A Filha do Arcediago - 10

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O SENHOR ANTONIO
Angelica, tapa a bôca.
D. ANGELICA
Não quero!... Pois este desavergonhado não diz que eu quiz casar com
elle! Mariola! Sempre é bem _coitadinho_!...
O SENHOR PEREIRA
D'uma pandorca assim não ha nada a estranhar. Eu tenho vergonha, sua
truquilheira, quando não havia dizer aqui quem vmc.e é...
O SENHOR ANTONIO
Quem manda aqui sou eu! Já d'aqui para fóra, João Pereira!

(_João Pereira, irritado como Ajax, leva as mãos indignadas á cabeça e
maquinalmente desloca o chinó. Ouvem-se fungadellas de sorrisos, que
exacerbam a cólera do calvo que se retira. Angelica tem o queixo n'uma
attitude perfurante. O senhor Antonio transpira na abundancia do
costume. Á lucta succede um profundo silencio, quebrado apenas pelos
gemidos convulsos da beata offendida na sua isempção de setenta annos._)

SCENA ULTIMA

OS MESMOS E UM ENCAPOTADO
ENCAPOTADO
(_no limiar da porta que communica para o interior_)
Senhora Angelica!
D. ANGELICA
Que queres tu, rapaz?
O SENHOR ANTONIO
Pois tu levantaste-te da cama a tremer maleitas, Joaquim? (_para Maria
Elisa_) Aquelle é o rapaz da loja que tem maleitas.
D. ANGELICA
Que queres tu?
O ENCAPOTADO
Eu estava a tremer as maleitas, e ouvi um grande restolho debaixo da
cama.
D. ANGELICA
Credo! que seria?
O ENCAPOTADO
Resei o credo em cruz, e fui vêr o que era...
D. ANGELICA
E que viste?!
O ENCAPOTADO
Era a gata que comia uma gallinha assada, que trago aqui, menos o
pescoço que lh'o tinha ella já comido.
(_O encapotado afasta as bandas do capote, e mostra a gallinha
effectivamente degolada!... A senhora Angelica recebe a victima da gata,
e pede a seu irmão poderes discricionarios para vingar a affronta._)
UMA VOZ
Está o jantar na mesa.


CAPITULO XX

Está, portanto, casada a senhora D. Maria Elisa de Sarmento e Athaide.
Temol-a na rua das Flores, e deixal-a lá estar. Que se embriague dos
carinhos do nosso bom amigo Antonio José. Se a riqueza satisfaz
plenamente as suas ambições, é muito rica, póde cortar por largo, tem á
sua disposição um homem capaz de tudo, menos de resignar-se com a
felicidade do seu visinho João Pereira, que Deus tenha na bemaventurança
dos pobres de espirito, que são quasi sempre os ricos de materia.
Vamos encontrar Rosa Guilhermina tambem casada com Augusto Leite. Sou o
primeiro a confessar que o meu romance está cahindo muito! Um casamento
ainda póde aturar-se no fim do romance. A gente gosta de vêr
recompensados os tormentos de dous amantes com o prosaico destino de
todos os tôlos e espertos. Ha casos, porém em que o casamento, em vez de
ser o ultimo, deve ser o primeiro martyrio das personagens de uma
novella. Quantas vezes eu leio uma, em que se me arrancam lagrimas de
compaixão por dous entes que se adoram, a despeito de mil estorvos que
lhes diluem em lagrimas os bellos olhos! Consterno-me; anceio a ultima
pagina em que vão ser coroadas por um gôso duradouro as suas agonias...
E essa ultima pagina diz-me que se casaram! «Faltava-lhes esta!» digo eu
então, arremessando com piedosa indignação o livro!
Ainda um casamento... passe! Mas dous casamentos!... É abusar dos dons
da igreja, ou romantisar o facto mais prosaico d'esta vida! Isto em mim
creio que é falta de imaginação, ou demasiado servilismo á verdade!
