A Cidade e as Serras - 10

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--Mas como posso eu partir para Lisboa, ámanhã, com esta camisa de dous
dias, que já me faz uma comichão horrenda? E sem um lenço... Nem ao
menos uma escova de dentes!
Fertil em idéas, estendi as mãos, n'um bello gesto tutelar:
--Tudo se arranja, meu Jacintho, tudo se arranja! Eu, largando d'aqui
cedo, pelas seis horas, chego a Guiães ás dez, ainda sem calor. E, mesmo
antes do almoço e da cavaqueira com a tia Vicencia, immediatamente te
mando por um moço um sacco de roupa branca. As minhas camisas e as
minhas ceroulas talvez te estejam largas. Mas um mendigo como tu não tem
direito a elegancias e a roupas bem cortadas. O moço, n'um bom trote,
entra aqui ás duas horas; tens tempo de mudar antes de desceres para a
Estação... Posso metter na mala uma escova de dentes.
--Oh Zé Fernandes! Então mette tambem uma esponja... E um frasco d'agoa
de colonia!
--Agoa d'alfazema, excellente, feita pela tia Vicencia...
O meu Principe suspirou, impressionado com a sua miseria esqualida, e
esta dadiva de roupas:
--Bem, então vamos dormir, que estou esfalfado de emoções e d'astros...
Justamente Melchior entreabria a pesada porta, com timidez, a avisar que
«estavam preparadinhas as camas de suas Incellencias.» E seguindo o bom
caseiro, que erguia uma candeia, que avistamos nós, o meu Principe e eu,
ainda ha pouco irmanados com os astros? Em duas saletas, que uma
abertura em arco, lobrego arco de pedra, separava--duas enxergas sobre o
soalho. Junto á cabeceira da mais larga, que pertencia ao senhor de
Tormes, um castiçal de latão sobre um alqueire; aos pés, como lavatorio,
um alguidar vidrado em cima duma tripeça. Para mim, serrano d'aquellas
serras, nem alguidar nem alqueire.
Lentamente, com o pé, o meu super-civilisado amigo palpou a enxerga. E
decerto lhe sentiu uma dureza intransigente, porque ficou pendido sobre
ella, a correr desoladamente os dedos pela face desmaiada.
--E o peior não é ainda a enxerga, murmurou emfim com um suspiro. É que
não tenho camisa de dormir, nem chinelas!... E não me posso deitar de
camisa engommada.
Por inspiração minha reccorremos ao Melchior. De novo, esse benemerito
providenciou, trazendo a Jacintho, para elle desafogar os pés, uns
tamancos--e para embrulhar o corpo uma camisa da comadre, enorme, de
estopa, áspera como uma estamenha de penitente, com folhos mais crespos
e duros do que lavores de madeira. Para consolar o meu Principe lembrei
que Platão quando compunha o _Banquete_, Vasco da Gama quando dobrava o
Cabo, não dormiam em melhores catres! As enxergas rijas fazem as almas
fortes, oh Jacintho!... E é só vestido de estamenha que se penetra no
Paraiso.
--Tens tu, volveu o meu amigo seccamente, alguma coisa que eu leia? Não
posso adormecer sem um livro.
Eu? Um livro? Possuia apenas o velho numero do _Jornal do Commercio_,
que escapára á dispersão dos nossos bens. Rasguei a copiosa folha pelo
meio, partilhei com Jacintho fraternalmente. Elle tomou a sua metade,
que era a dos annuncios... E quem não viu então Jacintho, senhor de
Tormes, acaçapado á borda da enxerga, rente da vela de sêbo que se
derretia no alqueire, com os pés encafuados nos sócos, perdido dentro
das ásperas pregas e dos rijos folhos da camisa serrana, percorrendo
n'um pedaço velho de Gazeta, pensativamente, as partidas dos
Paquetes--não póde saber o que é uma intensa e veridica imagem do
Desalento.
Recolhido á minha alcova espartana, desabotoava o collete, n'um
delicioso cansaço, quando o meu Principe ainda me reclamou:
--Zé Fernandes...
--Dize.
--Manda tambem no sacco um abotoador de botas.
