A Filha do Arcediago - 12

Total number of words is 4646
Total number of unique words is 1573
39.0 of words are in the 2000 most common words
51.1 of words are in the 5000 most common words
58.1 of words are in the 8000 most common words
Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
parente, e não ousei manifestar-lhe um desejo, a que o meu bom marido
annuiria mais por delicadeza, que por vontade do coração. Agora, que
tudo se declarou, não quero que o senhor Silva se mortifique por me ter
offendido com as suas imprudentes calumnias. Faça de conta que não houve
entre nós a mais ligeira desintelligencia. Estamos quites: o senhor
fez-me uma injustiça, reputando-me desleal; e eu fiz-lhe outra,
julgando-o sôffrego da sua fortuna, e incapaz de estender a mão
bemfeitora a meu desgraçado primo!...
--Ora, pois, não nos lembremos mais disso... Eu agora o que quero é
saber onde mora esse teu primo, porque sou eu o mesmo que propriamente
lhe quero ir levar os recursos necessarios para a sua subsistencia...
Onde mora elle?
--Onde mora elle?... (Maria Elisa não esperava esta! O improviso não era
o seu forte, e viu-se na mais embaraçosa atrapalhação). Eu, se quer que
lhe diga a verdade, não sei bem onde elle mora... mas deixe passar
alguns dias, e talvez que elle aqui mande algum recado...
--Pois então logo que elle appareça, farás favor de lhe dizer que eu
quero fallar com elle... Mas tu não conheces ninguem (tornou o
suspeitoso marido depois de reflectir um momento) que saiba onde elle
mora?
--Não, senhor.
--Não?... Eu não sei o que me parece isto, a fallar-te a verdade!...
Aqui anda dente de coelho!... Pois ninguem, ninguem?
--Talvez me lembre d'uma mulher que aqui veio trazer-me uma carta
d'elle, e me disse onde elle morava... Deixe-me recordar, e depois lhe
direi...
--Pois olha lá se te lembras... Eu sempre quero vêr os focinhos ao teu
primo... Acho que a cousa assim não vai bem...
--Que é o que não vai bem?!
--Eu cá me entendo...
--Isso que quer dizer? Explique-se, senhor Silva... Nada de mais
palavras... Não está ainda satisfeito com a explicação?...
--Podia estar mais, se queres que te diga cá o que tenho no meu
interior...
--Pois não sei que lhe faça. Creia, se quizer, e, se não quizer não
creia. Vai-me fazendo subir a mostarda ao nariz!... Eu não lhe dou
direito a duvidar da minha palavra. Se cuida que lida com sua irmã,
engana-se. Tenho uma face para o amor, e outra para o odio. Sei amar, e
sei aborrecer... Entende-me, senhor?
--Mas a que vem todo esse farelorio? Que te disse eu para tanta
arrenegação?
--Parece que duvida da explicação que lhe dei do meu comportamento?!
Esse direito só o dou á minha consciencia!
--Tem a menina muita razão; mas, eu, sim, acho que... parecia-me que não
sou mau homem, nem mau marido, se tenho cá minhas comichões de conhecer
seu primo!...
--Se tem comichões, coce-se... é o que eu tenho a dizer-lhe... E de
resto, se quer esperar que meu primo appareça, espere; e se não,
procure-o até encontral-o.
D. Maria Elisa retirou-se enfronhada, e foi feliz n'esta lembrança,
porque o senhor Antonio precisava de similhante reacção para entrar nos
justos limites d'um marido exemplar, como todos os maridos que não tem
pública-fórma.
Que é pública-fórma d'um marido? Eu sei cá... Lembrou-me isto; se me
lembra, em logar de pública-fórma, dizer uma sandice mais compacta,
creiam que não era homem de a deixar no tinteiro, porque, se ha
inviolabilidade n'este mundo, é para todas as sandices que se escrevem.
D'este peccado tenho eu a dar sérias contas a Deus; mas quem de certo
não deu nenhumas, quando d'este mundo se partiu, foi aquella alma gentil
do senhor Antonio, que nunca publicou asneira nenhuma, honra lhe seja
feita! Se vivesse hoje tinha pelo menos escripto para os jornaes uma
carta, renunciando a sua candidatura, ou qualquer outra trapalhice da
barbara linguagem do systema representativo.
