A Filha do Arcediago - 07

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mesenterio do cevado, que é a mais saborosa das tripas do tal animal
(seja dito de passagem).
Nada mais displicente que os seus olhos azues, abertos a canivete, na
franja d'uma pequena testa quadrada.
Nada mais abominavel que os seus quatro dentes em anarchia, impellindo,
emparceirados com a lingua, perdigotos ás legiões, que orvalhavam, a
quatro palmos de distancia, a physionomia dos circumstantes.
Nada mais irrisorio que a supina ignorancia das suas sandices amorosas,
á mistura com anexins fastidiosamente vulgares, e momices mais ou menos
grutescas, mas sempre ridiculas ou nauseabundas. E os callos, e os
joanetes? tudo horrivel!
D'accordo.
Mas o dinheiro do senhor Antonio José da Silva! o dinheiro, atilados
leitores, vêde bem que se trata de dinheiro, dinheiro em abundancia,
placas de ouro e prata, cousas torpes e vis, confessemos que sim, mas
cousas com que se compram as carruagens, os velludos, os setins, os
jantares, os bailes, a consideração, os ouvidos, os olhos, as linguas,
as pennas, as eloquencias, com que tudo se compra inclusivamente os
romances, illustradas leitoras, e intelligentes bachareis!
O DINHEIRO!
Vós não sabeis o que são essas oito letras, que só ellas valem as vinte
e cinco do alphabeto! Vós não sabeis que eu conheço quatro, dez, trinta
alarves d'uma estupidez fabulosa que escondem n'uma luva branca a mão,
que deveria aguçar brochas, e palmilhar sapatos; que encostam aos coxins
das carruagens os lombos musculosos que a natureza affeiçoára para as
asperezas do costal; que mascaram a hediondez do vicio ignaro, o peor de
todos, com o riso alvarmente cynico de todos os homens endinheirados,
que é um riso particular.
Esses taes são tudo isso e mais alguma cousa; e eu sou o primeiro a
sorrir-lhes urbanamente, com meiguice, com mimo até, folgo que me
apertem a mão, que me chamem amigo, embora depois se riam de mim, folgo
e ennobreço-me d'essa esmola de consideração, porque, se, em minha
consciencia, reconheço que são elles os devassos, os torpes, os
ignorantes, os incorrigiveis, a minha illustrada cabeça diz-me que eu
ámanhã serei apedrejado, na praça publica, se esses taes passarem por
mim sem me cortejarem, e retirarem a sua mão da minha.
O DINHEIRO, amigos! Eu nunca me cansarei de vos lembrar esta palavra,
tres syllabas distinctas que fazem o unico deus verdadeiro d'este
paganismo ignominioso em que medram os vicios da sociedade. Tres
syllabas! trindade veneranda que representa o mytho de todas as
religiões, em cada uma das quaes o profundissimo Dupuis achou uma
trindade, e não descobriu esta, que eu tenho a honra de evangelisar-vos.
O DINHEIRO, emfim, foi o dinheiro, representado em Antonio José da Silva
que perturbou a tranquillidade descuidosa de Maria Elisa, desde o
momento fatal que a serpente, na feia figura do negociante, veio tentar
a Eva da viella do Laranjal.