Estirado commodamente na rija enxerga murmurei, como sempre murmuro ao
penetrar no Somno, que é um primo da Morte, «Deus seja louvado!» Depois
tomei a metade do _Jornal do Commercio_ que me pertencia.
--Zé Fernandes...
--Que é?
--Tambem podias metter no sacco pós dos dentes... E uma lima das
unhas... E um romance!
Já a meia Gazeta me escapava das mãos dormentes. Mas da sua alcova,
depois de soprar a vela, Jacintho murmurou entre um bocejo:
--Zé Fernandes...
--Hein?
--Escreve para Lisboa, para o Hotel Bragança... Os lençoes ao menos são
frescos, cheiram bem, a sadio!


IX

Cedo, de madrugada, sem rumor, para não despertar o meu Jacintho, que,
com as mãos cruzadas sobre o peito, dormia beatificamente na sua enxerga
de granito--parti para Guiães.
Ao cabo d'uma semana, recolhendo uma manhã para o almoço, encontrei no
corredor as minhas malas tão desejadas, que um moço do casal da Giesta
trouxera n'um carro com «recados do Snr. Pimentinha». O meu pensamento
pulou para o meu Principe. E lancei pelo telegrapho, para Lisboa, para o
Hotel Bragança, este brado alegre:--«Estás lá? Sei recuperaste Grillo e
Civilisação! Hurrah! Abraço!»--Só depois de sete dias, occupados n'uma
delicada apanha de aspargos com que outr'ora civilisára a horta da tia
Vicencia, notei o silencio de Jacintho. N'um bilhete postal renovei,
desenvolvi o grito amigo:--«Estás lá? São os prazeres da Baixa que assim
te tornam desattento e mudo? Eu, todo aspargos! Responde, quando chegas?
Tempo delicioso! 23^o á sombra. E os ossos?...»--Veio depois a devota
romaria da Senhora da Roqueirinha. Durante a lua nova andei n'um córte
de matto, na minha terra das Corcas. A tia Vicencia vomitou, com uma
indigestão de murcellas. E o silencio do meu Principe era ingrato e
ferrenho.
Emfim uma tarde, voltando da Flor da Malva, de casa da minha prima
Joanninha, parei em Sandofim, na venda do Manoel Rico, para beber de
certo vinho branco que a minha alma conhece--e sempre pede.
Defronte, á porta do ferrador, o Severo, sobrinho do Melchior de Tormes
e o mais fino alveitar da serra, picava tabaco, escarranchado n'um
banco. Mandei encher outro quartilho: elle acariciou o pescoço da minha
egua que já salvára d'um esfriamento: e, como eu indagasse do nosso
Melchior, o Severo contou que na véspera jantára com elle em Tormes, e
se abeirára tambem do fidalgo...
--Ora essa! Então o snr. D. Jacintho está em Tormes?
O meu espanto divertiu o Severo:
--Então v. exc.^a... Pois em Tormes é que elle está, ha mais de cinco
semanas, sem arredar! E parece que fica para a vindima, e vai lá uma
grandeza!
Santissimo nome de Deus! Ao outro dia, domingo, depois da missa e sem me
assustar com a calma que carregava, trotei alvoroçadamente para Tormes.
Ao latir dos rafeiros, quando transpuz o portal solarengo, a comadre do
Melchior accudio dos lados do curral, com um alguidar de lavagem
encostado á cintura.--Então o snr. D. Jacintho?... O snr. D. Jacintho
andava lá para baixo, com o Silverio e com o Melchior, nos campos de
Freixomil...
--E o Snr. Grillo, o preto?
--Ha bocadinho tambem o enxerguei no pomar, com o francez, a apanhar
limões doces...
Todas as janellas do solar rebrilhavam, com vidraças novas, bem polidas.
A um canto do páteo notei baldes de cal e tijellas de tintas. Uma escada
de pedreiro descançára durante o Dia Santo arrimada contra o telhado. E,
rente ao muro da capella, dois gatos dormiam sobre montões de palha
desempacotada de caixotes consideraveis.
--Bem, pensei eu. Eis a Civilisação!
