A Filha do Arcediago - 09

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côr na face... Estou certa que v. s.ª, conhecendo a fundo as virtudes de
meu filho, seria a primeira a chamar-me mãe... e, se as circumstancias a
privaram de conhecer a sua, acharia em mim... Que sobresalto é esse?!
Sente-se opprimida? Foi por lhe fallar em sua mãe?... desculpe-me, que
eu não cuidei que a magoava...
--Não me magôa... Isto são reminiscencias da infancia...
--Conheceu a mãesinha?
--Mal me lembro... vi-a, sendo eu creança de seis ou sete annos...
--Ella já morreu?
--Penso... que sim...
--Que prazer não teria ella em conhecel-a tão linda, tão esperta...
--Talvez me odiasse, como me odiou...
--Pois ella...
--Não vê que me abandonou?
--Talvez violentada por circumstancias...
--Muito por sua livre vontade...
--Sim?! então era uma indigna mãe... e desculpe-me...
--De certo era... uma indigna mãe... meu pae nunca me fallou d'ella...
--Tal era a differença que elle conhecera entre mãe e filha... Ora,
pois; não soffra por tal motivo, minha menina... Quer-me para sua
mãe?...
--De certo... queria.
--Eu estou-me a rir... Esta pergunta não devia fazer-lh'a, sem que a
menina tivesse do caracter do meu Augusto um seguro conhecimento... Isso
ha de vir com o tempo; e, se o coração lhe não repugnar, acceite-o como
marido... Não é rico; mas o seu patrimonio é o amor que elle tem ao
trabalho, e o seu talento que lhe promette creditos similhantes aos de
seu pae, que tratava pouco dos seus interesses. De pae a filho vai
grande differença. Um pensava no dia presente; o outro pensa no dia
futuro... Tem sido bem grande a minha impertinencia, não é verdade?
--Pelo contrario, deleita-me a sua conversação, e captivo-me dos
carinhosos desvelos que emprega na minha ventura... Oxalá que eu nunca
desmereça no conceito da minha amiga...
--Espero que assim seja... Diz-me o coração que teremos de ser muito,
muito amigas, que viveremos unidas muitos annos, e que fallaremos com
prazer do bello dia que temos passado... Ahi vem o Augusto!... sempre
com os livros de volta...
--São as _Cartas a Sophia_ por Mirabeau... Não pensei que a senhora D.
Rosa conheceria esta obra...
--Porquê?
--Não é muito propria para leitura de meninas.
--Que tem? Se eu entendo as ideias d'esses livros, é que elles não me
dizem nada novo; e se as não entendo, nada perco da minha innocencia.
--Acaba v. s.ª de apresentar uma ideia que opéra uma completa revolução
na minha maneira de encarar as novellas! Tem razão!... Vejo que é não só
sublime, mas até rasoavel no seu systema!
--Creia que disse a verdade; e, senão, despersuada-me que eu serei
docil...
--Não a contradigo, minha senhora. Pelo contrario, sou da sua opinião.
Minha mãe, esta menina é um anjo, e tem um talento extraordinario...
--Não o creia, minha senhora.
--Não preciso que m'o diga. Meu marido soube dar-me o gosto para
apreciar o merito das pessoas. Se fiquei pobre de bens, posso
afoutamente dizer que o não fiquei de intelligencia. A senhora D. Rosa
Guilhermina é um portento. Ninguem dirá o que aqui está, sem se lhe
importar com o mundo, onde as tôlas, com algum palavriado, recebem
acclamações de espertas.
--Ai! eu não ambiciono lisonjas do mundo!... Gosto de saber, porque o
meu espirito precisa d'este alimento.
--E o seu coração?--perguntou Augusto.
Rosa baixou os olhos, e a sua linda face, côr de cereja, fez-se mais
linda.
--São horas de nos retirarmos--atalhou a irmã do negociante, que resumia
em si a finura que a natureza caprichosa não quiz regularmente
distribuir na sua numerosa e estupida familia.--Menina, dê-me um abraço.
