A Filha do Arcediago - 13

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satisfazem as necessidades de alguns celibatarios que vieram ao mundo
para chronistas dos infortunios alheios. Eu, que sou um dos que se
honram d'essa missão, não posso deixar de confessar publicamente a minha
admiração por esta senhora, digna (a todos os respeitos não direi, mas a
alguns, de certo) d'outro marido, ou d'outro amante. Qualquer que tenha
sido o seu peccado, a gente de bom coração tem pena d'ella, vendo-a,
depois dos tristes acontecimentos que historiei com sincero dó, sósinha,
entregue á escuridão da sua vida sem amor, sem luz, sem ar, alli sempre
na presença do senhor Antonio, carinhoso até á desesperação, terno até
ao aborrecimento, desvelado em extremos de meiguice tôla até dar vontade
de o mandar comer e dormir.
Isso foi que elle nunca deixou de fazer. O estomago era uma cousa á
parte na sua organisação. Eram dous Antonios n'um. O Antonio do ciume
morreria de paixão: mas o António do estomago só uma indigestão poderia
matal-o.
Sempre ao lado de sua mulher, inerte, sedentario, bufando, arquejando,
impando, o nosso amigo sentia-se cada vez mais pesado. A medicina
mandava-o passear a pé, e elle sem Maria Elisa, não dava um passo. Já
não eram suspeitas. Era a tenacidade do amor, a reloucura da velhice que
o prendia áquella mulher, como se prende a creança timida ao seio de sua
mãe.
Correram assim tres mezes. Maria Elisa, cada vez mais triste, cahiu
n'uma especie de doloroso somnambulismo. As janellas do seu quarto não
se abriam nunca. Passava as longas horas do dia e da noite, lendo sem
reflexão, e escrevendo cousas que o seu marido não entendia, mas gostava
d'ouvil-as. Eram «melancolias surdas» como ella intitulara os trinta
cadernos de papel em que as escrevera. Disseram-me que essas paginas
perdidas continham cousas bonitas, pensamentos que não pareciam de
mulher, energia de phrase, conhecimento do coração, e toque real d'uma
verdadeira dôr. O que não viram n'ellas as pessoas, que me informaram,
foi o nome de Fernandes. Parece que a imagem d'este homem fôra para
sempre banida das saudades de Maria Elisa.
Constrangida pela soledade, a antiga orphã de S. Lazaro lembrou-se com
amor da sua amiga de infancia. Queria revocal-a ao seu coração, d'onde
nunca sahira, mas seu marido odiava Rosa, fazia-se côr de carmim quando
lhe fallavam n'ella, e repetira muitas vezes que, emquanto elle fosse
vivo, a filha do arcediago não entraria em sua casa.
Maria Elisa não replicava a este odio inveterado. Tinha compaixão do
pobre homem que, desde certo tempo, vaticinava a morte. Já não comia com
o mesmo appetite. Já não accumulava com prazer as sopas na tigella do
caldo de gallinha. Sentia precisão de sentar-se, apenas se erguia, e
acordava muitas vezes de noite com os pés frios e a cabeça em braza.
A senhora Angelica, sempre a mesma devota, depois das desordens, por
causa do neto dos Pesicatos, metteu-se no seu quarto, em oração
permanente, e apenas sahia tres vezes em cada doze horas para comer,
visto que era necessario dividir a sua extatica existencia entre o
oratorio e a cosinha. Quiz, algumas vezes, intrometter-se na vida de seu
irmão, censurando a frieza de sua cunhada; mas não obstante a seriedade
do assumpto, a senhora Angelica, se fallava só dizia asneiras, o que não
succede sómente á senhora Angelica.
Consta que ella fôra uma vez ainda consultar a senhora Escolastica, a
Massarellos; mas esta mulher tinha morrido de fome, não obstante
predizer o futuro, que, parece, á primeira vista, um bom modo de vida,
depois de jornalista, que são as Escolasticas de calças e paletó do
nosso tempo.