Se Deus me chamasse para este caminho, como dizia, a respeito do estudo
da natureza, o senhor João Pereira ao seu visinho, de certo não casava
estas mulheres, tão depressa. Acho que o melhor era trazel-as por ahi um
pouco de tempo a dar escandalos. Rosa deveria apaixonar-se por um major
de cavallaria que lhe faria o favor de a inscrever no productivo
catálogo das mães de familia. Depois o major era promovido a tenente
coronel, e ia commandar dragões de Chaves, do que resultava (que
palpitante não seria isto!) a boa da rapariga tomar duas onças de
verdete n'um copo d'agua, e morrer amaldiçoando o perfido! Que cousa tão
bonita! Hei de aproveital-a no primeiro romance que escrever, e que
desde já se assigna nas lojas do costume.
Ora, Maria Elisa, essa... que havia de ser essa?... Eu entendo que Maria
Elisa devia namorar-se d'um marquez. E vai depois este marquez tinha
casado clandestinamente com Joanna Fagundes, criada da casa. E vai
depois, constando á dita Fagundes que seu marido namorava Maria Elisa, a
espadauda moçoila n'uma bella tarde, procura-a em casa, e mette-lhe os
tampos dentro com uma cadeira. Elisa expira nos braços d'um sargento de
policia, e Joanna Fagundes deixa cahir a mantilha, exclamando:
«Eu sou a marqueza de tal!»
O leitor ficava maravilhado do successo, e contava á familia a passagem
com as lagrimas nos olhos.
Espero tambem não perder esta ideia, e o leitor terá occasião de avaliar
duas obras primas. Por emquanto, peço ao respeitavel publico que
suspenda o juizo a respeito da minha capacidade inventiva.
Já agora, porém, atemos o fio d'esta fastidiosa historia, e vejamos
quantas moralidades podem produzir dous casamentos honestos.
O secundanista de direito casou oito dias depois de seu tio, e tomou
conta da administração da casa, que recebeu do tutor de sua mulher.
Nos primeiros dias parece que leram muitos romances, e aligeiraram as
horas em deliciosas palestras sobre a _Experiencia amorosa_, e _Sophia
ou o Consorcio violentado_, romances muito lidos n'aquelle tempo.
Ao cabo de quinze dias, Augusto Leite não era certo á hora da leitura, e
vinha, meia hora depois, pretextando negocios da casa.
Ao cabo de um mez, o extremoso marido deixava sua mulher a lêr as
_Viagens de Gulliver_ a sua sogra, e elle sahia a negocios domesticos,
que lhe empatavam o tempo até ás 11 horas da noite.
Ao cabo de dous mezes, o digno apreciador da litterata, se sua mulher
lhe perguntava a razão da demora, encarregava sua mãe de responder
suavemente, porque a paciencia já lhe não dava azo para tantas
satisfações.
Findo o prazo de dous mezes, Augusto foi para Coimbra continuar a sua
formatura, e convenceu sua mulher de que não era costume as mulheres
acompanharem seus maridos ao fóco da immoralidade. Rosa ficou, portanto,
na companhia de sua sogra, que lhe enxugava as lagrimas saudosas,
pedindo-lhe que lêsse a _Joaninha, ou a Engeitada generosa_. Seu marido
escrevia-lhe todas as semanas poucas linhas, mas essas eram calidamente
amorosas. Rosa indemnisava-lh'as com longas cartas, bonitas de
linguagem, com muita meiguice em phrase pomposa, e muitas outras
galanterias a que o academico, diga-se a verdade, não dava a maior
importancia.
E vejamos porquê:
Augusto Leite tinha uma paixão unica: era o jogo; mas o jogo fôra o seu
inferno, obrigára-o a fazer uma triste figura, como hoje se diz, porque
perdia sempre. A sorte que o perseguira em solteiro não lhe era mais
propicia em casado. O estudante continuava a jogar, e a perder; mas as
perdas agora avultavam mais, e ateavam-lhe a paixão com mais ardor.