Augusto apertou a mão de Rosa, que hesitava, não obstante as _Cartas a
Sophia_... Despediram-se com requebros e olhaduras de varios modos, e
feitiços, de parte a parte.
Seguiram-se as visitas regularmente. D. Custodia Hermenegilda acompanhava
sempre seu filho. (Seja dito para socego da opinião publica.) A
estanqueira reformou a sua opinião a favor de Rosa, e vingou-se em pedir
trinta reis de divida de simonte, que a fiadeira intromettida lhe devia.
A outra, que dobava, e cujo nome não me lembra, vingou-se da visinha,
batendo-lhe á porta alta noite. Tantas vezes repetiu a graça, que se
constipou, e constipação foi esta que a pobre mulher morreu no hospital,
declarando, á hora da morte, que nunca vira entrar de noite homem nenhum
em casa de Rosa, e que fôra a estanqueira que a mettera n'aquella
alhada: declaração que fazia para que Deus não condemnasse a sua alma,
traste, realmente, de que Deus, de bom grado, se dispensaria, e nós
tambem.
As mulheres dos meus romances quasi todas são honestas pessoas, que se
casam. Só quando de todo em todo não posso falsificar a tradição em
honra das minhas heroinas é que as sacrifico ao nariz-torto das mães de
familia, que, quasi sempre, exprimem com o nariz a sua justa indignação
contra os romances em que os amantes não casam por fim.
Benignas senhoras, exultai, que a moral triumpha em todas as minhas
obras. D. Rosa Guilhermina resolve casar-se na fórma do sagrado concilio
tridentino e constituição d'este bispado com o senhor Augusto Leite. O
juiz dos orphãos concedeu a licença, e o senhor Antonio José da Silva,
embriagado da ventura propria, estimou que seu sobrinho arranjasse
mulher com dinheiro, unica esperança, que elle negociante tinha de
evitar as mendicantes perseguições de sua irmã.
Se imaginam que os noivos deviam dizer muito bonitas phrases,
enganam-se. Namoraram-se pelas novellas, e liam ambos a pergunta e a
resposta dos dialogos mais apaixonados. A senhora D. Custodia assistia a
estas leituras, e lagrimejava de ternura.
A constante presença d'esta senhora ao lado d'elles, authorisa-me a
dizer-vos que nunca as duas creaturinhas do Senhor tiveram occasião de
adiantar-se um beijo por conta do matrimonio. Eu não sei que se tenha
feito um namoro mais honesto que aquelle! É um gosto a gente
encarregar-se de archivar estes casamentos que fazem honra ao genero
humano! A intelligencia gosa, o coração consola-se, a virtude dança a
polka, e o vicio envolve a cara hedionda no seu _cache-nez_!
Oh! Bemaventurados, em duplicado, aquelles que me lerem! O futuro fará
justiça á candura das minhas intenções!


CAPITULO XIX

O NOIVADO

DRAMA EM UM ACTO

PERSONAGENS
_D. Maria Elisa de Sarmento e Athaide._
_Antonio José da Silva._
_D. Angelica Athanasia da Silva._
_João Alves Rodrigues_ }
_Manoel José Fernandes_} Convidados.
_Joaquim João Baptista_}
_O snr. João Pereira_, o do chinó.
_Um encapotado._
A scena passa-se na rua das Flores, em casa do senhor Silva. Vista de
sala decorada, segundo a época.
D. Maria Elisa, e seu marido estão sentados no canapé. Á esquerda do
senhor Antonio está sua irmã. Os convidados estão em frente do canapé,
com as costas voltadas para nós.
O relogio de S. Domingos dá meio dia. Ouvem-se as regateiras que
apregoam robalinhos na rua.

SCENA I
O SENHOR ANTONIO
(_batendo na respectiva perna_)
Meus amigos, mal diriam vmc.es que eu viesse por fim de contas a casar!
