A Filha do Arcediago - 15

Total number of words is 4354
Total number of unique words is 1465
37.9 of words are in the 2000 most common words
51.8 of words are in the 5000 most common words
59.1 of words are in the 8000 most common words
Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
todos os pontos em que devo passar na minha longa viagem para o nada. O
presente conta-me o futuro. O que vem não receio que seja peor que o que
é. Ha uma cruel monotonia n'esta angustia de todas as horas!
V. exc.ª comprehende-me? Creio que sim! O infortunio illumina o
entendimento. Para o que soffreu não ha mysterios de dôr no coração do
estranho. A minha amiga tem soffrido muito. Perdeu, ha pouco, um esposo
querido. Já depois beijou os labios frios d'uma unica filha que ficára
fallando com a innocencia da saudade a linguagem singela e carinhosa de
seu pae. Ainda assim, invejo-lhe o poder que tem de prestar consolações
á amargura dos outros. Eu, hoje, não saberia consolar ninguem.
Minha amiga, dê-me a sua estima, que eu não tenho mais nada. Em
remuneração, dou-lhe a verdade da minha alma, que é um thesouro, raras
vezes, concedido.
De v. exc.ª
Verdadeiro amigo,
_Paulo_.

II
_30 de setembro_
Palpita-me com sobresalto o coração. Preciso escrever-lhe emquanto me
dura esta febre, que está sendo a minha felicidade! _Felicidade_! com
que ousadia pueril escrevi semelhante palavra! Já é desejar muito
possuil-a! Bem se vê que sou um homem sem presentimento nenhum alegre,
sem nenhum direito á felicidade. Um pequeno lance na minha vida
transtorna-me a cabeça; e, comtudo, estes lances, creio eu que são
frequentes, e desapercebidos, na vida de qualquer outro, mediocremente
feliz.
Hontem fui procurado por Alvaro de Sousa, que uma vez encontrei em casa
de v. exc.ª Impressionou-me um ente estranho, no meu quarto, fechado
para todo o mundo. Chamou-me «amigo» e esta palavra banal fez-me sorrir,
pronunciada por um homem, que eu apenas conhecia, e que tão distante
está da minha obscura classe!...
Disse-me que possuia um quadro meu, era que uma virgem, mais formosa que
as de Raphael, era pintada no extasis de responder a sua mãe que a
chamava do céo. Eu já sabia que v. exc.ª lhe tinha dado este quadro.
Entendi, quando o soube, que não devia magoar-me; mas quizera, antes,
que os profanos na religião do martyrio ignorassem o author daquella
pintura. Não me receba isto como queixume. É a innocente sensibilidade
de quem, pelo muito soffrimento, chegou talvez aos escrupulos
injustos...
Perguntou-me se eu continuava a pintar. Respondi-lhe a verdade, que
nunca veio desfigurada do meu coração. Disse-lhe que sim. Pediu-me, como
especial favor, que retratasse uma mulher. Hesitei um momento; mas tive
pejo de me negar. Annui, e na tarde de hontem, acompanhei-o ao Sério, a
casa da viuva d'um negociante que, penso eu, se chamou Antonio José da
Silva, e creio mesmo que v. exc.ª me fallou, ha tempos, n'esse homem,
contando-me as aventuras d'uma tal Anna do Carmo, casada com seu primo
de traz da Sé.
Em casa d'essa viuva está uma senhora, viuva tambem. Ha tres annos que a
vi casada com um tal Augusto Leite, que deixou uma triste celebridade. A
nossa chorada amiga fôra companheira d'ella nas orphãs em S. Lazaro, e
contou-me cousas que lhe não eram muito favoraveis á sua indole de
menina.
Quando a vi casada com um homem perdido, imaginei que a semelhança dos
genios aproximára dous entes, que deviam encontrar-se. Comtudo, a
Rosinha, como lhe chamava Helena, pareceu-me triste. Soube depois que
era realmente infeliz, e nunca mais tornei a vêl-a.