N'aquelles felizes tempos, as asneiras desciam á sepultura com o
individuo; e d'essa grande sementeira creio eu que nasceram as muitas
que hoje amadurecem no jornalismo, e entre as quaes peço ao publico
imparcial que classifique a minha da «pública-fórma do marido» pelo que
me declaro já summamente penhorado, como todos aquelles que se retiram
d'um baile ás cinco horas da manhã.
Por não esgotar as frioleiras de que disponho, saberão, estimaveis
leitoras (se me dão a honra de me dirigir a v. ex.as, como quem quer
divertil-as da seriedade austera das suas cogitações) que D. Maria Elisa
entrou no seu quarto, e escreveu uma longa carta ao senhor Fernandes,
contando-lhe miudamente os infaustos successos.
Na manhã do seguinte dia, a anciosa esposa recebeu a seguinte resposta:
«_Não te afflijas. Hoje de tarde ahi vai teu primo. Falla pouco, e
deixa-o fallar a elle._»


CAPITULO XXIV

O senhor Antonio estava sériamente amuado. Atormentava-o a dúvida, e as
suspeitas terriveis principiavam a obra maldita do arrependimento.
Comparando a sua pacifica vida de solteiro com as consequencias da vida
matrimonial, arrependia-se o brioso mercador de pannos, e considerava-se
o bode expiatorio do seu orgulho insultante com o proximo do chinó, em
circumstancias analogas.
Era isto que affligia o coração do marido de Maria Elisa, emquanto ella,
amuada tambem, se fechára no seu quarto, imaginando a comica solução que
o senhor Fernandes daria ao problematico parentesco da Ponte-da-Pedra.
Assim se entretinham aquellas duas creaturas, quando foi dito ao senhor
Antonio que estava alli um sugeito, que queria fallar-lhe, sendo
possivel.
--Que diga quem é.
O criado voltou, dizendo que era um primo da senhora D. Maria Elisa.
--Devéras?!--disse o senhor Antonio, com sobresalto, expandindo as
bochechas em ar de contentamento.
--Sim, senhor, diz que é primo da senhora.
--E quer fallar comigo?
--É o que elle disse.
--E não fallou ainda com a senhora?
--Nada; nem por ella perguntou.
--Pois que suba para a sala.
Em seguida, foi introduzido na presença do senhor Antonio um sugeito de
trinta annos, pouco mais ou menos, com uma cara trivial, um trajo usado,
e maneiras delicadas.
--Tenho a honra de cumprimental-o, senhor Silva.
--E eu a mesma. Com que então o senhor é primo de minha mulher?
--Sim, senhor: filho d'uma irmã de sua mãe.
--Estimo muito conhecel-o.
--Eu devo, sem mais delongas, dizer a v. s.ª o fim que me traz a sua
casa.
--Ora diga lá sem ceremonia, os homens são uns para os outros, e eu
estou prompto a mostrar-lhe que não sou daquelles que... emfim... diga
lá o que quer...
--Quero ser eu o proprio accusador da mão bemfeitora, que tem derramado
sobre mim alguns beneficios. É preciso que v. s.ª saiba que eu sou
pobre, e não tenho podido até hoje agenciar pelo trabalho a minha
independencia. No commercio não me acceitam, porque me acham adiantado
em idade. Emprego não me dão nenhum, porque não tenho protecções. Para
militar não sirvo, porque sou muito doente do peito, e além d'isso muito
curto de vista. Para frade tambem não sirvo, porque não tenho
patrimonio, e de mais a mais não sei latim para poder entrar nas ordens
mendicantes. Sou, pois, vadio por necessidade; não tenho de quem me
valha, a não ser d'esta minha prima, que, pelo facto de casar-se com v.
s.ª, é a unica pessoa do meu parentesco, a quem se póde pedir uma
esmola! Nas minhas tristissimas circumstancias, dirigi-me a ella, e
achei-a fria, dura de coração, e insensivel ás minhas súpplicas. Instei,
segunda e terceira vez, obrigado pela indigencia, e consegui que ella me
mandasse esperal-a, algumas vezes, na Ponte-da-Pedra, onde me daria o
pouco que podésse economisar do que seu marido lhe dava para alfinetes.
