A Filha do Arcediago - 11

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como dizem os francezes, pelo rebanho de Epycuro, que somos nós os
miseraveis estafermos de calças.
Surprendida, retirava os olhos com indignada commoção, e perguntaria á
mamã se o vestido de D. Efigenia, ou de D. Simplicia não era de pessimo
gosto.
No final de cada acto, sahia a visitar uma amiga, e dava dous saltinhos
quando me erguesse do banco, para que a minha cintura não ficasse sempre
occulta pelo parapeito do camarote.
Acontecendo, porém, que a minha cintura lucrasse com o mysterio, não
sahia nunca sem lançar com languida graça uma pelliça pelos hombros. Nos
bailes não sei o que faria; mas o que devia fazer era não tocar nunca
n'um taboleiro, e acceitar com mostras de grande sacrificio a instada
offerta d'um fôfo, ou d'um rebuçado de chocolate. Liquidos, excepto agua
limpida, nenhum. Nos jantares tomaria duas colheres de sôpa, o pescoço
de uma rôla, ou a aza d'um frango. E isto mesmo seria vagorosamente
triturado pelos dentes preguiçosos, com ar de victima sacrificada ás
conveniencias d'uma sociedade, que tem o prosaismo de comer nas horas
vagas. Fructas, comeria uma laranja, uma amendoa torrada, e o resto do
tempo entretel-o-ia com o palito.
Como é natural que me retirasse com fome, em minha casa, nas horas
silenciosas da noite, quando a natureza já não respira, como se diz nos
primeiros capitulos de quasi todos os romances, comeria de modo que, no
outro dia, me levantasse pallida pelo effeito d'uma indigestão.
Estaria duas horas diante d'um espelho a desalinhar-me, porque o
desalinho é o mais melindroso toucador de uma mulher, que conhece
profundamente as irrisorias pieguices do homem.
Cheguei á especialidade em que eu muito queria ser mulher, pelo menos na
estação do theatro lyrico.
Se vivesse no Porto, colheria as melhores flôres da minha corôa na
estufa do real theatro de S. João, e escolheria de preferencia certos
catos reaes que eu lá conheço. Eu denomino cato real o leitor, qualquer
que elle seja, com tanto que tenha escripto algumas sandices e dito
outras tantas a respeito do scepticismo. É cato, de trapeira pelo menos
(esta classificação não é minha: pertence a um espirituoso folhetinista
que d'antes classificava catos, e actualmente elle proprio se fez cato
politico, e vive nas estufas doentias do jornalismo sério), é cato de
trapeira, dizia eu, todo aquelle que chora o eterno desalento da sua
alma despoetisada, e não desencrava a luneta indecentemente enorme da
primeira mulher, que teve o descuidoso passatempo de reparar cinco
minutos na sua pallida physionomia.
Com estes é que eu me queria encontrar, sendo mulher, e mulher
litterata, porque, do contrario, agradeço á Providencia o favor que me
fez de me atirar qual sou á torrente dos acontecimentos masculinos.
Mulher, e litterata, sacrificaria temporariamente a minha isempção a um
d'esses scepticos desgrenhados, que se balouçam na plateia como se,
insaciaveis de espirito, precisassem dar á materia todos os repellões,
que as turbas comtemplam como terremotos do talento.
Logo que eu conseguisse prender-lhe a attenção, aventuraria um d'esses
sorrisos, que me não custariam nada, sem que por isso me parecesse com
certas mulheres, que se escangalham em risadas alvares e frivolas,
mostrando a profundidade dos engastes mandibulares como quaesquer
cosinheiras nos seus colloquios amorosos com os cosinheiros respectivos.
Eu não me riria nunca; sorriria algumas vezes, e quereria que o meu
sorriso fosse recebido como formalidade da etiqueta para com os ditos
semsabores das pessoas que me rodeassem, que seriam quasi todas d'uma
fabulosa semsaboria.
