A Filha do Arcediago - 02

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Dobrada a mantilha, e a saia de durante, a senhora Angelica desceu a
procurar seu irmão, e, farejando os cantos da sala, viu que ninguem lhe
testemunhava a tremenda revelação, que ia fazer-lhe.
--Então já sabes o que acontece?-perguntou elle, emborcando o segundo
pucaro de limonada.
--Que foi, meu Antoninho?
--A Rosa vai-se, ámanhã, embora.
--Vai! Louvado seja Deus!... bem m'o disse a Escolastica!...
--Quem é a Escolastica?!
--É cá uma mulher, muito temente a Deus, que vê o que se passa na
alma...
--Deixa-te de crendices... não creias em maranhões...
--Credo! não digas tal, Antonio, que não vá Deus castigar-te, e ella
sabel-o... Se tu soubesses o que ella me disse...
--Não sei, nem quero saber... Has de sempre ter essa mania! Pergunta ao
padre Leonardo por isso, e verás a rizada que elle te dá...
--Bem me importa a mim a risada do padre Leonardo!... Não... aquelle não
é cá dos meus!... Padres com filhas... não quero ir com elles nem para o
céo... Sabes tu que o tal arcediago me parece jacobino!... Deus me
valha, se pecco... Cala-te, bôca...
A devota mulher, incapaz de infamar, dava uma sonora palmada nos labios,
quando apostrophou a bôca falladora, e lhe impôz silencio, que mais
eloquente que a bôca, segundo diz o poeta latino, fallou assim:
--Tenho cá minhas aquellas com este padre!... Elle não diz missa, nem
préga a quaresma, nem vai ás via-sacras, como o padre Aniceto, meu
confessor, e o padre Benedicto dos Carmelitas, que reza os exorcismos.
Deus me acuda--continuou ella em voz alta--mas não tenho fé com padres
que tem filhas, e casam as mães com outros, de mais a mais com um
pelitrão da França, que é hereje, e jacobino na alma e no corpo...
--Cala-te lá, que estás ahi a dizer parvoíces. O padre Leonardo é um
homem honrado, que não vai ás via-sacras, mas tem temor de Deus. Lá, se
deu a sua escorregadella, em bom panno cahe uma nodoa. E, se elle não
fosse um bom pae, não obrigava a filha a entrar, ámanhã, no recolhimento
de S. Lazaro.
--Que me dizes, Antonio da minha alma? Pois a Rosa vai para o
recolhimento?
--Vai, podéra não!...
--Bem o disse a serva de Deus! Ai! que tudo nos vai sahindo como a
benzedeira o disse... O az d'ouros, lá estava o az d'ouros, Antonio! Não
tornes a fazer pouco dos adivinhamentos. Tudo m'o disse ella, e muitas
cousas mais... Abençoados dois patacões!
--Ó mulher, tu pareces-me tôla! A impostora da velha podia lá saber
isto! Botou-se a adivinhar!
--Ó Antonio, tu não me pareces catholico!... Sancto nome de Jesus! Pois,
sem aquella de Deus, sabe lá ninguem futurar o que te ha de acontecer?
Não sejas assim, meu bom irmão. Lembra-te dos inguiços que te fez
Thereza (Deus lhe perdôe, se já morreu), aquella desavergonhada que
tinha levado as tuas cuecas da roupa suja para as benzer uma feiticeira
da rua Chã, e se não fosse a devotinha Escolastica ainda hoje terias o
demonio á perna, Deus me perdôe!...
--Vai-te d'ahi, que a Thereza não tinha demonio nenhum...
--Não tinha não... Pois não lhe viste a abstrucção de ventre, que ella
trouxe, e só com as rezas da Escolastica é que o berzebum a deixou a
ella, e a ti? Valha-te o Senhor!... Diz-me com quem andas, dir-te-hei as
manhas, que tens.
--Está bom... Vamos tratar de cear, que são nove horas.
