A Cidade e as Serras - 12

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meu Principe mergulhára na _Odyssea_,--e todo elle vivia no espanto e no
deslumbramento de assim ter encontrado no meio do caminho da sua vida, o
velho errante, o velho Homero!
--Oh Zé Fernandes, como succedeu que eu chegasse a esta edade sem ter
lido Homero?...
--Outras leituras, mais urgentes... O _Figaro_, George Ohnet...
--Tu leste a _Illiada_?
--Menino, sinceramente me gabo de nunca ter lido a _Illiada_.
Os olhos do meu Principe fuzilavam.
--Tu sabes o que fez Alcibiades, uma tarde, no Portico, a um sophista,
um desavergonhado d'um sophista, que se gabava de não ter lido a
_Illiada_?
--Não.
--Ergueu a mão e atirou-lhe uma bofetada tremenda.
--Para lá, Alcibiades! Olha que eu li a _Odyssea_!
Oh! mas de certo eu a lêra, corridamente, com a alma desattenta! E
insistia em me iniciar, elle, e me conduzir, através do Livro sem egual.
Eu ria. E rindo, pesado do almoço, terminava por consentir, e me
estirava no canapé de verga. Elle, deante da mesa, direito na cadeira,
abria o livro gravemente, pontificalmente, como um missal, e começava
n'uma lenta ode sentida. Aquelle grande mar da _Odyssea_,--resplandecente e
sonoro, sempre azul, todo azul, sob o vôo branco das
gaivotas, rolando, e mansamente quebrando sobre a areia fina ou contra
as rochas de marmore das Ilhas divinas,--exhalava logo uma frescura
salina, bem vinda e consoladora n'aquella calma de Junho, em que a serra
se entorpecia. Depois as estupendas manhas do subtil Ulysses e os seus
perigos sobrehumanos, tantas lamurias sublimes, e um anceio tão
espalhado da Patria perdida, e toda aquella intriga, em que embrulhava
os Heroes, lograva as Deusas, illudia o Fado, tinham um delicioso sabôr
ali, nos campos de Tormes, onde nunca se necessitava de subtileza ou de
engenho, e a Vida se desenrolava com a segurança immutavel com que cada
manhã sempre o Sol egual nascia, e sempre centeios e milhos, regados por
agoas eguaes, seguramente medravam, espigavam, amadureciam... Emballado
pela recitação grave e monotona do meu Principe, eu cerrava as palpebras
docemente. Em breve um vasto tumulto, por terra e ceu, me alvoroçava...
E eram os rugidos de Polyphemo, ou a grita dos companheiros d'Ulysses
roubando as vaccas de Apollo. Com os olhos logo esbugalhados para
Jacintho, eu murmurava: _Sublime!_ E sempre, n'esse momento o engenhoso
Ulysses, de carapuço vermelho e o longo remo ao hombro, surprehendia com
a sua facundia a clemencia dos Principes, ou reclamava presentes devidos
ao Hospede, ou surripiava astutamente algum favor aos Deuses. E Tormes
dormia, no esplendor de Junho. Novamente, eu cerrava as palpebras
consoladas, sob a caricia ineffavel do largo dizer homerico... E meio
adormecido, encantado, incessantemente avistava, longe, na divina
Hellade, entre o mar muito azul e o ceu muito azul, a branca vela,
hesitante, procurando Ithaca...
Depois da sésta o meu Principe de novo se soltava para os campos. E a
essa hora, sempre mais activa, voltava com ardor aos «seus planos», a
essas culturas de luxo e elegantes officinas que cobririam a serra de
magnificencias ruraes. Agora andava todo no esplendido appetite d'uma
horta que elle concebera, immensa horta ajardinada, em que todos os
legumes, classicos ou exoticos, cresceriam, soberbamente, em vistosos
talhões, fechados por sebes de rosas, de cravos, de alfazêma, de
dhalias. A agoa das regas desceria por lindos corrêgos de louça
esmaltada. Nas ruas, a sombra cahiria de densas latadas de moscatel,
pousando em esteios revestidos d'azulejo. E o meu Principe desenhára o
plano d'esta espantosa horta, a lapiz vermelho, n'um papel immenso, que
o Melchior e o Silverio, consultados, longamente contemplaram,--um
coçando risonhamente a nuca, o outro com os braços duramente crusados, e
o sobrôlho tragico.
