A Filha do Arcediago - 16

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grandes vantagens para elle, e terminei este difficil papel, salvando a
minha posição falsa, com lhe offerecer a sincera estima de irmão.
Rosa Guilhermina não me quer para irmão. Achei-a de marmore para este
sentimento que seria em mim o mais vital de todos, o que eu hoje mais
lhe agradeceria, e o primeiro e derradeiro que eu posso offerecer a uma
mulher. Ella, não. Fallou-me do seu amor com estranho desembaraço.
Explicou-me os effeitos d'uma impressão violenta. Disse-me que só um
prompto desprêso poderia salval-a, porque tinha o amor proprio
necessario para não succumbir sem gloria, humilhando-se a um homem que a
não comprehendia. Empregou, na exposição eloquente da sua sympathia, as
melhores palavras da novella, e concluiu o seu não interrompido discurso
com lagrimas, que me pareceram mais eloquentes que a fecundidade
palavrosa.
Eu não sei o que ha de sublime, e mavioso nas lagrimas d'uma mulher.
Como se Deus lhe désse a humildade por instrumento de triumpho, eu
senti-me enfraquecer, ao mesmo tempo que recobrava toda a minha coragem,
pedindo-a á saudade de Helena, como se pede uma alegria ás recordações
do passado, que se nos foi com todas ellas.
Eu creio já ter dito a v. exc.ª que D. Rosa é uma linda mulher. Quando a
retratei, havia alli n'aquella physionomia um colorido de felicidade, um
sangue agitado que lhe vinha em estos ardentes do coração, uma viveza
robusta, que denunciava um feliz descuido de pezares.
Hontem não era assim. Rosa estava livida. Orlavam-lhe os olhos umas
manchas azuladas, que marcavam talvez a passagem de muitas lagrimas
escondidas, em longas noites de desesperação. Posto que vaidoso, eu não
me felicitei, minha cara amiga, por ter sido a causa d'esses
padecimentos. Se é por mim que elles existem, não se me dá da gloria
inutil que elles possam dar-me. Não tenho nenhuma: não me prestam de
balsamo para o coração; não me aquecem esta cabeça de gêlo; não me
deixam roubar ao passado um instante para com elle idear futuros de
impossivel felicidade.
Poderei amar esta mulher repetindo as minhas visitas? Não. A aproximação
é o divorcio das grandes paixões, que a distancia esposára. Aos pés do
homem cahe partido o prisma, quando o hálito da mulher é tão de perto
que lhe empana as côres.
E eu, de mais a mais, não desejei aproximar-me, quando a vi de longe.
Não senti este toque inesperado, esta surpreza electrica, uma só vez
recebida na existencia de cada homem.
Poderá o tempo fazer o que não fez um instante?
Não.
Dizem que existe um amor lentamente creado pelo habito, emanação da
amizade contrahida pela semelhança de vontades, resultado d'uma demorada
elaboração de dous espiritos que se consagram no mutuo sacrificio de
propensões e desejos. Não sei o que seja isto. A razão rejeita essas
candidas theorias.
Eu só creio no amor não esperado, não grangeado por sacrificios, não
calculado de dia para dia.
Se me dizem que essas paixões improvisadas n'um olhar, e n'um sorriso, e
n'um córar, são instantaneas, e ephemeras como o féto arrancado ao
embrião, com violencia, antes de tempo, eu direi que sim... que morrem
essas paixões na vida, porque ha a pedra do tumulo que desce quando Deus
a manda, mas ha a eterna saudade que nem a Providencia póde desvanecel-a
no coração, que se envolve n'um pedaço da mortalha, roubada a outro
coração, que o deixou viuvo de todas as esperanças, e gélido para todos
os confortos.
Minha paciente amiga, eu sou fastidioso com as minhas choradeiras.
Acolha-m'as com amor, que eu não tenho, sequer, em galardão de tantos
soffrimentos, o poder de as lançar ao papel de modo que consternem a
compaixão da unica pessoa que póde sentir comigo.
Estou pintando. É o meu sonho de ha dias. É Helena, quando me deu uma
rosa murcha, e me disse: «Ahi tens o meu amor: a rosa cahirá desfeita em
pó; mas a saudade ficará perpetuamente entre os vivos, como o germen
d'essa flôr.» Estas palavras repetiu-m'as no sonho. Vi-a tal qual era,
n'esse primeiro dia em que os medicos lhe disseram que désse um passeio
recreativo á ilha da Madeira. N'esse dia começou ella o seu curto
passeio em redor da sepultura!...