Disse-lhe eu que não duvidava fallar pessoalmente a v. s.ª, e ella
tirou-me d'isso, dizendo que não queria ser pesada a seu marido com os
seus parentes pobres. Hontem foi um dos dias em que ella me deu uma
pequena esmola, e me prometteu algum dia empenhar-se com v. s.ª para que
se me désse um logar na alfandega, ou em qualquer repartição da justiça,
em que eu podésse ganhar com honra um bocado de pão. Quando fallavamos
n'isto, ouvimos uma voz, minha prima empallideceu, dizendo-me que
fugisse, porque ouvira fallar seu marido. Eu atrapalhei-me com os sustos
de minha prima, e nem tempo tive de reflectir nas consequencias da minha
fuga. Fugi pelo quintal, e vim de volta para a estrebaria escutar o que
se passava. Quando v. s.ª sahiu com ella, reparei que vinham amuados, e
entendi que eu fôra a causa d'essa desgraçada desintelligencia entre
dous esposos que tanto se amam, segundo ella me tem dito...
--Ella disse-lhe isso?
--Sim, senhor. Quando os vi enfronhados estive por um triz a sahir da
estrebaria, e dizer quem era, porque v. s.ª não seria tão barbaro, que
maltractasse sua mulher, porque tem um primo que necessita das suas
migalhas. O receio fez-me recuar no meu plano, e vim para casa meditar
na minha triste sorte. Resolvi ter animo, e venho eu proprio accusar-me
de ter sido o perseguidor de minha prima. O que ella me tem dado é tão
pouco, senhor Silva, que eu talvez, vendendo este velho casaco e estas
calças, possa embolsal-o. Quero ficar em mangas de camisa, mas não quero
que minha prima soffra por minha causa.
--Com que então o senhor metteu-se-lhe lá na cabeça que eu cá sou homem
capaz de tractar mal minha mulher, porque lhe deu alguma cousa? Ora
adeus!... mudemos de conversa! O senhor como se chama?
--Pedro José Sarmento de Athaide.
--Já que fallou em Sarmento d'Athaide, faz favor de me dizer d'onde é
que herdaram esses appellidos?
--Eu lhe digo... Meu quarto visavô João de Lencastre e Sarmento casou
com minha quarta visavó D. Urraca de Athaide, da casa de Valladares no
Alto-Minho. Tiveram quatro filhos. O morgado casou em Pena-Ventosa com a
herdeira da muito antiga familia dos Pesicatos...
--Dos...?
--Pesicatos e Bemóes.
--Nunca ouvi fallar d'essa linhagem.
--Não admira, porque ficou toda essa familia sepultada em Lisboa, nas
ruinas do terremoto de 1755. Foi uma grande desgraça para a posteridade
do outro ramo d'este tronco illustre. O filho segundo de meu quarto
visavô fez um mau casamento com uma mulher da plebe, e os dous seus
irmãos foram frades; um morreu dom abbade em Tibães, e outro foi bispo
de Constantinopla, e chamava-se fr. Zagallo Sarmento e Athaide.
--Nunca ouvi fallar d'esse senhor bispo de... Castanhóplas!...
--Pois, senhor, eu posso mostrar-lhe que elle era irmão legitimo do meu
terceiro visavô, com documentos que param na Torre do Tombo.
--Não é preciso; eu vejo que v. s.ª falla verdade... Mas como é que o pae
de minha mulher era negociante, e não era dos de primeira ordem?
--Isso explica-se pelos casamentos desiguaes. O vinculo passou para os
parentes que temos em Macau, e já meu avô foi negociante, e teve de
riscar de seu nome os appellidos de nossos avós, porque não podia
sustental-os. Ora aqui está a triste historia dos meus ascendentes, que
mal diriam elles que seu neto Pedro José de Sarmento e Athaide
precisaria de estender a mão á caridade de estranhos!...
--Pois, senhor Pedro, não ha mal que sempre dure. O senhor fez muito mal
em não vir ter comigo logo que soube que era seu parente por infinidade.
Havia de topar um homem como se quer para o seu amigo. Não fez bem...
mas emfim tudo se remedeia... eu vou chamar sua prima, e ella dirá o que
se ha de fazer...
--Perdão... eu acho que não será bom que ella saiba que eu vim aqui,
porque me não levará a bem a liberdade que eu tomei de me dirigir a v.
s.ª, abrindo-lhe francamente o meu coração...
--Qual?... Ora o senhor então não sabe como ella é!... Verá que ha de
estimar que se declarassem d'este modo cá certas suspeitas...