Mas este plano, o da queijaria, o da capoeira, e outro, sumptuoso, d'um
pombal tão povoado que todo o ceu de Tormes ás tardes se tornaria branco
e todo fremente d'azas--não sahiam das nossas gostosas palestras, ou dos
papeis em que Jacintho os debuxava, e que se amontoavam sobre a meza,
platonicos, immoveis, entre o tinteiro de latão e o vaso com flôres.
Nem enxadada fendera terra, nem alavanca deslocára pedra, nem serra
serrára madeira, para encetar estas maravilhas. Contra a resistencia
rebolada e escorregadia do Melchior, contra a respeitosa inercia do
Silverio se quedavam, encalhados, os planos do meu Principe, como
galeras vistosas em rochas ou em lôdo.
Não convinha bolir em nada, (clamava o Silverio) antes das colheitas e
da vindima! E depois, (acrescentava o Melchior com um sorriso de grande
promessa) «para boas obras mez de Janeiro» porque lá ensina o dictado:
Em Janeiro--mette obreiro
Mez meante--que não ante.
E, de resto, o goso de conceber as suas obras e de indicar, estendendo a
bengala por cima de valle e monte, os sitios privilegiados que ellas
aformoseariam, bastava por ora ao meu Principe, ainda mais imaginativo
que operante. E, em quanto meditava estas transformações da terra, muito
progressivamente e com um amavel esforço, se ia familiarisando com os
homens simples que a trabalhavam. Na sua chegada a Tormes, o meu
Principe soffria d'uma estranha timidez diante dos caseiros, dos
jornaleiros, e até de qualquer rapazinho que passasse, tangendo uma
vacca para o pasto. Nunca elle então se demoraria a conversar com os
moços, quando á borda d'um caminho ou n'um campo em monda elles se
endireitavam de chapeu na mão, n'um respeito de velha vassalagem. De
certo o empecia a preguiça, e talvez ainda o pudico recato de transpor
toda a immensa distancia que se alargava desde a sua complicada
super-civilisação até á rude simplicidade d'aquellas almas
naturaes:--mas sobretudo o retinha o medo de mostrar a sua ignorancia da
lavoura e da terra, ou de parecer talvez desdenhoso de occupações e de
interesses, que para os outros eram supremos e quasi religiosos. Remia
então esta reserva com uma profusão de sorrisos, de doces acenos,
tirando tambem o chapeu em cortezias profundas, com uma tal emphase de
polidez que eu por vezes receava que elle murmurasse aos jornaleiros:
«Tenha v. ex.^a muito boas tardes;... Creado de v. ex.^a!»
Mas agora, depois d'aquellas semanas de serra, e de já saber (com um
saber ainda fragil,) a epocha das sementeiras e das ceifas, e que as
arvores de fructa se semeiam no inverno, já se aprazia em parar junto
dos trabalhadores, contemplar descançadamente o trabalho, dizer cousas
affaveis e vagas.
--Então, isso vae andando?... Ora ainda bem!... Este bocado de torrão
aqui é rico... O talude ali adeante está precisando concerto...
E cada um d'estes tão simples dizeres lhe era doce, como se por meio
d'elles penetrasse mais fundamente na intimidade da terra, e
consolidasse a sua encarnação em «homem do campo,» deixando de ser uma
mera sombra circulando entre realidades. Já por isso não crusava no
caminho o mocinho atraz das vaccas, que não o detivesse, o não
interrogasse: «Para onde vaes tu? De quem é o gado? Como te chamas?» E,
contente comsigo, sempre gabava gratamente o desembaraço do rapaz, ou a
esperteza dos seus olhos. Outra satisfação do meu Principe era conhecer
os nomes de todos os campos, as nascentes d'agua, e as delimitações da
sua quinta.
