A Filha do Arcediago - 04

Total number of words is 4582
Total number of unique words is 1656
35.4 of words are in the 2000 most common words
50.5 of words are in the 5000 most common words
56.9 of words are in the 8000 most common words
Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
--Que vá, aonde? Não seja tão mausinho, senhor Josésinho do meu coração.
Vmc.e ha de ser um fradinho de pau de sabugo muito bonito... Já tem
corôa?
--Tenho um dardo que a parta.
--Olha que mau!... Senhor José, não seja assim... Tome lá uma beijoca.
O corrido estudante tinha desapparecido, não só porque se via embaraçado
em responder ás zombarias da importuna rapariga, mas porque o mestre,
ouvindo-o fallar, vinha de manso espreitar com quem era. O zeloso
professor appareceu no muro, e ainda viu as duas meninas, que se
retiravam em grandes gargalhadas. Enfurecido com a audacia do lôrpa,
como elle generosamente o intitulava, foi ter com elle explicações
acerca de tal conversa.
--Que dizias tu áquellas meninas?
--Eu, nada... Eram ellas que...
--Que... o que? que te diziam ellas?
--Ellas diziam que...
--Acaba d'ahi selvagem!
--Eu estava alli a estudar a selecta primeira, e ellas disseram-me
que...
--Estás zombando comigo?
--Perguntaram-me se eu era...
--Um burro? e tu disseste-lhe que sim.
--Não foi isso... perguntaram-me se...
--És um asno quadrado! Ouviste, lôrpa? Se te vir outra vez a fallar com
as visinhas, escangalho-te as mãos! Não tens habilidade para traduzir
_mundus á domino constitutus est_, e sabes dar tréla ás raparigas!? Ora
deixa estar que te farei a cama!...
A crise passou, e José Bento n'esse dia apenas teve, como era de
costume, um bofetão e um puxão de orelhas, por causa do imperativo
_laudandum_.
No dia immediato, as meninas não o viram; mas, no outro, Rosinha viera
adiante esperar a sua amiga para colherem rosas do Japão, quando ouviu o
som roufenho da voz conhecida de José Bento:
--Senhora Rosinha, assim é que vmc.e se porta comigo?
--Ah!... estava ahi?!...
--Pois então! cuida que eu me esqueci de si? Ficou de me escrever, e foi
como se nada!... Olhe lá como vmc.e é!
--Não pude, senhor José... e tenho a dizer-lhe que é melhor não me
fallar, que meu pae ralha-me. Faça de conta que nunca nos vimos. Aquillo
que nós dissemos foi uma brincadeira de creanças. Trate do seu estudo, e
não se embarace comigo, porque eu tenho muito medo a meu pae...
--Sempre vmc.e é... d'aquella casta! E eu a pensar em si todos os dias,
e sempre a esperar noticias suas, ha quasi um anno!... Então eu já não
sou o mesmo?
José Bento proseguia n'uma tirada eloquente contra a perfidia de Rosa,
quando o vulto austero do mestre de latim surgiu de improviso ao lado do
pallido estudante. Ao mesmo tempo, chegava Elisa, rindo muito da
surpreza, e Rosa punha os olhos no chão, e cortava machinalmente uma
rosa menos purpurina que ella.
--Chegue-se aqui!--disse o mestre ao rapaz aproximando-o do muro, que
dividia os dous quintaes--Ó meninas!
--Que quer?-perguntou Elisa.
--Os meus discipulos ensinam-se assim. Dê cá a mão, seu lôrpa!
José Bento, córado como um mólho de malaguetas, recuou diante da
palmatoria, cuja cabeça o espreitava por debaixo do capote de saragoça.
--Dê cá a mão! Vossê não obedece? Olhe que o mando pendurar n'aquella
figueira.
--Como Judas Iscariote--atalhou Elisa, fungando, e esfregando as mãos.
O infeliz déra a mão, e quatro sonoras palmatoadas lhe estouraram na
epiderme. A dôr moral devia ser grande! Rosa estava pallida, e Elisa, de
repente, séria, disse ao professor:
--Se eu fosse elle...
--Que diz lá a senhora?
--Digo que, se fosse elle...
--Que faria?
--Dava-lhe um murro no nariz.
--Em quem?
--Em vmc.e ...