Recolhi a egua, galguei a escada. Na varanda, sobre uma pilha de ripas,
reluzia n'um raio de sol uma banheira de zinco. Dentro encontrei todos
os soalhos remendados, esfregados a carqueja. As paredes, muito caiadas
e núas, refrigeravam como as d'um convento. Um quarto, a que me levaram
tres portas escancaradas com franqueza serrana, era certamente o de
Jacintho: a roupa pendia de cabides de pau: o leito de ferro, com
coberta de fustão, encolhia timidamente a sua rigidez virginal a um
canto, entre o muro e a banquinha onde um castiçal de latão resplandecia
sobre um volume do _D. Quichote_; no lavatorio pintado de amarello,
imitando bambú, apenas cabia o jarro, a bacia, um naco gordo de sabão; e
uma prateleirinha bastava ao esmerado alinho da escova, da thesoura, do
pente, do espelhinho de feira, e do frasquinho de agua de alfazema que
eu mandára de Guiães. As tres janellas, sem cortinas, contemplavam a
belleza da serra, respirando um delicado e macio ar, que se perfumava
nas resinas dos pinheiraes, depois nas roseiras da horta. Em frente, no
corredor, outro quarto repetia a mesma simplicidade. Certamente a
previdencia do meu Principe o destinára ao seu Zé Fernandes. Pendurei
logo dentro, no cabide, o meu guarda-pó de lustrina.
Mas na sala immensa, onde tanto philosopháramos considerando as
estrellas, Jacintho arranjára um centro de repouso e d'estudo--e
desenrolára essa «grandeza» que impressionava o Severo. As cadeiras de
verga da Madeira, amplas e de braços, offereciam o conforto de
almofadinhas de chita. Sobre a mesa enorme de pau branco, carpinteirada
em Tormes, admirei um candieiro de metal de tres bicos, um tinteiro de
frade armado de pennas de pato, um vaso de capella transbordando de
cravos. Entre duas janellas uma commoda antiga, embutida, com ferragens
lavradas, recebera sobre o seu marmore rosado o devoto peso d'um
Presepio, onde Reis Magos, pastores de surrões vistosos, cordeiros
d'esguedelhada lã, se apressavam atravez d'alcantis para o Menino, que
na sua lapinha lhes abria os braços, coroado por uma enorme Corôa Real.
Uma estante de madeira enchia outro pedaço de parede, entre dois
retratos negros com caixilhos negros; sobre uma das suas prateleiras
repousavam duas espingardas; nas outras esperavam, espalhados, como os
primeiros Doutores nas bancadas d'um concilio, alguns nobres livros, um
Plutarcho, um Virgilio, a Odyssea, o Manual de Epictecto, as Chronicas
de Froissart. Depois, em fila decorosa, cadeiras de palhinha, muito
novas, muito envernisadas. E a um canto um mólho de varapaus.
Tudo resplandecia de asseio e ordem. As portadas das janellas, cerradas,
abrigavam do sol que batia aquelle lado de Tormes, escaldando os
peitoris de pedra. Do soalho, burrifado de agua, subia, na suavisada
penumbra, uma frescura. Os cravos rescendiam. Nem dos campos, nem da
casa, se elevava um rumor. Tormes dormia no esplendor da manhã santa. E,
penetrado por aquella consoladora quietação de convento rural, terminei
por me estender n'uma cadeira de verga, junto da mesa, abrir
languidamente um tomo de Virgilio, e murmurar, appropriando o doce verso
que encontrára:
Fortunate Jacinthe! Hic, inter arva nota
Et fontes sacros, frigus captabis opacum...
Afortunado Jacintho, na verdade! Agora, entre campos que são teus e
aguas que te são sagradas, colhes emfim a sombra e a paz!
Li ainda outros versos. E, na fadiga das duas horas de egua e calor
desde Guiães, irreverentemente adormecia sobre o divino
Bucoliasta--quando me despertou um berro amigo! Era o meu Principe. E
muito decididamente, depois de me soltar do seu rijo abraço, o comparei
a uma planta estiolada, emmurchecida na escuridão, entre tapetes e
sêdas, que, levada para vento e sol, profusamente regada, reverdece,
desabrocha e honra a Natureza! Jacintho já não corcovava. Sobre a sua
arrefecida pallidez de super-civilisado, o ar montesino, ou vida mais
verdadeira, espalhára um rubor trigueiro e quente de sangue renovado que
o virilisava soberbamente. Dos olhos, que na Cidade andavam sempre tão
crepusculares e desviados do Mundo, saltava agora um brilho de meio-dia,
resoluto e largo, contente em se embeber na belleza das coisas. Até o
bigode se lhe encrespára. E já não deslisava a mão desencantada sobre a
face,--mas batia com ella triumphalmente na côxa. Que sei? Era um
Jacintho novissimo. E quasi me assustava, por eu ter de aprender e
penetrar, n'este novo Principe, os modos e as idéas novas.