--Vês acolá, para além do ribeiro, o pinheiral. Já não é meu, é dos
Albuquerques.
E com a perenne alegria de Jacintho as noites da serra, no vasto
casarão, eram faceis e curtas. O meu Principe era então uma alma que se
simplificava:--e qualquer pequenino goso lhe bastava, desde que n'elle
entrasse paz ou doçura. Com verdadeira delicia ficava, depois do café,
estendido n'uma cadeira, sentindo atravez das janellas abertas, a
nocturna tranquillidade da serra, sob a mudez estrellada do ceu.
As historias, muito simples e muito caseiras, que eu lhe contava, de
Guiães, do abbade, da tia Vicencia, dos nossos parentes da Flôr da
Malva, tão sinceramente o interessavam que eu encetára, para seu regalo,
a chronica completa de Guiães, com todos os namoricos, e as façanhas de
forças, e as desavenças por causa de servidões ou d'aguas. Tambem por
vezes nos enfronhavamos, com afferro n'uma partida de gamão, sobre um
bello taboleiro de pau preto, com pedras de velho marfim, que nos
emprestára o Silverio. Mas nada de certo o encantava tanto como
atravessar as casas, pé ante pé, até uma saleta que dava para o pomar, e
ahi ficar encostado á janella, sem luz, n'um enlevado socego, a escutar
longamente, languidamente, os rouxinoes que cantavam no laranjal.


X

N'uma dessas manhãs--justamente na vespera do meu regresso a Guiães--, o
tempo, que andára pela serra tão alegre, n'um inalterado riso de luz
rutilante, todo vestido d'azul e ouro, fazendo poeira pelos caminhos, e
alegrando toda a natureza, desde os passaros até os regatos,
subitamente, com uma d'aquellas mudanças que tornam o seu temperamento
tão semelhante ao do homem, appareceu triste, carrancudo, todo
embrulhado no seu manto cinzento, com uma tristeza tão pesada e
contagiosa que toda a serra entristeceu. E não houve mais passaro que
cantasse, e os arroios fugiram para debaixo das hervas com um lento
murmurio de chôro.
Quando Jacintho entrou no meu quarto, não resisti á malicia de o
aterrar:
--Sudoeste! gralhas a grasnar por todos esses soutos... Temos muita
agua, Snr. D. Jacintho! Talvez duas semanas d'agua! E agora é se vae
saber quem é aqui o fino amador da Natureza, com esta chuva pegada, com
vendaval, com a serra toda a escorrer!
O meu Principe caminhou para a janella com as mãos nas algibeiras:
--Com effeito! Está carregado. Já mandei abrir uma das malas de Paris e
tirar um casacão impermeavel... Não importa! Fica o arvoredo mais verde.
E é bom que eu conheça Tormes nos seus habitos d'inverno.
Mas como o Melchior lhe affiançára que a «chuvinha só viria para a
tarde», Jacintho decidiu ir antes d'almoço á Corujeira, onde o Silverio
o esperava para decidirem da sorte d'uns castanheiros, muito velhos,
muito pittorescos, inteiramente interessantes, mas já roidos, e
ameaçando desabar. E, confiando nas previsões do Melchior, partimos sem
que Jacintho se vestisse á prova d'agoa. Não andaramos porém meio
caminho, quando, depois d'um arrepio nas arvores, um negrume carregou,
e, bruscamente, desabou sobre nós uma grossa chuva obliqua, vergastada
pelo vento, que nos deixou estonteados, agarrando os chapeus,
enrodilhados na borrasca. Chamados por uma grande voz, que se esganiçava
no vento, avistamos n'um campo mais alto, á beira d'um alpendre, o
Silverio, debaixo d'um guarda-chuva vermelho, que acenava, nos indicava
o trilho mais curto para aquelle abrigo. E para lá rompemos, com a chuva
a escorrer na cara, patinhando na lama, contorcidos, cambaleantes,
atordoados no vendaval, que n'um instante alagára os campos, inchára os
ribeiros, esboroava a terra dos socalcos, lançára n'um desespero todo o
arvoredo, tornára a serra negra, bravamente agreste, hostil,
inhabitavel.