--Se é senhora, não o parece...--disse o professor, encarando-a com
desprêso--Eu tratarei de saber quem é seu pae, e, se seu pae lhe não
der com umas disciplinas...
--Que me ha de fazer? dá-me palmatoadas?
--Hei de lhe mandar dar com um chinelo...
--Fóra casmurro!... Venha para cá, que lhe hei de dar um docinho...
O infiado mestre foi cevar as iras impotentes no pobre moço, que levou a
ponta-pés para o quarto.
José Bento recahiu n'uma profunda concentração. Durante o dia não comeu,
nem bebeu, nem estudou. Á meia noite ergueu-se d'um impeto similhante a
um ataque repentino de demencia. Abriu uma gaveta, e tirou um garfo. Ás
apalpadellas atravessou um corredor, e, na extremidade, abriu de
mansinho uma porta. Aproximou-se do leito onde resonava um homem, e
cravou-lhe tres vezes o garfo no pescoço. O agonisante soltou um rugido,
que só o assassino ouviu, e expirou.
Pela manhã encontraram morto o velho Manoel José d'Almeida, professor de
latim, com um garfo tinto de sangue sobre a dobra do lençol.
--José Bento desapparecera. Foi procurado em casa do João Retrozeiro, e
não o encontraram.
Horrivel acontecimento!
A lingua latina perdeu um dos seus melhores interpretes. O senhor Manoel
José de Almeida poderia ser um temperamento colerico com os seus
discipulos, mas a sciencia devia-lhe muito. Escreveu largamente sobre a
genuina interpretação do _tam libet hirsutam tibi fulci recidere
barbam_, de Ovidio. Deixou ineditos tres volumes sobre a conjuncção
copulativa, e preciosos manuscriptos sobre o adverbio _quotiesqumque_.
Era um bom catholico, e amigo dos pobres, que lhe chamavam pae. Era bom
esposo, bom pae e bom irmão; e, se não era bom cidadão, é porque os
cidadãos inventaram-se depois.
_A terra lhe seja leve!_


CAPITULO VIII

O tragico successo inquietou um pouco o espirito de Rosa; mas a sua
amiga convenceu-a de que não devia dar-se por achada em similhante
cousa. O director do collegio ignorava a causa do inaudito crime,
presenciara a sóva de pontapés com que José Bento se recolhera ao
quarto; mas suppoz que a justificada razão d'aquelle castigo fôra
qualquer asneira do rapaz na impossivel conjugação do verbo _Laudo_,
especialmente no imperativo _laudandum_.
Por conseguinte, as pequenas não tiveram de responder como causas
involuntarias daquelle sinistro, e continuaram no gôso da sua
felicidade.
O arcediago, supposto não vivesse com ellas, almoçava, e jantava com sua
filha, ceava com uma senhora viuva que lhe administrava a casa; e,
depois de ceia...
Depois de ceia, ha muita cousa a dizer a este respeito.
É sabido que Rosa Guilhermina era filha de uma tal Anna do Carmo, velha
predilecção do padre Leonardo, e por elle dotada para o honesto fim de
casar-se com um tal francez, com loja de livros na rua das Flores.
O padre não andou com toda a generosidade n'este negocio. Dado o
dinheiro, se quizesse ser honrado, devia renunciar inteiramente, a
beneficio do livreiro, a mulher de que se descartára. Magôa-nos, porém,
ter de annunciar que o arcediago era um agiota no seu genero, e pensamos
que a senhora Anna do Carmo não era mau genero para agiotagem.
A verdade é que o pae de Rosa continuava a visitar de dia o
estabelecimento do livreiro, comprava algum livro que ajuntava, na
estante, aos seus virgens irmãos, e predispunha favoravelmente com as
visitas diurnas a confiança do marido, que tinha lido Molière, e não
queria incorrer no defeito do _Cocu imaginaire_, que o leitor póde lêr,
se a consciencia o não incommóda.
A honesta esposa repellia as seducções do padre, esquivando-se a
encontros em que o usurario amante parecia convidal-a a pagar-lhe um
juro avaro do capital recebido. Dissertava-lhe amplamente sobre a
verdadeira virtude, pintava-lhe a ingratidão o mais feio dos crimes,
dissuadia-a de temores piegas que não tinham nada com a verdadeira
religião, e queria convencel-a de peneira nos olhos a respeito do
matrimonio e de muitas outras cousas.
O francez não sabia que fôra elle o amante de sua mulher.