Ninguem diga d'esta agua não beberei! Um homem, emquanto anda n'este
mundo, não sabe para que veio...
O SENHOR FERNANDES
(_á parte_)
Ella t'o dirá...
O SENHOR ANTONIO
Eu não tinha, até ha pouco, na cabeça... (_sensação nos espectadores
emquanto o orador se assôa_) não tinha na cabeça a ideia de me casar,
porque, emfim, os tempos não vão muito bons para alguns maridos que eu
conheço... O nosso visinho João Pereira, do chinó, que o diga...
D. MARIA ELISA
Que historia é essa do João Pereira, em que o senhor Silva já me fallou
de passagem duas vezes?
D. ANGELICA
Ora o que ha de ser? Os nossos peccados, cunhada... É uma mulher que o
demonio tentou, Deus me perdôe, se pecco... Não gosto de murmurar... É
mesmo uma vergonha... Está vestida e calçada no inferno...
D. MARIA ELISA
Quem? Não comprehendo...
D. ANGELICA
Quem ha de ser? Ella, a birbantona, que deu a mão de esposa a um, e anda
por ahi sempre... como se diz, Antonio?
O SENHOR ANTONIO
Como se diz o quê?
D. ANGELICA
Como é que dizem os prégadores d'esse peccado?
O SENHOR ANTONIO
Não são os prégadores, é o nono mandamento.
D. ANGELICA
Pois sim; mas os prégadores chamam a essas mulheres... _indultas_...
_adultas_, ou não sei que...
O SENHOR FERNANDES
Adulteras?
D. ANGELICA
Isso mesmo... Eu uma cousa assim nunca vi na minha vida!... Em nome do
Padre, e do Filho, e do Espirito Sancto... Assim que vê um homem na rua
a olhar para ella, ás duas por tres, faz-lhe gaifonas com a gata...
D. MARIA ELISA
Com a gata?
D. ANGELICA
(_remedando com a manga do capote de castorina amellada_)
Põe-se assim com a gata no collo a bulir-lhe na cabeça...
D. MARIA ELISA
E isso que quer dizer?
D. ANGELICA
Eu sei cá? é o peccado... Acho que a gata lá tem cousa de feitiçaria,
porque os homens ficam de bôca aberta para ella!
O SENHOR FERNANDES
Acho que não é para a gata...
O SENHOR BAPTISTA
Eu tambem sou da mesma opinião... A gata não é má...
O SENHOR RODRIGUES
O peor é o gato, que a gata boa é, que caça ratos...
D. MARIA ELISA
(_á parte_)
Que cacafonias! _que a gata! que caça!_... Apre, que são muito
alarves!
O SENHOR ANTONIO
Deixemos lá isso... ella lá sabe o que faz, e cada qual guarde bem a sua
cabeça do mau pensamento de casar-se com doudas... Eu bem lh'o disse a
elle... «Olha que essa mulher não te serve... tem má pinta, e não sei,
mas ha de te dar que fazer...»

SCENA II

OS MESMOS E O SENHOR JOÃO PEREIRA
O SENHOR PEREIRA
(_entrando, sem pedir licença_)
Deus aqui, e o diabo em casa dos frades...
D. ANGELICA
(_á parte_)
Olha o inimigo!... quem o chamou cá?!
O SENHOR ANTONIO
Ora viva o meu amigo e visinho! Esteja bom, passasse muito bem, é o que
eu mais estimo. Puxe cadeira e sente-se, sem ceremonia.
O SENHOR PEREIRA
A bôda e a baptisado, diz lá o outro, não vás sem ser convidado. Eu não
estive pelas contas. Somos visinhos ha cincoenta e dous annos, e rapazes
da mesma creação. Cá entre nós não ha ceremonias. Vim dar os parabens ao
meu amigo e senhor Antonio, e vêr-lhe a sua noiva, que emquanto a mim é
esta menina...
D. MARIA ELISA
Uma sua criada.