Quando emfim, debaixo do vasto guarda-chuva com que o Silverio nos
esperava á beira do campo, corremos para o alpendre, nos refugiamos
n'aquelle abrigo inesperado, a escorrer, a arquejar, o meu Principe,
enxugando a face, enxugando o pescoço, murmurou, desfallecido:
--Apre! que ferocidade!
Parecia espantado d'aquella brusca, violenta colera d'uma serra tão
amavel e accolhedora, que em dous mezes, inalteradamente, só lhe
offerecera doçura e sombra, e suaves ceus, e quietas ramagens, e
murmurios discretos de ribeirinhos mansos.
--Santo Deus! Vem muitas vezes assim, estas borrascas?
Immediatamente o Silverio aterrou o meu Principe:
--Isto agora são brincadeiras de verão, meu senhor! Mas ha de V. Ex.^a
vêr no inverno, se V. Ex.^a se aguentar por cá! Então é cada temporal,
que até parece que os montes estremecem!
E contou como fôra tambem apanhado, quando ia para a Corujeira.
Felizmente, logo pela manhã, quando sentiu o ar carrancudo e as
folhinhas dos choupos a tremer, se acautelára com o chapeu de chuva e
calçára as suas grandes botas.
--Ainda estive para me abrigar em casa do Esgueira, que é um caseiro de
cá. Aquella casa, ali abaixo, onde está a figueira... Mas a mulher tem
estado doente, já ha dias... E como póde ser obra que se pegue, bexigas
ou coisa que o valha, pensei comigo: Nada, o seguro morreu de velho!
Metti para o alpendre... E não passára um credo quando lobriguei a V.
Ex.^a... Coisa assim!... E o Snr. D. Jacintho é voltar para casa, e
mudar-se, que temos um dia e uma noite d'agoa.
Mas, justamente, a chuva começára a cahir perpendicular, d'um ceu ainda
negro, onde o vento se calára; e para além do rio e dos montes havia uma
claridade, como entre cortinas de pano cinzento que se descerram.
Jacintho repousava. Eu não cessára de me sacudir, de bater os pés
encharcados, que me arrefeciam. E o bom Silverio, passando a mão
pensativa sobre o negrume das suas barbas, reflectia, emendava os seus
prognosticos:
--Pois, não senhor... Ainda estía! Nunca pensei. É que tornejou o vento.
O alpendre que nos cobria assentava sobre duas paredes em angulo, de
pedra solta, restos d'algum casebre desmantelado, e sobre um esteio
fazendo cunhal. N'esse momento só abrigava madeira, um cuculo de cestos
vasios, e um carro de bois, onde o meu Principe se sentára, enrolando um
cigarro confortador. A chuva desabava, copiosa, em longos fios
reluzentes. E todos tres nos callavamos, n'aquella contemplação inerte e
sem pensamento, em que uma chuva grossa e serena sempre immobilisa e
retem olhos e almas.
--Ó Snr. Silverio, murmurou lentamente o meu Principe, que é que o
senhor esteve ahi a dizer de bexigas?
O procurador voltou a face surprehendido:
--Eu, Ex.^{mo} Snr.?... Ah sim! a mulher do Esgueira! É que póde ser,
póde ser... Não imagine V. Ex.^a que faltam por cá doenças. O ar é bom.
Não digo que não! Arsinho são, agoasinha leve. Mas ás vezes, se V. Ex.^a
me dá licença, vae por ahi muita maleita.
--Mas não ha medico, não ha botica?
O Silverio teve o riso superior de quem habita regiões civilisadas e bem
providas...