Adeus, minha estimavel senhora.
De v. exc.ª
Amigo dedicado,
_Paulo_.

VII
_29 de Outubro_
Tem decorrido sete dias, depois que lhe escrevi, minha boa amiga. V.
exc.ª não calculava a razão do meu silencio, quando na sua queixosa
carta de hontem arguia a minha reserva, ou indolencia.
Eu indolente, senhora! Eu que não tenho cinco minutos de repouso desde o
dia á noite! Eu, que conto os longos instantes do escurecer ao dia!
Não lhe escrevi... por vergonha!... Ha de crêr-me, senhora! não tenho
tido animo de ser eu o proprio accusador das minhas fraquezas
incomprehensiveis! Tenho esperado o intervallo lucido d'esta demencia de
seis dias, e as trevas cerram-se cada vez mais.
Que é o que se passa em minha alma? Que transfiguração se operou na
minha vida? Que brinquedo cruel é este que vem ludibriar-me no canto
esquecido em que me refugiei com as minhas desgraças?
A minha organisação está debaixo da terrivel influencia d'uma zombaria
providencial! Eu era, ha oito dias, o homem morto para o futuro; as
minhas alegrias resuscitava-as do tumulo mudo do passado; a minha vida
era uma saudade que devia cegar-me os olhos da razão com o seu brilho
sinistro, enlouquecendo-me, ou matando-me. Detestava o presente, porque
debaixo dos meus pés estava o ardor do deserto, e nos horisontes da
minha esperança... nem uma gôta d'agua que me apagasse este lume que me
queima, sem o poder de aniquilar-me. Eu era isto! A solidão era-me cara.
O tumulo de Helena povoava-se-me de anjos. A imagem d'ella, esboçada em
cada téla que me rodeia, tinha uns olhos que choravam, mas os seus
labios articulavam não sei que palavras animadoras, que me mandavam
subir com o sorriso da resignação as escadas do meu patibulo.
E esta vida acabou para mim. A imagem de Helena fugiu lagrimosa e
espavorida da solidão do meu quarto. A sepultura d'ella... é uma pedra
êrma de phantasmas para mim. Comecei por descrêr das minhas passadas
visões. Raciocinei friamente sobre a vida e a morte; sobre a belleza que
foi, e o cadaver que é; sobre o coração arquejante de amor, e o coração
minado de vermes.
Que é isto, pois? quem rasgou este véo diante de meus olhos? Que homem
sou eu hoje, ou que homem fui durante dous annos de amargura incuravel?
Entre mim e Helena... está Rosa Guilhermina! Tenho o rubor do pejo na
face, quando estas palavras me fogem do coração! Parece que a vejo
contrahir uma visagem de indignado pasmo por tal mudança! O meu caracter
apresenta-se-lhe uma inconcebivel monstruosidade! Vota-me um legitimo
desprêso, desde este momento?
Primeiro me despresei eu a mim. Primeiro olhei eu, com asco, para a
minha miseria. Antes de v. exc.ª recuar nauseada da baixa condição da
minha alma, entrei eu na minha consciencia, e vi-me torpe, ingrato,
insensivel, perjuro, e vil!
Tenho muito orgulho da minha honra; quero absolver-me d'esta deslealdade
á memoria de Helena, e não posso. Vejo que é necessario ser cynico para
me desculpar, escarnecendo as culpas que a sociedade me imputa. Não
posso, não sei sêl-o, não está na minha mão rasgar o contracto que fiz
com Helena, nos seus ultimos instantes.
Mas eu amo Rosa. Que sentimento é este? Como hei de convencer-me de que
amo esta mulher? Se isto é uma illusão, como é que se dissipam estas
chimeras?