--Suspeitas!... quaes?...
--Eu cá me entendo...
--Mas eu é que não entendo... A minha honra está compromettida n'essas
suspeitas... Sou pobre, mas tenho pundonor; exijo que v. s.ª, em nome da
honra, me declare quaes foram as suspeitas...
--Eu lhe digo, senhor Pedro... Eu não sabia que minha mulher tinha
primos, e, quando me disseram na estalagem que ella estava com um primo,
metteu-se-me cá uma asneira na cabeça...
--Qual asneira?
--Pensei que o tal primo era algum rufião...
--Rufião!... Eu não entendo essa linguagem!
--Quero dizer que pensei que andava por ahi algum farropilhas a
arrastar-lhe a aza!
--Então o senhor não sabe que minha prima pertence á veneranda linhagem
dos Sarmentos e Athaides, e não consta que, na genealogia dos Pesicatos
e Bemóes, se désse uma infidelidade porca e villã!... V. s.ª offendeu as
cinzas de meus avós! Em nome de meu quarto visavô, João de Lencastre e
Sarmento, e de fr. Zagallo, bispo de Constantinopla, exijo que me dê uma
satisfação!...
--Não se arrenegue assim, senhor Pedro... Um marido póde enganar-se
muitas vezes com sua mulher!
--Mas eu, neto de heroes, é que não admitto enganos taes! As suspeitas
são affrontas! V. s.ª affrontou-me na pessoa de minha prima! Insto pela
satisfação! Na França entre cavalheiros é costume disputar-se a honra á
ponta de espada. V. s.ª ha de bater-se comigo!
--Eu!... essa é que é daquella casta!... Pois eu, sem mais nem menos, hei
de agora jogar a tapona com o senhor, porque se me afigurou que minha
mulher não era tão boa como se dizia! Ora, senhor primo, deixe-se
d'isso... Eu não sei cá d'esses costumes dos francezes... Que os leve o
diabo e mais quando elles cá vieram...
--Não me importam os francezes! Importa-me a honra de meus avós,
insultada em minha prima D. Maria Elisa de Sarmento e Athaide. Senhor
Antonio! Dentro em vinte e quatro horas um de nós estará na eternidade!
--O senhor, por mais que me digam, está a mangar comigo, ou não regula
bem da cabeça!
--Com a honra não se manga, senhor negociante de pannos! Se a sua arma é
o covado, a minha é a espada, que herdei de meu vigesimo-quarto avó D.
Alarico Themudo Pesicato! É forçoso que se bata, ou então que declare á
face do céo e da terra que é um covarde. Dentro de vinte e quatro horas
virei procurar a resposta. Se não quizer bater-se, hei de sacrifical-o
aos manes de meus illustres avoengos, que do Olympo excitam a minha
coragem! Não tenho mais a dizer-lhe, senhor!
--Venha cá... isto não é modo de tractar o homem de sua prima!... Se
quer dinheiro, diga-o, e não esteja ahi a arrotar postas de pescada.
--Com que então chama o senhor a isto arrotar postas de pescada!...
Muito bem! Hei de provar-lhe que as postas do seu corpo tambem se
arrotam!... Passadas vinte e quatro horas, repito, um de nós será
cadaver!
O neto dos Pesicatos sahiu. O senhor Antonio, atordoado com a seriedade
do negocio, entrou no quarto de sua mulher.
--Que diabo de homem é este teu primo, ó Mariquinhas?
--Meu primo!... pois elle esteve cá?!
--Sahiu agora mesmo... O homem parece-me doudo!...
--Pois que fez elle?
--O que fez?... Quer que eu jogue a bordoada com elle!
--Porquê?
--Isso agora é que eu não sei!... Levou-se dos diabos por eu lhe dizer
que tive cá minhas desconfianças a teu respeito... e, ás duas por tres,
põe-se a berregar como um barqueiro, e a dizer que antes de vinte e
quatro horas um de nós havia de morrer!... Que te parece isto?
--Parece-me um sonho!... Porque me não chamou?
--Porque elle não me deu tempo... Começou a desembuchar umas trapalhadas
d'avós, e do bispo, e dos Pesi... Pesi... como se chamavam esses homens
da tua linhagem?
--Quaes homens?
--Uns fidalgos que morreram no terremoto de Lisboa?