--Então não havia d'haver? Pois ha um boticario, em Guiães, lá quasi ao
pé da casa aqui do nosso amigo. E homem entendido... o Firmino, hein,
Snr. Fernandes? Homem capaz. Medico é o Dr. Avelino, d'aqui a legoa e
meia, nas Bolsas. Mas já V. Ex.^a vê, esta gentinha é pobre!... Tomaram
elles para pão, quanto mais para remedios!
E de novo se estabeleceu um silencio, sob o alpendre, onde penetrava a
friagem crescente da serra encharcada. Para além do rio, a promettedora
claridade não se alargára entre as duas espessas cortinas pardacentas.
No campo, em declive deante de nós, ia um longo correr de ribeiros
barrentos. Eu terminára por me sentar na ponta d'um madeiro, enervado,
já com a fome aguçada pela manhã agreste. E Jacintho, na borda do carro,
com os pés no ar, cofiava os bigodes humidos, palpava a face, onde, com
espanto meu, reapparecera a sombra, a sombra triste dos dias passados, a
sombra do 202!
E, então, surdiu por traz da parede do alpendre um rapasito, muito
rotinho, muito magrinho, com uma carita miuda, toda amarella sob a
porcaria, e onde dous grandes olhos pretos se arregalavam para nós, com
vago pasmo e vago medo. Silverio immediatamente o conheceu.
--Como vae a tua mãe? Escusas de te chegar para cá, deixa-te estar ahi.
Eu ouço bem. Como vae a tua mãe?
Não percebi o que os pobres beicitos descorados murmuraram. Mas Jacinto,
interessado:
--Que diz elle? Deixe vir o rapaz! Quem é a tua mãe?
Foi o Silverio que informou respeitosamente:
--É a tal mulher que está doente, a mulher do Esgueira, ali do casal da
figueira. E ainda tem outro abaixo d'este... Filharada não lhe falta.
--Mas este pequeno tambem parece doente!--exclamou Jacintho. Coitadito,
tão amarello!... Tu tambem estás doente?
O rapasinho emmudecera, chupando o dedo, com os tristes olhos pasmados.
E o Silverio sorria, com bondade:
--Nada! este é sãosinho... Coitado, é assim amarellado e enfezadito, por
que... Que quer V. Ex.^a? Mal comido! muita miseria... Quando ha o
bocadito de pão é para todo o rancho. Fomesinha, fomesinha!
Jacintho pulou bruscamente da borda do carro.
--Fome? Então elle tem fome? Ha aqui gente com fome?
Os seus olhos rebrilhavam, n'um espanto commovido, em que pediam, ora a
mim, ora ao Silverio, a confirmação d'esta miseria insuspeitada. E fui
eu que esclareci o meu Principe:
--Homem! está claro que ha fome! Tu imaginavas talvez que o Paraiso se
tinha perpetuado aqui nas serras, sem trabalho e sem miseria... Em toda
a parte ha pobres, até na Australia, nas minas d'ouro. Onde ha trabalho
ha proletariado, seja em Paris, seja no Douro...
O meu Principe, teve um gesto d'afflicta impaciencia:
--Eu não quero saber o que ha no Douro. O que eu pergunto é se aqui, em
Tormes, na minha propriedade, dentro d'estes campos que são meus, ha
gente que trabalhe para mim, e que tenha fome... Se ha creancinhas, como
esta, esfomeadas? É o que eu quero saber.
O Silverio sorria, respeitosamente, ante aquella candida ignorancia das
realidades da Serra:
--Pois está bem de vêr, meu senhor, que ha para ahi caseiros que são
muito pobres. Quasi todos... É uma miseria, que se não fosse algum
soccorro que se lhes dá, nem eu sei!... Este Esgueira, com o rancho de
filhos que tem, é uma desgraça... Havia V. Ex.^a de vêr as casitas em
que elles vivem... São chiqueiros. A do Esgueira, acolá...
--Vamos vêl-a! atalhou Jacintho com uma decisão exaltada.
E sahiu logo do alpendre, sem attender á chuva, que ainda cahia, mais
leve e mais rala. Mas então Silverio alargou os braços deante d'elle,
com anciedade, como para o salvar d'um precipicio.
