A Filha do Arcediago - 06

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salvação... Com que assim, minha Rosinha... Como se dá por aqui?
--Muito bem.
--E a outra menina?
--Plenamente jubilosa.
--Ella lá torna com o berzabum dos latinorios!... Valha-a Nossa Senhora!
--Ó Maria Elisa, falla em baixo estylo... humanisa-te.
--Repugna-me. Não sei manchar a lingua de iguaria indigna.
--Que diz ella? que eu sou indigna?
--Não, senhora; diz que não póde fallar como nós.
--Pois então que esteja calada... Ó Rosinha, eu queria-lhe uma palavra
em particular.
--Pois sim; iremos para o meu quarto... eu venho já, Elisa.
--Vai... mas guarda-te do filtro da Gorgona fatal.
--Ella lá fica com os gorgues, gorgues!... má mez para ella!--murmurou a
snr.ª Angelica.


CAPITULO XII

--Ora venha cá, Rosinha...--disse a snr.ª Angelica, pendurando a
mantilha na porta, e acocorando-se n'um tapete, que ella suppoz ser
feito para isso--Sente-se ao pé de mim.
--Eu não gosto d'essa posição, que é incommodativa. Sento-me n'esta
cadeirinha.
--Pois sim; mas chegue-se bem para mim, que não quero que nos ouça a sua
amiga. Deus me perdôe, mas não engraço com os modos d'ella... Aquillo
não ha de ter bom fim... Tem muito palavriado... Ora diga-me, de que
presta aquella rapariga?
--De muito; é a minha amiga do coração; conheço-a ha dois annos;
quero-lhe como a ninguem, e basta.
--Está dito... Pelo que vejo, aqui não ha rei nem roque, e quem governa
é vmc.e, não é verdade?
--É, sim, senhora. Quem governa em minha casa sou eu.
--Pois, minha menina, precisa de quem a governe. Os tempos não vão bons
para as donzellas. Deus me perdôe se pecco, mas o diabo anda ás soltas
entre as raparigas desde que os francezes vieram lá do fim do mundo ao
Porto. No meu tempo não se ouvia dizer que uma rapariga namorava este
nem aquelle. Hoje, bem dito seja Deus, quem tiver raparigas em casa,
traga-lhe o ôlho em cima, senão, quando mal se precata, os
peralvilhos... nem pensal-o é bom!... E más linguas? isso então é um
louvar a Deus! Pois aquella grande bebeda da mulher do retrozeiro, que
mora defronte de mim, não foi dizer ao meu Antonio que eu, quando era
moça... em nome do padre, e do filho, e do espirito sancto... Cal-te
bôca... Olhe que sempre! Ninguem diga que está bem! Uma desavergonhada
assim! Estar eu mansa e quêda em minha casa, amando e servindo a Deus
como posso, e nem ja como devo, e vai senão quando aquella lingua
damnada não teve o ousio de fallar da minha conducta, que não teve nunca
tanto como isto que se lhe pozesse (_mostrando-lhe a ponta do dedo_)!
Ahi está por que Deus não manda chuva, e mandou a praga dos francezes
para nosso castigo... é por causa da Anna Canastreira, e outras que
taes... Aquella grande regateira! Atrever-se a pôr a bôca na minha
honra! E ella? A porca, que andou... Cal-te bôca... E tem aquella de
fallar em mim, que fui sempre como as estrellas, e que nunca houve na
rua quem dissesse, com verdade, que me viu piscar o ôlho ao congregado,
nem ao conego Anselmo! Inda a lingua se lhe tolha, e descanso não tenha
ella de dia nem de noite sem me pedir perdão...
--Então é isso o que precisa dizer-me, snr.ª Angelica?
--Inda não chegamos lá, Rosinha. Isto vinha a respeito de dizer que as
donzellas não estão seguras com esses melcatrefes que por ahi andam
d'oculos, e polainas, que me parecem mesmo o demonio tentador!...