A fera, domesticada no seu sanguinario scepticismo, procuraria
revelar-me dez paginas intimas da sua agonia dilacerante. Fallar-me-ia
quatro vezes do seu desalento: faria o necrologio da sua alma: citaria
Lazaro, levantando-se do tumulo á voz do Christo: e acabaria por
pedir-me que sentenciasse o seu futuro para optar entre a vida e a
morte.
O que eu faria, então, attenciosas leitoras, não sei se alguma de vós já
teve a condescendencia de o fazer. Mandava-o á meia noite apparecer
debaixo da minha janella; e, sendo no entrudo, atirava-lhe um ovo de
cheiro; sendo na semana sancta, quatro confeitos; e, no Natal, uma
tigelinha de ovos moles.
A humanidade estava vingada.
Ora aqui está o que eu faria, sendo solteira.

_Casada_
Sendo casada, eu era, com grande despeito da mulher d'um certo ministro
da fazenda do Egypto, chamado Putiphar, e da mulher do senhor Antonio
José da Silva, uma honesta mulher, de quem os mestres encartados de
necrologios diriam depois: _Era uma esposa carinhosa, o modelo das mães,
e uma senhora virtuosa a todos os respeitos_. É verdade que não é
necessario ser tanta cousa para, á sahida d'este mundo, deixar os
jornaes encarregados de dizerem ainda mais. Morram quando poderem, que
eu lhes prometto uma boa duzia de epithetos.
Eu seria não só o que me fizessem ser os constructores de necrologios e
epitaphios; mas, por minha parte, exerceria todas as virtudes
conhecidas, e muitas outras que ninguem conhece. Seria, por abreviar
moralidades, que me dão grande trabalho, e aborrecimento aos leitores,
seria tudo menos o que foi D. Maria Elisa.
O que o senhor Antonio seria, isso é que eu não sei; mas o que elle
estava sendo, em verdade vos digo, que não deve ser inveja de ninguem!
A eloquencia dolorosa, que o auxiliou no choque da surpreza, falhou-lhe.
Quiz fulminar a perjura com uma apostrophe corrosiva, e não lhe occorreu
nada a proposito. Um pensamento ignominioso esvoaçára-lhe na cabeça
febril... Teve tentações de esmagal-a contra a parede do quarto em que
esta scena attribulada corria desapercebida!
O negociante, digno de melhor sorte, pagava com usura as affrontas
orgulhosas com que tentára ferir a honra do seu visinho João Pereira.
No auge da desesperação, a sua alma tornou-se esteril, a sua lingua
pegou-se aos gorgomilos, os seus labios resequiram como queimados pelos
suspiros rugidores, que lhe subiam das soturnas catacumbas do peito. Um
tremulo de sezão vibrava-lhe os musculos da face, especialmente os
bussinadores, que a maior parte dos leitores não sabe o que é, mas por
isso mesmo é que tudo o que eu disser tem um cunho de originalidade, que
o senhor Antonio não sabia dar ao seu ciume, nem sua mulher á sua
perfidia.
Esta falsa posição não podia durar muito. Se se prolonga mais cinco
minutos, eu, por mim, declaro que largava a penna, e acabava o conto
aqui. Não ha nada mais semsabor que a situação da mulher desleal
surprendida por um marido, que nem sequer arranca de dentro quatro
gritos, e reteza os braços na arripiadora postura de Orestes, insultando
os deuses! Porque não disse o senhor Antonio alguma cousa fóra do
commum?
Porque não fez estylo de marido, que é o mais mascavado de todos os
estylos? Porque não exclamou: «_Perfida mulher! hei de beber-te o
sangue, e cevar no coração as minhas iras! hei de esfolar-te para
memoria eterna! hei de mandar ao vento as tuas cinzas, e a tua alma a
Satanaz! Oh! Ah! Ah! Oh!_»
Com estas palavras já eu compunha um capitulo, porque as outras tolices
encarregava-me eu de as pôr de minha casa, e juro que um dos maridos
mais venerados e ferozes do seculo, que passa, seria o nosso amigo
Antonio, com grande desfalque de João Pereira, que, no seu genero, não
era mau.