--Caramba, Jacintho, mas então...?
Elle encolheu jovialmente os hombros realargados. E só me soube contar,
trilhando soberanamente com os sapatos brancos e cobertos de pó o soalho
remendado, que, ao acordar em Tormes, depois de se lavar n'uma dorna, e
d'enfiar a minha roupa branca, se sentira de repente como
_desannuviado_, _desenvencilhado_! Almoçára uma pratada de ovos com
chouriço, sublime. Passeára por toda aquella magnificencia da serra com
pensamentos ligeiros de liberdade e de paz. Mandára ao Porto comprar uma
cama, uns cabides... E alli estava...
--Para todo o verão?
--Não! Mas um mez... Dois mezes! Emquanto houver chouriços, e a agoa da
fonte, bebida pela telha ou n'uma folha de couve, me souber tão
divinamente!
Cahi sobre a cadeira de verga, e contemplei, arregalado, quasi
esgazeado, o meu Principe! Elle enrolava n'uma mortalha tabaco picado,
tabaco grosso, guardado n'uma malga vidrada. E exclamava:
--Ando ahi pelas terras desde o romper d'alva! Pesquei já hoje quatro
trutas, magnificas... Lá em baixo, no Naves, um riachote que se atira
pelo valle da Seranda... Temos logo ao jantar essas trutas!
Mas eu, avido pela historia d'aquella ressurreição:
--Então, não estiveste em Lisboa?... Eu telegraphei...
--Qual telegrapho! Qual Lisboa! Estive lá em cima, ao pé da fonte da
Lira, á sombra d'uma grande arvore, _sub tegmine_ não sei quê, a lêr
esse adorável Virgilio... E tambem a arranjar o meu palacio! Que te
parece, Zé Fernandes? Em tres semanas, tudo soalhado, envidraçado,
caiado, encadeirado!... Trabalhou a freguezia inteira! Até eu pintei,
com uma immensa brocha. Viste o comedoiro?
--Não.
--Então vem admirar a belleza na simplicidade, barbaro!
Era a mesma onde nós tanto exaltaramos o arroz com favas--mas muito
esfregada, muito caiada, com um rodapé bezuntado d'azul estridente onde
logo adivinhei a obra do meu Principe. Uma toalha de linho de Guimarães
cobria a mesa, com as franjas roçando o soalho. No fundo dos pratos de
louça forte reluzia um gallo amarello. Era o mesmo gallo e a mesma louça
em que na nossa casa, em Guiães, se servem os feijões dos cavadores...
Mas no páteo os cães latiram. E Jacintho correu á varanda, com uma
ligeireza curiosa que me deleitou. Ah, bem definitivamente se
esfrangalhára aquella rede de malha que se não percebia e que outr'ora o
travava!--N'esse momento appareceu o Grillo, de quinzena de linho,
segurando em cada mão uma garrafa de vinho branco. Todo se alegrou «em
vêr na quinta o siô Fernandes». Mas a sua veneranda face já não
resplandecia, como em Paris, com um tão sereno e ditoso brilho de ebano.
Até me pareceu que corcovava... Quando o interroguei sobre aquella
mudança, estendeu duvidosamente o beiço grosso:
--O menino gosta, eu então tambem gósto... Que o ar aqui é muito bom,
siô Fernandes, o ar é muito bom!
Depois, mais baixo, envolvendo n'um gesto desolado a louça de Barcellos,
as facas de cabo d'osso, as prateleiras de pinho como n'um refeitorio de
Franciscanos:
--Mas muita magreza, siô Fernandes, muita magreza!
Jacintho voltava com um maço de jornaes cintados:
--Era o carteiro. Já vês que não amuei inteiramente com a Civilisação.