--Não! V. Ex.^a lá na casa do Esgueira é que não entra! Não se sabe o
que a mulher tem, e cautella e caldo de gallinha...
Jacintho não se alterou na sua polidez paciente:
--Obrigado pelo seu cuidado, Silverio... Abra o seu chapeu de chuva, e
ávante!
Então o Procurador vergou os hombros, e, como S. Ex.^a mandava, abriu
com estrondo o immenso pára-agoas, abrigou respeitosamente Jacintho,
através do campo encharcado. Eu segui, pensando na esmola sumptuosa que
o bom Deus mandava áquelle pobre casal por um remoto senhor das Cidades!
Atraz vinha o pequenito perdido n'um immenso pasmo.
Como todos os casebres da serra, o do Esgueira era de grossa pedra
solta, sem reboco, com um vago telhado, de telha musgosa e negra, um
postigo no alto, e a rude porta que servia para o ar, para a luz, para o
fumo, e para a gente. E em redor, a Natureza e o Trabalho tinham,
através d'annos, accumulado ali trepadeiras e flôres silvestres, e
cantinhos d'horta, e sebes cheirosas, e velhos bancos roidos de musgo, e
panellas com terra onde crescia salsa, e regueiros cantantes, e videiras
enforcadas nos olmos, e sombras e charcos espelhados, que tornavam
deliciosa, para uma Ecloga, aquella morada da Fome, da Doença e da
Tristeza.
Cautelosamente, com a ponteira do guarda-chuva, Silverio empurrou a
porta, chamando:
--Eh! tia Maria... Olá rapariga!
E na fenda entreaberta appareceu uma moça, muito alta, escura e suja,
com uns tristes olhos pisados, que se espantaram para nós, serenamente.
--Então como vae a tua mãe?--Abre lá a porta, que estão aqui estes
senhores...
Ella abriu, lentamente, e ia murmurando n'uma voz dolente e arrastada
mas sem queixume, que um vago, resignado sorriso acompanhava:
--Ora, coitada! como ha de ir? Malzinha... malzinha.
E dentro, n'um gemido que subia como do chão, d'entre abafos, amodorrado
e lento, a mãe repetiu a desconsolada queixa:
--Ai! para aqui estou, e malzinha, malzinha!...
O Silverio, sem passar da porta, com o guarda-chuva em riste, meio
aberto, como um escudo contra a infecção, lançou uma consolação vaga:
--Não ha de ser nada, tia Maria!... Isso foi friagem! Não foi senão
friagem!
E, sobre o hombro de Jacintho, encolhido:
--Já V. Ex.^a vê... Muita miseria! Até lhe chove lá dentro.
E, no pedaço de chão que viam, chão de terra batida, uma mancha humida
reluzia, da chuva pingada de uma telha rôta. A parede, coberta de
fuligem, das longas fumaraças da lareira, era tão negra como o chão. E
aquella penumbra suja parecia atulhada, n'uma desordem escura, de
trapos, de cacos, de restos de coisas, onde só mostravam fórma
comprehensivel uma arca de pau negro, e por cima, pendurado d'um prego,
entre uma serra e uma candeia, um grosso saiote escarlate.
Então Jacintho, muito embaraçado, murmurou abstrahidamente:
--Está bem, está bem...
E largou pelo campo para o lado do alpendre como se fugisse, emquanto o
Silverio decerto revelava á rapariga, a presença augusta do «fidalgo»,
por que a sentimos, da porta, levantar a voz dolorida:
--Ai! Nosso Senhor lhe dê muito boa sorte! Nosso Senhor o acompanhe!
Quando o Silverio, com as grandes passadas das suas grandes botas, nos
colheu, no meio do campo, Jacintho parára, olhava para mim, com os dedos
tremulos a torturar o bigode, e murmurava:
--É horrivel, Zé Fernandes, é horrivel.