Eu vou dizer-vos cousas pungentissimas. É com pena, realmente vos digo,
que me vejo obrigado a deixar morrer uma das creaturas mais notaveis
d'este romance. Accuso a medicina d'aquelles tempos por não ter salvado
d'um ataque apopletico o senhor Antonio José da Silva. Se fosse hoje,
este homem não teria morrido, sem que ao menos o esfolassem com quatro
duzias de ventosas, e cento e tantos causticos. Tel-o-iam salvado com
alguma d'essas medicinas, que disputam entre si a vida dos cidadãos, ao
passo que as camaras municipaes mandam alargar os cemiterios. Felizes os
que morrem hoje, que, se morrem, é porque não podiam viver mais.
O senhor Antonio deitou-se uma tarde, queixando-se de dôres de cabeça.
Metteu os pés n'um banho de mostarda; mandou pedir a sua mulher que
viesse fazer-lhe companhia, e recebeu-a morto, quando ella entrou. O
facultativo chamado sangrou-o. A veia verteu algumas gotas de sangue
negro, e fechou-se, porque as valvulas do coração estavam fechadas para
sempre.
Maria Elisa tomou a mão do cadaver, e beijou-a sem lagrimas. A senhora
Angelica veio ao quarto de seu irmão, e chorou muito, grunhiu
desentoadamente, e atordoou a visinhança com gritos. Feita esta berraria
de duas horas, comeu alguma cousa sem appetite; mas podia dizer que
tinha fome que ninguem duvidaria da sua palavra. Ao mesmo tempo, Maria
Elisa, que não gritára, nem chorára, fugindo do quarto de seu marido,
fechára-se no seu, escondera a face nas mãos, e murmurou: «Perdi um pae!
Sou orphã outra vez!»


CAPITULO XXVI

A viuva do honrado negociante, que passou da terra sem um necrologio,
escreveu a Rosa Guilhermina uma carta que era um grito supplicante á sua
amiga d'outro tempo. Pedia-lhe que viesse, porque a chamava de ao pé
d'um cadaver. Só, sem amigos, e rodeada de riquezas inuteis, appellava
para a unica pessoa capaz de avaliar a sua orphandade.
Rosa Guilhermina entrou com o portador da carta. Abraçaram-se, chorando.
Fecharam-se, para se furtarem ás formalidades estupidas das visitas
funebres, que nos vem dizer: «sinto muito» e nos obrigam a responder:
«muito obrigado.» Dous dias e duas noites quasi não tiveram um
intervallo de silencio. Soffriam ambas, soffriam muito, e já não sabiam
adubar as conversações d'aquella fina especiaria de risos, que tanto
promettiam, e em tantas lagrimas deviam converter-se depois.
--Já não somos as mesmas, Maria Elisa!--disse Rosa, abraçando a sua
amiga, que lhe inclinava o rosto pallido no hombro.
--Já não... A nossa mocidade foi um dia... Parece-me que vivo ha
muito... Tem-me lembrado a morte, como o maior beneficio que posso
esperar do céo...
--E eu tenho-a pedido tantas vezes!...
--Tambem soffres, Rosa?! Não tens um esposo amado?
--Não.
--Como não? pois não casaste por paixão?
--Casei... e depois, vi que me tinha perdido...
--Pois que? elle não te estima?
--Não... arrasta-me na sua desgraça... Meu marido é um homem perdido...
um ente sem honra, nem futuro, nem presente.
--Pois teu marido não está a formar-se em Coimbra?
--Já não trata d'isso... Meu marido é um jogador.
--Jogador!