Não sei! Lembra-me que senti uma commoção inexplicavel quando a vi
chorar! Lembra-me que a vi n'um sonho, de que acordei balbuciando o seu
nome com ternura. Lembra-me que desdenhei, acordado, a ternura do
sonho... Mas a minha alma estava inquieta. O meu quarto parecia-me
pequeno: este silencio entristecia-me... Faltava-me não sei que voz, que
som dos anjos que me tinha ferido uma corda no coração!... Ri da minha
fragilidade. Peguei d'um pincel... Disse á minha alma que lhe inspirasse
os traços de Helena... e os olhos amortecidos de Rosa resaltaram-me do
panno com duas lagrimas... Era a imagem d'ella, que se levantava de um
tumulo a dizer-me: «Aqui tens lagrimas minhas; aqui tens um coração, que
renasceu das minhas cinzas; aqui te dou a unica mulher, que póde supprir
a que não terá para ti um sorriso sobre a terra... Vê que os vermes
corroeram a minha face. Não te illuda uma esperança em outros mundos,
porque os limites da vida são a campa... Eterna é só a materia; mas a
materia que te feriu os sentidos, dissolveu-a o sôpro da desgraça...»
Contive-me durante dous dias de tribulação incessante. O coração
dizia-me que Rosa me escreveria. Li a carta que recebera com
indifferença, e passei por a minha alma todas aquellas palavras.
Achei-as sinceras... Acarinhei-as com soffreguidão... Recordei o que
ella me dissera, depois. Accusei-me de ingrato. Tive orgulho do meu
rival. Receei ter parecido um ente indigno de tamanho amor! Senti
ciumes... Queria vêl-a... Precisava de lhe esconder metade de minha
alma, revelando-lhe uma pequena parte dos meus sentimentos...
E procurei-a... Não sei o que lhe disse... Recordo-me que lhe apertei a
mão com ardor; que lhe pedi lagrimas de piedade, e coragem para não
transgredir um juramento... Penso que me não entendeu, porque me
respondeu com um sorriso, e fugiu de ao pé de mim com a face abrazada...
E, desde esse dia, escrevo-lhe a todas as horas. Não lhe mostro as
minhas cartas, porque não posso convencer-me de que o meu coração está
n'ellas... É impossivel!... Aqui ha uma fascinação!... Eu não posso ter
esquecido Helena!...
Preciso hoje da sua companhia, minha querida amiga!... Escrevi o que não
ousaria pronunciar...
De v. exc.ª
Grato amigo,
_Paulo_.

VIII
_25 de outubro_
A ingratidão é punida. Principio a expiar o perjurio. Helena vai ser
vingada por esta mulher, que, traiçoeiramente, me assaltou o coração,
quando eu me julgava de ferro para as paixões.
Rosa Guilhermina vai recuando diante de meus passos. Aproximar-me foi
gelal-a. Da tristeza profunda com que me olhava, antes da vergonhosa
quéda que dei do alto do meu orgulho, transformou-se n'um rosto
folgasão, n'um conversar futil e acreançado, n'um nem eu sei que de
motejo e zombaria que me escandalisa e envergonha.
Esta mulher quiz experimentar-se, experimentando a minha soberba.
Humilhou-se como a vibora, que se enrosca entre as urzes, para se
levantar d'um salto de que eu devia fugir atrozmente ferido no meu amor
proprio. Isto tudo é inexplicavel; mas o facto existe com horrorosa
evidencia! Essa mulher, que me provocou, ha de amanhã despresar-me...
despresa-me já hoje, e ousa dizer-me que me recebe, em attenção á
delicadeza com que a tenho tratado!
Esta fria linguagem é a mascara impostora dos caracteres, que se não
sustentam. Quando a mulher assim falla, é porque o amor, nos labios
d'ella, foi uma expressão mentirosa, que passou por lá, como a palavra
«Deus» que é seguida, na bôca do impio, pela palavra «demonio!»
É isso crivel, minha querida amiga?
Rosa será aquella mulher, que me escreveu? Não a veria eu chorar? As
lagrimas podem assim prestar-se a uma infamia? Ha mulheres que tiram
d'um coração gasto um tal proveito?
Hontem procurei-a com a resolução estupida de convidal-a a ser minha
mulher! Eu não podia já luctar com ella, nem comigo. Um dia antes,
perguntei-lhe a razão da sua frieza; respondeu-me que ella mesmo não
sabia explical-a. Disse-me que Alvaro de Sousa não frequentava a sua
casa, e accrescentou que desejava saber de mim a razão d'este
procedimento.
--De mim?!--perguntei eu.