CAPITULO XIV

A pobre orphã do Recolhimento, antes de conhecer Rosa Guilhermina,
enraivecia-se de não ser pensionista para compartir das regalias das
ricas, que tinham o direito de responder com altivez ás reflexões das
mestras, e ás rabugices da velha regente.
Reprimida pela necessidade de obedecer, phantasiava extravagantes
futuros d'onde a felicidade poderia vir resgatal-a á humilhante condição
de orphã, dependente da caridade publica. Moça ainda de treze annos,
lembrava-se de muitos casamentos ricos com meninas pobres d'aquella
casa, e botava sortes e adivinhas, que todas lhe annunciavam o suspirado
casamento. Uma velha, que sabia lançar as cartas, e com a qual havia
muita fé ao recolhimento, tres vezes lhe vaticinou um vantajoso
casamento.
Relacionada com Rosa Guilhermina, a ambiciosa orphã esqueceu-se um pouco
das suas queridas esperanças, porque, desde o momento em que ganhou a
intimidade da sua amiga, dispensou a ração da casa, e viveu,
independente da misericordia, como irmã com a pensionista.
Se algumas vezes contou á companheira os seus passados sonhos de
casamento, Rosa ouviu-lh'os rindo, e pediu-lhe que nunca se lembrasse de
tal emquanto ella fosse viva, e tivesse um bocado de pão que repartir
com ella.
Ainda assim, Maria Elisa tinha assaltos de vaidade, e soffria,
lembrando-se que não podia indemnisar alguma vez as liberalidades que
recebia de Rosa.
Quando se installaram, senhoras suas, na casa do Laranjal, Elisa pensou
no seu futuro, e lembrou-se que viria tempo em que Rosa trocaria por
outros affectos os carinhos d'ella, e acharia pesado o encargo de
sustentar com tantas regalias uma estranha.
Este reservado pensamento, que ella, eminentemente philosopha, sabia
calar, dominou-a muito tempo, com bem pouco elogio para a sua idade e
para o seu caracter.
Quando veio á sala zombar de Angelica não havia n'essa caricatura de
rapariga apaixonada intenção séria, nem podia havel-a.
Quando o senhor Antonio principiou a franca exposição dos seus
sentimentos, que elle significava na melodiosa palavra «sympathia»,
Maria Elisa zombava ainda, e respondia com caretas ás caretas de Rosa.
Quando, porém, o capitalista fallou em luxo, em carruagens, em fidalgas,
e, sobre tudo, na necessidade de deixar uma herança, que não queria
deixar aos sobrinhos, a moça pobre lembrou-se das suas esperanças
desvanecidas, e dos prognosticos da velha do recolhimento, que lançava
as cartas.
E, portanto, Maria Elisa, a seu pesar, recahiu de repente na gravidade
do assumpto, e ouviu as ultimas palavras do ingenuo negociante, com a
discrição, que o caso pedia.
Aqui o que temos a admirar, se alguma cousa vale a pena da admiração, é
a philosophia tão saturada aos dezeseis annos!
A ideia philosophica, em uma mulher, começa aos vinte e cinco annos, e
acaba aos quarenta e cinco. Até aos vinte e cinco, domina a poesia, dos
quarenta e cinco para diante, se não domina a theologia, ha de
forçosamente dominar a toleima, que os vocabularios definem «tolice
grande». Isto não é maxima, que valha as de _Larochefoucauld_; mas é, no
seu tanto ou quanto, uma maxima que deve aproveitar a muita gente.
Maria Elisa, porém, fôra demasiado temporã na razão da philosophia.
Anticipou-se, é verdade; mas veremos que não abortou por vir cedo de
mais. Os grandes pensamentos tem cincoenta annos de incubação nas
entranhas da sociedade. Terão: não duvido nada; mas o maior pensamento,
que se conhece, é o de Elisa em casar com o senhor Antonio, e vingou em
cincoenta minutos.
As perguntas de Rosa mortificavam-na.
A ciumosa amiga custava-lhe a crêr similhante extravagancia; mas a
importancia grave que Maria Elisa estava dando ás perguntas zombeteiras,
que lhe eram feitas, aggravou a desconfiança de sua amiga.
Por esquivar-se ás impertinentes instancias da arrufada Rosa, a noiva,
em perspectiva, refugiou-se nas chufas ao promettido esposo, e conseguiu
dissuadir a amiga, que foi tão facil em descrêr como tinha sido em
irritar-se por um ciume extravagante.
Quando emprégo a palavra «ciume» não se persuadam que a filha do
defuncto arcediago era rival d'Elisa. Justiça lhe seja feita: D. Rosa
era rival do senhor Antonio. Como estas cousas são, não me importa a mim
sabel-o. Ha no coração de duas mulheres muito amigas puerilidades assim,
segundo me consta.
Maria Elisa pensou na aventura toda a noite.
Para neutralisar a cubiça do luxo, e da independencia, a ambiciosa
pequena afigurava-se ligada ao senhor Antonio, carnal e positivamente
como Deus o atirára a este mundo. Punha de parte o dinheiro, afastava o
crepe dourado, para vêr o cadaver em todo o horror das ulceras; mas o
demonio tentador não lhe pintava uma cousa sem lhe pintar a outra. Pelo
habito de imaginal-o familiarisou-se com elle, e já lhe não parecia tão
repulsivo. E, se declinava os lindos olhos do homem para a opulencia
embrionaria no ouro d'elle, a philosophica menina via cousas
lindissimas, e deslumbrava o coração esquivo com as liberalidades que a
cabeça lhe promettia.
E, no mais caloroso do seu delirio, via um marido velho, e uma riqueza
pósthuma a gosar, e um coração, cheio de vida, a offerecer.
Foi esta a final conclusão dos seus raciocinios, que ella não deixou
escriptos em compendio para uso dos collegios de meninas; mas que,
depois d'ella, temos visto que foram adoptados, e que fazem hoje as
delicias das educandas. Os bons príncipios teem isso comsigo.
O dia seguinte correu sem novidade.
O outro foi um dia triste para ambas as meninas.
Elisa parece que se esquivava á sua amiga. Rosa ensaiou uma pergunta
definitiva; mas não ousou proferil-a.
Ao terceiro dia, uma carta do senhor Antonio José da Silva foi causa de
grandes dissabores. O conteúdo era assim:

«_Senhora D. Maria Elisa._
_Porto, 24 de abril de 1818._

_«Minha senhora do meu coração e da minha particular estima. Faz hoje
tres dias que fallamos em certo negocio a respeito da nossa união. Muito
desejava eu saber, para meu governo, se v. s.ª está resolvida a dar-me a
sua mão de esposa. Estes negocios não devem demorar-se. Eu já lhe disse
o que lhe tinha a dizer. Por motivos, que á vista lhe direi, estou
deliberado a casar-me o mais breve. Soube que v. s.ª sympathisava
comigo, e eu da minha parte não desgosto da sua pessoa. Por isso, se
houver de se fazer este casamento, ha de ser já, quando não com bem
desgosto do meu coração procurarei outra que tenha as boas qualidades da
menina. Peço-lhe que responda com brevidade. Mande no seu serviço este
que é e será até á morte_
_De v. s.ª_
_Attento venerador e criado obrigado,_
_Antonio José da Silva._»

Está conforme o original, excepto a grammatica, a pontuação, e a
orthographia.
Maria Elisa, não podendo illudir as instancias de Rosa, sem lêr a carta,
ralatou a seu modo o conteúdo. Vejam que a vaidade não a deixava já
expor ao escarneo da sua amiga a redacção do capitalista! Por mais que a
curiosa teimasse, não conseguiu julgar do coração do seu antigo amante
pela eloquencia da carta!
Perseguida, cansada de fingir, exhausta de pretextos, Elisa disse á sua
companheira de dous annos:
--Eu amo-te muito, minha querida amiga. És a primeira e a unica pessoa a
quem consagrei a minha alma, e todos os instantes da minha existencia,
que não será longa, longe de ti; mas não posso contar com o teu apoio
toda a vida. Preciso de ser independente, como tu és, para bem avaliar
as tuas generosidades. A verdadeira e duradoira amizade firma-se na
independencia...
--Olha que me ultrajas, Elisa! Eu fiz-te nunca sentir a tua dependencia?
--Fizeste.
--Fiz! isso é uma mentira, que me escandalisa!
--Fizeste com os teus carinhos. Quanto mais procuravas esconder aos meus
proprios olhos os beneficios, que me fazias, mais os olhos do meu
coração se abriam, para vêl-os, e mais devedora me considerava aos teus
extremos. Quer Deus que eu seja o que não poderei ser de outra maneira.
Serei rica. Não digo que seja feliz; porque a ventura não a dá o ouro,
nem as lagrimas da saudade se enxugam com o dinheiro. Mas eu sou sempre
a tua amiga. Serás sempre a minha confidente. Serão reciprocas as nossas
casas, e as nossas riquezas. Viveremos tão juntas como até aqui. Terás,
mais ditosa que eu, um marido da eleição da alma. Serás venturosa, com
elle, e eu um dia... talvez... bem cedo... viuva, e rica... serei outra
vez a tua irmã, debaixo das mesmas telhas...
--Isso nunca!
--Nunca!... porquê?...
--Nunca!... Quem me não amou até hoje, virá depois offerecer-me riquezas
que despréso, e não preciso.
--Eu não virei offerecer-te riquezas, porque rica és tu. Virei outra vez
atar o fio que se vai quebrar entre os nossos corações, se é que a
separação de instantes é um laço de dous corações que se desata! Rosa,
não chores, que me comprimes o seio... Dá-me a tua mão... não sentes que
estas palpitações só tuas podem ser? Apraz-te martyrisar a tua amiga?
--Impostora!
--Impostora, eu, Rosa, e tens alma de me dizer tal? Não sentes o
remorso de tamanha offensa?
--Não! És uma ingrata, que me trocas pelo dinheiro d'um homem que eu
despréso.
--Porque és rica.
--D'um homem a quem chamavas os mais despresiveis nomes.
--Que hoje outra vez lhe dou.
--Então como podes tu sacrificar a tua vida a um ente abominavel?
--Porque não tenciono sacrificar-me... O escravo ha de ser elle.
--Não te entendo! O escravo ha de ser elle!... de que modo?
--Obrigal-o-hei a servir os meus caprichos.
--Quaes caprichos?
--Todos.
--Vaes ser uma esposa infiel?
--Não.
--Vaes ter carruagem, e vestidos ricos?
--Vou.
--E se te não dér carruagem, nem vestidos?
--Ha de dal-os.
--E se não dér?
--Divorcio-me... metade da sua riqueza é minha.
--E queres dar escandalo?
--Escandalo é ser pobre. Vejo-te hoje muito moralista.
--E tu pareces-me philosopha de mais.
--Antes isso.
--Que maneira de responder!
--É como a tua de perguntar... Não nos zanguemos, Rosinha. Sejamos boas
amigas. Aconselha-me que me case, que é a maior prova que pódes dar-me
da tua estima.
--Faz o que quizeres... és livre... Enganei-me comtigo... creei uma
vibora no meu seio.
--Isso é d'uma novella que nós lêmos ha dias. Nada de arrufos... Vamos
cear?