Vi-a hontem, sentada diante de mim, com o sereno aspecto do prazer no
rosto, um pouco macerado, mas radiante ainda d'aquelle brilho de certas
bellezas que não se apaga nunca. Quiz adivinhar-lhe o coração nos olhos,
e estes olhos, languidos de ternura, vi que se fechavam n'um espasmo
delicioso a cada olhar de Alvaro de Sousa. Entristeci-me daquillo,
porque me lembraram as mulheres do grande mundo, os typos de magestosa
immoralidade, que dificultosamente se aclimatam em Portugal, onde não
chegou ainda a cultura e o despejo da França
Eu disse-lhe que não podia prescindir dos seus olhos por algumas horas.
Sentia-me com disposição para zombar da belleza, que tinha a vaidade de
reproduzir-se para, dez annos depois, encontrar, no logar das rosas, as
rugas da velhice, no vívido scintillar dos olhos o amortecimento do
cansaço.
Principiei o retrato. Alvaro de Sousa entretinha nos braços uma pequena
creança a quem chamavam Assucena. É filha de Rosa. Conheci-a pela
semelhança com sua mãe; mas não sei o que ha na physionomia da pequena,
que prophetisa fatalidades! Serei eu supersticioso?
Emquanto esboçava os contornos, perguntei-lhe se conhecera Helena
Christina, nas orphãs. Disse-me que sim, e que chorára, quando teve a
noticia da sua morte, por causa d'uma paixão que cegamente tributára a
um homem, que não era da sua condição.
Que homem era esse?--perguntei-lhe eu--Era o filho d'um
advogado.--Pensei que a condição do advogado era nobre, repliquei eu.--É
nobre; mas a d'um general é muito mais nobre, e Helena era filha d'um
general.
Não pude continuar o retrato. A palheta tremia-me no braço, e o pincel
traçava linhas confusas. Pedi licença para retirar-me, e deixei Alvaro
enleado da minha improvisada sahida.
Passei uma noite cruelissima. Levantei-me para escrever a v. exc.ª
Cuidei que esta carta me seria um desabafo; mas a suffocação augmenta.
Para que me disse aquella mulher que eu fui a causa da morte de Helena?
Penso que o fui. Accuso-me d'esse crime; porque não posso accusar meu
pae, que devera ser general, e não advogado.
Como é a sociedade, senhora! É impossivel que a Providencia não
abandonasse o homem, depois de o ter creado! Se o espirito de Deus
presidisse á organisação do genero humano, ninguem viria dizer-me: «A
tua condição social collocou um tumulo entre ti e a filha de um
general!»
E é a isto que eu chamei _a minha felicidade_! É um novo crime! Aquella
mulher confirmou a certeza que eu tinha de ter sido amado por Helena até
lhe merecer o sacrificio da vida. Será isto um egoismo barbaro?
Adeus, minha boa amiga.
De v. exc.ª
Amigo do coração,
_Paulo_.

III
_12 d'outubro_
Tive hontem o desgosto de não encontrar em casa v. exc.ª Procurei-a
porque tinha muitas ideias a revelar-lhe, mas tão desordenadas, que
receei não poder escrevel-as. A bondade, com que a minha paciente amiga
costuma attender os desvarios d'este forte coração e d'esta debil
cabeça, seria mais uma vez tolerante comigo.
Não a encontrando, resolvo escrever-lhe, e v. exc.ª verá n'esta carta o
tumulto de sensações que se me atropellam na alma, ha dez dias.
Instado por Alvaro de Sousa, fui recomeçar o retrato da viuva. Era-me
preciso, para não passar por doudo, remediar de qualquer maneira a
precipitação com que sahi d'aquella casa. Não me occorreu algum
pretexto. Adoptei o silencio como explicação, e não dei uma palavra que
suscitasse recordações do dia anterior.
Reparei com animo frio na physionomia de Rosa. É uma d'estas mulheres
que o mundo chama bellas, e eu creio que o são. Sem uns traços de
soffrimento, que lhe assombram os olhos, não seria tão bella. Tem um
olhar humilde, como quem pede compaixão. Não sei que transparente brilho
de lagrimas lhe empana os olhos. As palpebras, como cansadas de se
abrirem diante do infortunio, pendem amortecidas. Se não ha estudo
n'esta attitude caracteristica, o olhar de Rosa póde exprimir muito
amor, ou muito fastio.