--Eu sei cá que homens eram esses!...
--Eram os... os... Pesigatos... De que te ris? O caso não é para isso...
O tal teu primo, se é doudo, o melhor é amarrarem-n'o, e mandem-n'o para
o hospital de S. José...
--Que figura tinha elle?
--Pois tu não sabes que figura tem teu primo?
--Sei... mas... lembro-me se não seria elle...
--Elle não se chama Pedro?
--Sim... elle... chama-se... Pedro.
--Pois então ahi está... É elle mesmo... deu-me todos os signaes certos
da Ponte-da-Pedra.
--E que lhe disse?
--O homem fallou bem, a respeito de não ter meios, e fez-me cá no
coração uma certa aquella; mas, depois, parecia-me um maluco chapado, lá
com as suas valentias. É preciso saber como isto ha de ser; eu não quero
historias com elle. Manda-lhe dizer que se deixe de asneiras, se quer
ter que comer e vestir em minha casa, ouviste, Maricas?
--Pois sim; mas eu ignoro a sua residencia. Quando elle cá tornar,
chame-me, e eu verei como se remedeiam as loucuras do meu primo.
O senhor Antonio, um pouco mais socegado, relatou, pouco mais ou menos,
a sua mulher o dialogo que tivera com o descendente do bispo de
Constantinopla. Maria Elisa ouvira-o, afflicta com vontade de rir-se, e,
ao mesmo tempo, vexada de ter um marido, que se prestava assim ao
ridiculo. Era bem natural esta mortificação do amor proprio.
A conversação foi interrompida pela chegada de dous senhores, que
precisavam immediatamente fallar com o senhor Silva.
--Temos alguma!...--murmurou o negociante, e entrou na sala onde o
esperavam dous officiaes de cavallaria, de grandes bigodes, e caras de
arremetter.
--Quem são v. s.as?--perguntou o assustado dono da casa, apenas os
encarou.
--Somos embaixadores de Pedro José de Sarmento e Athaide!--respondeu um
d'elles, arqueando os braços, e levantando a caneca com orgulhoso
entono.
--Embaixadores!... e que me querem os senhores embaixadores?
--Advertil-o de que é desafiado pelo nosso amigo...
--Ora, deixem-se d'isso!...--interrompeu o senhor Antonio, fingindo que
recebia a intimação com gracejo--V. s.as estão a brincar... Queiram
mandar-se sentar.
--A nossa missão cumpre-se de pé... e v. s.ª ha de responder-nos tambem
de pé! Queira tirar o seu barrete, por que nós tambem estamos
descobertos. As formaes solemnidades d'este acto não permittem
distincções de cavalheiro para cavalheiro. Repito, senhor! Queira
descobrir-se!
--Eu estou em minha casa, posso estar como quizer.
--N'este momento a sua posição é outra. O homem desafiado não se
considera em sua casa, emquanto a sua honra não está illibada, porque o
homem deshonrado não tem casa, nem propriedade, nem direito!
Descubra-se!
O senhor Antonio tirou o barrete, e emmudeceu na presença de similhante
insolencia.
--Muito bem... Responda agora: quer bater-se em leal duello com o senhor
Pedro José de Sarmento e Athaide Pesicato?
--Não quero lá saber d'essas cousas, já lh'o disse a elle, e não me
façam azedar o estomago, senão eu mando chamar o meirinho geral, e os
senhores são catrafiados e mais elle na Relação.
--O senhor insulta-nos! Se não tivessemos piedade da sua barriga... essa
lingua seria cortada pelo gume d'esta espada!...
--Os senhores vem insultar-me a minha casa! Já no meio da rua, quando
não chamo os visinhos.
--Cale-se, monstro! quando não...
Os esturdios desembainhavam as espadas quando Maria Elisa entrou na
sala, e parou diante de seu marido, que recuava espavorido.
--Isto que quer dizer?--perguntou ella--Não respondem?... Que infamia é
esta de entrarem n'uma casa estranha insultando o dono d'ella?
Os embaixadores do imaginario primo arrefeceram nas suas comicas furias,
e não ousaram responder.
--Retirem-se d'esta casa!--disse Maria Elisa apontando-lhes a porta da
sahida.
--Minha senhora...--balbuciou um d'elles--nós somos enviados por...