--Elles tentam-na, snr.ª Angelica?
--A mim? para cá é que elles vem bem!.. Eu os arrenego! Assim que os
vejo ao longe, rezo o credo em cruz...
--E perseguem-na os peralvilhos?
--Hão de ter bom olho...! Elles só perseguem as que lhe dão trela. A
mim? isso sim... Inda não ha muito que um mariola me puxou pela
mantilha, ao sahir da Capella das Almas, e eu voltei-me para elle... não
lhe digo nada... apenas me viu, aquillo foi como se lhe désse com um
sedeiro na cara, voltou logo o focinho. Está-se a rir, Rosinha? É como
lhe digo. Os homens, em vendo má cara nas mulheres, não tenha medo que
elles se atrevam... E mais eu agora já não sou o que era... estou muito
acabada... estes malditos lobinhos, que me vem todos os annos ao
costado, fazem-me de fel e vinagre. D'antes quando eu era a flor das
donzellas, isso é que se podiam vêr os peraltas com o nariz no ar por
minha causa... Pois, olhe, viam-me com os olhos e comiam-me com a
testa... Uma rapariga quer-se honestinha; e quanto mais vamos inda peor
é. Está dito... agora vamos começar o nosso arranjo.
--O nosso arranjo?! Que arranjo temos nós, snr.ª Angelica?
--Nada de pressa... ha muito tempo para morrer... Ora vamos, Rosinha...
inda está dos mesmos humores de ha dois annos?
--Que humores? não me lembra quaes eram...
--A respeito do seu matrimonio com o meu Antonio.
--Ah! nem me lembrava essa brincadeira... Sim, minha boa senhora, ainda
estou, e estarei, resolvida a não casar com o snr. Antonio.
Maria Elisa, pé ante pé, viera collocar-se atraz de Angelica fazendo-lhe
carantonhas, que obrigaram Rosa a sentar-se de ilharga por não poder
conter o riso.
--Com que então está na mesma!... Ora, se Deus quizer, a sua cabecinha
ha de mudar. Pense bem no caso, Rosinha. Lembre-se que meu irmão não
sabe o que tem de seu. Lá, se é velho, olhe que faz dar a agua pela
barba aos novos. Não vê aquellas côres, que elle tem? Olhe que alli onde
o vê, inda tem muita força. Come-lhe bem, e está gordo como um tanho...
--Bem sei que está gordo; mas que me importa a mim a gordura de seu
irmão? Como não quero vendel-o a pêso...
--Isso não é resposta de menina honesta, Rosinha. Não se ponha a rir...
Acho que já tem as manhas da sua amiga. Foi ella que lhe disse que não
quizesse o meu Antonio? Tomára-o ella.
--Pois offereça-lh'o.
--Que se lave... Olha a labisgoia! Se meu irmão se via com aquella
tartamuda, que ninguem a entende, entisicava, meu querido irmão do meu
peito! E ella tem legitima?
--Quem, a minha amiga? é muito rica, por morte de duas tias, que são
pouco mais ou menos da sua idade, snr.ª Angelica.
--Da minha idade? Então ainda podem viver muito, e tarde virá a
legitima...
--Quantos annos tem, snr.ª Angelica?
--Quem, eu? eu lhe digo... Eu sou mais velha que o meu Antonio, que é da
idade do Joaquim Antunes, casado com a Theresinha dos Loios, e que se
lembra de ouvir dizer a sua mãe que o meu Antonio era da idade do snr.
Joaquim, e eu sou da idade da snr.ª Brizida, que dizia minha tia Aniceta
que nascera ao mesmo tempo, e se baptisára no mesmo dia com o Thimoteo,
que ninguem ha de dizer a idade que tem.
--É o mesmo que acontece a seu respeito, depois da sua conta, snr.ª
Angelica.
--Pois é verdade; eu o que tenho é estar acabada; mas meu irmão está
gordo e fero como sempre o conheci. Quizesse elle casamentos que lhe não
faltavam.