Eis a Imprensa!... Mas nada de _Figaro_, ou da horrenda _Dois-Mundos_!
Jornaes de Agricultura! Para aprender como se produzem as risonhas
messes, e sob que signo se casa a vinha ao olmo, e que cuidados
necessita a abelha provida... _Quid faciat laetas segetes_... De resto
para esta nobre educação, já me bastavam as _Georgicas_, que tu ignoras!
Eu ri:
--Alto lá! _Nos quoque gens sumus et nostrum Virgilium sabemus_!
Mas o meu novissimo amigo, debruçado da janella, batia as palmas--como
Catão para chamar os servos, na Roma simples. E gritava:
--Anna Vaqueira! Um copo d'agoa, bem lavado, da fonte velha!
Pulei, immensamente divertido:
--Oh Jacintho! E as aguas carbonatadas? e as phosphatadas? e as
esterilisadas? e as sodicas?...
O meu Principe atirou os hombros com um desdem soberbo. E acclamou a
apparição d'um grande copo, todo embaciado pela frescura nevada da agoa
refulgente, que uma bella moça trazia n'um prato. Eu admirei sobretudo a
moça... Que olhos, d'um negro tão liquido e serio! No andar, no quebrar
da cinta, que harmonia e que graça de Nympha latina!
E apenas pela porta desapparecera a explendida apparição:
--Oh Jacintho, eu d'aqui a um instante tambem quero agua! E se compete a
esta rapariga trazer as cousas, eu, de cinco em cinco minutos, quero uma
cousa!... Que olhos, que corpo... Caramba, menino! Eis a poesia, toda
viva, da serra...
O meu Principe sorria, com sinceridade:
--Não! não nos illudamos, Zé Fernandes, nem façamos Arcadia. É uma bella
moça, mas uma bruta... Não ha alli mais poesia, nem mais sensibilidade,
nem mesmo mais belleza do que n'uma linda vacca tourina. Merece o seu
nome de Anna Vaqueira. Trabalha bem, digere bem, concebe bem. Para isso
a fez a Natureza, assim sã e rija; e ella cumpre. O marido todavia não
parece contente, porque a desanca. Tambem é um bello bruto... Não, meu
filho, a serra é maravilhosa e muito grato lhe estou... Mas temos aqui a
fêmea em toda a sua animalidade e o macho em todo o seu egoismo... São
porém verdadeiros, genuinamente verdadeiros! E esta verdade, Zé
Fernandes, é para mim um repouso.
Lentamente, gozando a frescura, o silencio, a liberdade do vasto
casarão, retrocedemos á sala que Jacintho já denominára a _Livraria_. E,
de repente, ao avistar n'um canto uma caixa com a tampa meio despregada,
quasi me engasguei, na furiosa curiosidade que me assaltou:
--E os caixotes? Oh Jacintho?... Toda aquella immensa caixotaria que nós
mandamos, abarrotada de Civilisação? Soubeste? Appareceram?
O meu Principe parou, bateu alegremente na côxa:
--Sublime! Tu ainda te lembras d'aquelle homemsinho, de sacco a
tiracollo, que nós admiramos tanto pela sua sagacidade, o seu saber
geographico?... Lembras? Apenas fallei em Tormes, gritou que conhecia,
rabiscou uma nota... Nem era necessario mais! «Oh! Tormes,
perfeitamente, muito antigo, muito curioso!» Pois mandou tudo para
Alba-de-Tormes, em Hespanha! Está tudo em Hespanha!
Cocei o queixo, desconsolado:
--Ora, ora... Um homem tão esperto, tão expedito, que fazia tanta honra
ao Progresso! Tudo para Hespanha!... E mandaste vir?
--Não! Talvez mais tarde... Agora, Zé Fernandes, estou saboreando esta
delicia de me erguer pela manhã, e de ter só uma escova para alisar o
cabello.
Considerei, cheio de recordações, o meu amigo:
--Tinhas umas nove...
--Nove? Tinha vinte! Talvez trinta! E era uma atrapalhação, não me
bastavam!... Nunca em Paris andei bem penteado. Assim com os meus
setenta mil volumes: eram tantos que nunca li nenhum. Assim com as
minhas occupações: tanto me sobrecarregavam, que nunca fui util!