--Está a Anna a segar o caldo... Antes d'isso quero dizer-te duas
palavras.
--Diz lá.
--Mas não has de fazer modos de incredulo. Tu queres que a Rosinha case
comtigo?
--Eu não.
--Não!... Minha mãe Maria Sanctissima!... Se eu te entendo...
--Quero que ella tenha por mim affeição de dentro... Contra vontade, não
quero ninguem.
--Pois se eu te ensinar o modo de fazeres com que ella te tenha affeição
de dentro?
--Vai bugiar! Tu cada vez estás mais tonta!
--Estou! pois olha que não é de velha.
--Isso não; mas já podias saber mais do mundo com sessenta e nove
annos... És mais velha que eu quatorze.
--Então? achas que estou tonta como a velhinha tia Brizida, que já fez
noventa e dous?
--Não sei... Sabes que mais? Mette um salpicão no pucaro, e leve
berzebum as paixões, e quem com ellas engorda.
--Olha cá, Antonio... Não te quero assim... Pareces-me mesmo nos modos
com os chichisbeos que vão ao theatro, e á missa das dez a S. Bento, por
causa das freiras, que, Deus me perdôe, podem bem com a sanctidade que
teem!... Andam sempre alli pelas grades aquellas namoradeiras, que nem
me parecem religiosas, e esposas do Cordeiro immaculado, e fallam da
vida do proximo!... Valham-me as cinco chagas, e a benta cruz.
--Vai pôr a mesa, mulher, e olha lá o que essa rapariga está a fazer,
que eu vejo d'aqui o filho do retrozeiro á janella...
--Ah! vês? Não que ella faz-lhe amor de cá...
--Tu viste?
--Disse-m'o a Escolastica.
--Que leve a breca a tua Escolastica, que o meu gosto era dar-lhe com o
covado no costado...
--Sancto nome! Tu que dizes, homem? Aqui cahe raio. Pede perdão á
servinha de Deus, senão as palavras não te aproveitam...
--Que palavras?
--As palavras que hão de fazer com que a Rosa ande atraz de ti como a
linha atraz da agulha. O caso é ter fé. Se as disseres, tu verás,
Antonio!...
--São palavras para lhe dizer a ella?
--Não... Assim que a vires, has de dizer no teu coração...
--Cala-te ahi...
--Não me calo... tenho até escrupulo de me calar... Hei-de dizer-t'as.
Ouve lá: «_S. Marcos te marque, S. Manso te amanse, os quatro
Evangelistas te batam á porta do teu coração, a Sanctissima Trindade te
confirme na minha vontade... e_... espera lá... deixa vêr se me
lembra... ah! já sei... _para que nem na cama, nem no lar, sem mim, não
possas estar, rir e fallar, e já, e já, e já com todo o pacto._» Quando
disseres isto, deves assim bater com o pé no chão uma, duas e tres
vezes...
Á terceira, a senhora Angelica pilhou debaixo do pé o rabo desgraçado da
gata, que soltou um doloroso grito, e vingou a affronta enterrando a
unha no joanete esquerdo de sua ama. Angelica soltou um brado fremente
de angustia. A gata rosnava, com o pello hirto, n'um canto da sala, e o
senhor Antonio bascolejava com as nedias mandibulas uma gargalhada
sincera.


CAPITULO IV

O salpicão fumegava na mesa, rodeado de ervilhas ensopadas. Ao lado, as
tigelas do bem adubado caldo, opulento de gorda ôlha, ressumavam um
cheiro appetitoso, que ludibriava o paladar dos rapazes da loja, aos
quaes era só permittido o cheiro.
Angelica fôra chamar Rosinha para a mesa, emquanto seu irmão espostejava
as talhadas pingues do paio de Lamego. A arrufada menina não quiz cear,
e, para esquivar-se ás instancias da velha pertinaz, declarou-se
incommodada da cabeça, cobrindo-a com o lençol.