--Sim, jogador de profissão... Gastou quanto podia gastar do meu
patrimonio... O pouco que possuo para a minha subsistencia e de minha
filha, tira-m'o com violencia. Foi riscado da universidade, veio ao
Porto vender aquella prata, que tu déste a minha filha, depois de a
comprares a meu marido, e foi para Lisboa, sempre acompanhado d'uma
mulher ordinaria, que viveu na minha companhia quinze dias, e ousou dar
ordens das minhas portas a dentro. Ha cinco mezes que não tenho,
noticias d'elle. Nem ao menos me pergunta por sua filha. Sei que vive,
porque, no fim de cada mez, se apresenta em minha casa uma ordem
assignada por elle para eu pagar quasi tudo que o juiz dos orphãos
arbitrou para o sustento da minha familia... Aqui tens a minha vida...
Estou pobre... Maria Elisa!...
--Tu não estás pobre, Rosa! Não me falles assim, que me fazes chorar! Tu
não estás pobre... Eu preciso que te esqueças de todo o nosso passado,
para entrares de novo no coração de Elisa... Queres ser minha? Eu estou
viuva, e viuva tambem tu estás... O teu coração não é já d'esse homem...
É da tua filha, e meu; a tua filha é minha e tua, sim?... Não chores...
Troquemos entre tres as nossas affeições todas... Vivamos n'uma só
vontade... Foge para os meus braços, que não tem no mundo ninguem que os
queira, a não seres tu... Faz-me outra vez sorrir para a vida, que
n'estes ultimos dous annos me tem sido tão negra... tão negra... Rosa!
Faz que a minha riqueza me seja uma cousa agradavel... Dá-lhe algum
prestimo... Só tu podes, se vieres ser outra vez minha irmã, explicar-me
a razão por que eu queria ser rica... Era para isto, era, minha querida
amiga, era para nos fazermos felizes tres creaturas... eu, tu, e a nossa
menina... Vai buscal-a... Vai... Não me digas que não... que me matas...
Essa mesada que tens dá-a a teu marido... Que jogue, que se deshonre,
mas foge-lhe tu, que não tens ainda uma nódoa na tua vida... Vem
ensinar-me a ser boa, e honrada, porque eu tenho sido...
--O quê?... que tens tu sido?...
--Uma desgraçada...
--Tambem eu... que culpa temos nós?!
--Eu?... muita!... Calemo-nos, Rosa... Olha aquelles sinos pezam-me
sobre o coração... Tenho mêdo d'aquelles sons... Se meu marido tivesse
sido n'esta vida um homem, como eu deveria ter encontrado um, eu
pensaria que aquelle dobre era a voz d'elle que me accusava da
eternidade... Ai!... tu ignoras a minha vida? Parece impossivel!...
Nunca ouviste fallar de mim como se falla d'uma infame mulher?
--Nunca...
--Pois pergunta ao mundo o que eu fui... Não, não perguntes nada...
Ignora tudo. O meu coração para ti está puro... Restituo-t'o como t'o
roubei, ou tu o lançaste de ti para fóra... Não te importem os meus
defeitos... Foi um sonho horrivel! Acordei nos teus braços... quero aqui
viver... Deixas-me esquecer aqui do muito que tenho soffrido?...........
........................................................................
Rosa Guilhermina recebia com lagrimas as meias confidencias de D. Maria
Elisa, quando lhe disseram que seu marido a procurava, por saber que
ella estava alli.
A surpreza brutificou-a.
Maria Elisa mandou subir Augusto Leite, e reanimou a sua amiga do
lethargo em que a deixou esta apparição tão pouco desejada. Fôra preciso
muito para que a pobre senhora aborrecesse seu marido.
Não bastariam para isso as dissipações que elle fizera do seu
patrimonio. A mulher perdôa sempre os desperdicios de seu marido, com
tanto que elles não envolvam uma affronta ao seu amor proprio, servindo
de preço aos amores alheios que se vendem.
Não fôra, pois, o jogo que arruinara a felicidade de Rosa. Foi o descaro
insultuoso com que Augusto, na sua penultima vinda ao Porto, lhe
introduzira em casa a tricana das chinelas amarellas, mulher insolente
que, authorisada pelo amante, ousara esbulhar os bragaes da casa,
deixando a sua dona só os indispensaveis.