--Pois, snr.ª Angelica, sinto muito dizer-lhe que não me sinto
deliberada a casar com seu irmão, e que provavelmente ficarei solteira,
porque não tenho vocação para o casamento. Acho-me em extremo inclinada
ao celibato.
--Quem é esse Celibato? Olhe lá que não vá ser algum pandilha que lhe
quer pilhar a legitima!... Eu não conheço esse snr. Celibato... é
negociante?
--Nada; é um cadete...--disse Rosa mordendo o riso nos beiços.
--Ah! um cadete, chamado Celibato... Conheço muito bem; ouvi fallar
n'elle... é um grande tratante. Não queira esse bigorrilhas.
--Ah! que malvado! Eu não sabia que o snr. Celibato José...
--É verdade, Celibato José... já me esquecia...
--Da Cunha...
--Sim, sim... da Cunha; é o mesmo, tal e qual! Ora vê como eu lhe vali,
Rosinha?
--Agradecida, minha amiga. Detesto esse tyranno! Guardarei meu coração
para outro esponsalicio...
--Esponsalicio! parece-me que conheço esse snr. Esponsalicio...
--É um rico proprietario...
--Enganaram-na, Rosinha. Esse Esponsalicio...
--Da Costa...
--É o mesmo... louvado seja Deus, que me trouxe aqui!... Esse
Esponsalicio da Costa é um traficante, que enganou a filha d'uma minha
amiga, e que diz á bôca cheia que não quer casar com nenhuma. Não caia
em lhe receber palavra de casamento, Rosa... Deus a guarde d'essa
tentação!...
--Nenhum d'elles, pois, é digno do hymeneu?
--O Hymeneu! Apre! que são muitos. Eu tenho ouvido fallar n'essa
pessoa... Inda outro dia a mulher do João Pereira, que tem chinó, estava
a fallar mal d'elle. Não póde ser grande pessoa, porque anda mettido com
tal mulher...
--Pois bem: farei um juramento. Não casarei com o snr. Celibato!
--Bonita...
--Nem com o snr. Esponsalicio!
--Ora, pois.
--Nem com o snr. Hymeneu!
--Isso é que se chama ter a cabeça no seu logar.
--Nem com o snr. Antonio!
--Valha-a Deus, menina, valha-a Deus, que tem o passaro na mão, e
deixa-o fugir!... Case com o meu Antonio, e verá que pimpona elle a
traz!
--Fiz voto de morrer solteira. Os meus votos são infalliveis. Serei como
as Vestaes.
--As bestiaes! Deus a livre d'isso! A menina tem alma, e não póde ser
bestial...
--O mais que posso é convidar a minha amiga a receber a terna dextra do
ditoso Aonio.
--Que diz, Rosinha? Parecia-me agora a outra! Onde vos ensinaram esses
aranzeis?
--Pódes entrar Maria Elisa--disse Rosa, que não podia supportar as
caretas que a sua amiga fazia.
--Então ella ahi vem com os latinorios... Vou-me embora, com a graça de
Deus.
--Espere, senhora D. Angelica--disse Maria Elisa com burlesca
formalidade.--Muito ha, ditosa irmã do mais ditoso Adonis, que eu
suspirava por apascentar meus famintos olhos no manjar succulento das
rosadas faces do snr. Antonio José da Silva, vosso mano, e querido meu.
Vi-o uma vez. Vêl-o e amal-o foi obra d'um momento. Nunca mais meus
olhos tristes provaram os carinhosos afagos de Morpheu. De noite era
elle o meu pensamento; de dia o meu pensamento era elle; elle era de dia
e de noite o sangue das minhas veias, o fogo ardente do meu coração, o
nome mais appetitoso da minha lingua, e a lingua mais eloquente da minha
alma.
--Está douda!... Resmungou a velha, voltando-se para Rosa.
--Douda!--disse Elisa--douda d'amor! Cupido, que me varaste o coração de
ervada setta, porque não feres o coração de Antonio José?