O negociante engatilhava a cara em ar de despeito, e ensaiava as
palpebras roliças n'uma postura sombria, que desse da sua dôr a alta
ideia, que os queixos desmentiam, cevando-se na carne de porco, e nas
ervilhas aromaticas.
Certo de que a ingrata filha do arcediago não vinha á mesa, o senhor
Silva inutilisou a cara funebre, deu largas á testa franzida
tyrannamente, e mascou, rugindo como os deuses d'Homero, a ceia
substanciosa.
Angelica, da sua parte, comeu bem, e revesou no caldo, que, segundo
ella, podiam comel-o os anjos. Deu graças a Deus, e a todos os sanctos
do seu conhecimento, que eram todos, e alguns duvidosos, emquanto seu
irmão, a cada _padre-nosso_, desafogava um arrôto, que podéra, sem
hyperbole, chamar-se um urro.
O ultimo, e mais estridulo, soltou-o no seu quarto, onde, emfim, aquella
alma atormentada, e o estomago revolto deviam dar-se _rendez-vous_ em
grato somno de sete horas.
A senhora Angelica, reservando para o dia seguinte um novo ataque á
incredulidade de seu irmão, entrou, no seu quarto, a rezar a novena das
almas, que lhe fôra imposta pela devota Escolastica, e que não acabou
conscienciosamente porque adormeceu no meio da reza, enxotando, com
palavras de esconjuro, o demonio do somno, seu tentador implacavel. A
ultima apostrophe confundiu-se com o resonar profundo de seu irmão. O
resonar de ambos, dueto horrivel, acordava os eccos funebres da casa.
Dormiam todos, excepto Rosa.
Rosa não dormia, porque apurava o ouvido a cada quarto, que badalava o
relogio de S. Domingos.
Faltava o ultimo para as dez, quando a promettida esposa do negociante
enfiou o vestido, saltou fóra da cama, abriu cautelosamente a janella,
em que batia o luar, traiçoeiro confidente dos amantes nocturnos, que
apenas podem sorrir de dia, e só nas trevas, deixam voar o
coração-morcego.
Na janella fronteira estava um vulto, e na rua solitaria não se viam os
malditos grupos; innovação inutil da _guarda municipal_, que nos dá a
entender que os ladrões augmentaram com a civilisação, posto que os
jornaes diariamente nos aturdam com o catalogo dos roubos.
Em 1815 podia-se namorar honestamente d'uma janella para a outra, na rua
das Flores, sem que uma patrulha insolente parasse debaixo para
testemunhar a vida intima dos que lhe pagam. Podia cochichar delicias a
donzella recatada da trapeira para a rua, sem que o amador extatico ao
som maviosissimo d'aquella voz, receasse o _retire-se!_ brutal do
janizaro. Podia, finalmente, segurar-se o gancho d'uma escada de corda
no terceiro andar, subir impavidamente, conversar duas horas sobre
varios assumptos honestos, e descer, sem o receio de encontrar cortada a
rectaguarda por um selvagem armado á nossa custa, que nos conduz ao
corpo da guarda a digerir a substancia da deliciosa entrevista.
Bemaventurados, pois, os que namoraram em 1815.
Mas não tenham a impiedade, leitoras honestas, de suppôr que a
mencionada escada de corda engatou o gancho na reputação de Rosa. Não,
senhoras. A filha do beneficiado ignorava esse invento da intelligencia
humana, essa corrente electrica, que aproxima dous corações, a escada de
corda, emfim, que nunca ninguem imaginou tivesse electricidade, mas que
eu, amante da minha patria e das glorias d'esta terra, declaro á
academia real das sciencias, que a tem, e lhe offereço a descoberta como
digna das suas ponderosas lucubrações.
Mais ponderosos ainda eram os motivos porque a virtuosa Rosinha déra
signal ao José Bento, filho do retrozeiro, para fallar-lhe áquella hora,
acto que, publicado, faria jejuar a senhora Angelica dous annos, a pão e
agua, e faria crescer a agua, sem o pão, na bôca de muitos caixeiros das
lojas visinhas, que a essas horas resonavam como conegos em matinas.