CAPITULO XV

RESPOSTA Á CARTA DO SENHOR ANTONIO JOSÉ DA SILVA
«_Ill.mo snr._
«_Hontem recebi a sua preciosa carta. O meu coração delirou de
contentamento, e a minha penna não póde fielmente interpretar os jubilos
do espirito._
«_Não se resiste aos seus carinhos. É-se arrastada involuntariamente para
a fascinação dos seus affectos. Deslumbra-se o entendimento, e
humilda-se o amor proprio na presença de v. s.ª_
«_Sim. Eu serei sua esposa, e satisfarei assim a mais incendiaria ambição
da minha alma. O matrimonio, porém, é de todos os passos o mais sério
passo da vida. Se resvala o pé, o casamento é o desfiladeiro, que conduz
ao tumulo. Eu mando calar a minha paixão. Faço que o cego amor emmudeça
para que a razão falle. Raciocinemos, pois, que assim é preciso._
«_V. s.ª já conhece bem o meu caracter? Creio que não. Eu não sou uma
mulher trivial. Tenho um grande coração para amar; mas o amor não é
suficiente alimento para elle. Sou ambiciosa de brilho, de ostentação,
de gloria, e não poderia fazer feliz um homem pobre, porque preciso
resplandecer aos olhos de meu marido e aos dos estranhos._
«_Este brilho, que ambiciono, não é um instrumento com que eu queira
ferir a minha honra, ou a honra de meu marido. Pelo contrario, humilde
para elle a quem devo tudo serei soberba da minha grandeza para todos os
outros. Se me quer para esposa, se me quer para dominar o seu
coração, e ser dominada no meu, é preciso que v. s.ª se comprometta, por
sua palavra de honra, a não embaraçar-me no livre gôso da riqueza que me
transmitte, desde o instante em que um eterno vinculo nos prender._
«_Eu sei que v. s.ª vive acostumado a uma mediania que não enquadra no
meu grande espirito. Não vá esse fatal habito, no futuro, transtornar a
nossa tranquillidade. Reflexione, senhor Silva, emquanto é tempo; e
responda-me quando o coração concordar com as meditadas reflexões que
tem a honra de fazer-lhe esta que é_
«_De v. s.ª_
«_Muito affectuosa amante, e attenta veneradora,_
«_Maria Elisa Sarmento de Athaide.»_