Ao lado, o vozeirão do Silverio trovejou:
--Que queres tu outra vez, rapaz? Vae para a tua mãe, creatura!
Era o pequeno rotinho, esfaimadinho, que se prendia a nós, n'um immenso
pasmo das nossas pessoas, e com a confusa esperança, talvez, que
d'ellas, como de Deuses encontrados n'um caminho, lhe viesse affago ou
proveito. E Jacintho, para quem elle mais especialmente arregalava os
olhos tristes, e que aquella miseria, e a sua muda humildade,
embaraçavam, acanhavam horrivelmente, só soube sorrir, murmurar o seu
vago: «Está bem, está bem...» Fui eu que dei ao pequenito um tostão,
para o fartar, o despegar dos nossos passos. Mas como elle, com o seu
tostão bem agarrado, nos seguia ainda, como no sulco da nossa
magnificencia, o Silverio teve de o espantar, como a um passaro, batendo
as mãos, e de lhe gritar:
--Já para casa! E leve esse dinheiro á mãe. Roda, roda!...
--E nós vamos almoçar, lembrei eu olhando o relogio. O dia ainda vae
estar lindo.
Sobre o rio, com effeito, reluzia um pedaço d'azul lavado e lustroso; e
a grossa camada de nuvens já se ia enrolando sob a lenta varredela do
vento, que as levava, despejadas e rôtas, para um canto escuso do ceu.
Então recolhemos lentamente para casa, por uma vereda ingreme, que
ensinára o Silverio, e onde um leve enchurro vinha ainda, saltando e
chalrando. De cada ramo tocado, rechuvia uma chuva leve. Toda a verdura,
que bebera largamente, reluzia consolada.
Bruscamente, ao sahirmos da vereda para um caminho mais largo, entre um
socalco e um renque de vinha, Jacintho parou, tirando lentamente a
cigarreira:
--Pois, Silverio, eu não quero mais estas horriveis miserias na quinta.
O Procurador deu um geito aos hombros, com um vago _eh_! _eh_!
d'obediencia e dúvida.
--Antes de tudo, continuava Jacintho, mande já hoje chamar esse Dr.
Avelino para aquella pobre mulher... E os remedios que os vão buscar
logo a Guiães. E recommendação ao medico para voltar ámanhã, e em cada
dia; até que ella melhore... Escute! E quero, Melchior, que lhe leve
dinheiro, para os caldos, para a dieta, uns dez, ou quinze mil réis...
Bastará?
O Procurador não conteve um riso respeitoso. Quinze mil réis! Uns
tostões bastavam... Nem era bom acostumar assim, a tanta franqueza,
aquella gente. Depois todos queriam, todos pedinchavam...
--Mas é que todos hão-de ter, disse Jacintho simplesmente.
--V. Ex.^a manda, murmurou o Silverio.
Encolhera os hombros, parado no caminho, no espanto d'aquellas
extravagancias. Eu tive de o apressar, impaciente:
--Vamos conversando e andando! É meio dia! Estou com uma fome de lobo!
Caminhamos, com o Silverio no meio, pensativo, a fronte enrugada sob a
vasta aba do chapeu, a barba immensa espalhada pelo peito, e a barraca
exorbitante do guarda-chuva vermelho enrolada debaixo do braço. E
Jacintho, puxando nervosamente o bigode, arriscava outras idéas
bemfazejas, cautelosamente, no seu indominavel medo do Silverio:
--E as casas tambem... Aquella casa é um covil!... Gostava de abrigar
melhor aquella pobre gente... E naturalmente, as dos outros caseiros são
pocilgas eguaes... Era necessario uma reforma! Construir casas novas a
todos os rendeiros da quinta...
--A todos?...--O Silverio gaguejava,--emudeceu.
E Jacintho balbuciava aterrado:
--A todos... Emfim, quero dizer... Quantos serão elles?
Silverio atirou um gesto enorme:
--São vinte e coisas... Vinte e tres! se bem lembro. Upa! Upa! Vinte e
sete...