Muito amor, talvez... é mais natural. Alvaro de Sousa, constantemente
embebido na contemplação d'esta mulher, não a deixa um instante sósinha.
Muitas vezes a viuva do negociante vem á sala trocar algumas palavras
com Alvaro, e não consegue divertir-lhe os olhos da sua amiga. Não pude
comprehendel-os. Achei demasiada precaução no amante, e alguma frieza,
se não era pudor, em Rosa. As perguntas carinhosas, que elle lhe faz,
são correspondidas com meiguice nos labios; mas a phrase vem sêcca do
coração. Reparei n'isto, e parece que o pincel, que traçava as feições
de Rosa, copiava tambem a physionomia moral de ambos.
Á primeira secção vieram ao panno os traços formosos da viuva. Alvaro
abraçou-me com frenesi; e ella parece que encarou tristemente aquelle
jubilo, que me pareceu pueril. É que aos vinte annos é assim o amor. A
felicidade embriaga os que não provam o fel nas primeiras libações da
infancia.
No dia seguinte fui continuar o retrato.
Alvaro de Sousa não tinha chegado ainda. Rosa pareceu-me mais alegre, e
recebeu-me com um sorriso de graça e confiança. Antes de sentar-se
perguntou-me que razão tivera eu para retirar-me, na primeira vez que
alli fôra, d'um modo que a deixára cuidadosa. Pedi-lhe que me não
interrogasse. Rosa, sem offensa ao meu pedido, fallou de Helena,
recordando a conversa que precedera a minha sahida. Era uma delicada
maneira de interrogar-me. Eu creio que me desfigurei. Reparou ella que
eu estava pallido e tremulo. Assucena, que por não sei que infantil
capricho me subira para o collo, disse que eu tinha uma lagrima nos
olhos. Rosa aproximou-se, e, apertando-me a mão, com um ar de bondade, e
um desembaraço de que eu não seria capaz, disse que me conhecia, e
pediu-me perdão de ter ferido o filho do advogado, que adorára a filha
do general.
Não respondi a este lance affectuoso. Pedi-lhe que se sentasse para
continuar o retrato. Rosa parecia mais commovida que eu. Sentou-se.
N'este momento entrou Alvaro. Cortejaram-se com algumas perguntas e
respostas triviaes, e eu, com os olhos do coração no tumulo de Helena, e
os da face na physionomia da sua companheira de recolhimento, continuei,
sem vontade nem attenção, o retrato.
No dia immediato fui concluir a obra. Rosa recebeu-me com estranha
affabilidade. Perguntou-me quantas secções faltavam. Respondi que era
aquella a ultima.
--E, depois--proseguiu ella, titubeando--não torna a esta casa?
--Tornarei todas as vezes que v. exc.ª se dignar occupar-me no seu
serviço.
--Eu desejava possuir o retrato de minha filha.
--Enviarei a v. exc.ª um habil pintor.
--Pois não quer encarregar-se d'este trabalho que eu tanto queria que
fosse seu?
--Agradeço a lisongeira fineza... Se eu tivesse o amor artistico, não
teria mais incensos a desejar para o seu culto; mas eu não posso, sem
grande sacrificio, fazer retratos. Fui surprendido, quando me prestei a
este serviço; agora, se v. exc.ª me concede recusar um sacrificio que
não é necessario ao seu bem, eu declino de mim esse trabalho, e, repito,
enviarei a v. exc.ª um retratista, que de certo não posso substituir.
--N'esse caso, prescindo do seu favor... agradecendo-lh'o muito... Não
será retratada minha filha.
--Eu receio ter sido grosseiro, minha senhora... Se v. exc.ª determina
que seja eu o retratista d'esta linda menina, recebo a sua vontade como
ordem...
--Deus me livre de sacrifical-o... Pensei que lhe não seria penoso
conversar com uma companheira de Helena, alguns instantes no dia.
--É muito penoso...
--Muito?... é admiravel!... E porquê?... Mereço-lhe a confiança de me
dizer que motivos lhe dou para não ser digna testemunha de suas
lagrimas?