Assim nem eu sei como hei de acabar o capitulo de modo que elle e ella
não pareçam dous volumosos parvos! Se me lembrasse d'algum romance, que
tenho lido, cousa que se parecesse com isto!... Ah!... Achei um bom
desfecho, e que tem o merito de ser o mais natural de todos.
O senhor Antonio desceu solemnemente para a rua a procurar a jumenta,
que tão grata portadora tinha sido do seu anhelante coração. A jumenta
pilhando-se solta, fugira para casa, e não sei que monologo mental ella
faria á sua liberdade.
O senhor Antonio pedira aos eccos a sua jumenta. Os sobreiros da encosta
contemplavam silenciosos a sua dôr. A lympha dos regatos era como um
arremedo cruel aos seus gemidos! Desgraça!
N'este angustioso conflicto appareceu Maria Elisa. A carruagem
aproximou-se.
--O senhor veio a pé?--perguntou ella, vendo seu marido encostado a um
pilar da ramada.
--Que lhe importa?--redarguiu o marido convulso, mettendo as mãos nos
bolsos, e puxando as calças machinalmente para cima, dando-se a grutesca
figura d'uma talha chineza.
--Porque não entra na carruagem?--replicou a carinhosa esposa,
aproximando-se meigamente do marido, que fumegava pelas ventas, como uma
fabrica de fundição.--Venha... eu lhe explicarei tudo... verá que estou
innocente, ha de arrepender-se de me tractar assim...--proseguiu ella,
com o tremor de voz, que precede as lagrimas.
--Como innocente!--murmurou o senhor Antonio, um pouco modificado nas
caretas da sua furia legitima.
--Sim... innocente... Em casa lhe contarei tudo...
--Pois póde lá ser que estejas innocente?... Tu estás a mangar
comigo!...
--Verá que não sou digna da sua cólera, e que os seus ciumes são
injustos... A affronta que fez ao meu caracter de mulher casada, tarde
ou cedo lhe fará remorsos, senhor Antonio José da Silva!...
O tragico entono d'estas palavras acobardára os espiritos briosos do
marido. O senhor Antonio julgou-se algoz d'aquella victima; e, se ella
teima, haviamos de vêl-o ajoelhar aos pés do innocente holocausto do seu
ciume, e pedir-lhe perdão.
Maria Elisa, restituo-te os teus creditos! Andaste perfeitamente, por
fim! Eu, se fosse mulher casada, com os teus costumes, faria o que tu
fizeste.
Em 1819 ninguem faria mais do que tu!
Hoje... serias d'uma simplicidade boçal.


CAPITULO XXII

A seu tempo saberemos até que ponto o senhor Antonio podia ser
civilisado por sua mulher.
Agora vamos procurar Rosa Guilhermina.
Antes de entrarmos, reparemos n'esta mulher que bateu á porta primeiro
que nós.
--Quem é?--perguntou da janella uma criada.
--Faz favor de dizer á senhora D. Rosa que está aqui uma mulher, que lhe
quer fallar.
--Que lhe quer?
--A vmc.e não lhe quero nada, é a sua ama.
--Quer pedir-lhe alguma esmola?
--Sim, senhora, queria pedir-lhe uma esmola.
--Pois para isso escusa de fallar á senhora: pegue lá... Então não
levanta do chão os dez reis?!
--Não levanto, porque lhe não pedi nada a vmc.e Já lhe disse que quero
fallar com a senhora D. Rosa.
--A senhora D. Rosa não falla a mulheres de mantilha rôta... Se quer,
queira, se não quer, ande sempre...
A janella fechou-se e a mulher da mantilha rôta sentou-se no degrau da
porta.