Estes vexames nunca se perdôam. A esposa, assim ultrajada, póde
soffrel-os calada como martyr, mas não poderá nunca reservar um resto de
affeição ao homem, que a humilhou assim.
Rosa entrou na sala em que era esperada. Quando deu de face com seu
marido, que não vira nos ultimos seis mezes, desconheceu-o e recuou.
Trazia a barba toda, que lhe augmentava a magreza cadaverica do rosto.
Vestia uma velha sobre-casaca, de panno desbotado, encodeada na golla, e
farpáda na botoadura. Os seus olhos pisados, mas ainda penetrantes do
brilho da desesperação, fixavam Rosa com ar ameaçador.
Cruzando os braços com a importancia tragica d'um marido de tragedia,
que vem, de longes terras, pedir contas a sua mulher, Augusto Leite
disse, aproximando-se:
--Parece que me não conheces, Rosa?
--Vens tão mudado do que eras!... não admira que te não conhecesse,
Augusto!
--Pois sou eu mesmo... Vejo que não sentes grande prazer com a minha
visita...
--Não te esperava... Como ha seis mezes me não escreves...
--Entendeste que não havia nada commum entre nós... Pois, minha amiga,
sou teu marido, apesar de ambos nós...
--Sinto muito que o sejas a teu pesar... Eramos ambos bem mais felizes,
se o não fosses.
--Parece-te? a mim tambem; mas já agora o remedio é seres minha mulher,
e eu teu marido...
--Fallas-me d'um modo que me fazes gelar o coração!... Que te fiz eu
para me tratares assim?
--Eu sei cá o que me fizeste!... não me fizeste nada... Penso que me
tornaste mais desgraçado do que eu era...
--Vejo que sim; mas não era essa a minha intenção.. Eu quiz fazer-te
feliz; se o não consegui, é porque não pude, nem tu me disseste o que eu
devia fazer para a tua felicidade...
--O que me perdeu foi o teu dinheiro...
--Não tive culpa, Augusto...
--Eu, se fosse sempre pobre, não me illudia com as esperanças do teu
patrimonio, e trabalharia, estudaria para chegar a ser homem...
--Que hei de eu fazer-te, Augusto!... Eu nunca te aconselhei que
arruinasses o que te dei; se soubesse que o meu dinheiro te fazia
infeliz, lançal-o-ia ao mar para me casar pobre comtigo... Mas, se eu
fosse pobre, de certo me não quererias...
--Não sei, não me importa saber, todas as conjecturas agora são
estupidas...
--Perdôa as minhas conjecturas... Eu d'antes era espirituosa, segundo tu
dizias, que eu nunca o acreditei... Agora sou estupida, é porque a
desgraça embrutece...
--Nada de ironias... Sabes que estou pobrissimo?
--Não sabia; mas acredito que o estás.
--Pódes avaliar a minha situação?
--Posso; porque eu tambem estou pobrissima.
--Menos que eu...
--Mais que tu... Tenho uma filha que sustento, e cheguei á extrema dôr
de querer comprar-lhe um vestido, e tive de vender um meu, para que a
minha filha te não envergonhasse... Avalias tu agora a minha situação?
--Diz ao teu tutor que te entregue o que tens, e tu administrarás...
--Já lh'o suppliquei muitas vezes. Não me concede cinco reis além da
mesada que me arbitraram... Não posso conseguir nada... Emprega tu os
meios, que eu concedo-te tudo; e, se não podéres alcançar mais do que
eu, desde já te cedo toda a minha mesada, e eu e minha filha
recorreremos á caridade da minha amiga Maria Elisa.
--Não quero caridades de ninguem: quero aquillo que é meu, quando não
enterro uma faca no coração do tutor...