--Nenhuns motivos, senhora D. Rosa... É que eu não tenho a
tranquillidade de espirito precisa para receber como um prazer as
recordações d'essa mulher que amei como não posso tornar a amar... Já vê
que deve ser-me bastante amarga a convivencia com uma pessoa, que
promette fallar-me de Helena...
--Não lhe fallarei n'ella...
--Então seria eu quem fallaria, senhora D. Rosa... Tenho-a sempre
adiante dos olhos... Não posso mandal-a afastar da minha alma, para
entreter-me em cousas futeis...
--Nem tudo é futil, senhor Paulo...
--Para mim... é. Não tenho vida que não seja uma insoffrivel saudade;
mas acho esta dôr mais nobre que tudo que me rodeia... Por ella, troco
de boamente todas as felicidades que o mundo possa traiçoeiramente
offertar-me...
--Traiçoeiramente...
--Sim... Creio que o mundo não póde offerecel-as d'outro modo... Tomára
eu ser esquecido para todos, assim como o meu nome o foi para v.
exc.ª... Preciso que me deixem, porque eu não procuro alguem. Será
forçarem-me a soffrimentos com que não posso, e contra os quaes
empregarei toda a minha coragem, chamarem-me para um mundo, onde serei
como o homem sem patria, nem affeições, nem amigos.
--Não crê na amizade?
--Não, minha senhora... Eu tinha uma grande alma, cheia de todos os
sentimentos bons; essa alma foi como um raio de luz amortecida no
prestito funebre da filha do general... Apagou-se ao pé da sepultura...
Não tinha senão essa alma...
--Nem espera resuscitar d'esse lethargo?
--Nunca mais.
--Nem emprega diligencias para isso?
--Nenhumas. Eu sei que o mundo não tem nada para mim...
--Nem o senhor Paulo tem nada que dê ao mundo?
--A compaixão para os desgraçados como eu, um sorriso de escarneo para
as felicidades d'um dia, e um adeus invejoso áquelles que morrem... Bem
vê que ainda sinto impulsos nobres no coração...
--Deseja a morte?...
--Procuro-a; mas entendo que é debil o poder das paixões nas
organisações fortes... Eu lucto, ha dous annos, face a face, com uma
dôr, que me não deixa cinco minutos de descanso, e vivo... vivo assim
com o aspecto da serenidade, e talvez com o rosado juvenil d'uma saude
perfeita... Não se morre de paixão...
--E que importaria morrer?
--Importava não sentir...
--Pois o senhor não crê n'outra vida?
--Não creio n'outra vida. Procurei acredital-a. Li tudo, estudei tudo,
porque me disseram que a incredulidade era a estupidez. A cada oraculo
da immortalidade, que consultava, a minha alma, além de incredula,
sentia a cruel precisão de escarnecer a fé dos que nos mandaram crêr.
Disseram-me que eu não cria, porque a fé era uma graça especial do
Senhor. Isto fez-me rir amargamente; mas, supersticioso pela desgraça,
pedi, invoquei, suppliquei com fervor a fé. Esperei-a. Deixe-me rir,
senhora, que este riso é um insulto bem merecido às minhas crenças... O
homem é um verme. Deus não tem nada com este grão de areia, que lançou
no oceano, a turbilhões, com a ponta d'um pé...
--Deve ser muito desgraçado...
--Não sou mais do que seria: creio, pelo contrario, que sou menos. A
immortalidade de que me servia?
--De encontrar essa mulher, que tanto amou n'este mundo...
--Isso é falso... Essa mulher, que muito amei n'este mundo, antes de
entrar no esquife, principiou a desorganisar-se. As pessoas, que estavam
em redor, diziam que era insupportavel o cheiro do cadaver... A
putrefacção, a estas horas, deve tel-a consummido... De que me servia a
immortalidade a mim, se os vermes me não restituissem a mulher que teve
um dobre a finados, uma oração mercenaria, uma lagrima do costume, e a
eternidade do _nada_, que é a verdadeira eternidade?...
--Com uma razão tão forte é impossivel que não possa vencer os seus
soffrimentos.