Movido pelo interesse que as frequentes visitas do amador dos bons
livros lhe dava,--e, de mais a mais, convencido da honestidade de sua
mulher, se o padre, feio e velho, tentasse seduzil-a,--o senhor Hemerin
Pierrote (Deus lhe falle n'alma) acolheu agradavelmente o seu bom amigo,
e honrou-se muito, não só das suas visitas, mas do interesse que o
generoso padre tomava em ser o padrinho do primeiro filho de tão feliz
matrimonio.
Madama Anna Pierrote recebia com repugnancia as pontuaes visitas do
arcediago, e esta repugnancia, que seu marido lhe censurava como
inconveniente aos interesses de ambos, era uma nova razão para que o
espirito do francez estivesse tranquillo, e as suas portas sempre
francas para o generoso compadre.
Este parentesco fôra contrahido muito contra vontade da senhora Anna.
Seu marido, porém que recebera de antemão o enxoval do recem-nascido,
perguntou cheio de cólera a sua mulher, se queria algum _garçon de bone
mine_ (rapaz esbelto) para compadre. Accrescentou que, se ella fosse
fina, devia ameigar constantemente o arcediago, que era rico, e poderia
fazer o afilhado seu herdeiro. Resumiu, emfim, o seu discurso,
declarando, pelo _sacre nom de Dieu_, que o arcediago de Barroso seria
seu compadre, e mandaria n'aquella casa como na sua.
A senhora Anna, coma boa esposa, resignou-se; padre Leonardo, como bom
compadre, vinha duas vezes ao dia fazer caretas e botar a lingua de
fóra, com o pequeno nos braços; e o risonho marido, como habil e
francezissimo logrador, deixava o padre em cima ensinando a creança a
dizer papá, e vinha para a loja fazer negocio e trautear a
_Marseillese_.
A creancinha, habituada com o arcediago, apenas o via, estrebuxava no
collo da mãe, batendo as palmas, e articulando--_papá_, _papá_. O
livreiro ria-se muito contente da esperteza do pequeno, e ensinava-o a
dizer _padrinho_; e a creança, que não sabia ainda ajuntar tres
syllabas, teimava em dizer _papá_.
Mr. Hemerin estava contentissimo do filho, e da mulher tambem, porque a
repugnancia em receber o arcediago desapparecera desde certo tempo, e
sua mulher, emfim, sabia viver perfeitamente com o compadre, e já se lhe
não dava de jogar com elle a _bisca de nove_, e o _trinta-e-um_.
Correram dois annos n'esta perfeita harmonia. Os visinhos riam-se do
francez, mas a razão do riso devia ser elle o ultimo que a soubesse.
Eram notorios, na rua das Flores, os precedentes de Anna do Carmo; os
maledicentes sabiam que ella fôra amante do arcediago; o livreiro
visinho contava aos seus freguezes a immoralidade do jacobino (que
vendia melhores obras, e sortira a sua loja de tudo que se procurava) e
lamentava a queda da religião, se o senhor bispo não pozesse côbro
áquelle grande escandalo.
O demonio da intriga viera perturbar a felicidade domestica d'aquella
familia.
O pequeno Leonardo, já de dous annos, continuava a chamar papá ao padre,
com grande aprazimento do pae matrimonial. A senhora Anna mostrava a seu
marido as prendas que o compadre lhe dava. O marido mostrava a sua
mulher o córte de velludo vermelho que o compadre lhe déra. Tudo isto ia
_le mieux qui se peut_, como dizia o jubiloso livreiro, quando, abrindo
de manhã a porta, encontrou uma carta em que um seu _amigo intimo_, como
todos os amigos das cartas anonymas, lhe dizia o que se passava em sua
casa, as antigas relações de sua mulher com o padre, e o descredito
geral em que a sua honra andava nas praças publicas. Como seu _amigo
intimo_, e zeloso do seu bom nome, aconselhava o generoso espião que
pozesse o padre fóra de casa, e que mettesse a mulher no Ferro, para
assim dar uma plena satisfação ao publico escandalisado.
O discreto marido leu a carta, e vendeu com a maior presença de espirito
um _Flos-Sanctorum_ a um padre da aldeia, que se apeára d'uma égoa, no
momento em que a porta se abrira.