Pouco depois, abre-se outra vez a janella, e apparece D. Rosa!
Vêde-a, já não é a rosa purpurina d'outro tempo!... A pallidez
d'aquellas faces não é natural!... Alli, ha muita saudade do que foi, ou
muito receio do que será! Aquelle desalinho não era d'antes assim...
Rosa tinha tanto brio nos seus longos cabellos negros!... Enfeitava-os
tanto de fitas e flôres!... E agora?... Aquelle lenço branco, que lhe
apanha as tranças desgrenhadas, é tão desairoso!... Aquelle chaile, que
lhe esconde as fórmas do pescoço mais lindo ao pé dos hombros mais
artisticamente torneados, dá-lhe um aspecto tão triste de enfermeira do
hospital... Que mudança!... faz pena!... Cahiu tão depressa da haste
aquella flôr, que tinha tanta vaidade das suas petalas avelludadas, e da
fragancia dos seus aromas!... Minha pobre Rosa, que é da tua
philosophia!... De que te valeram os teus romances, se te devias amoldar
aos typos dolorosos que lá encontraste!... Ai!... porque cheguei eu a
interessar-me na tua sorte, se nunca te conheci!... Porque ha de esta
phantasia pintar-me realidades, que me fazem dôres no coração, quando as
vejo sahirem infelizes dos bicos da minha penna!... Tenho cousas de
muito creança, leitores!... Desculpai-me estas imbecilidades...
Para que vieste tu á janella, Rosa, se quasi me obrigaste com a tua
pallidez a discorrer com ternura sobre cousas que me fazem lembrar mil
outras, e tão tristes são ellas, que nem eu sei se era mais feliz não
vindo ao mundo para recordal-as, ou, ao menos, vêl-as, e esquecel-as
para sempre... Forte puerilidade!... Se me não chamam para jantar,
n'este momento, eu reduzia-me á situação piegas de verter uma lagrima...
por quem?
Uma lagrima!...
Sabeis o que é uma lagrima d'um homem!... É a perdida essencia do sangue
que nos alimentaria a existencia longos annos!....................
........................................................................
A mendiga, ouvindo abrir-se a janella, ergueu-se, voltou a face
macilenta para cima, e cortejou D. Rosa.
--Quer alguma cousa, mulher?
--Queria-lhe dar duas palavras, minha senhora.
--Então diga d'ahi.
--Eu bem queria dizer-lh'as de perto.
Rosa voltou-se para dentro, e mandou abrir a porta. A mulher subiu, e
encontrou a senhora no topo da escada, perguntando-lhe o que queria.
--Venho pedir-lhe uma esmola.
--E para isso era necessario subir? Dissesse-o da rua, que eu
mandava-lh'a lá dar.
--Uma teima assim!...--atalhou a colerica criada--Eu já lhe tinha
deitado á rua dez reis, e ella não levantou do chão a esmola... O que
vossê merecia sei eu...
--Não se zangue tanto, menina... Bem me basta a minha pobreza. Lembre-se
que não está livre de chegar ao estado em que me vê... Outras mais
ricas, e com bem melhores principios que os seus, teem tido este fim...
--De mais a mais quer dar leis!--interrompeu a cosinheira, animada pelo
silencio approvador de sua ama--Sabe que mais, minha senhora? mande-a
pôr no ôlho da rua, que, emquanto a mim, essa mulher não vem para fazer
boa obra... Eu cá vou queimar arruda...
--Tome lá...--disse Rosa Guilhermina, offerecendo-lhe um pataco.
--Seja pelo divino amor de Deus...--disse a mendiga, beijando a esmola.
--Então não se vai embora?
--Ainda não, senhora D. Rosa Guilhermina... Tenho duas palavras a
dizer-lhe muito em particular...
--Que negocios poderei eu ter comsigo?!
--Negocios nenhuns; mas Deus não deu lingua á gente para fallar só em
negocios.
--Diga o que quer mesmo ahi.