--Cala-te, Augusto, que me pareces demente!
--É porque eu realmente estou louco... Preciso sahir d'esta desgraçada
vida em que me vejo... Quero dinheiro, Rosa, quando não vou com um
bacamarte para as estradas...
--Augusto!--exclamou ella, tirando-lhe a mão do cabo do punhal, que
empunhára instinctivamente no bolso interior do casaco.
--Tu não sabes onde a desgraça é capaz de me levar... A sociedade fez-me
assim... Se perdi muito dinheiro, perdi o que era meu; não roubei nada a
ninguem; e a sociedade infame despresou-me, chamou-me homem perdido, e
cuspiu-me na cara, porque eu empobreci... Vi-me abandonado, e tornei-me
criminoso... Estou cumplice n'um roubo, e, se dentro de tres dias, não
dér um conto de reis, sou prêso, e degradado, ou pendurado n'uma forca.
--Oh meu Deus, que vergonha!...--disse Rosa, cahindo n'uma cadeira, e
escondendo o rosto entre as mãos.
--Nada de exclamações... Esse remedio não me presta de nada... Visto que
tens uma amiga rica do que era de meu tio, pede-lhe este dinheiro, se me
queres salvar... Não me respondes?
--Augusto!... eu não posso responder-te já... Deixa-me possuir bastante
do meu infortunio, para perder a vergonha...
--Isto não soffre delongas... Quero a resposta já...
--A resposta dou-lh'a eu--disse Maria Elisa, que apparecera de
improviso.
Augusto cortejou-a ligeiramente, e Rosa ergueu-se tremula, e sentou-se
logo, porque lhe faltavam forças para acolher-se ao seio da sua amiga.
Maria Elisa veio ter com ella, abraçou-a, deu-lhe um beijo, e levou-a
comsigo para dentro. Voltando-se para Augusto, disse:
--Queira demorar-se, que eu volto já.
Augusto Leite sentiu um abalo que faria parecel-o louco a alguem que o
visse. Não era loucura. Era o contentamento de se vêr possuidor d'um
conto de reis, com o qual contava já. Era a esperança de transportar-se
com elle a Hespanha a tentar a fortuna, visto que não poderia tornar a
Lisboa, onde o perseguiam por crime de roubo de uns brilhantes, cujo
valor perdera em menos de tres horas. Esta ideia salvadora produziu-lhe
uma febre de loucura passageira. Encarou-se n'um espelho, e viu-se como
um idiota, penteando as barbas com os dedos. Retesou os braços,
espreguiçando-se, e murmurou por entre os dentes quasi cerrados: «ha um
demonio, que me protege! Respeito-o mais que os sanctos, e hei de
mostrar-lhe que sou agradecido...»
Maria Elisa voltou. Sentou-se no canapé, e fez signal a Augusto,
offerecendo-lhe uma cadeira:
--Senhor Augusto, v. s.ª vai receber da minha mão uma quantia de
dinheiro, que me não pertence, nem a sua mulher. É uma generosidade de
sua filha, de que eu sou interprete...
--De minha filha?!
--Sim, senhor. Eu dei a quantia que vou confiar-lhe a sua filha, e
fiquei sendo sua administradora. Quando ella estiver em estado de
recebel-a, v. s.ª lh'a entregará. São tres contos de reis em notas. É um
deposito sagrado que lhe confio. Espero que v. s.ª procure reconquistar
a sua honra, e não lhe faltarão recursos para um dia entregar a sua
filha esta quantia augmentada...
Augusto, balbuciante de prazer, não avistando d'um relance toda a
extensão do seu futuro, murmurou:
--Eu farei por ser um digno depositario do dinheiro de minha familia.
--Agora, senhor, tenho a pedir-lhe um favor em nome d'ella.
--Qual?... a viuva de meu tio manda, não pede...