--Estas obras de sanctidade--disse o padre--creio eu que se vendem
pouco... A religião está por terra... Já lá vai o tempo em que os frades
escreviam obras de substancia... Os de hoje criam muito cachaço, e os
seculares são uns libertinos, que o mais que fazem é apanhar as
prebendas, os canonicatos, e os beneficios para viverem á regalada. O
exemplo devemol-o dar nós, como diz o apostolo: _Ante eas vadit, et oves
eum secuntur_... Já lá vai esse tempo. Os bons padres, e que sabem do
seu officio, vivem obscuros na aldeia, e ninguem os chama para as
dignidades da igreja; os que arruinam com a sua má vida e mau exemplo o
edificio da religião, a casa de Deus, _ædes Domini_, esses são chamados
a lamber as chagas do corpo putrido da humanidade; _canes veniebant, et
lingebant ulcera_, como diz S. Lucas no capitulo XVI.
--Então o senhor padre veio requerer algum beneficio, que lhe não deram?
--Vim, sim, senhor, vim pedir ao senhor bispo uma igreja apresentada
pela Mitra, e estou aqui ha um mez a gastar n'uma estalagem, e vou-me
embora sem ella. O bispo é... o que Deus sabe... Dizem que é um sancto,
mas barata virtude é a sua... Quando o rebanho anda tresviado, o pastor
não é lá grande cousa, como diz o livro sancto: _Nam quod ab ovibus
erratur, negligentie pastoris adscribitur_.
--Quer o senhor padre uma cousa?
--Nada, não, senhor, não quero mais livro nenhum; precisava d'este para
tirar uma duvida sobre se o apostolo Sant'Thiago veio ou não a Portugal,
e se S. Martinho de Dume foi arcebispo primaz...
--Eu não lhe perguntei se queria mais livros; disse-lhe que me lembrava
um meio de v. s.ª...
--Alto lá! Nada de _vossa senhoria_... Eu não sou d'esses modernos, que
se esquecem da humildade do divino Mestre, e querem as honras que, ha
trezentos annos, se davam ao rei... Trate-me por vmc.e
--Pois bem; se vmc.e quizesse, eu poderia arranjar-lhe um bom empenho
para o bispo.
--Sim? então quem é elle?
--Isso agora é um segredo... Veja lá vmc.e quanto dá...
--Quanto dou? isso é symonia, reprovada e condemnada com graves penas
pelo concilio tridentino. Se eu quizesse servir-me d'esse infernal
recurso, bem sei a que porta devia bater. Conheço como as minhas mãos um
vendilhão d'esses favores, que não tem vergonha nem temor de Deus, e ha
muitos annos que trafica descaradamente com os objectos sagrados da
sancta religião de Nosso Senhor Jesus Christo. É um symoniaco, um
libertino, indigno de se sentar no cabido...
--Quem é elle?
--Quem ha de ser? é o arcediago de Barroso, um homem sem religião, de
pessimos costumes, que tem vivido amancebado toda a sua vida, e que, de
mais a mais, tem o desaforo de casar uma das suas concubinas ahi não sei
com quem, e disseram-me que continua a viver adulterinamente com ella...
Fóra o adultero! Não lhe faltava senão esta!...
--E vmc.e conhece-o?
--Conheço muito bem, oxalá que não. Fomos companheiros no seminario, e
já lá prophetisei a rôlha, que viria a ser o senhor Leonardo Taveira...
Depois, via-o pelo Porto, e fui jantar a casa d'elle, e sahi
escandalisado porque teve o desavergonhamento de sentar comnosco á mesa
uma rapariga que tinha em casa...
--Sabe como ella se chamava?
--Sei, sim, senhor. Chamava-se Anna do Carmo...
--Anna do Carmo!...
--Vmc.e espanta-se? É o que eu lhe digo...
--Que figura tinha ella?
--Era uma mocetona tirada das canellas, branca, cheia do peito, com os
olhos mesmo concupiscentes como os do proprio demonio, e fallava sem
vergonha diante de mim.
--E sabe se foi essa a que elle casou?
--Dizem-me que sim, até o homem é estrangeiro, por signal, e tem não
sei que officio. Se vmc.e quizer, eu volto cá qualquer dia, e posso
saber-lhe tudo isso a preceito.
--Muito obrigado... eu não tenho interesse n'isso...