--Sim... do senhor... Por minha parte não lhe dei a elle motivo algum de
abandonar uma casa, em que entrava como parente... O que fiz foi
interpôr as minhas supplicas com o senhor Paulo e com elle para que não
tivessem desintelligencias em que soffresse a minha reputação.
--A sua reputação é invulneravel...
--Não é tanto assim... A vinda frequente do senhor Paulo, e a ausencia
completa de Alvaro de Sousa, é motivo de murmuração na visinhança.
--Quer com isso dizer que não a sacrifique á murmuração dos visinhos?
--Escuso lembrar á sua honra esse dever. O senhor deve ser o primeiro a
lembrar-se da susceptibilidade em que estou na presença d'um mundo que
não distingue as mais honestas das mais torpes intenções...
--Está raciocinando com admiravel prudencia, senhora D. Rosa!... Quer em
summa dizer que não devo vir a sua casa...
--Não digo tanto; mas devo pedir-lhe que seja menos frequente nas suas
visitas...
Comprehendi-a...
E ergui-me d'um impeto para retirar-me. Parece que o coração se me tinha
despegado no peito. Ouvi um zunido estranho, que me fazia latejar a
cabeça em dolorosas pontadas. Era tudo escuro diante de meus olhos, e
não havia em mim sensação que me não fizesse recear uma demencia.
Sahi, e, só muitos passos longe d'aquella casa fatal, me lembrou a
retirada boçal que fizera. Como foi possivel que eu não respondesse
áquella mulher?! Que indignação, ou que nobreza d'alma foi a minha, que
me não inspirou uma palavra que a fizesse córar?! Será isto uma
devassidão moral, que supporta impassivel todas as offensas? A longa
desgraça petrificou-me? Um amor, todo sancto, todo saudade, o amor de
Helena, dous annos puro no sacrario do meu coração, fez-me cynico?
Tenho-me hoje feito estas perguntas. É um tormento não poder responder.
Não posso. Não sei o que sou, nem o que é aquella mulher!
Seria uma desgraça, um cancro incuravel na minha alma a certeza de que
ella é tão infame como se me ostenta!
Vejamos se posso absolvel-a... Oh! eu queria absolvel-a, sem deshonra
para mim, nem para ella!... De que modo?...
Ha, por ventura, uma intriga? Qual? Por quem? E com que fim?
Não sei, não posso comprehendel-a.
Disse-me ella que nunca me confessou amor! Será isto verdade? Fui eu que
me illudi? Então, aquella carta, aquella livre explicação d'um affecto
repentino... foi tudo um sonho?! Terei eu mentido a v. exc.ª? A cópia da
carta que lhe enviei, foi uma ignobil impostura?...
Como é especialmente horrivel a minha situação! Como eu, d'um lance
d'olhos, vejo todos os casos em que um homem póde suicidar-se na sua
honra cuspindo na face d'uma mulher!...
Esta situação não póde assim durar... Eu preciso ouvil-a... Ella ha de
saber colorir a sua depravação d'outro modo... Eu quero até que ella se
defenda, porque vai ahi n'essa defesa a salvação do meu amor proprio...
Que dirá?... Que terei eu que responder-lhe?
Minha boa amiga, ha uma conspiração sobrenatural contra mim... Eu
receio, hoje mais que nunca, uma demencia. Lamente o seu infeliz amigo
_Paulo_.

IX
_2 de novembro_
Tudo está perdido.
Rosa Guilhermina vai sahir do Porto. D. Anna do Carmo faz parar, ha
quatro dias, a carruagem á porta de sua filha. Alvaro de Sousa
reconciliou-as. Leia v. exc.ª essa carta, que recebo n'este momento:
«Confidente de minha amiga Rosa Guilhermina, devo dizer a v... que as
suas visitas a esta casa, emquanto ella fôr minha hospeda, são bastante
prejudiciaes á futura felicidade d'esta senhora. Sua mãe, informada das
relações que o chamam a minha casa, obriga Rosa a sahir do Porto.
Suspeito que a sua direcção não pare aqui em Portugal.