--Está apaixonada por elle...--murmurou Rosa ao ouvido de Angelica, que
principiava a acreditar a naturalidade daquella dôr sublime.
--Será verdade, Rosinha?
--Não vê como ella soluça.
Maria Elisa retirava-se com o lenço nos olhos para esconder o riso, na
janella.
--Ella viu meu irmão?
--Viu, no pateo do recolhimento; e desde esse instante falla
constantemente no objecto dos seus votos, que é seu irmão.
--Coitadinha!... É preciso dizer-lh'o a elle, que não vá a rapariga dar
volta ao miôlo.
--Diga-lhe algumas palavras animadoras, snr.ª Angelica.
--Venha cá, minha menina; a troco d'isso não se afflija, que tudo se ha
de fazer pelo melhor, com o favor de Deus...
--Não me illuda, senhora! Não ponha mel nas bordas da taça, que tem ao
fundo o amargo absyntho! A minha paixão é incuravel como a gôta!
--Coitadinha!... por causa da paixão tem gôta! que pena! tão novinha já
com gôta.
--Com gôta, sim! eu com gôta na primavera dos meus dias!
--Pois ella costuma atacar mais no inverno...
--Com gôta na aurora da infancia, no crepusculo do amor... Com gôta
eu!... por causa de um ingrato Narciso! Miseranda Ecco!
--Então o tal Narciso que lhe fez? O Narciso é algum cirurgião que a não
soube tratar, pelos modos... Pois, minha filha, não chore. Eu vou já
d'aqui fallar com meu irmão, e veremos como se arranja isto do melhor
modo. Ponto é que não esteja cá arrumado para a Rosinha...
--Cruel rival!--disse (á parte) Elisa, com a melhor das caretas
imaginaveis.
--Injusta! Eu cedi-t'o, e os deuses sabem que sacrificio fiz cedendo a
mão do snr. Antonio!
--Bem me parecia a mim, que andava aqui alguma mastigada!... Agora vejo
eu porque não queria casar com meu irmão, snr.ª Rosinha... É uma boa
amiga da sua amiga. Deixe estar, menina, que talvez ainda sejamos
cunhadas... E, com isto, vou-me embora que são horas... adeus...
--Vá, mensageira d'amor!--disse Elisa--Propicios céos meus votos
abençoem, e os seus desvelos galardoem.
Ausente Angelica, seguiu-se uma tremenda gargalhada, em que estalaram os
espartilhos ás duas azougadas moças.


CAPITULO XIII

Dous ou tres dias depois (parece-me que foram tres: aquillo de que eu
não estou bem certo não affirmo), ás onze horas da manhã, mais minuto,
menos minuto, estava á porta da snr.ª D. Rosa Guilhermina Taveira, o
snr. Antonio José da Silva limpando o suor, e puxando para o abdomen o
coz do rebelde collête de velludo preto, que lhe marinhava em rofêgos
pelo estomago.
Arranjadas assim as cousas do seu logar, o negociante puxou a campainha,
e perguntou se podia fallar á snr.ª D. Rosa. Responderam-lhe que a
menina estava na cama curando uma constipação. Disse que queria fallar á
snr.ª D. Maria Elisa, e mandaram-no subir, o que elle fez, puxando, com
ambas as mãos, o indomavel collête, que subia a ponto de descobrir o coz
das ceroulas, as quaes rebentavam comprimidas pela arquejante barriga de
seu dono.
Esperou alguns minutos, que lhe não foram penosos, porque os aproveitou
mirando-se em um espelho de sala pendurado defronte da sua cadeira.
Conversando com a sua imagem, o snr. Antonio perguntou a si proprio se
era elle por ventura o venturoso amado que apaixonára a amiga de Rosa a
tal ponto que a virtuosa Angelica (apesar da lingua damnada da Anna
Canastreira) escrupulisava, não esgotando da sua parte todos os esforços
para que elle Antonio José annuisse, como homem e christão que era, ao
suspirado casamento.