Era a segunda vez que a predestinada mulher do senhor Silva se
abalançava ao crime infando de tagarellar da janella, a horas mortas,
para a janella fronteira.
José Bento era um moço de quinze annos, muito envergonhado, e tão
inutil, na opinião publica, que sua familia resolveu fazel-o frade loio.
Tinha dezeseis annos, e estudava latim, com grande pasmo do mestre, que
durante quatro annos, não podéra conseguir ensinar-lhe os rudimentos da
arte, sem que elle discipulo lhe désse quatro asneiras em troca de cada
regra. No seu genero era um prodigio! Não obstante, para loio o que lhe
faltava era a idade, que sciencia tinha elle de sobejo para repartir na
communidade.
O que elle tinha, além da sciencia, era uma melancolia sympathica,
contemplativa, e romanesca. José Bento, se fosse dos nossos amigos de
botequim, passaria hoje por um espirito atormentado, um mancebo devorado
por illusões, um sceptico de coração crivado de angustias, e
conseguiria, não fallando, pertencer á seita dos Szafis da feira da
ladra.
Não lhe faltava a testa espaçosa da tarifa. Um todo-nada de navalha nas
raizes capilares da fronte seria bastante para nos dar uma testa
artistica, em que os sectarios de Spurzen, veriam o genio, e o
respeitavel publico a toleima.
Ora aqui está quem era o namoro da senhora Rosa Guilhermina, que vai
fallar com a voz commovida, vibrante, e melodiosa.
--Senhor José...
--Aqui estou, senhora Rosinha... Não me vê?
--Vejo... agora vejo...
--Como passou?
--Bem; e vmc.e passou bem?
--Tenho estado hoje muito doente.
--Sim? de quê, senhor José?
--Tem-me doído muito a barriga.
--Será do calor...
--Acho que sim; veio cá o cirurgião, e mandou-me tomar banhos
_semicuplos_...
--Deus queira que lhe façam bem. Então já sabe que me vou embora d'esta
casa?
--Vai? para onde vai, senhora Rosinha?
--Para o recolhimento de S. Lazaro.
--Pr'amor de quê?
--Porque meu pae teima em querer casar-me com o senhor Antonio, e eu...
--Valha-o a maleita! Pois elle quer casal-a á força com um velho assim?
--Ora ahi está; e eu não quero...
--Faz vmc.e muito bem. Eu tambem, ainda que a filha d'um rei quizesse
casar comigo, emquanto vmc.e me lembrasse, mais facil seria atirar-me
d'esta janella para baixo á rua, que casar com ella.
--Forte teima de homem! Ainda hoje lhe disse que era capaz de metter o
fuso da senhora Angelica por um ouvido, se me quizessem obrigar a tal
casamento...
--Então vmc.e decerto vai para o recolhimento?
--Antes quero isso, antes quero ser freira.
--Então, sempre lhe digo, que vou para os Loios, se a menina se mette
freira...
--Eu não sei o que acontecerá... Póde ser que meu pae, em vendo que eu
não mudo de vontade, me tire do recolhimento.
--Isso é verdade, e, se assim fôr, n'esse caso não quero ser frade, nem
que meu pae me desherde.
--O peor é que nos não tornamos a vêr...
--Não? E é verdade que não. Lá nas orphãs diz que não ha janellas.
--Não ha, não; mas, se podéssemos escrever-nos...
--Isso sim; se podéssemos escrever-nos era bem bom; mas vmc.e , em se
pilhando lá a brincar com as outras raparigas, esquece-se de mim.
--Não esqueço, não. Estou affeita a vêl-o ha mais d'um anno, e tarde me
esquecerá...
--Se vmc.e soubesse o amor que lhe tenho!... Ha quatro noites a fio, que
sonho comsigo, e nem posso estudar a lição, nem tenho vontade de comer.