* * * * *
De tarde, depois da calma, fomos vaguear pelos caminhos colleantes
d'aquella quinta rica, que, através de duas legoas, ondula por valle e
monte. Não m'encontrára mais com Jacintho em meio da Natureza, desde o
remoto dia d'entremez em que elle tanto soffrera no sociavel e policiado
bosque de Montmorency. Ah, mas agora, com que segurança e idyllico amor
elle se movia através d'essa Natureza, d'onde andára tantos annos
desviado por theoria e por habito! Já não arreceiava a humidade mortal
das relvas; nem repellia como impertinente o roçar das ramagens; nem o
silencio dos altos o inquietava como um despovoamento do Universo. Era
com delicias, com um consolado sentimento de estabilidade recuperada,
que enterrava os grossos sapatos nas terras molles, como no seu elemento
natural e paterno: sem razão, deixava os trilhos faceis, para se
embrenhar através de arbustos emaranhados, e receber na face a caricia
das folhas tenras; sobre os outeiros, parava, immovel, retendo os meus
gestos e quasi o meu halito, para se embeber de silencio e de paz: e
duas vezes o surprehendi attento e sorrindo á beira d'um regatinho
palreiro, como se lhe escutasse a confidencia...
Depois philosophava, sem descontinuar, com o enthusiasmo d'um
convertido, avido de converter:
--Como a intelligencia aqui se liberta, hein? E como tudo é animado
d'uma vida forte e profunda!... Dizes tu agora, Zé Fernandes, que não ha
aqui pensamento...
--Eu?! Eu não digo nada, Jacintho...
--Pois é uma maneira de reflectir muito estreita e muito grosseira...
--Ora essa! Mas eu...
--Não, não percebes. A vida não se limita a pensar, meu caro doutor...
--Que não sou!
--A vida é essencialmente Vontade e Movimento: e n'aquelle pedaço de
terra, plantado de milho, vae todo um mundo de impulsos, de forças que
se revelam, e que attingem a sua expressão suprema, que é a Fórma. Não,
essa tua philosophia está ainda extremamente grosseira...
--Irra! mas eu não...
--E depois, menino, que inesgotavel, que miraculosa diversidade de
fórmas... E todas bellas!
Agarrava o meu pobre braço, exigia que eu reparasse com reverencia. Na
Natureza nunca eu descobriria um contorno feio ou repetido! Nunca duas
folhas d'hera, que, na verdura ou recorte, se assemelhassem! Na Cidade,
pelo contrario, cada casa repete servilmente a outra casa; todas as
faces reproduzem a mesma indifferença ou a mesma inquietação; as idéas
teem todas o mesmo valor, o mesmo cunho, a mesma fórma, como as libras;
e até o que ha mais pessoal e intimo, a Illusão, é em todos identica, e
todos a respiram, e todos se perdem n'ella como no mesmo nevoeiro... A
_mesmice_--eis o horror das Cidades!
--Mas aqui! Olha para aquelle castanheiro. Ha tres semanas que cada
manhã o vejo, e sempre me parece outro... A sombra, o sol, o vento, as
nuvens, a chuva, incessantemente lhe compõem uma expressão diversa e
nova, sempre interessante. Nunca a sua frequentação me poderia fartar...
Eu murmurei:
--É pena que não converse!
O meu Principe recuou, com olhares chammejantes, d'Apostolo:
--Como que não converse? Mas é justamente um conversador sublime! Está
claro, não tem ditos, nem parola theorias, _ore rotundo_. Mas nunca eu
passo junto d'elle que não me suggira um pensamento ou me não desvende
uma verdade... Ainda hoje quando eu voltava de pescar as trutas...
Parei: e logo elle me fez sentir como toda a sua vida de vegetal é
isenta de trabalho, da anciedade, do esforço que a vida humana impõe;
não tem de se preoccupar com o sustento, nem com o vestido, nem com o
abrigo; filho querido de Deus, Deus o nutre, sem que elle se mova ou se
inquiete... E é esta segurança que lhe dá tanta graça e tanta magestade.
Pois não achas?