--Chama v. exc.ª a isto _razão forte_? É uma debilidade, minha
senhora... Forte é a razão do homem que se dá voluntariamente a
esperanças chimericas, e crenças sem critica... O forte é esse, que
vence a propria razão... Fraco sou eu, que não posso subjugar o
espirito...
--Nem com as consolações d'uma verdadeira amiga?
--O que é uma verdadeira amiga?
Fomos surprendidos por Alvaro de Sousa. Reparou no embaraço de Rosa, com
ares desconfiados. Eu recebi-lhe os cumprimentos com a frieza não
calculada dos meus habitos ordinarios. Continuei o retrato, com não sei
que placidez incomprehensivel! Senti-me melhor do coração...
Agora é que eu me sinto incapaz de continuar esta longa carta... Creio
que é longa e fastidiosa... Soffra, e tolere-m'a, minha querida senhora.
Até ámanhã.
De v. exc.ª
Dedicado amigo,
_Paulo_.

VI
_14 de outubro_
O retrato de Rosa estava concluido. Na tarde d'esse dia, Alvaro de Sousa
procurou-me, agradeceu-me o emprego que eu fizera de todos os recursos
da minha arte divina, e delicadamente deixou sobre a minha mesa um
cartuxo de dinheiro. Não sei o que continha; porque, apenas o encontrei,
depois que Alvaro se despedira, mandei entregal-o em sua casa.
Alvaro voltou no dia immediato, e instou pela razão de semelhante
precedimento. Respondi-lhe, depois de importunado, que me dispensasse s.
exc.ª de dar uma categorica explicação das minhas acções. Vi-lhe um
sorriso de desconfiança, que me fez piedade. Estive quasi a pedir-lhe a
definição do sorriso; mas não quiz culpar-me no erro, que lhe censurava
a elle. Todo o homem póde chorar ou rir quando quizer.
Decorreram tres dias, sem o menor incidente, com referencia ao retrato
da viuva. Hontem, porém, recebi a carta, que remetto a v. exc.ª, já que
me impôz a obrigação de lhe não esconder os mais secretos incidentes
d'esta minha attribulada existencia, que v. exc.ª segue, desde o berço,
minuto por minuto. Communicando-lhe essa carta, entendo que não me
deshonro. A mulher, que a escreveu, ou está deshonrada de mais para não
soffrer nos seus creditos com semelhante revelação, ou está bastante
pura para não soffrer no seu pudor, confiando-se á minha discrição, e á
de v. exc.ª
«Já não sou de mim propria quando commetto a estranha temeridade de
escrever-lhe. Separo-me das leis do meu sexo, e declaro-me muito forte
na minha fraqueza para me abandonar loucamente á vontade caprichosa d'um
sentimento, que póde deshonrar-me, mas que me absolve na consciencia.
«Escrevo-lhe, Paulo, porque não tenho esperanças de encontral-o n'esta
casa. Quero deixar cahir este véo, com que me viu, porque tenho vergonha
de parecer-lhe o que a minha razão me diz que não sou.
«Que julga de mim? Como tem avaliado o meu procedimento? Reputa-me
amante de Alvaro de Sousa? Não quero essa consideração; renuncio a tal
gloria, porque eu não sou amante de Alvaro de Sousa. Este homem entra na
minha casa, e denomina-me prima. Intitula-me prima, porque dizem que
minha mãe é casada com não sei quem que pertence á alta nobreza. Vi esta
mulher; não pude amal-a; não pude reconhecel-a; e fui com ella rude como
seria com uma pessoa estranha.
«Soube que a fortuna de meu pae a fizera elevar-se até ao ponto de
nobilitar-se. Não me fez uma ligeira impressão esta mudança. Não a
procurei nunca, e morrerei de indigencia antes de pedir-lhe uma dobra de
seus velhos tapetes para resguardar do frio minha filha.
«Alvaro de Sousa tem-se-me offerecido para estabelecer entre mim e D.
Anna do Carmo uma alliança filial. Revela um interesse extraordinario
pelo meu futuro. Dedica-me extremos de irmão e encobre com muito fina
astucia as suas intenções, se ellas são más.
«Não me importa saber quaes ellas sejam. Nada ha commum entre mim e este
cavalheiro, senão uma amizade sem consequencias, e um commercio de
frivolidades como é a troca de retratos, a que eu não ligo importancia
alguma.