O senhor Antonio leu tres vezes a carta e entendeu o essencial. Uma das
maiores difficuldades que zombaram da sua intelligencia foi a mais
simples das cousas: a assignatura.
--Como é (dizia elle) que ella se chama _Sarmento de Athaide_, se seu
pae era Joaquim Nunes, e sua mãe Michaela Felisberta? Isto, pelos modos,
cada qual assigna-se como quer! Pois eu hei de morrer, como nasci...
Estas sensatas reflexões foram interrompidas pela senhora Angelica.
--Já recebeste resposta, Antonio?
--Agora mesmo.
--Ora lê lá isso.
O noivo leu a carta, que sua irmã ouviu com a bôca aberta, franzindo a
testa a cada palavrão, que seu mano não entendia melhor que ella.
--Está uma carta d'uma vez!--disse a senhora Angelica, abrindo os olhos
para o lado da testa, e apanhando com os seus tres dentes, resto de
maior quantia, o beiço inferior, em signal de admiração--Isso é que é
fallar! O diacho da rapariga parece que tem cousa má! Aquillo é que é
uma cabecinha! Diz que bota sonetos, e lê pelos livros grandes dos
doutores! Ora vejam lá como a boa da pequena, sabe estas palavras, e diz
tudo que faz mesmo pasmar!... É um regalo ouvir essa carta... Ora lê lá
outra vez, meu querido Antoninho, que tens uma noiva de toda a
sabedoria!
O senhor Antonio leu quinta vez a sublime carta.
--Com effeito!--tornou a senhora Angelica--eu aposto se um doutor a
fazia melhor! A pequena parece que veio ensinada da barriga da mãe...
Cousa assim não consta!... Nunca vi nada mais bonito! Então isso que
quer dizer?
--Pois tu não entendeste?
--Assim me Deus salve que não.
--Isto quer dizer, sim... quer dizer que... é verdade, isto quer dizer,
que me tem uma grande affeição da sua alma, e que está prompta a ser
minha esposa...
--Coitadinha!... Isso já eu sabia... eu não t'o disse? Ora vê lá como as
cartas fallam verdade! Bem dizia a Escolastica de Miragaya que a igreja
te sahia brevemente... E não diz mais nada a minha cunhadinha?
--Diz que quer muito vestido, e muita... sim, diz que quer muita
grandeza para metter figas nos olhos...
--Á Rosa? bem haja ella! Eu cá tambem fazia o mesmo!... Pois olha,
Antonio, por ser cousa tua hei de dar-lhe o meu vestido de vareja branca
com lentejoulas para o casamento, e as plumas que minha madrinha me deu,
que lhe hão de ficar ás mil maravilhas. O vestido não tem mais que
pôr-lhe meias mangas, e subir a cintura para cima, que no mais está na
moda, custou-me a quatro mil reis a vara... daquella fazenda ha mais de
trinta annos que cá não vem tão boa... E que mais diz a carta? não me
manda visitas?
--Não... esqueceu-se...
--Pois, se lhe escreveres, diz-lhe da minha parte que muito estimo que
seja minha cunhada, e que havemos de ir ambas visitar o Senhor, e resar
a novena do menino Jesus dos attribulados, e muitas devoções. Diz-lhe
mais que faça por ter saude, e que peça a nossa Senhora que lhe dê muita
juizo e graça para servir a Deus... Ouviste?
--Ouvi, sim, vai pôr o jantar na mesa.
Entretanto, o senhor Antonio ficou sósinho passeando, e traduzindo para
vulgar a carta de Maria Elisa. O seu espirito, posto que d'uma
parcimonia admiravel no entendimento das cousas, custava-lhe a combinar
a cega paixão de Elisa com as calculadas condições que lhe eram
estipuladas em contracto de casamento. Todavia o negociante combinava a
carta com o que ella pessoalmente lhe fizera sentir acerca de carruagens
e assembleias, e deduzia de tudo que a rapariga queria figurar.
O senhor Antonio era rico, muito rico, mas avarento não. Nunca lhe
occorrera a ideia de gastar dinheiro em competencia com alguns seus
collegas que figuravam na roda dos fidalgos. Se desejasse deslumbral-os,
não olharia a despezas. Mas o coração não lhe pedia essas cousas, e
muito menos a carruagem, cujo balanço (dizia elle) não podia dar grande
saude aos bofes d'um homem gordo. O orgão que o senhor Antonio
respeitava mais na sua economia eram os bofes, de que se queixava pondo
a mão no estomago. Naturalmente suppunha que tinha o figado no peito.
Era um erro de anatomia desculpavel. Eu proprio, que já tive a honra de
vos dizer que sei tudo e mais alguma cousa, não tenho absoluta certeza
da collocação do figado, supposto que fui em anatomia estudante
profundo, a ponto de querer provar que o duodeno (tripa de doze
pollegadas) tinha, pelo menos, trinta e duas braças. E ainda hoje estou
n'isto, diga lá o que disser Bichat, e Soares Franco. Em consequencia do
que, tinha muita razão o senhor Antonio em recear que o balanço da
carruagem lhe prejudicasse os bofes situados no estomago. Mas a senhora
D. Maria Elisa de Sarmento Athaide lêra nos livros que a carruagem era
hygienica, e o senhor Antonio renunciára, como vimos, o pensamento do
carroção.
O jantar do senhor Antonio, n'este dia, foi rapido e pequeno, porque ao
coração refluira-lhe quasi toda a sensibilidade do estomago. O senhor
Antonio limitou-se a comer obra de arratel e meio de cozido da perna,
uma travessa de arroz com rodellas de linguiça, uma concava pelangana de
carneiro ensopado com batatas, uma tigela de chorudo caldo com sôpas que
se levantavam entumecidas quatro pollegadas acima do nivel da tigela, um
quarto de ceira de figos de comadre, alguns copos de vinho á proporção,
e mais nada. A senhora Angelica, assustada do fastio de seu irmão, pouco
mais comeu. O amor espiritualisára a organisação do nosso amigo o senhor
Antonio José. Mais tres dias d'esta quasi abstinencia de anachoreta, e o
sensivel negociante, um pouco pallido, e outro pouco meditabundo,
poderia sem favor, ser tido e havido como a preexistencia d'estes
rapazes, que nós conhecemos, e lamentamos na sua desesperação de amantes
não comprehendidos na face da terra!
--Ai! quem me dera poder-vos dizer que o senhor Antonio, á hora
melancólica do crepusculo, fixava o ôlho lagrimoso na amplidão dos céos,
espreitando o fulgor da estrellinha que o enamorava de lá!
Eu daria de graça este meu romance, se podésse, em estylo scintillante
umas vezes, e outras morbido, afiançar-vos que o senhor Antonio José da
Silva fôra poisar a sua redonda pessoa na fraga de-á-beira-mar, e ahi
com os olhos no horisonte, e os bofes arquejantes, perguntára á gaivota
gemebunda o segredo dos seus gemidos!
Não é possivel, leitores. O senhor Antonio o mais que pôde fazer, no
auge da paixão, foi comer assim. Não exijam mais d'aquelle homem, porque
d'ahi ao suicidio vai só um passo.
Antonio José da Silva, meu sympathico heroe, tu passaste sobre a terra,
e a tua geração não te comprehendeu!
Tu nasceste para estes nossos dias de angustiosa provação, de sentimento
fino, de doloroso trespasse d'uma civilisação material para o reinado do
espirito.
Se vivesses hoje, serias ordeiro, e visconde; terias ido ás camaras
fallar na cultura da cebola-albarrã, e na estrada concelheira de
Guinfões e Terras de Bouro; comerias biscoutos na assembleia portuense,
e pedirias a palavra na associação commercial, para dizeres que eras um
honrado negociante. E não ficaria aqui a tua missão grandiosa. Se
morresse algum homem, rei do talento, e creador d'uma litteratura,
serias tu o encarregado de dar a tua ideia para um monumento que
perpetuasse a gloria d'essa illustração![3]
Antonio José, vieste cedo de mais! Eu lembro-me de ti com saudades (e
mais não tive a honra de conhecer-te) todas as vezes que vejo a tua alma
cavalgando o nariz dos meus contemporaneos!
Lembro-me de ti, especialmente, quando me vejo a braços com uma paixão
séria, e não sinto cá dentro ferir-me o toque inspirador com que tu,
depois de jantar, respondias assim á carta de Maria Elisa Sarmento de
Athaide:
«_Ill.ma snr.ª_
«_Porto, 27 de abril de 1818._
«_Sem tempo para mais, recebi a sua estimada cartinha, que veio muito a
proposito, porque eu já não estava bom. Vejo o que me diz, e a respeito
de tudo não tenho nada a dizer contra. Eu não sou d'esses sovinas que
são capazes de engulir, á hora da morte, o dinheiro, como certos
avarentos que eu conheço. A menina não ha de ter falta de cousa nenhuma;
ponto é que tenha juizo, e que saiba conduzir-se. O que eu tenho seu é,
e de mais ninguem. Gostei muito de a ouvir discorrer na sua carta, e
fallou bem a respeito do matrimonio. Eu gosto de quem me entenda, e, a
respeito do mais, deixe o negocio por minha conta. Logo que esteja
resolvida, botam-se os banhos, e faz-se isto depressa, que é o melhor.
Sem mais, sou_
«_De v. s.ª_
«_Vosso amante do coração_,
«_Antonio José da Silva._»