Já minha mãe hoje disse: este rapaz teve alguma olhadella má. Mal diria
eu que vmc.e sahia d'essa casa!... Pois olhe... a senhora Rosinha a
sahir, e eu tambem.
--Para onde vai?
--Vou para o Passos estudar latim. Meu pae quer que eu esteja dentro do
collegio para aprender mais depressa, e eu até aqui dizia que não,
porque tinha saudades de si, mas agora não se me importa de deixar esta
casa.
--E onde mora o mestre?
--Na viella da Cancella Velha.
--Pois se eu arranjar por quem lhe escreva, lá mando.
--Então não se esqueça.
--Adeusinho.
--Adeusinho, estimarei que tenha saude.
........................................................................
As janellas fecharam-se, e a lua no céo velou o rosto de negro, como
contristada da agonia lacerante d'estes dous infelizes! Essas phrases
plangentes traziam o quilate d'uma lucta atormentada que lá ia dentro
nos dous corações! A leitora sensivel, com as lagrimas nos olhos, e a
palpitação accelerada, espera, anciosa, o desfecho d'este lance, que
ficará aqui insculpido para modelo eterno das paixões impetuosas.
José Bento prostrou-se no leito do soffrimento, gemendo... com dôres de
barriga, e variam as opiniões ácerca de uma lagrima que lhe tremia n'um
ôlho, emquanto o outro conjugava o verbo _Laudo_, _as_, _are_, que lhe
custára, no dia anterior, um elastico puxão d'orelhas.
A minha opinião é que a lagrima era de pura saudade. Sériamente
fallando, não sejamos injustos, expondo á irrisão a phrase singela do
pobre rapaz. O que elle sentia então, se eu podésse sentil-o agora,
escreveria tres volumes em quarto, que o leitor me compraria, e a minha
reputação de piegas amoroso estava feita.
O filho do senhor João Retrozeiro, que Deus haja, era grosso de casca,
mas tinha dentro de si bellas cousas, exceptuando a dôr de barriga, que
o incommodou a ponto de levantar-se, e pedir á mãe que lhe mandasse dar
o _semicuplo_, receitado pelo cirurgião.
A extremosa mãe saltou em fralda do leito conjugal, rezando o responso
de Sancto Antonio, applicado aos banhos, accendeu o lume, aqueceu a
agua, e agasalhou seu filho na bacia, que, á parte, a posição que não
era bonita, lamentou ahi de cócoras profundamente a sua sorte.
E Rosa?
Rosa, coitadinha, perguntava á sua consciencia se o amor era aquillo que
José Bento lhe dissera. Parecida com a mãe, segundo o pae dizia, o
instincto segredava-lhe cousas novas, que o visinho não sabia
decifrar-lhe. A seu pesar, porém, a pequena chorava com saudades do
rapaz.
Felizmente adormeceu, pedindo a Sancta Barbara, sua advogada, que a
livrasse do velho, assim como, pela sua muita virtude, se podéra livrar
do impio Diocleciano (reminiscencias do ultimo sermão, que prégara fr.
Miguel dos Antoninhos, na Misericordia, dias antes).
Em virtude do que, dormiu pacificamente, viu em sonhos o José Bento,
queixando-se da barriga, e acordou de madrugada, quando a magra mão de
Angelica a chamava para o oratorio, em que se rezava tudo que havia
escripto sobre a materia.
Ao almoço, o senhor Antonio José da Silva aproveitava a edição de cara
que não pôde dar á luz na ceia, por falta de concorrencia da parte
interessada no espectaculo hediondo. Estava, portanto, mais feio que
nunca o senhor Antonio. Durante o almoço de café com leite, e biscoutos
de Avintes, nem uma palavra trovejou das belfas tumidas o desditoso
amante. Rosa comia sem vontade, e Angelica sopeteava deliciosamente as
suas sôpas, aboboradas em leite quente, porque os seus quatro dentes não
eram para graças.