O SENHOR PEREIRA
Criada dos anjos. Pois, minha visinha, a minha casa é logo adiante
d'esta; mettem-se duas portas de permeio; se precisar d'alguma cousa, de
mim ou da minha companheira, não tem mais que mandar.
D. MARIA ELISA
Muito agradecida ao seu favor... Queira sentar-se.
O SENHOR PEREIRA
Estou bem assim: farto de estar sentado estou eu atraz do mostrador. Com
que sim, senhor Antonio, está vmc.e cá no rol dos homens de bem...
O SENHOR ANTONIO
(_com intenção_)
É verdade... cá estou no rol dos homens de bem...
O SENHOR PEREIRA
Fez vmc.e o que devia. Não ha vida melhor que a de casado. Eu cá de mim
não tenho razão de queixa. Estou casado ha dez annos, tres mezes, e
vinte e quatro dias, e, graças a Deus, não tive ainda um desgosto!
O SENHOR FERNANDES
(_á parte_)
Este é dos taes que o sabem no fim.
O SENHOR PEREIRA
A minha sancta companheira é propriamente uma mulher de casa, e minha
amiga, que é mesmo uma cousa! Lá por eu ter mais vinte annos que ella,
isso não tira, nem põe. Não é como algumas cá da nossa rua... nós bem
sabemos quem ellas são...
O SENHOR FERNANDES
(_á parte_)
Eu só conheço a d'elle...
O SENHOR PEREIRA
Lá porque os maridos não andam espartilhados a dar, com licença... nas
canellas com as abas da casaca, gostam mais de peralvilhos!...
Arreda com ellas! Eu, se tivesse assim uma, eu não seja João, se lhe não
arrebentasse a propria barriga!... A minha Marcellina é uma rapariga,
que, se me vir afflicto, vem prantar-se ao pé de mim, e não sahe d'alli
sem que eu lhe diga que estou bom. Quando me cahiu o cabello foi ella
que me pôz este chinó na cabeça, e por ahi os tratantes metteram-me
sonetos ao chinó por debaixo da porta! Valha-os o diabo!...
D. ANGELICA
Credo! Anjo bento! vmc.e falla tantas vezes no inimigo! Não diga essa
palavra que faz arripios no costado!
O SENHOR PEREIRA
Ahi está a nossa beata com as suas _escrupulisações_. A gente não sabe
como ha de fallar diante de vmc.e A minha Marcellina, ás duas por tres,
é diabo para aqui, diabo para acolá; e, se eu lhe digo que não é bom
chamar quem está manso e quedo, ella diz que o diabo se chama diabo!...
D. ANGELICA
(_persignando-se_)
Sancto breve da marca! Cale-se lá com essas blasphemias! Sua mulher, se
tivesse juizo, não dizia isso!... Se vmc.e lhe désse com o covado pela
rabada, ella se calaria...
D. MARIA ELISA
(_á parte_)
São indecentes!... Se algum futuro author de novellas quizesse descrever
fielmente esta scena, teria de ser indecente como elles! Tomára-me eu
sósinha!
O SENHOR ANTONIO
Em que pensas tu, Mariquinhas?
D. MARIA ELISA
Ah!... eu?... não pensava em nada...
O SENHOR ANTONIO
A modo que estás triste! Aposto que estás a pensar lá n'essas cousas dos
astros?
D. MARIA ELISA
Dos astros? não... pensava... na minha sorte... (_com ironia_) que é
realmente invejavel. Estou satisfeitissima da deleitosa conversação
d'estes senhores, que são sobremaneira recreativos.
OS SENHORES BAPTISTA E RODRIGUES
Pela parte que me toca... muito obrigado...
O SENHOR FERNANDES
(_á parte_)
Pobre mulher!... e pobre homem!...
O SENHOR ANTONIO
Então, Fernandes, estás ahi tão calado!...
O SENHOR FERNANDES
Que quer que eu lhe diga?
O SENHOR ANTONIO
Quando te casas?