«Da parte de v..., tanto eu como ella esperamos a cavalheira prudencia,
que o seu bom caracter nos afiança. Se a ama, como devo acreditar das
cartas que lhe escreve, desvele-se em não prejudical-a. Até aqui a sua
união com a filha sem mãe, seria possivel. Hoje que D. Anna do Carmo
reconhece sua filha para eleval-a até onde o dinheiro a collocou,
declaro-lhe, com pesar meu, que serão, além de inuteis, nocivos todos os
seus esforços.
«Com sincera estima
«De V...
«Veneradora affectuosa,
«_Maria Elisa_.»

Ora aqui tem, minha boa amiga, o artista em lucta com a sociedade. Ella
ahi vem pôr-me um pé, segunda vez, no pescoço! Cá sinto já a dôr
vilipendiosa, e nem sequer sei já sorrir-me, quando a soberba me estende
na face uma bofetada! É preciso ser homem, antes de tudo. Quero tirar
nobreza da minha vilania! Esta dôr moral é mais forte que a outra. Sinto
desvanecer-se o amor, e só tenho alma para compulsar as agonias d'uma
paixão incomparavelmente maior. Cerra-se uma ferida; mas creio que me
abriram outra incuravel, rasgando-me a antiga cicatriz.
Hoje preciso da vida, porque é impossivel que eu não tenha a minha hora
de vingança...
Vou sahir de Portugal... não porque me reconheça tão pusillanime que
receie aqui uma consumpção moral... Não é isto... é que debaixo d'este
céo não ha para mim um anjo bom que me auxilie n'esta peleja desigual
com o meu inseparavel demonio.
Tenho dinheiro, que me é inutil aqui. Preciso desperdiçal-o... Quero
tocar a extrema da miseria, para que a necessidade me faça artista, e o
trabalho me salve d'estes ocios despedaçadores. Não sei onde irei... nem
mesmo quero sabel-o... De qualquer parte, minha querida amiga, virá uma
minha carta pedir-lhe uma lagrima. Quando a não receber... quando o
silencio lhe afigurar que a sua amizade fez um ingrato, poderá v. exc.ª
dizer: «Aquelle desgraçado, de quem fui tão amiga, e que tanto deveu ás
minhas consolações, morreu!»
E v. exc.ª poderá então louvar a Deus, que encravou a roda do meu
infortunio. Poderá agradecer-lhe, como unica pessoa que deixarei no
mundo com o meu nome no coração, a graça da morte concedida ao talvez
primeiro homem, que não teve cinco minutos de felicidade na demorada
existencia de vinte e seis annos.
N'este momento ha em mim alguma cousa sobrenatural. Não amo Rosa
Guilhermina; mas tambem a não detesto! O que eu muito queria era o
segredo d'aquella indole, porque eu não seria acreditado se contasse a
transição do amor ao desprêso, a infame mentira que me arrancou aos
braços d'um cadaver para me lançar nos da desesperação.
Deixal-a! Quero até pedir a Deus... _a Deus!_ a desgraça, que é a mãe da
piedade! Sinto-me religioso, porque, acima d'estas torpezas, ha de
necessariamente existir um Creador, que deixou aqui a dilacerarem-se o
mal e o bem. Este Creador deve ser juiz, e eu começo a temêl-o desde
este momento... Quero, pois, pedir a Deus que proteja o futuro de Rosa
Guilhermina. Os anjos vão com ella. Esta expressão do povo é a mais
expansiva e tocante que a minha alma pode dar-lhe. A derradeira
consolação do infeliz é perdoar. Eu perdôo... Offereço o meu coração
para todos os punhaes; curvo a minha cabeça a todas as desgraças; dobro
o meu joelho a todas as violencias, e prometto de nunca mais chamar
infames os instrumentos, que obedecem á vontade superior do grande motor
da vida, e da morte, da honra, e da deshonra.
Não tenho coragem de abraçal-a, minha cara irmã. Adeus.
De v. exc.ª
Amigo de toda a vida,
_Paulo_.

X[5]
_Roma, 4 d'abril de 1825_
Minha prezada amiga
Eu tinha esperanças na minha convalescença moral. O coração, aturdido
por padecimentos tumultuosos, cansado e endurecido por cicatrizes de
golpes sobre golpes, adormecera extenuado... Eu principiava agora uma
nova estação na minha vida. A insensibilidade promettia-me uma
tranquilla vegetação. Adormeceria sem lagrimas; acordaria sem
sobresaltos; veria tudo descórado em redor de mim; abriria para tudo,
que me cerca, estes olhos de estatua, sem culto para o bello, nem asco
para o repugnante.