--Aqui não, porque a sua criada está ouvindo o que nós dizemos.
--E que tem isso? Eu não tenho segredos de que me esconda á minha
criada.
--Mas vai tel-os agora, e bom é que ella não saiba o que vou
communicar-lhe.
--Fóra com a alcoviteira!--exclamou a criada lá do interior--_Má mez_
para ella!... Olha o estafermo que me apparece em jejum!...
--Esta sua criada, minha senhora, é bem pouco caritativa com os
desgraçados, e v. s.ª não é melhor que ella, pelo que vejo...
--Está bom!--atalhou irada D. Rosa--Eu não admitto reflexões! Saia, que
quero mandar fechar a porta.
--Pois devéras não me quer ouvir?
--Não, já lh'o disse.
--Pois ha de ouvir-me, digo-lh'o eu.
--Se cá tivesse o criado, mandava-a pôr no meio da rua.
--E a senhora para isso precisa d'um criado? Eu sou uma pobre velha sem
forças... qualquer sôpro me faz cahir, e a menina mesma póde empurrar-me
por esta escada abaixo...
--E esta? já se viu um descaramento assim? Vossê parece-me uma mulher
sem vergonha!...
--Pois tenho muita, e principalmente agora. Sabe Deus com quanta
vergonha eu vim pedir-lhe uma esmola.
--Mas, se eu lhe dei a esmola, porque se não retira?
--Não me retiro, porque os desgraçados não se satisfazem só com pão...
precisam d'outras consolações, que a menina póde dar-me.
--Pois que quer?
--Queria que me deixasse sentar um bocadinho nas suas cadeiras... Estou
muito fatigada, falta-me já a força n'estas velhas pernas, que tanto
andam, e tão pouco caminham... Tudo me falta... até a vista; nem já a
menina me parece o que era aqui ha um anno!... Deve ter feito uma grande
mudança a sua vida!... Vejo-a tão coadinha... A menina soffre do corpo,
ou da alma?
--Que lhe importa do que eu soffro? Não soffro d'uma nem d'outra
cousa...
--Pois louvado seja Nosso Senhor!... Felizes aquelles que assim o podem
dizer... Pois veja que differença... Eu soffro de tudo...
--E que culpa tenho eu disso?
--Nenhuma, nem eu a culpo, senhora D. Rosa Guilhermina...
--Faz favor de sahir, que quero recolher-me?
--Está o almoço na mesa--disse a criada.
--Se a menina consentisse que eu tomasse uma chavena de chá comsigo...
--Comigo?... essa é boa!
--Envergonha-se d'isso? Pois olhe que não descia de quem é, porque os
pobres foram sempre os amigos, com quem Jesus Christo repartiu o seu
pão, e os seus peixes.
--Parece-me esperta de mais para pobre...
--Pois é de obrigação que todos os pobres sejam brutos! Então dá uma
chavena de chá... a sua mãe?...
--A...
--A sua mãe!
--A minha mãe!... Quem é minha mãe?
--Falle baixo que a não ouça a sua criada!... Não lhe tinha eu dito que
era bem melhor ouvir-me em particular!... Espanta-se de mais, menina?
Pois não sabia que tinha mãe? Não soube ha um anno, que ella precisava
de recorrer á sua generosidade? Não calculou, que, mais hoje ou mais
ámanhã, a sua desamparada mãe devia cobrir esta mantilha esfarrapada
para vir receber dez reis da mão de sua criada?
--Eu não a reconheço como minha mãe... Eu já colhi informações de que
minha mãe não existia... Meu pae nunca me disse que eu tivesse mãe viva!
--Deus perdôe á alma de seu pae... Não lhe quero por isso amaldiçoar a
memoria... Pois, quer me acredite, quer não, esta desgraçada mulher, que
não conhece, esta velha, que ainda não tem quarenta e quatro annos, é
sua mãe.