O SENHOR FERNANDES
Quando tiver mulher. Ainda não é tarde.
O SENHOR ANTONIO
Isso não; mas o casamento faz arranjo... Ella tem cincoenta e quatro,
mas olha que é um anno para cada conto; e tu tens os teus trinta e seis,
mas cá, segundo os meus calculos, por morte de teu pae não tens nem
trinta e seis moedas, porque elle é um gastador, e deixa-te viver lá
mettido no quarto a lêr o Carlos Magno, sem te importares do negocio...
Teu pae parece-me que não virá... vai-se demorando.
O SENHOR FERNANDES
Já lhe disse que o meu pae pede desculpa de não vir, porque se sente
incommodado da gôta... Eu vim da sua parte dar ao senhor Antonio os
parabens, e comprimentar a sua esposa a quem desejamos, tanto eu como
elle, largos annos de felicidade.
D. MARIA ELISA
Muito agradecida! (_á parte_) Este falla melhor que os outros...
O SENHOR ANTONIO
Tu sabes fazer a preceito esses discursos! Sempre é bom a gente lêr o
Carlos Magno... Eu era pequeno quando o li, e ainda me lembra esta
passagem da formosa Floripes a Roldão: «Senhor par de França! Os vossos
olhos são dous sóes que derramam raios que matam como os lampejos da
vossa durindana. Senhor cavalheiro, eu vos digo que o vosso affecto é
mais doce que o mel, e mais abrazador que as ardentes _fragas_.»
O SENHOR FERNANDES
(_sorrindo_)
Essas fragas deviam de ser boas para assar bacalhau.
D. MARIA ELISA
(_sorrindo_)
De certo...
O SENHOR ANTONIO
E outras muitas cousas que me não lembram agora.
O SENHOR FERNANDES
(_com ar sarcastico_)
É pena que vmc.e se esqueça dos bocadinhos de ouro do Carlos Magno!
O SENHOR ANTONIO
Ora diz lá tu algumas passagens...
O SENHOR FERNANDES
É impossivel, porque nunca li o Carlos Magno; mas, á falta d'essa
preciosidade litteraria, posso dizer outra qualquer passagem bonita.
O SENHOR ANTONIO
A apostar que tu não sabes orthographia?
O SENHOR FERNANDES
(_sorrindo_)
Nada, não sei.
O SENHOR ANTONIO
Pois então diz alli a minha mulher que t'a ensine...
O SENHOR FERNANDES
Far-me-ia muito particular favor.
D. MARIA ELISA
Eu?!
O SENHOR ANTONIO
Sim, tu, Mariquinhas. Ensina-lhe aquellas cousas que fazem com que a
gente não caia quando a terra anda de redor.
O SENHOR FERNANDES
E é isso que se chama orthographia?
O SENHOR ANTONIO
(_meio irritado_)
É, sim, senhor. Olha lá se queres saber mais d'essas cousas que minha
mulher!
O SENHOR FERNANDES
Deus me livre d'isso... (_sorrindo a Maria Elisa que abaixa,
envergonhada, o rosto_) Eu nem sequer sei escrever com astronomia, como
hei de saber essas leis com que se regem os astros!...
O SENHOR ANTONIO
Chama-se _lei d'attrição_... Não te rias... é o que te digo, e, senão,
ouve: ó Maricas, como se chama isto que nos faz estar de pé, assim
direitos? (_erguendo-se._)
D. MARIA ELISA
Salvo erro, creio que são as pernas.
O SENHOR ANTONIO
(_sériamente_)
Isso é verdade; mas, se a terra andasse á roda, a gente cahia para o
lado...
O SENHOR FERNANDES
Não é forçoso que caia para o lado; póde cahir para traz, ou para
diante. (_Maria Elisa ri-se._)
O SENHOR ANTONIO
Tambem não vou contra isso; mas minha mulher sabe d'uma cousa que faz
com que a gente não caia, porque todos os corpos sahem do centro da
terra... Olha ella a rir-se! Então enganavas-me, cachorra?... Ah
ruimzinha!... (_puxando-lhe uma orelha._)
O SENHOR FERNANDES
Sua senhora tem razão... Os corpos, não digo que saiam do centro da
terra, mas tendem para lá; e esta tendencia faz que não possam, embora a
terra se mova, cahir no espaço.