Findo o almoço, appareceu o arcediago Leonardo Taveira, que comeu tres
biscoutos, indispensavel lastro para um copo de vinho, e pequena
refeição para quem vinha de rezar quatro psalmos, em lingua barbara, no
côro da Sé.
Reanimado de eloquencia propria do pae e do levita, o arcediago chamou
sua filha á parte, e recapitulou, á ultima hora, as admoestações do dia
anterior. Recalcitrou a desobediente rapariga. Fumegaram as pandas
ventas do sacerdote. Volitaram-lhe das ditas caroços de rapé, como as
frechas dos thracios contra Jupiter, e sacudiu da profana lingua um
feixe de raios de maldição: _Vibrata jaculatur fulmine lingua_, como
depois dizia o guardião dos gracianos, fr. Antonio do Menino Deus, a
quem elle contava o accesso.
O seu discurso, que não vale a pena de especial menção, terminou por
intimar a Rosa a immediata sahida d'aquella casa. Entretanto, o padre
Leonardo foi buscar a ordem de entrada no recolhimento. Quando veio,
Angelica pendurou-se-lhe ao pescoço, em risco de lhe enterrar o fio
cortante da barba no queixo d'elle. Supplicava-lhe a piedosa mulher que
lhe deixasse a filha mais nove dias, e, ao cabo d'elles, promettia
dar-lh'a alliviada.
--Alliviada!--exclamou o pae, arfando as azas do nariz--minha filha
alliviada!...
--Pois então...? quer que lhe diga uma cousa ao ouvido?... venha cá...
O padre media Rosa da cabeça aos pés, mas o ponto fixo d'esse olhar não
era de certo nos pés nem na cabeça... Angelica acenava-lhe, e elle não
podia attendel-a, porque parece que a cara da filha denunciava um crime
inaudito... Era precisa coragem. O arcediago deu o ouvido direito á
velha:
--O senhor reverendo arcediago não sabe o que aconteceu a sua filha?
--Não!... diga, depressa, que arrebento...
--Tenha paciencia... Todo o mal que Deus permitte é para desconto de
nossos peccados...
--Diga, senhora Angelica, que me faz doudo...
--Não se afflija, senhor arcediago... o mal é do demonio, e o bem de
Deus...
--Oh mulher, por quem é não me demore n'esta horrivel suspeita...
--Pois ainda não adivinhou?
--Não, com mil pragas...
--Credo! vossa reverendissima está atrigado!...
--Sancto nome de Deus, que mulher!... Que tem minha filha?... responda,
senão vou arrebental-a...
--Arrebental-a! Deus nos acuda... Sua filha não tem culpa... a culpa é
d'aquelle seductor do inferno, Deus me perdôe...
--Seductor!... um seductor!... quem foi o infame?... que é o que me diz,
senhora Angelica?!
--Que é o que lhe digo? É que sua filha tem o _esprito_ ruim no corpo! O
seductor é o demonio.
Padre Leonardo Taveira, com quanto pacifico, sentiu vontade de partir
d'um murro o craneo, quasi nú, da senhora Angelica. Depois, soltou um
frouxo de riso que borrifou a face da velha. A gargalhada foi tão longa
e estridorosa, que Angelica julgou o arcediago possesso d'outro demonio.


CAPITULO V

O senhor Antonio, emquanto Rosa se vestia, sumiu-se para esconder a
commoção da despedida aos olhos insensiveis da ingrata. Angelica
procurou-o para convencel-o de pronunciar á ultima hora, o esconjuro de
Escolastica. Não o viu, e teve de acompanhar lagrimosa a menina ao
recolhimento, onde seu pae fôra adiante lêr o programma, que devia
executar-se na reclusão da pensionista D. Rosa Guilhermina Taveira. Onde
se tinha sumido o noivo despresado? Estava defronte, na loja de João
Retrozeiro, que tivera medo do aspecto, raivosamente opilado, do seu
visinho, quando entrára.
