pondo
as cartas em quatro montes, benzidas tambem:
«_S. Cypriano, bispo e arcebispo fostes, sete annos no mar andastes, na
vossa divina graça vos sustentastes, sete sortes pela vossa divina
esposa botastes, no fim vos declarastes. Declarai-me aqui se a Rosinha
anda de namoro com o José, filho do retrozeiro._»
E, depois, voltando-se, com ar sibillyno e tragico, para Angelica:
--Rosa é a dama de ouros; o José é o rei de ouros. Aqui sahe Rosa com o
sete de espadas, que é uma paixão d'alma. Aqui está o José voltado para
ella de corpo e pensamento, que é o valete de ouros. Sahe-lhe aqui outro
homem, que é seu irmão; mas ella vira-lhe as costas, e dá-lhe más
palavras, que é o cinco de espadas. No meio disto sahe-lhe aqui
lagrimas, que é o cinco de copas, e a espadilha o affirma. Seu irmão
aqui está com o sete de copas, que quer dizer comidas e bebidas, e ella
vira-se para o sete de paus, que é um gosto grande, e o seis de paus
pela porta da rua. Aqui está a dama de espadas, que é uma mulher de má
língua por causa d'uns dinheiros grandes, que é o dous d'ouros, vê? ella
ámanhã sahe por caminhos; aqui está o dous de espadas, e aqui está o az
d'ouros, que é a igreja, e o quatro de paus que é a tumba... valha-me
Deus!...
A senhora Angelica, côr de cidra, benzeu-se. Dito isto, a senhora
Escolastica repetiu a miraculosa operação, e descobriu uma _novidade_.
Novidade é uma carreira de cartas sem figuras. A novidade era a
confirmação do quatro de paus, e um certo az de copas, cuja significação
a benzedeira disse ao ouvido de Angelica, que fez uma carêta, e
persignou-se. Carêta aquella, discreta leitora, que eu tambem fiz quando
me contaram esta pavorosa historia.
Feito isto, as cartas foram substituidas pela peneira.
A senhora Escolastica, versada nos dous ramos de sortilegio, pôz de
perfil a peneira, e metteu-lhe um Senhor crucificado, umas contas, e
tres vintens em prata. Depois cravou em um dos lados os bicos de uma
thesoura fechada, e outra thesoura do outro lado. Feito isto, com
grandes tregeitos, e grave attenção da senhora Angelica, que murmurava o
credo em cruz, disse a benzedeira:
«_Peneira, tu que peneiras? Pão para toda a christandade. Pelo poder de
Deus peço-te que me digas se a Rosinha ha de casar com o senhor Antonio;
se tiver de casar, vira-te para a direita, e senão vira-te para a
esquerda._»--A peneira oscillou alguns segundos, e ficou voltada para a
esquerda.
A pobre Angelica deixou pender o beiço inferior, que, ha quatro annos,
lhe tocava na ponta do nariz! Estava profundamente triste e aterrada! O
seu ôlho esquerdo fallou da abundancia do coração. Uma lagrima, côr de
agua-pé, rolou-lhe perguiçosa nas verrugas da face.
--Sabe o que mais, senhora Angelica?--disse Escolastica, commovida, e
atufando a pitada na fossa anfractuosa da venta direita--sabe que
mais?... vamos _prender_ a rapariga.
--Isso será cousa de escrupulo, e eu tenho medo que Deus me castigue.
--Agora castiga... Ha de ensinar ao seu irmão esta oração: «_S. Marcos
te marque, S. Manso te amanse, os quatro Evangelistas te batam á porta
do teu coração, Sanctissima Trindade te confirme na minha vontade, para
que nem na cama, nem na mesa, nem no lar, sem mim, não possas estar, rir
e fallar, e já, e já, e já com todo o pacto._»--Esta oração ha de seu
irmão dizel-a, e quando disser _com todo o pacto_ ha de dar tres vezes
com o pé direito no chão. Passados nove dias, em que eu hei de rezar a
novena das almas, e ouvir as vozes, appareça vmc.e por cá, e veremos se
é preciso trazer roupa d'ella para a defumarmos nos quatro cantos com o
fogareiro de S. Cypriano.
A senhora Angelica deu por bem empregados os seus dous patacões, e
passou o resto da tarde a rezar os versos de S. Gregorio, e a novena de
Sancta Apolinaria, em _S. João_, onde estava, n'esse dia, que era sexta
feira, exposto o Sanctissimo.
Ora aqui está d'onde vinha a irmã do senhor Antonio José da Silva.
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