Esta era a primeira parte do monologo do negociante. A segunda, porém,
era mais dramatica. O homem tinha pundonor como outro qualquer.
Despresado pela filha do arcediago (que Deus tenha em sua sancta gloria)
resignára-se, mas não se esquecia do ultraje immerecido. Pensára muito
na vingança; mas não sabia com que armas nobres devia vingar-se. Se elle
quizesse desforrar-se com deshonra para a sua consciencia, não lhe
faltariam occasiões como a que tivera, pouco antes, na qualidade de
amigo intimo do curador dos orphãos. Quizesse elle, e Rosa não sahiria
do recolhimento. Mas o snr. Antonio José da Silva era um homem honrado,
temente a Deus, supposto que peccador, e incapaz de vingar-se vilmente.
O desforço, que elle ambicionava, devia ser cavalheiroso, e digno de
especial menção no romance, que, trinta annos depois, devia occupar-se
da pessoa do snr. Antonio, digna, a todos os respeitos, de fazer gemer
os prélos, e dar consumo ao papel das nossas fabricas, interesse
duvidoso aos editores, e não sei que migalhas a mim, humilde apologista
de todos os Antonios, maiores que o seu seculo, e credores da
immortalidade.
Era chegada, pois, a occasião d'este appetecido desforço. O negociante
era amado, e amado pela intima amiga de Rosa, tão nova e tão gentil como
ella. Antonio José da Silva, dispensador de graças do seu munificente
coração, prodigalisaria extremos á sua amante ditosa, na presença da
despresada ingrata, que se morderia de raiva. Ostentaria caprichosamente
os seus ardores de amante e marido no sumptuoso luxo de sua mulher. Rosa
_ficaria levadinha da breca_ (esta phrase é d'elle genuina) quando não
podesse _hombrear com os calcanhares da outra_. Ora aqui está no que
pensava o snr. Antonio, durante os cinco minutos que esperou na sala,
não lhe esquecendo de conter nos seus justos limites o collête, que
parecia de borracha, porque apenas se via livre dos dedos impertinentes
de seu dono, saltava logo para o pescoço, deixando mal velado o
promontorio das regiões adjacentes, por não dizer sempre barriga, que é
uma palavra que me destôa, e fere os ouvidos pudicos do sexo por
excellencia.
No decurso de cinco minutos, que faziam as duas amigas? Estavam
perturbadas pela surpreza de similhante visita.
Nem se lembravam já da scena burlesca em que a snr.ª Angelica promettera
apiedar seu irmão a favor da delirante Elisa. A vinda inesperada
suscitou-lhes a desconfiança de que o snr. Antonio vinha colerico e
enfurecido, reprehendel-as da galhofa com que receberam sua irmã, e
talvez ameaçal-as de que, por ordem do tutor, Rosa outra vez seria
obrigada a recolher-se, e de mais a mais separar-se da sua amiga.
A filha de Anna do Carmo não estava doente. Aquelle pretexto era o susto
da desconfiança que assaltou a ambas. Ora Maria Elisa, menos timida, ou
mais desenvolta, contra a vontade de sua amiga, não duvidou receber a
visita do snr. Antonio, e preparava-se para chalacear as suas iras, se
elle não viesse ás boas, como era de suppôr, ou ao menos a vaidosa Elisa
tinha a sem-ceremonia de vaticinar.
Depois arrependeu-se de o mandar subir; e perguntava a Rosa a maneira
decente de o despedir, sem ir á sala. N'esta consulta demoraram-se os
cinco minutos, e resolveram, por fim, que seria mais discreto ouvil-o, e
amacial-o, para que o maldito as não indispozesse com o tutor de modo
que as forçassem a uma cruel separação. Elisa, inferior á sua galhofeira
coragem, entrou acanhada na sala, justamente no momento em que o snr.
Antonio dava o ultimo puxão ao collête, e limpava a terceira camada de
suor que lhe envernizava as pandas bochechas.