O SENHOR ANTONIO
Tu não sabes d'essas cousas...
O SENHOR PEREIRA, _do chinó_
Os diabos me levem se eu sei o que vossês estão a dizer!
D. ANGELICA
S. Bento! Elle ahi torna com o berzabum do inimigo ás voltas! Não se
póde estar ao pé de vmc.e !... Credo!
O SENHOR PEREIRA
Ó mulher! deixe fallar a gente!... Eu queria saber como é lá isso de
andar o mundo ao redor como se fosse uma bola! Esta gente moderna sempre
diz cousas! Eu nunca tal ouvi aos velhos! Já a minha Marcellina se mette
tambem a fallar d'essas cousas lá dos livros com o doutor Miranda, e,
pelos modos, a rapariga não é tôla de todo. Agora anda ella a congeminar
nos planetas, e levanta-se algumas vezes de noite, e vem á janella...
O SENHOR FERNANDES
Observar os astros?
O SNR. PEREIRA
Acho que sim! A mulher lá tem aquella pancada na mola, e eu deixo-a
estudar a natureza, como ella diz...
O SENHOR FERNANDES
Isso é justo. Não me sabe dizer que planeta estuda sua mulher?
O SENHOR PEREIRA
Acho que é o sete-estrello.
O SENHOR FERNANDES
Ah! sim? E que diz ella a respeito d'esse «planeta?»
O SENHOR PEREIRA
Eu sei cá o que ella diz? Está alli á janella duas horas a olhar lá para
cima, e quando se deita está fria de neve. Eu já lhe disse: ó mulher!
deixa lá essas cousas celestes aos homens que sabem da póda! Tanto faz
como nada; ella diz-me não sei que da abobada, e das _mariadas_ de
estrellas... Apostar que o senhor Fernandes não sabe que ha uma estrella
chamada _vespa_, e outra _saturnea_?
O SENHOR FERNANDES
Nada, não sabia, mas ainda venho a tempo de saber. Sua senhora é que lhe
ensina essas cousas?
O SENHOR PEREIRA
E muitas outras, que me esquecem, porque não tenho as memorias affeitas
a esses nomes inglezes e gregos. Se vmc.e quizer vêr o que é uma
cabecinha ha de fallar com minha mulher...
O SENHOR FERNANDES
Estou convencido... não é preciso mais nada... Vejo que sua senhora
estuda perfeitamente a natureza, e compensa bem a pena deitar-se fria de
neve, quando a intelligencia vai quente do fogo da sciencia. Não
concorda, senhora D. Elisa?
D. MARIA ELISA
Eu?!... não sei se...
O SENHOR FERNANDES
Pois não é da minha opinião?
D. ANGELICA
(_rabugenta_)
Não é, não, senhor! Qual natureza, nem meia natureza! Uma mulher não se
deve metter lá n'essas trampolinices! Do que ella deve tratar é de
governar a sua casa, de tratar do seu marido, e dos seus filhos, e de
encommendar a sua alminha a Deus. Nossa Senhora era a propria mãe de
Deus, e não sabia lá das sciencias, nem dos planetas! Uma mulher honrada
não vai de noite vêr á janella o sete-estrello, nem a vespa, ou o
bisouro... mau bisouro é o demonio... Deus me perdoe...
O SENHOR PEREIRA
(_pundonoroso_)
Com que vmc.e , lá porque não tem cabeça para estas cousas, quer que as
outras sejam tapadas como vmc.e ? Não é má esta! Cada qual trata de si,
e Deus de todos. Minha mulher gosta de estudar a natureza, e vmc.e gosta
de resar novenas. Quem vai contra isso?