«Aqui tem o que eu sou para aquelle homem. Precisava abrir-lhe assim a
minha alma, Paulo. O resto do mundo deixo-o julgar a seu bel-prazer; não
me canso até em sondar a indifferente opinião da sociedade a meu
respeito.
«A sua preciso d'ella; porque preciso da sua estima, como d'um amparo
que me anime a esperar sobre a terra a felicidade, que, em poucos dias,
vi fugir diante de meus olhos, como um sonho ditoso.
«A sympathia entre dous desgraçados deve ser abençoada por Deus. Não
fuja d'uma mulher que póde, se não dar-lhe consolações, recebel-as ao
menos. Seja meu amigo, não como foi de Helena, mas como póde sêl-o d'uma
pessoa, que desejára n'este instante ter uma sepultura ao lado d'ella.
«Não ouso pedir-lhe nada, não tenho sequer coragem de implorar-lhe duas
linhas em resposta a esta carta, que me sahiu tão ingenua do coração,
que nem quero tornar a vêl-a, para que o artificio da fria cabeça não vá
manchar a pureza natural com que a escrevi.
«Adeus, Paulo. Não desdenhe a inutil estima, que lhe offerece
_Rosa Guilhermina._»
Esta carta não me impressionou. Quasi que me não occupei senão do estylo
em que era escripta! Encontrou-me n'um momento de gélida atonia.
Tenho-os assim, e então a minha alma é dura, o meu coração paralysa, os
meus labios sorriem-se machinalmente, e eu escondo a face nas mãos para
contemplar este mysterioso mixto de sensibilidade e cynismo que
caracterisa as feições da minha indole.
O portador d'esta carta esperava uma resposta, duas horas depois. Eu não
pensei que devia responder; por isso não tive o cuidado de saber se
alguem esperava resposta. Quando me annunciaram o portador, mandei-o
subir. Perguntei-lhe se era forçoso responder; disse-me que tinha ordem
de esperar até que eu lhe désse resposta, ou dissesse que a não tinha.
Escrevi...
Não me lembra bem o quê. Penso que eram estas as ideias:
Que eu não mostrára o menor interesse em conhecer indiscretamente a
natureza das ligações que prendiam D. Rosa Guilhermina a Alvaro de
Sousa;
Que me eram tão indifferentes depois como antes, mas que muito
ingenuamente estimava que ellas fossem taes, que nunca a excellente
senhora tivesse de soffrer por ellas;
Que acceitava a offerta da sua estima, porque já não podia aspirar a
outros triumphos no coração das mulheres, que sabiam separar a amizade
do outro sentimento que a hypocrisia vestiu com os arminhos emprestados
d'uma affeição nobre;
Que, na minha posição, não podia dar-lhe mais consolações do que as
muito poucas que um homem qualquer póde offerecer no serviço de qualquer
senhora, que precisa d'um criado.
Penso que foi isto, pouco mais ou menos, o que eu escrevi. São passadas
vinte e quatro horas. Não tenho nada a accrescentar a este episodio, e
creio que terminará aqui.
Não concebo bem o que esta senhora quer de mim! Não creio n'estas
fascinações momentaneas, porque as não entendo, ou o meu coração está
muito abaixo d'esses vôos.
O que em verdade lhe digo, minha boa amiga, é que não preciso recordar
os juramentos que fiz a Helena, dous dias antes da sua morte, para
vencer a impressão que Rosa Guilhermina me poderá ter feito. É nenhuma.
Posso esperar com firmeza e animo frio a perseguição. Nem, ao menos, a
lastimo, porque a febre da imaginação ha de mitigar-se, e, quinze dias
depois, esta mulher terá por mim um sentimento de resentido orgulho que
ha de salval-a. Entende-o assim?
De v. exc.ª
Grato amigo,
_Paulo_.

V
_19 de outubro_
Retirou-se, n'este momento, de minha humilde casa o senhor Alvaro de
Sousa.
S. exc.ª é um lastimavel mancebo! Como seu primo, minha boa amiga, sinto
que elle seja o incentivo irrisorio d'esta carta.