--Pois é como é. A religião está entregue a estes ministros. O arcediago
de Barroso tem muito dinheiro em casa d'um negociante da rua das Flores,
mas esse dinheiro é o preço por que elle comprou o inferno... ganhou-o
nas symonias... Lá está em cima quem o ha de julgar... E, com isto,
adeusinho até outra vez. Fique na graça de Maria Sanctissima, e passe
por cá muito bem até outra occasião, se Deus nos dér vida. Adeusinho,
sem mais.
O padre abria o alforge para metter o _Flos-Sanctorum_, quando o
arcediago lhe dava uma palmada no hombro.
--Tu por aqui, padre João Pires?
--É verdade... Então que é feito, Leonardo?
--Vamos vivendo... Já te não vejo ha muito!...
--Não ha dinheiro para vir á cidade... Os padres de _requiem_ não comem
do cabido... Lá nas aldeias o mais que se pilha é a missinha de tostão,
que não dá para hostias. Isto cá é outra cousa. Os padres do Porto são
cardeaes, menos na sabedoria, que no mais tem tudo...
--Não é tanto assim, padre João... Deus sabe como cada qual se arranja.
Então vieste comprar o teu livrinho?
--É verdade; comprei o _Flos-Sanctorum_, e sabe Deus o que me tem
custado a arranjar os tres mil e duzentos.
--Se queres mais algum, e não tens dinheiro, eu fico por ti, e tu
pagarás depois ao senhor Hemerin, que me faz o favor de ser meu amigo.
O arcediago piscou o ôlho para o livreiro, que estava encostado ao
mostrador, e o livreiro, sorriu-se d'um modo que era novo para o
arcediago.
--Nada, muito obrigado--disse o padre João Pires--eu não gosto de fazer
dividas, porque não tenho esperanças de ser conego para pagal-as
depois... Com que sim, meu caro Leonardo... Os bons tempos que nós
passamos no seminario... lembras-te?
--Se lembro!...
--Eras um bom tratante!... fugias de noite, e vinhas de madrugada
pedir-me que te ensinasse o Larraga... Boas as fizeste!... Que é feito
d'aquella rapariga do vendeiro de Campanhã que tu tiraste de casa?
--Não fallemos n'isso... Como tu te lembras d'essas rapaziadas... Esse
tempo passou...
--Pois era uma rapariga perfeita!
--E aquell'outra das Fontainhas, que tinha um pae levadinho da breca,
que te fez fugir em camisa para o seminario?
--Cala-te lá com essas cousas, João!... Isso foram bambochatas de
estudante...
--Está feito, está feito... Tu tens pago um bom tributo á mocidade... Já
tu eras padre ha muitos annos, e ainda fazias das tuas de estudante...
--Olha lá, meu caro João, se quizeres alguma cousa de mim...
--Obrigado... Eu gosto de fallar nos tempos da mocidade...
--Pois sim; mas eu tenho de estar nos Congregados ás oito horas...
Estimarei que passes muito bem.
--Olha cá, padre Leonardo... ha ahi um sugeito que te quer fallar a
respeito d'uma dispensa para casamento entre primos em segundo grau. O
pretendente dá boas luvas a quem lh'a arranjar depressa...
--Sim!... pois eu conheço um banqueiro, que vence todas as
difficuldades; mas... aqui entre nós... é preciso untar-lhe as unhas...
--Ah! maganão!... o banqueiro és tu em carne e osso!...
--Não sou, João. Acredita que não sou...
--_In verbo sacerdotis!_
--_In verbo sacerdotis_... N'essas materias melindrosas não escrupulisa
a minha consciencia. Terei algumas fraquezas, de que me accuse, do tempo
de rapaz, mas em cousas de religião o caso é muito sério.
--Com que tu tens muitos escrupulos das tuas rapaziadas, heim?
--Alguns; mas em certas idades tudo se desculpa, e Deus bem sabe que a
razão não tem a força necessaria para conter os impetos d'aquelle
novissimo do homem...
--Que não é do mundo, nem do diabo! Ora pois, Deus te conserve no sancto
arrependimento...
--Então quem é o pretendente da dispensa?...
--Isso fallaremos outra vez... Ora olha, meu querido Leonardo, não sei
se sabes que tenho cá na Sé requerimento para uma igreja.
--Nada, não sei.
--Poderás fazer com que o senhor bispo me despache?
--Homem, isso é um caso difficil... Se queres que te falle a verdade, no
paço tudo se move por dinheiro...