O negociante ergueu-se, himpando, e levou ambas as mãos ao chapéo, que
apenas levantou da cabeça meio calva.
--Ha de dar licença que me cubra--disse elle--porque venho suado, e sou
atreito a catarrhos... Aqui corre o ar de encontro áquella porta, e não
é lá das melhores cousas para quem traz os póros abertos.
--Esteja a seu bel-prazer, e queira sentar-se--disse Elisa, suspeitando
ainda que, depois do brutal cumprimento, viria a trovoada dos brutaes
insultos.
--Então a Rosinha diz que está constipada?
--Bastante enferma. A minha amiga tem uma compleição melindrosissima.
--E pouco tino tambem. Quando ella esteve comigo era uma desacautelada;
levantava-se do calor da cama, e vinha com o saioto pela cabeça
acocorar-se na varanda a brincar com a gata... Diacho da gata! era tão
amiga d'ella que não viveu muito depois que a não viu em casa! Ha
bichos, que só lhe falta a razão, que no mais parecem mais amoraveis que
as proprias creaturas com alma! A boa da gata ia-se pôr á porta do
quarto d'ella a miar _miau_, _miau_, _miau_, e, a final de contas, não
queria comer, nem beber, até que appareceu morta no telhado do
visinho...
--Misera gata! que infeliz morte!
--Pois é verdade. Isto veio a respeito de dizer que a Rosinha está
constipada. Aquillo a respeito de cabeça não regula lá grande cousa, a
fallarmos a verdade.
--É uma excellente menina, cheia de virtudes...
--Eu não digo menos d'isso; mas de cá se vai a lá. Deixe-a ter mais dous
annos, e verá onde vai dar comsigo...
--Eu creio que ella saberá conter-se nos honestos limites que lhe são
demarcados pela honra, e pelo dever.
--Pois Deus a ouça; mas duvido. Pelo que me disse minha irmã, ella traz
na cabeça umas tolices que não hão de ter boa sahida. Inda não ha tres
mezes que sahiu do recolhimento, e já conhece não sei quantos namoros.
--Isso é uma injustiça, snr. Silva. A minha amiga Rosa Guilhermina não
tem namoro algum.
--Deixe-se d'isso, não a defenda, que eu cá sei tudo. Minha irmã
fallou-me n'um tal cadete chamado Liberato, ou Celibato, ou não sei que,
e um proprietario que tem o nome arrevezado assim a modo de Apparicio...
ou Sponselicio... uma cousa assim... finalmente, oxalá que eu me engane,
mas não lhe agouro bem... Emfim, quem mal fizer a cama, mal ha de
dormir. A pena que eu tenho é ser ella filha do meu amigo arcediago, que
Deus tenha na sua presença, que já lá sabe o bem e o mal que fez... Do
mais, deixal-a lá, que o mal se o fizer, para si o faz...
--Não se afflija. A minha amiga será digna do bom pae que a morte lhe
roubou, e não deshonrará jamais as cinzas paternas.
--Pois assim seja. Ora, menina, eu não sou d'esses bigorrilhas que dizem
palavras de mel, e sabem d'esses _circumloquios_ de trapalhadas com que
enganam as moças, e, a final de contas, não dizem nada. Eu sou um homem
chão... pau é pau, e pedra é pedra. O que sente o coração a bôca o diz,
e o que a bôca não diz não sente o coração. Ora aqui está. Os homens
entendem-se pelas palavras, e eu gosto de quem não está a fazer uma
grande mastigada de palavras bonitas para dizer o que se diz em duas
palavras. Eu venho aqui de proposito fallar com a menina, porque minha
irmã Angelica foi d'aqui, ha tres dias, e disse-me certas cousas que me
buliram no coração. Pelos modos a menina disse-lhe que se lhe não dava
de casar comigo...
--Eu?!