--Não acredito, já lh'o disse... Prove-me que é minha mãe, e eu lhe
farei aquillo que já lhe quiz fazer, se vmc.e é uma tal Anna do Carmo,
que morou na rua Direita.
--Sou uma tal Anna do Carmo, que morou na rua Direita, e agora mora no
pateo dos conventos, esperando a tigella de caldo da caridade. Bem vê
que soffri muito antes que viesse importunal-a. Não disse a ninguem que
a menina era minha filha para a não envergonhar. Lembrei-me de que sendo
eu moça e rica do muito que seu pae me dava, não gostei de que minha
pobre mãe viesse um dia procurar-me para me pedir doze vintens para
comprar uma gallinha para minha pobre irmã, que morreu de miseria depois
d'um parto... Lembrou-me o quanto eu me vexei então, e quiz poupar minha
filha a similhantes vergonhas, que só sabe o que ellas são quem passa
por ellas. Agora, se aqui vim, é porque de todo em todo já não podia
levantar-me das palhas para ir de manhã procurar a bemdita esmola no
pateo de S. Bento e de Sancta Clara. Sinto-me quasi sem vida, tenho um
aneurisma no coração, e queria vêr se morria descansada para me
reconciliar com a misericordia divina... Se não fosse isto, minha filha,
eu não vinha de certo aqui, de mais a mais, tão rota, tão magra, indigna
de me chamar sua mãe...
Rosa Guilhermina tinha soffrido um abalo, e parece que as lagrimas iam
saltar-lhe involuntariamente dos olhos. Mas a criada, que viera
collocar-se, sem ser vista, na alcova proxima da sala, adivinhando a
commoção de sua ama, resolveu salval-a das arteirices da velha, e tomou
a palavra, saltando para o meio da sala, com a mão na cintura:
--Pois v. s.ª acredita o que lhe está dizendo essa onzeneira?
--Não... eu não acredito, mas tenho pena d'ella... Coitadinha... é a
necessidade que lhe ensina estas mentiras... Quer vmc.e uma chicara de
chá?
--Não, menina, eu já não quero a sua chicara de chá. Deus Nosso Senhor
dá-me forças para que eu possa viver sem a sua esmola. O que eu queria
era morrer, abraçando-a ao meu coração, e chamando-lhe _filha_...
--Será ella douda!--atalhou a criada.
--Não sou douda, não... Não receie que eu lhe quebre as suas jarras...
Estou no meu perfeito juizo... Estejam descansadas que não farei doudice
nenhuma. Se fosse ha um anno, poderia fazel-as... Hoje, já não... A
desgraça enfraquece a gente, e apura o entendimento... Conheço muito bem
minha filha...
--E ella a dar-lhe com o _minha filha_!...--interrompeu a criada.
--Ouça-me emquanto ella se ri, menina, que o que eu vou dizer-lhe ha de
fazel-a chorar. Conheço muito bem que não tenho direito nenhum a
pedir-lhe o amor, que se deve a uma mãe... Eu quasi que a não reconheci
minha filha. Dei-a ao mundo, e o mundo assim como a fez feliz podia
fazel-a muito mais desgraçada que eu sou... N'este mesmo momento, em que
venho aqui expiar as minhas culpas, confessando-lhe que fui tão
desnaturada mãe, olhe que lhe não tenho amor, nem me offendo com o seu
desprêso. Por força assim devia ser... Se não fosse assim, eu não
acreditava na justiça de Deus!... Se a minha filha me tivesse atirado
com um pontapé á rua, eu havia de levantar-me, se podésse, para lhe
dizer: «eu te perdôo, filha de Leonardo Taveira!» Veja que bom coração
eu poderia ter-lhe dado, se tivesse, quando a expulsei de meus braços,
um presentimento de que viria uma hora em que eu precisava das suas
consolações...
D. Rosa chorava, e a propria criada sentia-se amollecer no coração.
--Entre para esta sala--disse a filha do arcediago commovida.