Este ultimo baluarte sinto-o esboroar-se debaixo dos pés. Á
convalescença da alma segue-se a desorganisação da materia.
Estou doente d'uma enfermidade que eu sentia, ha annos, fermentar-se-me
no coração. Muitas vezes sentia umas palpitações extraordinarias, e
depois dores agudissimas, um suor copioso, um mal-estar physico e moral,
um mixto de aborrecimento e desesperação, que eu attribuia sempre á
inconsolavel viuvez da minha alma.
Este padecimento, nos primeiros mezes da minha viagem, diminuiu até se
extinguir. N'outro tempo, não se me dava sentir aggravar-se o mal; mas,
agora, queria vêr-me livre, queria viver muito n'este marasmo de todos
os sentidos.
Não o quiz a Providencia. Ha quinze dias que soffro muito. Dizem-me que
tenho uma aneurisma. Não sei o que é... É a morte, que me fugiu quando
eu a chamava, e me chama quando eu lhe fujo. Não posso dizer-lhe que bem
vinda seja!
Mandam-me a ares patrios... Eu não sahirei, já agora, d'aqui... Este
conselho da medicina é um futil subterfugio.
A minha doença estudo-a nos livros onde aprendem a cural-a os medicos. É
inevitavel a morte... Póde-se assim viver longos annos; mas eu, assim,
não desejo viver...
É lamuria de mais por uma cousa tão transitoria como a vida!... Eu devo
ser superior a esta pouca materia que se dissolve no dia seguinte
áquelle em que o espírito planisa mil prosperidades. Não me deve ser
penoso morrer, porque eu não tinha previsto felicidade nenhuma. O meu
futuro seria uma atonia glacial, uma sensibilidade de morte no coração,
e vida na apparencia... Viver assim, entre os homens, ou entre
cadaveres, que importa?... Morrerei resignado.
Agora posso fallar-lhe de tudo, porque tudo me é indifferente. Levanto,
hoje, a suspensão que impuz á sua bondade, minha amiga. Póde fallar-me
de Rosa. Que é feito d'essa mulher?
Incommoda-me muito o escrever. Prohibem-m'o; mas a prohibição não seria
obedecida, se a cabeça me deixasse... Sinto um desprazer semelhante á
nausea. É um esvahimento de cabeça, e uma lassidão em todo o corpo, que
só posso attenuar com o uso do opio, que me entorpece completamente.
Adeus.
De v. exc.ª
Amigo do coração,
_Paulo_.

RESPOSTA
_Porto, 6 de maio de 1825_
Meu bom amigo

Eu peço a Deus que lhe sosegue a imaginação. V... suppõe-se mais doente
do que realmente está. O seu ardente espirito engana-o. Não se entregue
ao terror da morte: viva, porque esse medo é signal de que a vida ainda
lhe é cara.
Espero ainda vêl-o em Portugal, esquecido dos seus passados dissabores,
e vivendo para a felicidade de pessoas suas amigas.
Quando v... perder um falso preconceito em que tem a sociedade, verá que
o seu elevado merecimento lhe grangeia estimas, e o seu bom coração
encontrará, por ventura, outro digno d'elle.
Não quero que se lembre da morte!
Dava-me tantas esperanças de o vêr feliz, na sua penultima carta, e
agora parece que capricha em fazer-se desditoso, communicando á sua
extremosa amiga as suas tristes previsões!
Bem sabe com que amizade lhe fallo. Affiz-me a tratal-o como irmão, e
não saberia amar com mais ternura um filho. Quando perdi um esposo, na
flôr dos annos, e uma filha que elle me deixou nos braços, tambem eu,
senhor Paulo, me julguei morta para tudo. Sentei-me no leito d'onde vira
sahir o cadaver de meu marido, e esperei ahi a morte. Abracei-me ao
berço vasio de minha filha, e pedi ao Senhor a esmola de uma mesma
sepultura para tres entes que deviam ajuntar-se.
Encontrei-o ao meu lado, chorando comigo a perda de Helena, senhor
Paulo, e os seus nobres padecimentos vieram minorar os meus. V...
fallou-me do céo, da eternidade, da perpetua união das almas no seio de
Deus, e eu acreditei-o. Como as suas palavras me vinham sanctificar a
minha dôr no coração, gravei-as ahi, e a sua imagem entrou lá com ellas
para sempre.