--Senhor João--disse elle, arquejando, e revirando nas orbitas os olhos,
que o ciume arrancara á sua estupida immobilidade--senhor João! eu gosto
de viver bem com os meus visinhos; moro, ha cincoenta annos, n'esta rua,
sou um honrado homem, que nunca deu desgosto aos seus visinhos...
--Diga-m'o a mim, senhor Antonio! pois que é que lhe aconteceu?--disse o
pavido retrozeiro, tirando as cangalhas, e depondo uma borla de torçal
em que o imaginoso artista phantasiava uns berloques, que deviam
distinguil-o na especialidade das borlas--Acaso, senhor Antonio, se
desaveio com alguem?
--Eu nunca fiz tagatés ás filhas, nem ás irmãs dos meus visinhos.
Ninguem dirá que me viu espetar os olhos nas familias alheias. Sou um
homem honrado.
--Quem nega tudo isso, senhor Antonio?
--Tanto se me dá que vmc.e tenha cá uma mulher como duas...
--Isso não é verdade, e perdoará, visinho. Eu não tenha cá em casa senão
a minha mulher... Quem lhe disse que eu tinha cá duas mulheres?
--Não sei se tem duas, nem quatro. O que sei é que vmc.e tem um filho
muito mariola.
--Vmc.e está enganado! O meu filho é um rapaz muito accommodado que
estuda para loio, e não tem nada que lhe digam.
--O seu filho é um mariola, já lh'o disse.
--Pois o meu José que lhe fez?
--O seu José anda-me cá a fazer gatimanhos á filha do senhor arcediago,
que por amor d'elle vai ser posta fóra da minha casa. Não quero poucas
vergonhas de portas a dentro, é o meu systema.
--Que me diz, senhor Antonio? Pois o meu José...
--É o que lhe digo, senhor João. Eu sou um homem honrado, e dos annos
que tenho ninguem me viu desinquietar as minhas visinhas. Vmc.e não é
bom pae. Um logista que tem filhos, fal-os ir trabalhar na loja.
--O meu José estuda para frade, por isso é que não vem para aqui...
--Qual frade, nem meio frade!... Deixemo-nos de frades. Ponha-o a
sapateiro, ou alfaiate, que é o mais proprio. Eu tenho sobrinhos, e não
os mando aprender latim; e vcm.e, que tem aqui dous arrateis de retroz,
e quatro varas de mastro, já quer ordenar um filho...
--Que lhe importa a vmc.e a minha vida?
--E o seu filho que lhe importa as pessoas de minha casa? Se eu fosse
outro homem, mandava-lhe estender as orelhas por um caixeiro...
--Isso lá mais devagar, senhor Antonio! Quem castiga o meu rapaz sou
eu... Se o seu caixeiro lhe puxasse as orelhas, não havia de ter frio
nas d'elle. É o que lhe digo! Eu sou pacifico, e cortez com quem é
cortez. Eu chamo o meu filho, e veremos como é essa pendencia, que vmc.e
traz.
O senhor João, já com a mostarda no nariz, chamou José, que vinha
descendo, e resmungando: _imperativo do verbo laudo, as, are,
laudabundum, ou laudatote_. _Presente do indicativo, Laudaturus._
Contentíssimo das suas reminiscencias, e livre da dôr de barriga, José
Bento ficou surprezo na presença do rival, e enfiou de susto. A edição
da cara paterna não era mais nitida que a do negociante.
--Vem cá, José. O senhor Antonio queixa-se de que tu fazes tregeitos
para a menina do senhor arcediago, isto é verdade?
José, chofrado pelo improviso, gaguejou a resposta, que mais tarde sahiu
energica, e eloquente.
--É verdade, ou não?--replicou o pae.
--Ágora é...
--É, sim, senhor. Não me desminta, seu estudante de borra!--trovejou o
negociante, formando instinctivamente com as mãos dous gordos murros.
--Não é preciso berrar tanto, senhor Antonio!... A minha casa não é
pateo de convento. Se quer que fallemos, vamos lá para dentro.