Depois do jogo, o pensamento subalterno do marido de Rosa Guilhermina
era uma tricana, rapariga do campo, fresca e rosada, que vivia com elle,
desde o primeiro anno, e que viera ao Porto durante as ferias grandes,
em que se realisára o casamento do nosso traductor de novellas. Augusto
transigiu amigavelmente com a rapariga, promettendo-lhe um cordão de
ouro de vinte mil reis, uns brincos de sete mil e duzentos, dous pares
de chinelas, umas côr de gemma d'ovo, e outras verde-gaio, afóra um
capote de castorina côr de mel. De mais a mais, obrigára-se elle a tel-a
em sua companhia, com tanto que ella não fizesse barulho.
As condições estipuladas, de parte a parte, foram cumpridas. Benedicta
vivia, sem fazer barulho, na rua do Coruche com o seu academico, e
conseguira, além dos dous pares de chinelas, um terceiro par de sapatos
de cordovão com fitas, e uma mantilha de durante com aquelle bico
escandaloso que usam as mulheres de Coimbra, que são as mulheres mais
feias que Deus nosso Senhor depositou na face da terra.
Nas ferias do Natal, Augusto Leite veio consoar com sua familia. Houve
muito beijo, muita saudade, foram á missa do gallo á Sé, comeram muitos
confeitos de chocolate, e não tiveram tempo de lêr romances. Os outros
dias correram rapidos para a carinhosa esposa. No ultimo fez certa
revelação a seu marido, com a qual elle se mostrou contentissimo, e
sentiu a innocente vaidade de ser pae.
O academico partiu, e d'aqui até aos Carvalhos foi imaginando o systema
de banca-portugueza que lhe desse a desforra de seiscentos mil reis,
perdidos até ao Natal. E tal era a certeza da desforra, que não duvidou
contrahir o emprestimo d'um conto de reis, por isso que o patrimonio de
sua mulher eram só propriedades.
O imaginado systema falhou, ou pelo menos não tinha vingado ainda,
quando o imaginoso jogador perdeu o ultimo real do conto de reis.
Revoltado contra o traiçoeiro systema, seguiu o contrario, e perdeu
tambem. As meditações incessantes no methodo de ganhar, absorveram-lhe o
espirito de modo que o estudante foi reprovado, e retirou de Coimbra,
onde dissipára seis mil cruzados, e ficára devendo dous.
No Porto eram geralmente sabidas as dissipações de Augusto Leite. Sua
mulher fôra avisada por cartas anonymas, mas o seu espirito era altivo
de mais para rastejar nas mesquinharias do dinheiro. O juiz dos orphãos
é que não era tão sublime; e, instigado por o senhor Antonio José da
Silva, resolveu intervir na ruina do patrimonio de Rosa, sujeitando-a a
uma tutela, visto que seu marido era incapaz de administrar. Augusto
Leite quiz provar que tinha muito juizo, mas parece que provou de mais,
e peccou pelo excesso. As testemunhas disseram que nunca o tinham visto
atirar pedras. Isto que devia convencer o juiz dos orphãos, o mais que
fez foi tranquillisar-lhe o espirito dos receios de ser apedrejados pelo
dissipador. Tenho á vista os autos d'este processo, e sou obrigado a
confessar que o juiz julgou em boa harmonia com Pegas, e Carvalho, e
Pereira de Mello.
Era um magistrado probo. Permittam este _entre-parenthesis_, porque o
meu fraco é chamar probos a todos os magistrados, que recebem peitas,
porque os ordenados não chegam a nada. N'este paiz, um magistrado probo
já deu esta razão em pleno parlamento, e desde esse dia todos os
magistrados são probos, e a probidade e a beca e os sapatos de fivela e
as meias de seda, a rectidão e os bofes da camisa ficam sendo insignias
de todos os magistrados.