Entrou de chapéo na cabeça na minha officina.
Vou tentar recordar o dialogo, que tivemos.
«--Venho exigir do senhor uma prompta resposta--disse elle, dobrando o
punho d'uma bengalinha com a ponta.
«--Tenha a bondade de fazer a pergunta--respondi-lhe eu, convidando-o a
assentar-se no canapé, inutilmente.
«--O senhor tem algumas intelligencias com D. Rosa Guilhermina?
«--Não respondo.
«--Quer dizer que tem?
«--Não quero dizer nada. Digo que não respondo.
«--Mas eu preciso que responda sim, ou não.
«--Pois por satisfazer ás suas exigencias imperiosas, senhor Alvaro de
Sousa, respondo ambas as palavras: _sim_ e _não_.
«--Não comprehendo...
«--Tanto peor para v. exc.ª que não póde esperar de mim outras
explicações.
«--O senhor parece ignorar a qualidade de pessoa com quem falla...
«--Poder-me-hei ter enganado, mas creio que fallo com um dos mais
distinctos cavalheiros do Porto... O senhor Alvaro de Sousa é muito
conhecido, para que eu não conheça a qualidade da sua pessoa, até pela
libré dos seus lacaios.
«--É preciso que nos entendamos.
«--Desejo-o de todo o meu coração...
«--O senhor tem algumas relações com D. Rosa?
«--Continuemos na mesma desintelligencia, senhor Alvaro... Essa pergunta
já foi respondida.
«--Mas a resposta não me satisfaz.
«--Não tenho outra, e falta-me até a paciencia para lhe offerecer, outra
vez, a que v. exc.ª não acceita.
«--Eu sinto que o senhor não seja um cavalheiro da minha classe para
responder-me á ponta da espada.
«--Dou, portanto, louvores á Providencia por me ter feito d'uma classe
diversa da dos heroes, que teem ponta de espada para os que não tem
ponta de lingua...
«--O senhor zomba de mim?!
«--Zombo.
«--E não receia as consequencias d'essa affronta á minha honra?
«--Não, senhor.
«--Estou em sua casa...
«--Que quer dizer com isso?
«--Não quero dizer nada... Encontrar-nos-hemos...
«--Senhor Alvaro de Sousa, eu tenho épocas em que difficilmente sou
encontrado, e esta parece-me que é uma. Se v. exc.ª tem urgencia de
encontrar-se comigo, sahirei hoje.»
Não me respondeu, e sahiu.
São tres horas da tarde. Vou dar um passeio.
V. exc.ª ha de permittir-me que, invocando o sagrado testemunho da nossa
amizade, eu lhe imponha o preceito de não fazer transpirar uma palavra
d'esta minha carta, a não desejar um completo rompimento nas nossas
relações.
De v. exc.ª
Humilde criado,
_Paulo_.

VI
_20 de outubro_
A carta de v. exc.ª, cheia de benevolos conselhos, e prudentes reflexões
a respeito do meu conflicto com o senhor Alvaro de Sousa, é uma nova
força que v. exc.ª quer dar ás minhas convicções na sua amizade.
Felizmente, o primo de v. exc.ª, sentindo por ventura que lhe não era
glorioso um desforço com o pintor, já teve a summa discrição e bondade
de encontrar-se comigo tres vezes, e deixar-me seguir pacificamente o
meu caminho.
Sinceramente lhe digo, minha nobre amiga, que o menos interessado,
n'esta ridicula lucta com um moço digno d'outro competidor, era de certo
eu.
Não me levava para este acto de suprema vaidade o coração. O meu mal
pensado cavalheirismo era todo da cabeça, que tenho cheia de
loucuras, e refractaria a tudo que é submissão a classes, cuja
superioridade--desculpe-me v. exc.ª--não reconheço debaixo do céo.
D'este orgulho, que eu supponho não existirá d'hoje a cem annos, porque
então os homens serão todos iguaes perante a lei, e irmãos perante Deus,
d'este orgulho resultou a facilidade com que fui hontem procurar D.
Rosa, que me pedia anciosamente uma entrevista.