--Seja por quem fôr. Vão dizer a quem os enviou, que Maria Elisa lhe
manda dizer que o seu procedimento é muito infame, e que eu muito sinto
não ser homem para poder dar a v. s.as uma resposta cabal!
Retirem-se!...
Os officiaes sahiram vexados, e o senhor Antonio estava espantado da
coragem de sua mulher.


CAPITULO XXV

O senhor Fernandes quando respondeu, em duas linhas, á carta que Maria
Elisa lhe enviara, contando-lhe os successos occorridos desde a fatal
surpreza da Ponte-da-Pedra, procurou um seu amigo, cadete de cavallaria,
e convidou-o a representar de primo para poder salvar a sua amante do
risco.
O cadete, mancebo de maus costumes, e votado engenhosamente a toda a
casta de maroteira, acceitou o papel e estudou-o com muita habilidade.
Era necessario que D. Maria Elisa o não visse para obviar aos embaraços
muito naturaes em tal surpreza. Fernandes inventára o desafio, e o
cadete inventára de improviso a historia genealogica dos Pesicatos e
Bemóes, que encaminhou ás mil maravilhas a historia do duello.
O comico, retirando contentissimo do bom exito da sua travessura, antes
de procurar Fernandes, fez obra por sua conta, divulgou a brincadeira
aos seus camaradas, que eram o tenente e alferes da companhia, e achou
n'elles dous optimos bargantes para continuarem a caricatura.
Quando a ultima scena se passava no Serio, o senhor Fernandes, na rua
das Flores, estava desesperado, porque previra que Maria Elisa levaria a
mal este excesso de escarneo a seu marido. Elle bem sabia que nenhuma
mulher consente que a desgraçada condição do marido ultrajado seja um
brinquedo para o ludibrio do homem, que fatalmente a levou a uma
fraqueza de coração.
Era tarde para remediar a imprudencia. Esperou, inventando pretextos que
o reconciliassem com Maria Elisa, no caso possivel de ter ella sido
testemunha da zombaria feita a seu marido.
Não se enganára. O cadete fora o portador da resposta enviada pelos
officiaes. Fernandes, reprovando o procedimento do seu amigo, que dava
grandes gargalhadas, e promettia contar o caso a toda a gente, escreveu
a Maria Elisa historiando o acontecimento. Era impossivel salvar-se!
Embora não tivesse elle sido o inventor do escandalo, quem expozera
Antonio José da Silva fôra de certo elle, e Maria Elisa leu a carta,
rasgou-a, e devolveu-lh'a.
Seguiram-se novas remessas de cartas, que ella nunca abriu. Deixou de
sahir de casa, para não ser encontrada. Soffreu quanto póde soffrer o
amor proprio. Não sentiu, por isso, mais interesse por seu marido;
todavia córava, muitas vezes, diante d'elle, lembrando-se que o fizera
descer tanto. Comprehendam-na, se podem! A sua consciencia estivera
tranquilla até ao momento em que foi surprendida na Ponte da Pedra! O
que lhe pesava não era a infidelidade; era o ultraje, que lhe fizeram a
ella, escarnecendo um traste de sua casa, uma cousa que a sociedade
chamava o «seu marido»!
Eu, se fosse mulher, seria isto, pouco mais ou menos, e levaria o meu
nobre resentimento ao extremo de abominar o vaidoso amante que
estabelecesse termos de comparação com meu marido.
A situação de Maria Elisa era muito especial. O senhor Antonio estava
assustado, e dava como certa a sua morte, logo que os officiaes de
cavallaria o encontrassem a geito. Ao anoitecer mandou trancar as
portas, e armar os criados, emquanto, confiado na coragem de sua mulher,
consultava os meios, que devia empregar, para judicialmente defender da
sua arriscada corpulencia os golpes de espada d'aquelle par de Damocles
que o neto de D. Alarico Themudo Pesicato lhe enviava a casa.
Maria Elisa queria serenar os sustos de seu marido; mas de que modo? Se
lhe dizia que tudo aquillo fôra uma phantasmagoria, ficava a sua honra
muito duvidosa para seu marido. Se deixava medrar o terror do infeliz, o
pobre homem succumbiria de medo, se visse em sonhos o lampejo da espada
nas proximidades da barriga provocante.
Os palliativos não valiam nada para a cura. O senhor Antonio, no auge do
medo, chegou a censurar sua mulher por ter usado palavras fortes de
mais, quando deu ordem de despejo aos militares.