Que é o que eu vinha dizendo? Não ha nada que me incommode tanto como
ter de lêr o que escrevo... Acho que fallava no nascimento d'uma filha
de Rosa Guilhermina... Ha de ser isso... Pois é verdade: nasceu a tal
menina, e foi baptisada com o nome de _Assucena_, da qual se ha de fazer
larga e pungentissima chronica.[4] Era uma linda creancinha, que a mãe
offerecia ao pae, mas o fraco de Augusto não eram as creanças. Apenas a
tomava dos braços de Rosa, douda de contentamento, passava-a aos braços
da avó, que, por força, queria que a pequena se parecesse com ella.
Augusto vivia triste. Os carinhos de sua mulher não bastavam a
desenrugar-lhe a testa, sempre carregada para os afagos da pobre
senhora. Passeava sósinho no quintal, e, quando a timida mulher se
aproximasse, retirava-se elle a meditar no seu quarto.
--Eu desconheço-te!...--dizia Rosa, tomando-lhe meigamente a mão
insensivel--Que tens tu, Augusto?... já me não adoras com aquelles
extremos de ha um anno? Que te fiz? Não tenho eu sido tão igual para ti?
--Tens, Rosa... Não repares na minha tristeza... Isto é organisação...
--Pois assim variam as organisações!... Grande mudança transfigurou o
teu genio!...
--Que queres!... Eu não me fiz...
--Pois sim; mas porque soffres?!
--Porque não sou um homem vil, a quem se tire infamemente a administração
d'uma casa...
--Mas tenho eu culpa de tal infamia!... Não fui eu propria fallar com o
juiz?! Não empreguei os rogos, e as lagrimas com esse barbaro que quer
governar o que é nosso?! Serei eu culpada n'essa fatalidade!...
--Não és... eu não te accuso... mas deixa-me, se não pódes remediar esta
punhalada que se deu na minha honra! Foi um ultraje cobarde, forjado nas
trevas, á sombra da lei!... Despotas!... Eu hei de vingar-me de vós, ou
a minha dignidade nunca mais erguerá a fronte diante dos homens!
(_Reminiscencias d'um romance intitulado: EMILIA DE TOURVILLE, OU OS
MEUS SETE ANNOS DE PERSEGUIÇÃO._) Feriram-me na corda mais sensivel da
minha honra! Exauthoram-me dos direitos communs, a mim, que conheço,
profundamente, as raias, que separam a demencia irresponsavel das
operações do intellecto são! (_Ideias pilhadas a dente na SCIENCIA DOS
COSTUMES._) Fallarem-me no jogo!... Privarem-me do uso da minha
fortuna, por que jogo!... Quem póde privar-me de abrir com uma alavanca
de ouro a minha propria sepultura! (_Pensamento soffrivel, roubado ao
JOGADOR, comedia de Regnard._)
--E gostas assim de jogar, meu querido Augusto? Achas prazer no jogo?
--Acho... preciso d'esta distracção; fóra do jogo não vivo...
--Pois joga...
--E o dinheiro?... que é do dinheiro? Não vês que nos dão para a nossa
subsistencia quarenta mil reis cada mez?
--Mas temos outros recursos...
--Quaes?!
--A nossa prata, que está avaliada em cinco mil cruzados... vende-a.
--Não te zangas por isso?
--Não, filho!... Eu dera a vida pela tua tranquillidade... Não é ella
tua? Se o desejavas fazer, porque o não tens feito?...
........................................................................
Dias depois, Augusto Leite vendia a prata, que tinha sido o thesouro
mais querido do arcediago de Barroso, e partira para Coimbra, combinando
as fórmas d'um novo systema de jogo.