Encontrei-a assustada, confiando de mais na superioridade de Alvaro, e
avaliando em menos que o seu valor real a minha frieza de animo para
arrostar as furias do seu fidalgo amante.
Sorri piedosamente para aquelles receios, aliás naturaes no coração
d'uma mulher.
Aquietei-lhe quanto pude o seu sobresalto, e acabei por pedir-lhe que
fosse grata aos extremos do gentil moço, que, por ella, se arriscava a
um encontro, cujas consequencias eram imprevistas para ambos nós. N'este
sentido, aconselhei-a com uma generosidade digna d'outros tempos.
Encareci o merecimento do senhor Alvaro, advoguei a causa d'elle com o
fervor d'amigo, estabeleci comparações entre nós que redundavam em
You have read 1 text from Portuguese literature.
Next - A Filha do Arcediago - 16
  • Parts
  • A Filha do Arcediago - 01
    Total number of words is 4735
    Total number of unique words is 1629
    36.8 of words are in the 2000 most common words
    49.1 of words are in the 5000 most common words
    55.8 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Filha do Arcediago - 02
    Total number of words is 4636
    Total number of unique words is 1660
    34.9 of words are in the 2000 most common words
    48.5 of words are in the 5000 most common words
    55.1 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Filha do Arcediago - 03
    Total number of words is 4548
    Total number of unique words is 1698
    34.9 of words are in the 2000 most common words
    47.4 of words are in the 5000 most common words
    53.8 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Filha do Arcediago - 04
    Total number of words is 4582
    Total number of unique words is 1656
    35.4 of words are in the 2000 most common words
    50.5 of words are in the 5000 most common words
    56.9 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Filha do Arcediago - 05
    Total number of words is 4638
    Total number of unique words is 1694
    35.9 of words are in the 2000 most common words
    50.9 of words are in the 5000 most common words
    57.9 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Filha do Arcediago - 06
    Total number of words is 4737
    Total number of unique words is 1531
    38.0 of words are in the 2000 most common words
    49.1 of words are in the 5000 most common words
    55.3 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Filha do Arcediago - 07
    Total number of words is 4515
    Total number of unique words is 1644
    36.9 of words are in the 2000 most common words
    50.8 of words are in the 5000 most common words
    58.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Filha do Arcediago - 08
    Total number of words is 4751
    Total number of unique words is 1565
    39.4 of words are in the 2000 most common words
    52.5 of words are in the 5000 most common words
    59.5 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Filha do Arcediago - 09
    Total number of words is 4608
    Total number of unique words is 1273
    44.8 of words are in the 2000 most common words
    55.9 of words are in the 5000 most common words
    61.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Filha do Arcediago - 10
    Total number of words is 4572
    Total number of unique words is 1713
    35.2 of words are in the 2000 most common words
    50.2 of words are in the 5000 most common words
    56.9 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Filha do Arcediago - 11
    Total number of words is 4670
    Total number of unique words is 1609
    37.8 of words are in the 2000 most common words
    50.0 of words are in the 5000 most common words
    56.7 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Filha do Arcediago - 12
    Total number of words is 4646
    Total number of unique words is 1573
    39.0 of words are in the 2000 most common words
    51.1 of words are in the 5000 most common words
    58.1 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Filha do Arcediago - 13
    Total number of words is 4546
    Total number of unique words is 1692
    37.9 of words are in the 2000 most common words
    51.7 of words are in the 5000 most common words
    58.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Filha do Arcediago - 14
    Total number of words is 4463
    Total number of unique words is 1690
    38.0 of words are in the 2000 most common words
    51.7 of words are in the 5000 most common words
    58.8 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Filha do Arcediago - 15
    Total number of words is 4354
    Total number of unique words is 1465
    37.9 of words are in the 2000 most common words
    51.8 of words are in the 5000 most common words
    59.1 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Filha do Arcediago - 16
    Total number of words is 4474
    Total number of unique words is 1542
    37.4 of words are in the 2000 most common words
    52.1 of words are in the 5000 most common words
    58.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Filha do Arcediago - 17
    Total number of words is 1726
    Total number of unique words is 738
    47.4 of words are in the 2000 most common words
    59.6 of words are in the 5000 most common words
    64.3 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.