--Não se envergonhe de ter confessado os seus affectos. Eu gosto da
franqueza, e a gente muitas vezes perde por fallar de mais e fallar de
menos. Á menina bem sei que lhe ha de custar esta conversa; mas,
deixemo-nos d'essas _bijutarias_ do costume, eu estimei muito saber que
a menina gostára de mim...
--Eu... não disse que...
--Bem sei que não disse a cousa assim... Eu sei muito bem que a menina
tem uma maneira de dizer as cousas com outras palavras mais discretas;
mas o que é verdade diz-se com clareza, e eu sei entender as cousas.
Maria Elisa não previa similhante desfecho! A surpreza annullára-lhe por
momentos o sestro chocarreiro, e a confusa moça não sabia qual dos
partidos devia adoptar, se o da seriedade, se a brincadeira. De mais a
mais, a cabeça de Rosa apparecera-lhe n'este momento, entre as duas
portadas mal cerradas, e o riso, sua feição caracteristica, luctou
cruelmente com a seriedade zombeteira, que ella queria sustentar.
--Eu, a fallar-lhe a verdade--continuou o snr. Antonio, persuadido que o
silencio de Elisa era o natural pudor dos dezesete annos--a fallar-lhe a
verdade, pela terceira vez que a vejo, não desgosto da sua pessoa.
Quando a vi na grade do recolhimento fiquei sympathisando muito com as
suas maneiras, e gostei de a ouvir fallar, porque eu não sou homem de
estudos, mas sei dar valor ás cousas, e gosto de quem saiba dizer duas
palavras.
--Ditosa mulher aquella que viver sujeita ao seu dominio! Os vôos do seu
espirito não acharão fechados os vastos horisontes do talento, nos
penosos dissabores domesticos.
--Que é? agora não percebi bem...
--Dizia eu que será uma felicidade pertencer a v. s.ª
--Felicidade... isso vai da maneira de vêr as cousas cada um. O que lhe
posso desde já prometter é que não hei de dar-lhe penas.
--A mim?... Creio que não dará...
--Póde estar certa d'isso. Eu sei como se tratam as pessoas. A gente
póde gosar a sua riqueza sem andar á compita com as grandezas dos
fidalgos. Isso é que é asneira. Os fidalgos arruinam-se, e vivem por ahi
sabe Deus como, atraz de mim e dos outros, que lhes damos a juro o nosso
dinheiro, para as mulheres gastarem em velludos, assembleias, e
theatros. Dizia o meu amigo arcediago, que quem sahe fóra da sua classe
não tem classe nenhuma. É cá uma ideia que eu aprendi de cabeça, e acho
isto bem dito: _quem sahe fóra da sua classe não tem classe nenhuma_.
--É um axioma.
--Que é?
--É um axioma, uma maxima, uma eterna verdade.
--Isso é. Um negociante é um negociante, e um fidalgo é um fidalgo.
Andam ahi de carruagens uns tres cá da minha classe, que querem hombrear
com os fidalgos, e mais hoje ou mais amanhã verão onde vai parar o
negocio.
--Pois v. s.ª abomina a carruagem?
--É cousa em que nunca andei. Parece-me que aquillo não ha de dar grande
saude ao estomago! Tombo para aqui, tombo para acolá, quem fôr nutrido
como eu ha de por força soffrer dos bofes.
--Engana-se... A agitação, causada pelo balanço da carruagem, é
saudavel.
--Devéras?! acho que não!
--Queira acreditar-me. Eu tenho lido varios authores de medicina, que
recommendam o uso da carruagem ás pessoas nutridas, como meio de evitar
as apoplexias.
--Ah! a menina leu isso nos livros?
--Sim, senhor, e como pessoa que se interessa no seu bem-estar,
recommendo-lhe o uso da carruagem.
--E o carroção não fará o mesmo effeito?
--Creio que não: o carroção é mais moroso, menos agitado, mais
impertinente nos solavancos.
--Pois eu estava resolvido a mandar fazer um carroção, porque tenho uma
junta de bois na minha quinta de Lordello, e, visto o que me diz...