No dia seguinte ao da sua partida, Rosa Guilhermina recebia a sua prata,
e este bilhete:
_«Não desdenhes uma lembrança da tua velha amiga. Comprei essa prata, e
quiz presentear tua filha com ella._
«_Maria Elisa._»
A prata fôra comprada pelo senhor Antonio José da Silva.


CAPITULO XXI

Já não viviam na rua das Flores os disparatados conjuges.
O senhor Antonio José, quinze dias depois de casado, fechou a sua loja
de pannos e algodões, traspassando-a. Fôra esta a primeira exigencia de
sua mulher. Tanto elle como Angelica resistiram um pouco ás razões
frivolas de Maria Elisa; mas o amor vencera, e o covado e as balanças
foram offerecidas em holocausto a hymeneu, como dizia a mulher de João
Pereira, rindo-se muito da aristocracia balôfa da sua visinha, que lhe
não dava tréla.
Fechada a loja, e liquidados os lucros, o senhor Antonio, por escolha de
sua mulher, foi viver na ultima casa que o leitor encontra na rua da
Rainha, que n'esse tempo não tinha nome. Era uma casa de quinta, com
ares apalaçados, onde a senhora Angelica se dava pessimamente com os
ratos enormes que tiveram o barbaro appetite de lhe comer a manga
esquerda do seu capote, na primeira noite, e tentaram a temeridade de
lhe roer a unha d'um dedo do pé! Inscrevemos aqui as amarguras da
senhora Angelica, porque nos impozemos a obrigação de commemorar todas
as lagrimas d'este desventurado enredo.
O senhor Antonio José da Silva comprou carruagem. Esta immoralidade
custou muitos _padre-nossos_ a sua irmã, que esperava todos os dias um
raio fulminante sobre os cavallos, que conduziam sua cunhada a passeio
pelas estradas de Braga e Guimarães, que eram n'esse tempo um pouco
melhores que hoje, porque eram de pedra, e a civilisação não tinha ainda
inventado o cascalho.
O senhor Antonio cahira na imprudencia de entrar, uma vez, na carruagem,
e viu desgraçadamente realisadas as suas previsões! Foram taes os
solavancos que soffreu aquelle globo de carne, taes entaladelas
flagellaram os seus rofêgos esponjosos, que, tres dias de cama, o nosso
bom amigo difficilmente digeria a mesquinha refeição do costume.
Maria Elisa nunca mais o convidou para o martyrio da carruagem. Era uma
excellente esposa! Conhecera profundamente que as dimensões abdominosas
de seu marido não comportavam a agitação febril do seu espirito. Ia,
portanto sósinha, emquanto seu marido cultivava uns repolhos e umas
melancias que plantára e semeára para ter em que exercitar as suas
forças musculares.
A Providencia nem sempre é justa para os bons cultores da hortaliça!
Emquanto o senhor Antonio estudava a maneira de salvar do bicho a folha
exterior do repolho; emquanto o bom cidadão classificava methodicamente
a natureza do estrume, com que deviam adubar-se os terrenos de melancia;
emquanto, finalmente, o negociante retirado legava á humanidade um
prestante serviço em horticultura, sua mulher andava por lá fazendo
cousas, que aqui vamos escrever para caução de todos os maridos, que
espreitam a toupeira no cebolinho, emquanto suas amaveis mulheres vão
comprar tarlatanas, e rendas.
O leitor, se tem attendido á melhor historia que se tem escripto n'estes
ultimos annos, ha de lembrar-se de um senhor Fernandes, que assistiu ás
bodas do senhor Antonio, e que tinha uma linguagem distincta, e umas
ironias salgadas a sabor de D. Maria Elisa de Sarmento e Athaide.
O senhor Fernandes, de trinta e tantos annos, aspecto agradavel, com
algum espirito, com muita pouca materia, amigo de livros, e mais ainda
das boas mulheres, era o maior peccador que produziu a rua das Flores.