--A viuva de seu tio nem manda, nem pede nada. Repito-lhe que sou
absolutamente estranha a esta troca de favores que faz o pae com sua
filha. O que em nome d'essa menina lhe peço, é que consinta que ella e
sua mãe vivam na minha companhia.
--É muita honra para mim, minha senhora. Eu vou fazer uma pequena viagem
por causa de certos interesses, e durante a minha ausencia não posso
confiar a mais valiosa protecção minha mulher e minha filha.
--Vai viajar?... Sua senhora já o sabe?
--Ainda lh'o não disse.
--Pois então... não lh'o diga... Salvo se tem motivos fortes para
dizer-lh'o...
--Não tenho alguns... Era simplesmente despedir-me...
--N'esse caso, eu encarrego-me de fazel-a sciente do seu adeus, e v. s.ª
de qualquer paiz lhe escreverá...
--Minha senhora... dispõe do meu quasi inutil prestimo?
--Empregue-o, que tem muito, em ser um digno marido da minha amiga, e um
digno pae da menina que adopto como minha sobrinha. Além dos vinculos de
parentesco que o prendiam a meu marido, ha outros mais consistentes que
são os da amizade, que consagro a sua mãe.
........................................................................
Augusto Leite retirou-se. Maria Elisa, com o coração alvoroçado de
prazer, foi abraçar Rosa, e exclamou, com quanto amor podia empregar na
soffreguidão d'um beijo: «És minha para toda a vida!»


CAPITULO XXVII

Sigamos Augusto Leite, emquanto sua mulher e filha dão a Maria Elisa a
felicidade, que ella lhes remunera com afagos.
O jogador, febril de contentamento, entrou em sua casa, no Laranjal,
disse algumas palavras a sua mãe, e mandou preparar a inseparavel
moçoila, que o acompanhava, na boa e má fortuna, havia quatro annos.
Sahiu, e comprou uma jaqueta de pelles, uma faxa de sêda escarlate,
chapéo de guizos, um par de pistolas, um cobrejão, e dous cavallos de
baixo preço.
Duas horas depois, a rapariga, encadernada n'umas andilhas, passava na
Ramada-Alta, estrada de Vianna, e Augusto Leite, com pau de chôpa
debaixo da perna, esporeando o cavallo, á laia de cigano, caminhava a
par com ella.
N'esse dia foram dormir a Casal de Pedro, e viram lá umas pulgas, cujas
netas eu encontrei trinta annos depois, pulgas enormes e ferozes, que
arrastam as meias dos passageiros, depois que lhes exhaurem as arterias
d'um sangue azedado pelo maldito vinho, que a estalajadeira vos
ministra, perguntando-vos se sabeis alguma mézinha para matar as
_bichas_ dos pequenos.
Pernoitei ahi uma vez na minha vida. Comprehendi, no quarto que me
deram, os supplicios do christão primitivo atirado ao circo. «Christão
ás pulgas!» deveria ser, no imperio romano, um grito de prazer para o
paganismo sanguinario, como o fatal «Christão ás feras!»
Era alta noite, e eu não podia transigir, dormindo, amigavelmente com a
ferocidade dos insectos, se é que não podemos chamar cetaceos áquellas
pulgas, de horrivel recordação. No sobrado immediato ao da possilga em
que eu me contorcia nas vascas d'uma agonia de novo genero, rosnavam uma
boa duzia de gallegas, que vinham da terra a visitarem os respectivos
gallegos residentes no Porto.
Descompunham-se em raivosas apostrophes por causa das mantas, que
algumas d'ellas monopolisavam com grave escandalo e frialdade das
outras. Dos improperios passaram a vias de facto. Socaram-se,
esgadanharam-se, revolveram-se, creio eu, como uma matilha de cadellas,
e vieram de encontrão á porta do meu quarto, que não resistiu ao choque,
e deixou entrar aquelle embrulho indecifravel de gorgonas em fralda de
camisa, que me pareciam, á luz mortiça da véla, executarem uma dança
macabra, uma mazurka de demonios!