--E tu dás á manivella nas rodas da machina, não é assim, meu Leonardo?
--Estás a rir, João...
--Pois eu podéra chorar!... Tudo isto leva-se a rir, senão endoudecia a
gente... Ora anda lá que tu não deves só ter escrupulos das tuas
rapaziadas... A proposito de rapaziadas, que é feito da Anna do Carmo?
--Da...?
--Sim... da Anna do Carmo... aquella mocetona que morava comtigo na rua
Direita, aqui ha dez annos...
--Não sei... não me recordo... não sei de quem me fallas... adeus... até
outro dia...
--Espera homem--disse o padre inexoravel ao confuso arcediago que suava
em janeiro como o seu amigo Silva no mez de agosto, por vêr alli tão
perto o francez, que não perdia uma palavra do dialogo.--Espera... não
te confundas, que eu não quero confundir-te. Isto é conversar como
amigos... Eu já sabia que foste honrado com a rapariga, e que a casaste
com um bom dote... Uma fraqueza não desacredita ninguem... David tambem
peccou, e S. Pedro negou o mestre.
--Dizes bem, João, adeus, até outra vez...
--Então... até outra vez.
Padre João não comprehendeu a afflicção do arcediago. A ultima despedida
disse-lh'a, quando elle de repente lhe voltou as costas, por não poder
conservar-se com a cara voltada para o francez que lhe não desviava os
olhos d'ella.
Já escanchado commodamente sobre o albardão da égoa somnambula, o antigo
conhecido de Anna do Carmo, voltando-se para o livreiro, disse,
sorrindo:
--Vê que tal é o amigo? Olhe como elle se atrapalhou quando eu lhe
fallei na moça...! reparou?
--Reparei... reparei...
--O que ella merecia é que o marido d'ella lhe quebrasse o espinhaço com
uma tranca... Mas os maridos ás vezes, são tão bons como ellas...
Adeusinho...
--Passe muito bem.
Mr. Hemerin leu, segunda vez, a carta anonyma, e sahiu.
Esperem asneira. Quando mal nos percatamos, temos pela prôa um marido
brioso!
Safa!...
_Rara avis in terris_...


CAPITULO IX

O arcediago, quando fugiu bruscamente ás impertinencias vingativas do
padre João Pires, ia perdido, e não atinava com o refugio mais azado no
embaraço em que se via.
Na rua das Hortas, quando voltava do campo de Sancto Ovidio, até onde
fôra machinalmente, encontrou o marido de Anna do Carmo, que o
comprimentou com a graça costumada, e nem de leve lhe tocou nas
escandalosas revelações do profundo investigador de Sant'Thiago, e S.
Martinho de Dume.
Padre Leonardo, admirado da singeleza do francez, entendeu que as cousas
estavam no pé em que as deixára na vespera, e tranquillisou o tumulto de
vergonhas e receios que lhe traziam o coração em dolorosas piruetas.
Convencido do inesperado quão feliz resultado da extravagante scena,
veio á rua das Flores, e encontrou Anna do Carmo, ao mostrador,
espantada de que seu marido sahisse sem dar parte, nem chamal-a a ella
para a loja.
Isto fez impressão no arcediago, que teve a prudencia de calar á mãe dos
seus filhos o desgraçado encontro com o amaldiçoado padre de
Ponte-Ferreira.
Todavia, a sahida rapida do francez alguma cousa queria dizer. O atilado
arcediago reflectiu no que poderia resultar d'alli; lembrou-se, um
momento, que a sua organisação physica poderia soffrer algum abalo menos
agradavel, e, finalmente, appellando para o futuro com a intrepidez de
philosopho, esperou as consequencias.
Acabava o velho amigo de padre João Pires de fazer os seus juizos,
quando o livreiro entrou com a mesma affabilidade, com o inalteravel
sorriso d'um esposo feliz.
--Sahiste sem dizer nada?!--disse a senhora Anna.
--Foi-me necessario sahir com tal precipitação, que nem me lembrou
chamar-te.
--Pois que foi, Hemerin?
--Que havia de ser? Um engano... Vieram-me aqui dizer que o regedor das
justiças me queria mandar prender, porque eu vendia clandestinamente na
minha loja livros protestantes, e folhetos escriptos contra a religião.