--Faz favor de entrar.
Antonio José acceitou o convite, e proseguiu na apostrophe:
--Eu que lh'o digo, é porque o sei. Vossê esteve esta noite fallando com
Rosa! Esteve ou não esteve?
--Estiveste, rapaz?
--Eu, não, senhor.
--Como é isso?--continuou o pae--se o meu filho esteve toda a noite a
gritar com dôres de barriga, e por signal que a minha Anna andou toda a
noite na cosinha a aquecer agua para banhos? Quer que eu chame a minha
Anna, senhor Antonio?
--Não me importa o que diz a sua Anna.
--Isso... mais devagar! A minha Anna é tão honrada e verdadeira como a
senhora Angelica, e póde pedir messas ás mais honradas.
--Que tens tu, Joãosinho?--grasniu de cima a senhora Anna, mettendo a
cabeça pelo alçapão.
--Olha lá, mulher... O nosso rapaz que teve a noite passada?
--Dôres de barriga.
--Vê, senhor Antonio!... Tudo que me veio dizer é mentira...
--Não se diz isso a um homem honrado, como eu!... O seu filho esteve ás
dez horas a conversar com Rosa; eu que lh'o digo, é porque o sei de bom
canal...
--Quem lh'o disse? onde está esse canal?
--Quer sabel-o? Foi certa pessoa que á mesma hora estava para conversar
com essa indigna mulher do João Pereira.
--De qual João Pereira? Aqui ha dous na visinhança.
--Do João Pereira, calvo, que traz chinó.
--Que dizes tu a isto, José?
--Digo que estive com dôres de barriga, e por signal que tomei chá
d'herva cidreira.
--Vê, senhor Antonio? Vmc.e é um homem honrado, mas enganaram-n'o.
--Não me enganaram. Eu de portas a dentro não quero poucas vergonhas: é
o meu systema.
--Enganaram, sim, senhor--chiou de cima a senhora Anna.
--Quer apostar uma moeda contra dez?
--Aposto o que vmc.e quizer! O meu filho é um exemplo dos bons rapazes.
É filho d'um bom pae.
--E d'uma boa mãe--accrescêntou a senhora Anna.
--Não tem a quem sahir mau--confirmou o retrozeiro.
--Pois eu digo-lhe--exclamou o mercador de pannos com grande chuveiro de
perdigotos--digo-lhe eu que seu filho é um tratante, e que vmc.e é
outro, se o não castigar.
--Olhe lá como falla, ouviu?--disse a mãe do futuro loio, já perfilada,
em baixo, ao lado de seu marido, que era a carne da sua carne, e o osso
do seu osso.
--É isto que lhe digo. Pela arvore se conhece o fructo. Se vmc.e fosse
um homem de conhecimentos, e não viesse aqui para esta rua de tamancos e
barrete vermelho daria outra educação aos seus filhos.
--E vmc.e d'onde veio?--interpellou a senhora Anna, fechando os punhos
na cintura, e dando-se, pelo vermelhão da cólera, a figura d'uma bilha
de barro--Não me dirá a sua linhagem, senhor Antonio da tia Catharina,
que eu conheci na Ponte-Nova fazendo camizas de estôpa para os
embarcadiços! Olhe o fidalgo, que nos vem fallar em tamancos! Que me
dizem a isto? Lembre-se que sua avó vendeu tripas na viella da
Madeira...
--Cale-se ahi que vossê é uma regateira; eu não fallo comsigo.
--A minha mulher, regateira?
--Eu, regateira?
--Ponha côbro na lingua.
--Se não, topa com a fôrma do seu pé...
--Sahe a racha ao pau--interrompeu o rival de José Bento, que não dizia
palavra--vmc.e ha de sempre mostrar que vendeu hortaliça no largo das
Freiras. É a filha da Canastreira, e basta.
--E sua irmã, a beata que traz cilicios depois de velha, quem é, não me
dirá?
--Não falle em minha irmã, ouviu?
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