Eu levantei-me em pé sobre o catre de pau castanho, pintado de amarello,
e presenciei com os cabellos erriçados o desfecho d'aquella tremenda
lucta. O dono da estalagem, e o meu criado vieram protocolisar a
desordem, distribuindo alguns murros indistinctamente, de que resultou a
fuga desordenada das gallegas, para o seu arraial, ficando considerado o
meu quarto campo neutro.
N'esse mesmo quarto, ás duas horas da noite, tambem o senhor Augusto
Leite recebeu uma inesperada visita; mas não de gallegas em guerra crua.
Eram oito soldados de cavallaria, commandados por aquelle esturdio
cadete, que o leitor conhece, e reforçados por alguns meirinhos do
corregedor, e um especial enviado do regedor das justiças.
Já soubemos que Augusto Leite roubára em Lisboa uns brilhantes. A razão
por que os roubara deu-a Prudon depois: os brilhantes eram propriedade
da condessa de ***, e a propriedade era um roubo.
Como se introduziu Augusto Leite em casa da condessa de ***? Não é bem
liquido, e eu não quero inventar, porque não tenho necessidade de
deslustrar a veracidade do meu conto por amor d'um incidente de pouca
monta. Disseram uns que Augusto Leite era amante da condessa; outros
affirmam que o academico, expulso da universidade, se valera d'um seu
condiscipulo, primo d'essa senhora, para ser protegido por ella na sua
admissão á academia. Eu, de mim, para não duvidar de nenhuma das
explicações, acredito-as ambas, e não offendo os diversos opinantes.
O que devem todos acreditar é que Augusto Leite dispensou á condessa o
trabalho de pôr o seu collar e pulseiras de brilhantes em um dia d'annos
d'uma sua prima. As suspeitas recahiram em todos os domesticos, menos em
Augusto Leite. No dia seguinte corria em Lisboa, que um academico,
visita frequente da condessa de ***, tinha perdido, em menos de tres
horas, trinta mil cruzados em casa do barão de Quintella. Os curiosos
averiguaram o manancial possivel d'este dinheiro, e souberam que um
judeu na rua dos Fanqueiros comprára na vespera por trinta mil cruzados
uns brilhantes. A condessa, com authoridade judicial, fez que o judeu
apresentasse os brilhantes comprados. Reconhecidos, apossou-se d'elles
sem mais formalidade. O judeu gritou contra a extorsão, perguntando se
reviviam os tempos nefastos de D. João III; offereceu-se voluntariamente
para a fogueira; e a tudo isto, que realmente era pathetico, o
procurador da condessa respondeu: _res ubicumque est sui domini est_.
O judeu não ficou sabendo latim, mas conheceu varios artigos da nossa
legislação, e aproveitou-se d'aquelle que o authorisava a perseguir o
ladrão.
Augusto Leite entrou em casa da condessa, quando ella voltava de
reconhecer os seus diamantes. Um criado presenciou que ella algumas
palavras lhe dissera, e o seu protegido respondeu a ellas, voltando as
costas para nunca mais tornar. Os maledicentes quizeram inferir da
generosidade da condessa, que o avisou, consequencias desfavoraveis para
a honra d'ella. Como quer que fosse, Augusto fugiu de Lisboa, a pé, sem
dinheiro, sem bagagem, com uma mulher ao lado, e assim vagou quatro
mezes, não sabemos por onde, até que o vimos entrar em casa da viuva de
Antonio José da Silva.
Tornemos agora a Casal de Pedro.
O enviado do regedor das justiças bateu á porta da estalagem, e
perguntou que passageiros pernoitavam alli.
--Dous almocreves, o recoveiro de Vianna, um passageiro do Porto, com
sua mulher, e um criado.
--Abra lá a porta--disse com a costumada intimativa o executor da lei.