D. ANGELICA
E ella porque não resa novenas? Acha que lhe não são precisas? Pois olhe
que... eu já vi quem precisasse de resar menos... Melhor lhe fôra
governar a sua casa, e remendar a sua roupa, e não deixar ir tudo como
vai de portas a dentro...
O SENHOR PEREIRA
Sabe que mais? trate cá do que lhe pertence, e deixe as outras! Vmc.e é
muito murmuradeira...
D. ANGELICA
Eu! murmuradeira!... Ó meu Menino Jesus! inda mais ouvirei! Ó Antonio,
já viste uma cousa assim?
O SENHOR ANTONIO
Está bom... calem-se lá com essas questões. Cada qual vive como o seu
genio lhe pede; mas olha cá, visinho, eu sempre fui teu amigo, e não
tenho papas na lingua, quando é necessario. Cá a minha opinião é que não
deves deixar vir tua mulher para a janella de noite...
O SENHOR FERNANDES
(_com ironia_)
Porque se póde constipar...
O SENHOR ANTONIO
Não é isso... é que das más linguas ninguem se livra... Se quer estudar
a natureza, ou lá o sete-estrello, ou o que é como se chama, que o faça
de dia.
O SENHOR PEREIRA
Tu és tôlo, Antonio! Pois os planetas apparecem lá de dia?! Já vejo que
não te chama Deus para este caminho!...
O SENHOR FERNANDES
O senhor João Pereira tem razão. De dia não se descobrem planetas. O
padre Theodoro d'Almeida, que escreveu muito sobre os astros, diz-me meu
pae que o vira muitas noites na trapeira dos Congregados a contemplar a
natureza.
O SENHOR PEREIRA
Vmc.e é que sabe responder, senhor Fernandes... E, de mais d'isso, eu
estou muito contente com minha mulher. Antes quero que ella se
entretenha com os planetas lá de cima, do que com certos planetas que
andam por ahi a olhar para as janellas, e que não são das melhores
cousas para viver em paz cada qual com a sua mulher. Eu não tenho até
hoje razão de queixa; oxalá que tua mulher te dê a boa vida que a minha
me tem dado...
O SENHOR ANTONIO
(_enfurecido_)
Isso agora!... salvo tal logar!...
D. ANGELICA
Longe vá o agouro, e mais não diga a bôca que tal diz...
O SENHOR ANTONIO
(_para os circumstantes_)
Que lhes parece esta?! (_para elle_) Meu amigo, sabes que mais?... Vai
muito de cá a lá...
D. ANGELICA
Ó menina, Deus a livre de tal... Minha querida nossa Senhora dos
Remedios, não permittaes que tal aconteça...
O SENHOR PEREIRA
(_formalisado_)
Que diabo dizem ahi? Se eu os percebo, sêbo! Parece que já
jantaram!--Pois minha mulher... sim, pergunto eu... minha mulher... se
faz favor de me dizer... com que então a minha Marcellina... digam para
ahi o que sabem, linguas damnadas!... Eu queria saber o que vem a ser
estas benzedellas da nossa sanctinha, e lá esses arrufos teus,
Antonio!...
O SENHOR FERNANDES
Não se irrite, senhor Pereira, que não tem razão. Vmc.e entendeu mal os
reparos da senhora D. Angelica e seu irmão. É porque o senhor Antonio
não quer que sua senhora se constipe no estudo da natureza...
O SENHOR PEREIRA
Isso agora é outra cousa... Cada qual tem o seu genio; mas vir cá
dizer-me que vai muito de cá a lá, isso tem que se lhe diga. Tanto é a
minha Marcellina como a tua companheira. Somos todos do negocio, e
deixemo-nos de fidalguias, porque todos nos conhecemos. E quem fôr mais
rico, coma duas vezes, mas não desdenhe dos outros. O que eu queria
dizer-te a respeito da conducta das mulheres é que sou teu amigo, e que
oxalá a tua mulher seja como tem sido a minha.