--Não entro, minha filha, eu vou retirar-me; disse-lhe tudo, levo o
coração mais desabafado, e creio que a não offendi... Se a magoei,
diga-m'o, que lhe quero pedir perdão.
--Entre...--balbuciou Rosa, offerecendo-lhe a mão..
--Não... já lh'o disse... aqui tem os seus dous vintens, molhados de
lagrimas, que são a usura d'este emprestimo... Dentro d'essa sala não
posso entrar como mendiga: se eu podésse visital-a, como senhora, viria
muitas vezes aqui, e talvez lhe podésse fazer serviços que a poupassem a
muitas desgraças no futuro... Assim... adeus!...
--Não consinto que se retire; quero informar-me de quem a senhora é. Se
fôr minha mãe, hei de tratal-a como quem é...
--Por ser sua mãe, não sou ninguem, minha filha... A menina não me
honra, nem me deshonra. Não tenho senão remorsos de a ter dado ao mundo,
como posso eu ter vaidade de ser sua mãe!... Fique com Maria
Sanctissima, e diga á sua criada que não é do agrado de Deus insultar
assim as pessoas infelizes... Chame-a aqui, menina, que me quero
despedir d'ella...
A criada veio, instada por D. Rosa.
--Não se afflija, moça!--disse Anna do Carmo--Não tenha pesar de me ter
offendido, que eu perdôo-lhe de todo o meu coração... Tire d'aqui uma
experiencia para todas as pessoas necessitadas... O seu zêlo por sua ama
é demasiado... Receava que eu lhe pedisse algum vestidinho velho dos que
vmc.e espera que sejam seus? Não vim a isso... E para que se lembre do
que esta velha da mantilha rôta lhe disse, quero deixar-lhe uma
lembrança de mim... Pegue lá...
--O quê?--perguntou a criada, recuando a mão.
--É uma peça de quatro mil reis, com que vmc.e póde comprar umas
arrecadas... Acceite que lh'a dá a pobre mãe de sua ama!... Não quer?...
Ora pois, Deus lhe dê muito que dar...
A ama e a criada ficaram perplexas, encarando-se estupidamente, emquanto
Anna do Carmo sahia. Quando vieram á janella para vêl-a, ia já na
extremidade do bêcco, mas á porta de D. Rosa estavam dous homens, que
conversavam apontando para a mulher da mantilha rôta.
--Não a conheceste?--dizia um.
--Eu não, nem tenho pena--respondeu o outro com desprêso.
--Pois não conheces aquella mulher?
--Não... já t'o disse...
--Pois não conheceste a fidalga, que ha tres mezes comprou a quinta dos
Engenhos, na ponte de Ramalde!
--É aquella?
--É... dou-te a minha palavra d'honra que fui eu o tabellião que lavrei
a escriptura, e contei os doze mil cruzados.
--Mas então que historia é esta!... Ella vai assim rôta!
--Eu sei cá o que é! É o que tu vês...! Eu, logo que a avistei aqui
n'este sitio, conheci-a, e ella puxou para o nariz a côca da mantilha...
--Que celebreira!... eu ainda hontem a encontrei a passear n'um jumento,
com lacaio ao lado; e até me disseram que o fidalgo das Laranjeiras
queria casar com ella.
--Tu não sabes a historia d'esta mulher?
--Eu não... ouvi dizer que fôra casada com um livreiro, aqui no Porto, e
que depois ficára rica...