Abertas as portas, os meirinhos encaminharam-se para o quarto do
passageiro. Augusto Leite ouvira as perguntas. Saltára fóra da cama para
fugir, mas não conhecia um palmo da casa fóra do seu quarto. Antonia
Brites, companheira dos seus trabalhos, lembrou-se d'alguns sanctos, que
conhecera na infancia, e incommodou-os com as suas orações. O antigo
traductor de novellas não lêra cousa que lhe servisse de modelo para
similhante conflicto. Quiz precipitar-se da janella, mas viu na rua os
cavallos em linha. Recuou diante d'um sacrificio inutil, e appellou para
os extremos.
Os meirinhos entraram, e viram uma mulher de joelhos com as mãos
erguidas, e um homem de semblante feroz com duas pistolas aperradas.
O estalajadeiro, que caminhava na frente com a candeia, fez dous passos
á rectaguarda, e declarou-se neutral. Os meirinhos, que tinham á vida o
amor suficiente para viverem oitenta annos mais, não foram mais adiante
que o prudente estalajadeiro. Augusto conservou-se na postura
ameaçadora, fuzilando dos olhos um clarão mais vivido que a candeia
tremula do petrificado taverneiro.
Um dos meirinhos, emquanto os outros voltavam as costas, veio á rua, e
disse que o homem não era para graças. O cadete apeou, e subiu com dous
soldados. Foi á porta do quarto, e encontrou o athleta na sua
immobilidade sinistra. Deu-lhe voz de prêso, e viu que o ladrão era
surdo, ou rebelde á lei.
--O melhor é botar-lhe as unhas--murmurou um soldado.
--Agarra-o, _trinta e quatro_!--disse o cadete.
O _trinta e quatro_ entrou no quarto, e, quando lançava mão aos copos da
espada, sentiu um corpo duro bater-lhe na testa. Descarregou ainda um
golpe, e foi de bruços atraz da espada que bateu no sobrado. Estava
morto.
O camarada do _trinta e quatro_ correu em defeza do seu companheiro.
Descarregou duas cutiladas na cabeça de Augusto; mas, á terceira, sentiu
fraquear-lhe o braço, e veio recuando, cahir, com uma bala no coração,
aos pés do cadete.
Os outros soldados tinham subido, e atropellavam-se á entrada do quarto.
Augusto Leite, coberto de sangue, defendia-se debilmente com a chôpa,
que vencia o alcance das espadas. Os soldados, arrefecidos pelo aspecto
dos dous camaradas mortos, não ousavam affrontar o aço da chôpa, que
algumas vezes sentiram resvalar-lhe na farda, deixando-lhe na pelle um
ligeiro ardor, que depois se exacerbava com a humidade do sangue.
O cadete, envergonhado da cobardia dos seus, diante d'um só homem,
entendeu que salvava a sua honra, desfechando uma clavina no peito de
Augusto Leite. Ao desfechal-a viu interpôr-se-lhe um vulto. Era Antonia
Brites, que vinha pedir-lhe de joelhos que não matasse Augusto. Não
chegou a pronunciar a primeira palavra. Recebeu a bala, que havia de
matar o marido de Rosa, e cahiu pedindo confissão. Deus lhe levaria em
desconto das suas culpas o bom desejo de reconciliar-se com o céo,
porque fechou os olhos antes de vêr o padre.
Augusto, impellido pelo instincto da vida, saltou da janella ao
quinteiro com tal destreza, que as espadas não poderam tocar-lhe. O
quinteiro estava deserto de homens, e os cavallos soltos entretinham a
fome no tojo. A comitiva correu atropelladamente a impedir a fuga.
Quando chegaram ao quinteiro, meirinhos e soldados, qual d'elles mais
corajoso, o que viram foi um cavallo de menos, e na calçada fronteira as
faiscas das ferraduras do que fugia. Alguns soldados quizeram montar;
mas os cavallos assustados pelo salto de Augusto ao meio d'elles, não
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