Contra todas as leis da honra, contra o mais respeitavel dos preceitos
do decálogo, o senhor Fernandes tinha uma diabolica vocação para a
mulher do seu proximo! Cahe-me da mão a penna indignada por se vêr na
dura precisão de archivar este escandalo! Lucto, ha oito dias, com a
veracidade do ignominioso facto, que vou enunciar com as lagrimas nos
olhos, e o pudor na face. Quizera cobrir com o véo da caridade esta
ulcera; porque antevejo o doloroso vexame que involuntariamente vou
inflingir ao leitor pudibundo! Não é possivel. Sou muito amigo do
publico; esforço-me por manter a moral na temperatura em que a
encontrei; mas, como o amigo de Platão, sou mais amigo da verdade. É
necessario dizer-se ao menos metade do que sei. Benzamo-nos, pois,
primeiramente, para que Deus nos livre de maus pensamentos, e das
tentações hediondas d'este grande peccador, que a estas horas já sabe o
bem ou mal que fez!...
Fernandes (_proh pudor!_) entendeu que devia namorar Maria Elisa, a
esposa do seu visinho, a mulher do seu proximo, que é sempre um sugeito
respeitavel, ainda que seja um grande tôlo; ou um grande maroto!
Ouseiro e veseiro de similhantes impudicicias, este monstro fôra o
primeiro immoral que tentára a honestidade da senhora D. Marcellina,
esposa muito querida do senhor João Pereira, e, pelos modos, assidua
cultora dos estudos da natureza. Esses estudos quem lh'os fez appetecer
foi elle! Não queremos fazer pêso aos seus enormes peccados, mas
releve-nos a sua alma o encargo que lhe fazemos de ter sido elle o
mestre de astronomia de Marcellina. Sem os prelogomenos, que elle lhe
ensinou, nunca ella viria, alta noite, estudar o «planeta
sete-estrello»! Á sombra da sciencia, deu-se ahi uma grande immoralidade
na face da terra! O crime infando, que hoje felizmente não tem
sectarios, graças á civilisação que vai ensinando os limites dos
deveres, não só internacionaes, mas tambem inter-visinhos, o crime
infando (repetimos com os calafrios do terror na espinha dorsal); o
crime infando, finalmente, consubstanciou-se de tal arte no sangue
d'aquelle homem, que (_vox faucibus hæsit!_) não havia mulher casada,
com um palmo de cara soffrivel, que o réprobo de Deus e dos maridos não
tentasse abysmar nas profundezas do báratro perpetuo!
Mas pela litteratura tinha vindo um grande mal á senhora Marcellina, que
não é digna do _dom_, attendendo á villã fraqueza com que se deixou
embair das astucias d'aquelle grande velhaco, que já me fez suar tres
vezes, desde que estou fallando nas suas impudencias!
De mais a mais, Fernandes era inconstante nas suas affeições, e cynico
na maneira de se desquitar das fastidiosas mulheres, que o fatigavam
depressa. Esta segunda immoralidade é uma questão á parte. A nossa
missão, aliás repugnante (nunca cessaremos de lembrar ao leitor que nos
parece impossivel este crime, como o parricido aos legisladores de
Athenas!) a nossa missão é contar que o dito Fernandes tentou seduzir
Maria Elisa!
O peor não é isto! A maior das vergonhas é ter eu de dizer que Maria
Elisa, legitima representante de nossa avó, que comeu maçãs no paraizo,
cedeu á tentação, e só torceu o pudibundo nariz duas vezes (ou tres, não
me recordo bem) ás calidas manifestações d'aquelle grande desaforado,
perverso, dissoluto, scelerado, e não sei mesmo se concussionario!
Quem soubesse isto, entrava no segredo dos constantes passeios de Maria
Elisa. A sua habitual direcção era á Ponte-da-Pedra, a uma legua do
Porto, na estrada de Braga.