O SENHOR ANTONIO
(_desesperado; com as belfas tremulas_)
Isso é que eu não quero!... já te disse que não quero e que não ha de
ser!...
D. ANGELICA
E elle a dar-lhe! _má mez_ para elle!... Valha-o uma figa! Não faça
caso, cunhada...
D. MARIA ELISA
Eu sinceramente lhes digo que não sei o motivo d'esta disputa! Se me não
engano, a esposa do senhor Pereira tem vocação para a astronomia. É
louvavel esse gosto da sciencia. São raras as senhoras que se dedicam ao
trabalhoso estudo da natureza...
O SENHOR PEREIRA
(_interrompendo_)
É como diz, e viva quem sabe fallar!
D. MARIA ELISA
O senhor Antonio José da Silva diz que...
O SENHOR ANTONIO
Ó Mariquinhas, é melhor dizeres _meu marido_.
D. MARIA ELISA
Meu marido diz que não quer que eu imite a senhora D. Marcellina.
O SENHOR ANTONIO
Não quero, é tal e qual o que eu disse. Minha mulher entendeu-me logo.
D. MARIA ELISA
Pois bem, eu não a imitarei; não me levantarei de noite a observar a
atmosphera, porque realmente não quero ser martyr da sciencia. D'este
modo, está acabada a questão. O senhor Pereira consentirá, porque assim
lhe apraz, que sua senhora se levante para os seus estudos; e meu marido
usará do direito, que eu lhe concedo, de me privar que eu estude os
astros de noite.
O SENHOR PEREIRA
Fallou bem como quem é; parece mesmo a minha Marcellina que sabe dizer
cousas que é mesmo da gente ficar encantado; mas eu tenho a dizer que cá
quanto ao que eu quiz dizer, a minha birra é que se a senhora D.
Mariquinhas fôr honrada como a minha Marcellina, não precisa ser mais.
O SENHOR ANTONIO
És teimoso como um jumento! Já te disse que a minha mulher tem outros
brios, e que sabe as obrigações de mulher casada!
D. ANGELICA
E não ha de dar que fallar como algumas... emfim... cada qual metta a
mão na sua consciencia...
O SENHOR PEREIRA
(_solemne_)
Que quer dizer isso? Então vmc.e acha que minha mulher... Ora tenha
juizo, que já é bem tempo de perder o sestro da má lingua... D'estas
beatas... Deus me livre d'ellas...
D. ANGELICA
(_aguçando o queixo inferior_)
Vmc.e está mesmo a inquietar a gente... Olhe que eu!... não me puxe pela
lingua, que eu não sou boa...
O SENHOR PEREIRA
Isso sei eu... que vmc.e é levadinha de todos os diabos... diga-m'o a
mim...
D. ANGELICA
(_enfurecida_)
Sabe que mais? ninguem o cá chamou... Deixe-nos em paz...
O SENHOR PEREIRA
Vmc.e é muito mal creada... O que merecia... sei eu...
O SENHOR ANTONIO
Está bom, Angelica! cala-te, João Pereira!... Se não estás bem, vai-te
embora; eu não te chamei cá...
O SENHOR PEREIRA
O asno sou eu em vir cá fazer de homem que sabe a cortezia quando é
preciso. Olha, meu amigo, emquanto tiveres cá em casa esta senhora
Angelica, não has de ter amigo nenhum...
D. ANGELICA
Vá importar-se lá com a que tem em casa, que não tem pouco que guardar.
O SENHOR PEREIRA
A que eu lá tenho em casa tem mais honra nos calcanhares, que vmc.e na
cara. O que vmc.e queria era que eu casasse comsigo, quando casei com
ella. Como eu não estive para isso, vinga-se a fallar mal de minha
mulher.
D. ANGELICA
Olha o bezuntão!... Eu quiz lá nunca casar com elle!...
O SENHOR ANTONIO
Accommodem-se!
D. ANGELICA
Sevandija! Más maleitas te colham!
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