Corri immediatamente a casa do regedor, e tive a fortuna de encontrar,
quando lá cheguei, o desmentido da calumnia que forjaram contra mim os
meus inimigos.
--Inda bem!...--disse a mulher.
--E se não acontecesse assim--accrescentou o arcediago com o
contentamento da boa fé--eu ainda tenho amigos para desmanchar as
traições dos seus inimigos.
--Muito obrigado, senhor compadre. Tudo está arranjado, d'esta vez. Se
elles continuarem, v. s.ª será o nosso protector, como tem sido sempre.
O arcediago almoçou com elles, e não podia deixar de felicitar-se por
ter casado a mãe de Rosa com tão boa pessoa, alma tão singela, e genio
tão estimavel a todos os respeitos. Fez muitas festas á creancinha, que
dava biscoutos ao livreiro para que os désse ao _papá_, o que o
livreiro, com paternal meiguice, cumpria, rindo-se muito da galanteria
do pequeno.
Correu o dia regularmente. O arcediago despediu-se á meia noite,
promettendo na noite seguinte pagar quatro partidas de bisca, que
perdera jogando com a senhora Anna, emquanto seu marido sahira a
encommendar de Paris a nova edição de Bossuet e Bourdaloue.
Na madrugada do seguinte dia, Hemerin levantou-se mais cedo que o
costume, e disse a sua mulher que lhe désse a chave da commoda em que
estava a sua roupa branca.
Anna quiz erguer-se para dar uma camisa a seu marido, e elle mandou-a
ficar. A mulher instou, e o francez intimou-a imperiosamente que não
sahisse.
Momentos depois, a mãe de Rosa sentiu fechar-se por fóra a porta da rua!
Ergueu-se, foi á commoda, e achou-a vasia da roupa de seu marido. Desceu
á loja, tudo estava fechado. Tornou ao seu quarto e viu um bilhete sobre
o lavatorio, com estas poucas palavras: «_És uma boa mulher, mas não me
serves. Eu não sou mau homem, mas não te sirvo. Sejamos francos, e bons
amigos. Tu ficas, e eu vou. Regala-te com o padre, e faz-lhe visitas
minhas. Se me quizeres alguma cousa e elle tambem, escrevam-me para
Paris. Adeus._»
A senhora Anna do Carmo ficou aturdida. Queria fazer alguma cousa
n'aquelle conflicto; mas que poderia ella fazer? A porta da rua, de mais
a mais, estava fechada! Se o arcediago viesse... mas o arcediago não
vinha antes das oito horas! Se arrombava as portas, o barulho dava que
fallar aos visinhos, e o escandalo era certo! Mas, se o escandalo era
certo, inevitavel, a pobre mulher lembrou-se de arrombar a porta, e
procurar seu marido; mas aonde?
N'esta irresolução, a senhora Anna ouviu as oito horas. Correu á
janella, e viu á sua porta alguns homens, um dos quaes abria a porta.
Desceu abaixo, e perguntou quem eram:
--Sou um escrivão, com os meus meirinhos.
--Que querem?
--Fazer penhora nos objectos conteúdos n'esta casa.
--Devo alguma cousa a alguem?
--Deve.
--O quê?
--O conteúdo n'esta petição, a que está junto um titulo de divida
authentico, assignado por seu marido o senhor Hemerin Pierrote.
--Mas eu não assignei.
--Vmc.e sabe escrever?
--Não, senhor.
--Por isso mesmo é que não assignou. Seu marido assignou por ambos.
--Isso é uma ladroeira! Eu grito aqui d'elrei, se me levam alguma cousa
de minha casa.
--Pois grite, que arranja com isso a ser levada tambem.
--Para onde?
--Para a cadeia, ou para o hospital de S. José.
--Que é dos louvados, senhor meirinho geral?
--Estão aqui os ensambladores.
--Pois que subam a avaliar os moveis, e chame ahi dois livreiros para
louvarem os livros.
--É um roubo que me fazem!--exclamou Anna, collocando-se adiante dos
livreiros, que vieram d'um pulo.
--Retire-se, mulher, se não mando autual-a!
--Mas quero saber a quem é que devo...
--Ao vice-consul da França.
--Eu não conheço esse homem.
--Tambem não é preciso, nem deve ter muita pena d'isso. É um homem como
os outros, pouco mais ou menos.
Entrava o arcediago com os olhos espantados, e o queixo pávidamente
descahido.