Ahi apeava-se da carruagem, a pretexto de descansar. Subia para a sala
da estalagem, que já n'esse tempo era as delicias dos honrados amadores
de peixe frito, e azeitona. E n'essa sala... (_digitis callemus et
aure!_... Soccorre-me, meu velho Horacio!) encontrava sempre esse homem
para o qual o meu vocabulario de indignação não tem um nome adequado! E
isto aconteceu muitas vezes, emquanto o senhor Antonio sachava os
repolhos, e mondava a hervagem das melancias, sabe Deus com que
dificuldades na curvatura da columna vertebral!
Tres mezes, seis, nove, um anno esta pouca vergonha! E o céo não tinha
raios para o impio, e o senhor Antonio não tinha n'aquelle coração um
presagio, que lhe dissesse que entre o repolho e a melancia ha alguma
cousa que deve occupar a cabeça d'um homem sensato!
A Providencia, algumas vezes, parece-se com Homero; dormita, e consente
que os Antonios Josés levem no somno a palma ao cantor de Ulysses, que
tambem dormitou emquanto Penélope fazia muitas cousas, em que se parecia
com Maria Elisa. Ora já não é pequena gloria para o senhor Antonio José
collocar-se a par de Ulysses!
Era em uma bella tarde de agosto.
Maria Elisa sahira para a Ponte-da-Pedra. O senhor Antonio ficára n'um
banho de tina, chafurdando como o proprio tubarão de barbatanas. Quando
sahiu do banho, achou-se fresco, como é natural, e resolveu dar um
passeio, e, o que mais é, surprender sua mulher, que devia ficar
contentíssima de tal surpreza.
Ao pensamento seguiu-se a execução. O senhor Antonio repartiu as suas
duas pernas-pleonasmos sobre o dorso de uma pacifica jumenta, e com a
ponta da bengala estimulou-lhe a anca de modo que era um raio por
aquella estrada fóra! E era um grupo bonito! A pequena jumenta, debaixo
do vulto magestoso do senhor Antonio, parecia consubstanciada na
organisação do seu dono! Iam contentíssimos!
--Lá está a carruagem!--disse elle, exultando, á sua jumenta, com a qual
tivera um longo colloquio, em que a submissa interlocutora não fôra
menos eloquente com o seu silencio, nem lhe quizera conceder honras de
Balaam.
Pararam á porta da estalagem. O senhor Antonio não queria fazer ruido, e
perguntou baixinho:
--Onde está a dona da carruagem?
--Está lá em cima com o primo.
--Com o primo!--exclamou elle com um som de ventriculo.
--Sim, senhor, o primo...
--Quero vêl-a...
E subia as ingremes escadas, agarrado ao corrimão.
Maria Elisa conhecera a voz. Fernandes fugira para o quintalejo
immediato, e escapára-se pelos pinhaes visinhos, sem ser visto.
O senhor Antonio estava diante de sua mulher, solemne e magestoso como
todos os maridos em similhantes apertos. Queria fallar, e parece que a
eloquencia lhe ficava estagnada nos papos do pescoço que oscillavam como
duas bexigas de porco, sopradas pelo vento. Queria profundar o abysmo da
sua situação, e a unica imagem que lhe apparecia aos olhos pávidos era
João Pereira, o do chinó!
Angustias d'estas... não tem nome na terra! Cahiu, como forçado por um
enorme murro, sobre uma cadeira. O urro, que a cadeira gemeu debaixo
d'esta avalanche de carne, acordou os eccos da estalagem.
Maria Elisa, essa, pallida e confusa na surpreza do crime surprendido,
aproximou-se de seu marido, e murmurou com meiguice:
--Que tem?...
--Que tenho?... perguntas-me o que tenho?
--Sim!... pois que fiz eu?!
--O que me fizeste?!
--Sim!... o que lhe fiz?!
--_O que lhe fiz?!_ diz ella.
--Digo... pois que lhe fiz eu para tamanha commoção?
--Tu escarneces de mim!... Que primo é esse que estava comtigo?
--Um primo!?...