Maria Elisa quando viu, ao cabo de tres dias, que seu marido tinha febre
e tremia ao menor ruido que se fazia nas escadas, sentiu escrupulos, e
accusou-se de ter concorrido para os soffrimentos do pobre homem.
Fernandes teimava em escrever-lhe, e não conseguia que as suas cartas
fossem, ao menos, abertas. O seu tormento inspirou-lhe um recurso
extremo. Pediu ao cadete que se apresentasse humildemente em casa do
negociante, pedindo-lhe perdão das asperezas do seu caracter, e
affiançando-lhe que nada viria perturbar-lhe a sua tranquillidade.
Maria Elisa estimaria este acontecimento; mas não queria lembral-o ao
seu indigno amante, porque jurára acabar taes relações.
O cadete foi representar, de boa vontade, a segunda parte da farça. O
senhor Antonio não quiz ouvil-o, sem que sua mulher estivesse escondida
no quarto proximo, para intervir, sendo necessario.
--Eu venho--disse o cadete--desarmar a sua justa indignação, senhor
Silva. Foi de mais o meu brio. Minha prima é sua mulher, e v. s.ª não
tem obrigação de responder-me pelo mau conceito que fez d'ella.
Desafiei-o: fui imprudente; mas espero merecer-lhe um generoso perdão,
visto que as minhas demasias são filhas do nobre sangue que me gira nas
veias. Retiro-me na certeza de que v. s.ª, de hora em diante, não se
lembrará mais do passado, e terá por mim a estima que se deve a qualquer
individuo, que zela a honra de nossas mulheres, tanto como nós.
O senhor Antonio ouviu-o primeiro com sobresalto, e depois com
satisfação. Tinham-lhe alliviado do coração o pêso de quatro quintaes. O
sangue girava-lhe de novo em toda a extensão do systema circulatorio; e
os frouxos, que lhe accommetteram as pernas, desappareciam, á maneira
que o primo de sua mulher lhe garantia a inviolabilidade do seu abdomen.
O senhor Antonio tinha um excellente fundo. Não era valente, mas odiento
tambem não. Deu um abraço no estroina, que recuou dous passos para o
receber com todas as formalidades d'um habil comico, e pareceu-lhe até
que o primo de sua mulher (valha a verdade) lhe déra um beijo na
bochecha direita. Não affianço isto; mas o que posso, debaixo da palavra
de honra dos meus amigos, affiançar, é que um beijo na face do senhor
Antonio, se se deu, revela um gosto estragado, um paladar torpe, e
alguma cousa de indecencia atroz na pessoa do cadete.
A verdade é que o tranquillo marido recobrou a felicidade inquietada, e
restituiu a sua mulher a plena confiança retirada por uma fatal
intermittente de ciume. Desfazia-se em satisfações, acarinhava-a a seu
modo o melhor que podia e sabia, comprou-lhe duas pulseiras de grande
custo, e uma fivela de cintura, cravejada de diamantes. Maria Elisa
acceitava os carinhos, a fivela, e as pulseiras com a mesma
indifferença.
Não era, porém, filho do estudo este desdem. A chistosa amiga de Rosa
Guilhermina vivia triste, porque vivia só. Desde que se entregára
apparentemente ao extremoso negociante, as suas horas unicas de
passageira felicidade eram as da Ponte-da-Pedra. Fernandes era um homem
de não sei que perverso talento que seduz, capacita; e chega a victimar
as proprias mulheres que teem a consciencia de que são victimas. Talento
e corrupção eram já n'aquelle tempo uma espada de dous gumes com que se
cortam os nós gordios do coração de certas mulheres. E Maria Elisa era
uma d'essas certas.
O que ella teve de mais, entre as da sua escóla, foi uma caprichosa
dignidade, que a fez esquecer num momento o amor d'um anno. Recordava-se
de Fernandes com pesar, e odio; saudade, nunca. Quando se deixara cahir
nas astuciosas ciladas, que elle lhe preparara, com o animo frio da
experiencia das Marcellinas (que pelos modos eram muitas n'esse tempo,
apesar dos frades, e da suspirada virtude de outras eras) tirára ella,
como condição, um eterno silencio a respeito de seu marido. Parece que o
galhofeiro amante epigrammou, uma vez, o abdomen do senhor Antonio, e
teve, em vez de sorriso approvador, um gesto de desprêso, que elle
reconciliou lá como pôde. O caso é que nunca mais cahiu na leviandade de
ferir a susceptibilidade de Elisa, lembrando-lhe a monstruosidade moral
e physica de seu marido.