Então Jacintho emmudeceu tambem, como reconhecendo a vastidão do numero.
Mas desejou saber, por quanto ficaria cada casa!... Oh! uma casa
simples, mas limpa, confortavel, como a que tinha a irmã do Melchior, ao
pé do lagar. Silverio estacou de novo. Uma casa como a da Ermelinda?
Queria Sua Ex.^a saber? E alijou a cifra, muito d'alto, como uma pedra
immensa, para esmagar Jacintho:
--Duzentos mil réis, Ex^{mo} Senhor! E é para mais que não para menos!
Eu ria da tragica ameaça do excellente homem. E Jacintho, muito
docemente, para conciliar o Silverio:
--Bem, meu amigo... Eram uns seis contos de réis! Digamos dez, por que
eu queria dar a todos alguma mobilia e alguma roupa.
Então o Silverio teve um brado de terror:
--Mas então, Ex.^{mo} Senhor, é uma revolução!
E como nós, irresistivelmente, riamos dos seus olhos esgazeados de
horror, dos seus immensos braços abertos para traz, como se visse o
mundo desabar,--o bom Silverio encavacou:
--Ah! V. Ex.^{as} riem? Casas para todos, mobilias, pratas, bragal, dez
contos de réis! Então tambem eu rio! Ah! ah! ah! Ora viva a bella
chalaça!... Está bôa a risota!
E subitamente, n'uma profunda mesura, como declinando toda a
responsabilidade n'aquelle disparate magnifico:
--Emfim, V. Ex.^a é quem manda!
--Está mandado, Silverio. E tambem quero saber as rendas que paga essa
gente, os contractos que existem, para os melhorar. Ha muito que
melhorar. Venha vossê almoçar comnosco. E conversamos.
Tão saturado d'espanto estava o Silverio, que nem recebeu mais espanto
com essa «melhoria de rendas». Agradeceu o convite, penhorado. Mas pedia
licença a Sua Ex.^a para passar primeiramente pelo lagar, para ver os
carpinteiros que andavam a concertar a trave do rio. Era um instante, e
estava em seguida ás ordens de S. Ex.^a.
Metteu a corta matto, saltando um cancello. E nós seguimos, com passos
que eram ligeiros, pela hora do almoço que se retardára, pello azul
alegre que reapparecia, e por toda aquella justiça feita á pobresa da
serra.
--Não perdeste hoje o teu dia, Jacintho, disse eu, batendo, com uma
ternura que não disfarcei, no hombro do meu amigo.
--Que miseria, Zé Fernandes! Eu nem sonhava... Haver por ahi, á vista da
minha casa, outras casas, onde creanças teem fome! É horrivel...
Estavamos entrando na alameda. Um raio de sol, sahindo d'entre duas
grossas, algodoadas nuvens, passou sobre uma esquina do casarão, ao
fundo, uma viva tira d'ouro. O clarim dos gallos soava claro e alto. E
um doce vento, que se erguera, punha nas folhas lavadas e luzidias um
fremito alegre e doce.
--Sabes o que eu estava pensando, Jacintho?... Que te aconteceu aquella
lenda de Santo Ambrosio... Não, não era Santo Ambrosio... Não me lembra
o santo... Nem era ainda santo... apenas um cavalleiro peccador, que se
enamorára d'uma mulher, puzera toda a sua alma n'essa mulher, só por a
avistar a distancia na rua. Depois, uma tarde que a seguia, enlevado,
ella entrou n'um portal de egreja, e ahi, de repente, ergueu o veu,
entreabriu o vestido, e mostrou ao pobre cavalleiro o seio roido por uma
chaga! Tu, tambem andavas namorado da serra, sem a conhecer, só pela sua
belleza de verão. E a serra, hoje, zás! de repente, descobre a sua
grande ulcera... É talvez a tua preparação para S. Jacintho.
Elle parou, pensativo, com os dedos nas cavas do collete:
---É verdade! Vi a chaga! Mas emfim, esta, louvado seja Deus, é das que
eu posso curar!
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