--Sim, um primo... quem é esse primo, que nunca me fallaste n'elle?...
Deixa que eu chamo a estalajadeira, e ella te dirá quem é que me disse
que tu estavas aqui com um primo... Espera ahi...
O senhor Antonio dera um pulo, como um tigre, da cadeira para o meio da
sala, e tomava fôlego para chamar a estalajadeira, quando Elisa,
atordoada da surpreza, mas não de todo, correu a elle, embaraçando-o do
vergonhoso proposito.
--Não chame... que é uma vergonha...
--Então sempre é verdade, que me és infiel!... Deshonraste, Maria Elisa,
um homem a quem deves tudo!... É assim que se é mulher honrada!... Foi
para isto que me amaste, e quizeste casar comigo!... Eu endoudeço... Eu
morro!... Que dirá o mundo!...
O senhor Antonio começava-lhe a dar cuidado o que diria o mundo. N'estas
enfermidades, o temor do que o mundo dirá é sempre um symptoma
favoravel; porque o mundo cala-se depressa, e as funcções vitaes do
espirito entram no seu curso regular.
Maria Elisa não era tão esperta como eu suppunha. Ficou estupidamente
surprendida. Não teve nenhuma lembrança feliz, que obrigasse seu marido
a pedir-lhe inclusivamente perdão da calumnia injuriosa! Cahiu com
miseravel imbecilidade n'um torpor moral, indigno da sua experimentada
philosophia. Deu-lhe para amuar, e morder o labio inferior, mas não com
tanta força que espirrasse sangue. Ella sabia fazer as cousas com
prudencia; e, com quanto soffresse bastante na alma, parece que poupava
o corpo como cousa sua, e não lhe quero eu mal por isso. Uma mulher,
como eu seria se o fosse, deve fazer muito por que o corpo se não sinta
das enfermidades da alma. A alma tem muitas primaveras, e por mais
envelhecida que esteja não se vê. O corpo tem só uma, e essa está
sujeita á maldita perfeição das lentes que lhe não deixam uma ruga
precursora de decadencia sem demorada analyse.
Eu, se fosse mulher, tinha enviado para Rilhafolles muitos poetas! Havia
de reduzil-os á quinta essencia do amor, que é a demencia. Com
preferencia a todos os outros, andaria de modo que me tornasse um
curioso estudo dos scepticos. Estas feras é que eu amansaria. Se eu
conseguisse tornar-me objecto dos seus estudos physiologicos,
prometto-vos que a seita ridiculamente comica dos _cansados_, dos
_scepticos_, e dos _não comprehendidos_ acabava como as preciosas
ridiculas de Luiz XIV.
Querem saber o que eu fazia? Ahi vai... É um serviço gratuito que eu
offereço ás mulheres, embora provoque inimizades de homens, que são
realmente os entes que menos me incommodam. N'este mundo ha só duas
cousas que me affligem: são os maus charutos, e madrugadas antes de uma
hora da tarde. No mais entendo que este globo é o melhor de todos para
quem não tiver callos e rheumatismo.
Se eu fosse mulher com uma cara soffrivel, estabelecia para meu uso as
seguintes theorias:

_Solteira_
Tendo de quinze a vinte e cinco annos, dava-me ares de candida
innocencia, e singeleza patriarchal. Olharia este ou aquelle importuno,
mas só com tres partes d'um ôlho, imaginando que elle tinha quatro.
Far-me-ia passar por myope, para que ninguem reparasse no olhar
penetrante com que os myopes costumam encarar os objectos a certa
distancia. Não usaria luneta para mostrar assim que a minha vista era de
sobejo para admirar as poucas maravilhas do mundo. No theatro teria a
barba sempre apoiada na convexidade da mão, e nunca pegaria do binóculo
sem reparar que a luva retezada não tivesse rugas.
Com as lentes attestadas para a segunda ordem deixaria passear a vista,
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