Foi pessima lembrança aquella de enviar o cadete a representar de primo!
Maria Elisa quereria antes ser julgada, qual era, por seu marido, porque
a deshonra seria um segredo domestico, e a hilaridade publica não viria
aggravar a vergonha de ambos. Mas o remedio comico e inesperado, que o
inconsiderado Fernandes deu ao mal, era exacerbar a ferida, expondo-se
ao ar da publicidade, e ao fel do ridiculo, prompto sempre a flagellar
os maridos da escóla do senhor Antonio, que não são muitos, mas
You have read 1 text from Portuguese literature.
Next - A Filha do Arcediago - 13
  • Parts
  • A Filha do Arcediago - 01
    Total number of words is 4735
    Total number of unique words is 1629
    36.8 of words are in the 2000 most common words
    49.1 of words are in the 5000 most common words
    55.8 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Filha do Arcediago - 02
    Total number of words is 4636
    Total number of unique words is 1660
    34.9 of words are in the 2000 most common words
    48.5 of words are in the 5000 most common words
    55.1 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Filha do Arcediago - 03
    Total number of words is 4548
    Total number of unique words is 1698
    34.9 of words are in the 2000 most common words
    47.4 of words are in the 5000 most common words
    53.8 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Filha do Arcediago - 04
    Total number of words is 4582
    Total number of unique words is 1656
    35.4 of words are in the 2000 most common words
    50.5 of words are in the 5000 most common words
    56.9 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Filha do Arcediago - 05
    Total number of words is 4638
    Total number of unique words is 1694
    35.9 of words are in the 2000 most common words
    50.9 of words are in the 5000 most common words
    57.9 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Filha do Arcediago - 06
    Total number of words is 4737
    Total number of unique words is 1531
    38.0 of words are in the 2000 most common words
    49.1 of words are in the 5000 most common words
    55.3 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Filha do Arcediago - 07
    Total number of words is 4515
    Total number of unique words is 1644
    36.9 of words are in the 2000 most common words
    50.8 of words are in the 5000 most common words
    58.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Filha do Arcediago - 08
    Total number of words is 4751
    Total number of unique words is 1565
    39.4 of words are in the 2000 most common words
    52.5 of words are in the 5000 most common words
    59.5 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Filha do Arcediago - 09
    Total number of words is 4608
    Total number of unique words is 1273
    44.8 of words are in the 2000 most common words
    55.9 of words are in the 5000 most common words
    61.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Filha do Arcediago - 10
    Total number of words is 4572
    Total number of unique words is 1713
    35.2 of words are in the 2000 most common words
    50.2 of words are in the 5000 most common words
    56.9 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Filha do Arcediago - 11
    Total number of words is 4670
    Total number of unique words is 1609
    37.8 of words are in the 2000 most common words
    50.0 of words are in the 5000 most common words
    56.7 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Filha do Arcediago - 12
    Total number of words is 4646
    Total number of unique words is 1573
    39.0 of words are in the 2000 most common words
    51.1 of words are in the 5000 most common words
    58.1 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Filha do Arcediago - 13
    Total number of words is 4546
    Total number of unique words is 1692
    37.9 of words are in the 2000 most common words
    51.7 of words are in the 5000 most common words
    58.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Filha do Arcediago - 14
    Total number of words is 4463
    Total number of unique words is 1690
    38.0 of words are in the 2000 most common words
    51.7 of words are in the 5000 most common words
    58.8 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Filha do Arcediago - 15
    Total number of words is 4354
    Total number of unique words is 1465
    37.9 of words are in the 2000 most common words
    51.8 of words are in the 5000 most common words
    59.1 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Filha do Arcediago - 16
    Total number of words is 4474
    Total number of unique words is 1542
    37.4 of words are in the 2000 most common words
    52.1 of words are in the 5000 most common words
    58.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Filha do Arcediago - 17
    Total number of words is 1726
    Total number of unique words is 738
    47.4 of words are in the 2000 most common words
    59.6 of words are in the 5000 most common words
    64.3 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.