--Senhor compadre!--exclamou Anna--querem-me roubar!...
--Roubar!... Como se entende isto?!
--Deixe-a fallar--disse o escrivão.--É um mandado de penhora.
--Á ordem de quem?
--Do juiz de fóra.
--Mas quem é o credor?
--Senhor arcediago, não nos importune com as suas perguntas. Vá lá
sabel-o, se quizer. Nós cumprimos a lei, e não temos obrigação de dar
explicações a quantos passarem na rua.
--Onde está seu marido?--perguntou o padre.
--Não sei... Olhe aqui.
A senhora Anna chamou-o de parte, e contou-lhe o succedido. O arcediago
ficou tranzido.
--Que hei de eu fazer, Leonardo? Não me dirás?
--Põe a tua mantilha, pega no pequeno, e vai com a criada para minha
casa.
--E os meus arranjos?...
You have read 1 text from Portuguese literature.
Next - A Filha do Arcediago - 05
  • Parts
  • A Filha do Arcediago - 01
    Total number of words is 4735
    Total number of unique words is 1629
    36.8 of words are in the 2000 most common words
    49.1 of words are in the 5000 most common words
    55.8 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Filha do Arcediago - 02
    Total number of words is 4636
    Total number of unique words is 1660
    34.9 of words are in the 2000 most common words
    48.5 of words are in the 5000 most common words
    55.1 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Filha do Arcediago - 03
    Total number of words is 4548
    Total number of unique words is 1698
    34.9 of words are in the 2000 most common words
    47.4 of words are in the 5000 most common words
    53.8 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Filha do Arcediago - 04
    Total number of words is 4582
    Total number of unique words is 1656
    35.4 of words are in the 2000 most common words
    50.5 of words are in the 5000 most common words
    56.9 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Filha do Arcediago - 05
    Total number of words is 4638
    Total number of unique words is 1694
    35.9 of words are in the 2000 most common words
    50.9 of words are in the 5000 most common words
    57.9 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Filha do Arcediago - 06
    Total number of words is 4737
    Total number of unique words is 1531
    38.0 of words are in the 2000 most common words
    49.1 of words are in the 5000 most common words
    55.3 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Filha do Arcediago - 07
    Total number of words is 4515
    Total number of unique words is 1644
    36.9 of words are in the 2000 most common words
    50.8 of words are in the 5000 most common words
    58.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Filha do Arcediago - 08
    Total number of words is 4751
    Total number of unique words is 1565
    39.4 of words are in the 2000 most common words
    52.5 of words are in the 5000 most common words
    59.5 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Filha do Arcediago - 09
    Total number of words is 4608
    Total number of unique words is 1273
    44.8 of words are in the 2000 most common words
    55.9 of words are in the 5000 most common words
    61.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Filha do Arcediago - 10
    Total number of words is 4572
    Total number of unique words is 1713
    35.2 of words are in the 2000 most common words
    50.2 of words are in the 5000 most common words
    56.9 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Filha do Arcediago - 11
    Total number of words is 4670
    Total number of unique words is 1609
    37.8 of words are in the 2000 most common words
    50.0 of words are in the 5000 most common words
    56.7 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Filha do Arcediago - 12
    Total number of words is 4646
    Total number of unique words is 1573
    39.0 of words are in the 2000 most common words
    51.1 of words are in the 5000 most common words
    58.1 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Filha do Arcediago - 13
    Total number of words is 4546
    Total number of unique words is 1692
    37.9 of words are in the 2000 most common words
    51.7 of words are in the 5000 most common words
    58.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Filha do Arcediago - 14
    Total number of words is 4463
    Total number of unique words is 1690
    38.0 of words are in the 2000 most common words
    51.7 of words are in the 5000 most common words
    58.8 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Filha do Arcediago - 15
    Total number of words is 4354
    Total number of unique words is 1465
    37.9 of words are in the 2000 most common words
    51.8 of words are in the 5000 most common words
    59.1 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Filha do Arcediago - 16
    Total number of words is 4474
    Total number of unique words is 1542
    37.4 of words are in the 2000 most common words
    52.1 of words are in the 5000 most common words
    58.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Filha do Arcediago - 17
    Total number of words is 1726
    Total number of unique words is 738
    47.4 of words are in the 2000 most common words
    59.6 of words are in the 5000 most common words
    64.3 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.