--Parecia-me que v. s.ª deveria possuir carruagem, já que os bens da
fortuna lh'o permittem.
--Lá isso tenho eu para mais; mas que diriam os meus visinhos se me
vissem de carruagem? Eram capazes de me apupar os tratantes!
--Deixe-se d'isso, senhor Silva. As suas commodidades são mais
attendiveis que a critica estupida dos seus visinhos. Ora diga-me: se
casasse com uma senhora debil, que precisasse de passear de carruagem
para entreter o espirito nas delicias do campo, v. s.ª não lh'a
compraria?
--Isso comprava; ponto é que minha mulher me fosse leal, e precisasse
d'ella, porque lá, por luxo, acho que era uma asneira sustentar uma
parelha de machos, e dois criados. E não será melhor uma cadeirinha, ou
uma liteira?
--Isso é antiquissimo!... De que serve o dinheiro, se o não fazemos
servir aos nossos prazeres?
--Diz bem; mas sempre é bom a gente gastar menos do que lhe rende o
negocio.
--Concordo; mas acho justo que se engrandeça a gente tanto quanto é
possivel.
--Pois a tal respeito fallaremos mais devagar. Agora é necessario que
tratemos da nossa união. Eu estou disposto a casar com a menina, já que
sympathisamos um com outro, segundo me disse minha irmã. A menina
faz-lhe conta casar comigo?
--Acha-me digna de si?
--Eu que lhe pergunto se quer casar é porque sympathiso com a menina.
--Sabe que eu não sou rica?
--Sei que não tem nada de seu. Conheci muito bem seu pae, que era
negociante, e quebrou com honra. Eu não lhe pergunto se é rica. Rico sou
eu, e tenho de sobra para que nos não falte nada. O que eu quero é quem
governe a minha casa, e herde os meus bens por minha vontade, porque o
que tenho não quero que vá parar a sobrinhos. Se lhe serve, o que ha de
fazer-se ao tarde faça-se ao cedo. Não tenho mais nada a dizer-lhe;
pense no negocio, e responda-me breve...
--Eu responderei...
--Está dito tudo. Dê cá recados á doente, e saiba que fico sendo seu
amigo.
........................................................................
O rico mercador de pannos retirou-se. D. Rosa veio a rir-se, ao encontro
de Elisa, e, vendo-a séria, perguntou-lhe:
--Tu não te ris, Elisa?
A litterata respondeu com o silencio e a seriedade.
--Em que pensas tão trombuda?--replicou Rosa.
--Em que penso?... eu sei cá em que penso!... Acho que não penso!...
--Aposto que te serve o noivo?!
--Estás a caçoar, Rosa!

ENTRE-PARENTHESIS
Oh benemerita philosophia! quão sublimes effeitos a humanidade
experimenta da tua sisuda influencia!
Oh candida filha do talento, irmã gemea da independencia, neta de Catão,
e parenta proxima dos Catões da minha terra, oh patusca philosophia, que
sancto prestigio tu exerces nas almas, desde que Diogenes arremessou a
escudela que lhe não servia de nada!
Oh philosophia das mulheres, tu és sobre todas a melhor das
philosophias! A teu respeito poderia eu escrever este capitulo XIII, que
ficaria sendo um capitulo de abalo no espirito publico, mas, não tenho
agora vagar, nem me lembra nada que se tenha escripto a respeito da
philosophia das mulheres.
Apesar da minha ignorancia n'este ramo (unico em que não sou profundo)
tentarei, indulgentes leitores, iniciar-vos na philosophia de Maria
Elisa, que foi, honra lhe seja, a mais fervorosa sacerdotisa do culto.
Nada mais boçal, mais rude, mais soez, mais detestavel que a figura, o
abdomen, o palavriado, o suor, e o collete, do senhor Antonio José da
Silva.
D'accordo.
Nada mais repulsivo que os seus tres papos, que as compressas dos
colleirinhos reduziam a seis rofêgos, parecidos com o intestino
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