--É verdade... foi casada com um livreiro; mas o livreiro não deixou
fazer o ninho atraz da orelha, e foi-se embora para a França, onde
morreu. A tal senhora parece que lhe não foi fiel, e, na ausencia do
marido, menos o foi ainda. Viveu na companhia do celebre arcediago de
Barroso, que foi mandado sahir pelo bispo, e morreu na Hespanha. O padre
era muito rico, e por muito tempo ninguem soube que fim levou o grosso
cabedal que elle lá trazia comsigo. A final, ha de haver seis mezes,
morre lá uma freira, que, á hora da morte, declarou que o tal arcediago
lhe deixára em seu poder quarenta mil cruzados em ouro, para ella fazer
entregar a Anna do Carmo, moradora não sei aonde. A freirinha, só á hora
da morte se lembrou de cumprir o legado, e o caso é que não se lembrou
mal, porque a pobre amante do arcediago estava vivendo miseravelmente
ahi na rua Direita, e quando a procuraram para lhe dizer que se
habilitasse para receber a herança, a pobre mulher já se não levantava
da cama com fome. Ora aqui tens a historia da tal riqueza...
--Mas por ahi dizem que ella é fidalga...
--Isso é uma historia á parte. Apenas a mulher appareceu rica, soube que
era fidalga, porque a fizeram fidalga á força, uns taes que moram ahi
atraz da Sé, dizendo que ella era filha bastarda da casa. Começaram a
visital-a, a hospedal-a, a chamar-lhe prima, e tem querido leval-a para
a sua companhia... Ora, ahi tens a historia da mulher da mantilha...
Quem me déra saber o que ella andaria a fazer por aqui... Eu parece-me
que ella sahiu d'esta casa...
O tabellião olhou machinalmente para a janella, e viu esconderem-se duas
cabeças: eram D. Rosa e a sua criada, que se retiravam espantadas do que
tinham ouvido. E tinham razão. Eu, por mim, tenho-me espantado com
cousas muito mais pequenas. Mas o que devéras me espantou, foi
dizerem-me que Anna do Carmo, quinze dias depois, estava casada com o
ex.mo snr. ***, fidalgo, morador atraz da Sé, e fôra, _ipso facto_,
reconhecida prima de todas as familias illustres do norte desde os
Leites até aos Albuquerques, desde os Cogominhos até aos Malafaias!


CAPITULO XXIII

O senhor Antonio José da Silva deve ter movido a compaixão interessante
das damas, e talvez o desprêso dos briosos maridos, que, no logar
d'elle, tinham pelo menos degolado suas mulheres, e lavado a sua nodoa
em sangue.
Eu lhes digo: faziam uma solemne asneira, e arrependiam-se, depois, como
o senhor Antonio (que não era menos brioso que v. exc.as e s.as ) se
arrependeu de ter superficialmente condemnado sua mulher.
D. Maria Elisa convenceu o candido marido de que effectivamente tinha um
primo, filho d'uma irmã de sua mãe, que morrera pobre, e o deixára
abandonado. Que esse infeliz primo se tinha dirigido á sua compaixão,
pedindo-lhe alguns sobejos da sua fortuna para alimentar a penosa
existencia. Que ella, como esposa e dona de casa, responsavel pelos
cabedaes de seu marido, se negára, muito tempo, a dar-lhe os supplicados
recursos; mas, por fim, taes foram as instancias, que a seu pesar, não
pôde deixar de ceder aos impulsos do coração, que lhe mandavam soccorrer
o infeliz com as migalhas da sua mesa.
O senhor Antonio chorava de piedosa ternura, quando sua mulher, cada vez
mais eloquente e philantropa, continuou:
--Com o receio de que a vinda de meu primo a esta casa suscitasse
suspeitas malevolas, disse-lhe que me esperasse algumas vezes na
Ponte-da-Pedra, e eu, indo sósinha a passeio, lhe daria o que podésse
esconder aos olhos de meu marido, sem que elle desse pela falta, que de
certo era um crime...
--Pois não fizeste bem, Mariquinhas! É o que eu te digo, e perdôa... Se
me contas o caso, era eu o primeiro a dizer-te que podias dispôr á tua
vontade do que ha n'esta casa, porque o que é teu é meu, e o que é meu é
teu.
--Pois sim; mas eu não tenho ainda um cabal conhecimento do seu
caracter. Receei que me levasse a mal esta caridade com um meu infeliz
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