Maria Elisa leu sósinha, com frouxos de riso, esta carta. O estimulo do
riso cedeu ao da meditação. Momentaneamente, a melancolia ennuviou o
semblante da pensativa menina. Parece que estava sentindo vergonha ou
piedade de si. O pensamento de quebrar com uma gargalhada aquellas
relações, assaltou-a duas vezes; mas o pensamento de ter carruagem e um
bello futuro por detraz da campa de seu marido, assaltou-a tres vezes, e
venceu por um assalto, posta a sua alma a votos.
Rosa Guilhermina, desde o dia anterior, não lhe fallava. Esta demazia de
aspereza concorreu muito para a definitiva resolução do casamento,
porque o seu orgulho dizia-lhe que os amuos de Rosa eram o effeito da
dependencia. De mais a mais a colerica filha da Anna do Carmo tinha-lhe
dito que tal casamento não seria feito em sua casa. Que sahisse ella
para onde quizesse, porque, no momento em que annuisse a tal infamia,
terminavam de todo em todo as suas antigas relações. Isto foi de mais:
mas a filha da Anna do Carmo tinha uma costella de sua mãe, e essa
costella vencera, na questão, as vinte e tres de seu pae.
O portador da carta esperava a resposta.
Maria Elisa, passada uma hora de lucta, dolorosa talvez, respondeu
assim:

«_Não tenho nada que esperar. Póde dar como resolvido o nosso casamento.
Cumprirei a minha palavra, quando v. s.ª quizer. Eu recolho-me hoje
mesmo ás orphãs._»

Depois, entrou no quarto de Elisa, com os olhos rasos de lagrimas,
talvez as menos inteligiveis de todas as lagrimas de que tenho fallado:
--Rosa, acabo de decidir definitivamente o meu casamento. Cumprindo as
tuas ordens, venho despedir-me de ti.
--Estimarei que sejas feliz.
--Devo considerar acabadas as nossas relações de amizade?
--Deves.
--Menos as da gratidão, porque te sou muito devedora.
--Dou-te paga e quitação d'essa divida. Não quero mesmo ser tua credora,
porque me envergonho.
--E eu tambem... e cada vez mais. Hei de avaliar a dinheiro os teus
favores, e darei á Sancta Casa da Misericordia esse dinheiro, por tua
tenção.
--Basta! Eu não admitto escarneos! Basta de affrontas!
--Cada vez agradeço mais á Providencia a inspiração de me casar...
adeus...
Rosa Guilhermina pensou alguns minutos, arrependeu-se, e correu a
procurar a sua amiga para pedir-lhe perdão d'um accesso de cólera, filho
do amor. Já a não viu. Tinha sahido com a sua criada, e deixára um
bilhete com estas linhas:

«_Não levo os vestidos de meu uso, porque não são meus. Comprou-os com o
seu dinheiro a senhora D. Rosa Guilhermina. Deixo-os para serem
avaliados, e descontados depois no saldo das nossas contas._»

A filha de Anna do Carmo, outra vez atacada de raiva, foi aos vestidos,
e rasgou-os com mãos e dentes, praguejando.
Que taes eram as bichas!


CAPITULO XVI

Não conheço palavra que vos dê uma cabal ideia da sensação suavissima
que atravessou até ao coração os tecidos adiposos do senhor Antonio,
quando os seus olhos peccadores leram o bilhete de Maria Elisa. A ultima
linha, porém, essa que declara a entrada da noiva no recolhimento,
fendeu no peito do alvoroçado negociante um vesuvio d'amor, misturado de
orgulho, por se vêr amado d'uma donzella, que tão nobre amostra dava da
sua virtude.
Cinco minutos depois que Elisa entrára, com grande pasmo e má vontade da
regente, era procurada na portaria pelo rico negociante, muito conhecido
n'aquella casa, em virtude dos cargos importantes que tivera na Sancta
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