Não sei se o amei; mas, se o amor não era aquella extremosa amizade, que
lhe consagrei, e consagro, então não sei o que é o amor.
Não era isso o que accende o ciume, porque esse não o senti eu nunca. O
seu triste episodio com Rosa contristou-me, porque desde o principio
prophetisei desventuras. Realisaram-se muito além do meu agouro.
Nunca lhe fallei assim, porque... deixe-me tambem ceder a não sei que
triste e mysteriosa inspiração... parece-me que o não verei mais... isto
é uma loucura, uma allucinação, mas o coração sente-a tão forte, que eu
não posso suspender as lagrimas... Nunca lhe fallei assim, porque v...
tem hoje vinte e sete annos, e eu trinta e sete... As desgraças não me
poderam ainda envelhecer de todo, e eu recearia enganal-o, fazendo-o
nutrir, a respeito da minha amizade, alguma falsa supposição, que me
poderia fazer muito desgraçada, ou muito feliz.
Esses receios passaram. Agora conheço que não ha commum entre nós senão
uma amizade illimitada até á honesta confiança. Nunca podia-lhe ser
outra cousa...
Fallei já muito de mim. Quer que lhe falle de Rosa?
Depois da sua partida, a filha de Anna do Carmo foi viver na companhia
de sua mãe, levando comsigo a viuva do negociante da rua das Flôres.
Encontrei-as em casa do D. Antonio de ***, e achei-as ambas bellas.
Maria Elisa trazia douda a cabeça de S*** C***, Rosa Guilhermina, um
pouco triste, recebia com indifferença o cortejo teimoso de Alvaro de
Sousa. Por causa de Maria Elisa houve pequenas miserias de salão, ciumes
senis, com que os nossos velhos se inculcam rapazes. Felizmente, não
lhes falta zêlo para não deixarem transpirar as fidalgas impudencias,
que sabem occultar nos seus solares.
Agora receba uma novidade, que não deve já ferir a sua vaidade, nem
mesmo alvoroçar o seu coração.
Rosa Guilhermina vai casar-se.
Quer saber com que neto de trinta avós?
É um neto sem avô conhecido.
Não sei se ha seis ou mais annos que Rosa Guilhermina viveu algum tempo
em casa do negociante Silva, da rua das Flôres, com quem seu pae, o
arcediago de Barroso, a quiz casar.
Rosa namorou-se ahi d'um tal José Bento, filho d'um retrozeiro. Este
lôrpa (diz Maria Elisa que o era de grande marca, e eu creio que
continúa a sêl-o) estudava latim em casa do Passos, cujo quintal partia
com o do arcediago, na travessa do Laranjal ou Bomjardim. Por causa
d'ella, e á sua vista, o rapaz foi castigado com uma palmatoria. No dia
seguinte, o mestre que o castigou, appareceu morto, e José Bento
desappareceu.
Foi para o Brazil, onde se demorou alguns annos, vendendo carnes sêccas.
Por fim, morre o patrão, e deixa-o senhor d'uma riqueza que parece
extraordinaria, pelo fausto com que se apresentou no Porto.
Ninguem se lembrava já do filho do retrozeiro, que tinha morrido. José
Bento de Magalhães e Castro, como elle se assigna, occultou algum tempo
o seu nascimento; mas, um dia, apresenta-se em casa de Anna do Carmo,
pedindo licença para vêr Rosa Guilhermina.
A viuva apparece; mas não se recordava já das feições do seu primeiro
namoro. José Bento declara-se, e offerece-se como marido de Rosa.
Não sei o que se seguiu a isto. O boato do proximo casamento correu
logo. O senhor Magalhães e Castro é recebido nas primeiras casas.
Alcançou fôro de fidalgo, e trata de edificar no Reimão um palacete com
as armas dos Castros e Magalhães. Dizem-me, que, dentro de oito dias,
Rosa será senhora de grandes bens de fortuna, e as suas carruagens serão
as melhores.
Eu quizera que v... se risse com a fina ironia de talento, e da
experiencia, como eu realmente me rio d'estas grutescas evoluções do
mundo.
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