Eu sorria, concordava. Tudo isto era de certo rebuscado e especioso. Mas
que importavam as requintadas metaphoras, e essa metaphysica mal madura,
colhida á pressa nos ramos d'um castanheiro? Sob toda aquella ideologia
transparecia uma excellente realidade--a reconciliação do meu Principe
com a Vida. Segura estava a sua Resurreição depois de tantos annos de
cova, da cova molle em que jazera, enfaixado como uma mumia nas faixas
do Pessimismo!
E o que esse Principe, n'esta tarde me esfalfou! Farejava, com uma
curiosidade insaciavel, todos os recantos da serra! Galgava os cabeços
correndo, como na esperança de descobrir lá do alto os esplendores nunca
contemplados d'um Mundo inedito. E o seu tormento era não conhecer os
nomes das arvores, da mais rasteira planta brotando das fendas d'um
socalco... Constantemente me folheava como a um Diccionario Botanico.
--Fiz toda a sorte de cursos, passei pelos professores mais illustres da
Europa, tenho trinta mil volumes, e não sei se aquelle senhor além é um
amieiro ou um sobreiro...
--É um azinheiro, Jacintho.
Já a tarde cahia quando recolhemos muito lentamente. E toda essa
adoravel paz do céo, realmente celestial, e dos campos, onde cada
folhinha conservava uma quietação contemplativa, na luz docemente
desmaiada, pousando sobre as cousas com um liso e leve affago, penetrava
tão profundamente Jacintho, que eu o senti, no silencio em que
cahiramos, suspirar de puro allivio.
Depois, muito gravemente:
--Tu dizes que na natureza não ha pensamento...
--Outra vez! Olha que massada! Eu...
--Mas é por estar n'ella supprimido o pensamento que lhe está poupado o
soffrimento! Nós, desgraçados, não podemos supprimir o pensamento, mas
certamente o podemos disciplinar e impedir que elle se estonteie e se
esfalfe, como na fornalha das cidades, ideando gozos que nunca se
realisam, aspirando a certezas que nunca se attingem!... E é o que
aconselham estas collinas e estas arvores á nossa alma, que vela e se
agita:--que viva na paz d'um sonho vago e nada appeteça, nada tema,
contra nada se insurja, e deixe o Mundo rolar, não esperando d'elle
senão um rumor de harmonia, que a emballe e lhe favoreça o dormir dentro
da mão de Deus. Hein, não te parece, Zé Fernandes?
--Talvez. Mas é necessario então viver n'um mosteiro, com o temperamento
de S. Bruno, ou ter cento e quarenta contos de renda e o desplante de
certos Jacinthos... E tambem me parece que andamos leguas. Estou
derreado. E que fome!
--Tanto melhor, para as trutas, e para o cabrito assado que nos
espera...
--Bravo! Quem te cosinha?
--Uma afilhada do Melchior. Mulher sublime! Has de ver a canja! Has de
ver a cabidella! Ella é horrenda, quasi anã, com os olhos tortos, um
verde e outro preto. Mas que paladar! Que genio!
Com effeito! Horacio dedicaria uma ode áquelle cabrito assado n'um
espeto de cerejeira. E com as trutas, e o vinho Melchior, e a cabidella,
em que a sublime anã de olhos tortos puzera inspirações que não são da
terra, e aquella doçura da noite de Junho, que pelas janellas abertas
nos envolveu no seu velludo negro, tão molle e tão consolado fiquei,
que, na sala onde nos esperava o café, cahi n'uma cadeira de verga, na
mais larga, e de melhores almofadas, e atirei um berro de pura delicia.
Depois, com uma recordação, limpando o café do pello dos bigodes:
--Ó Jacintho, e quando nós andavamos por Paris com o Pessimismo ás
costas, a gemer que tudo era illusão e dôr?
O meu Principe, que o cabrito tornára ainda mais alegre, trilhava a
grandes passadas o soalho, enrolando o cigarro:
--Oh! que engenhosa besta, esse Schopenhauer! E maior besta eu, que o
sorvia, e que me desolava com sinceridade! E todavia,--continuava elle,
remexendo a chavena--o Pessimismo é uma theoria bem consoladora para os
que soffrem, porque desindividualisa o soffrimento, alarga-o até o
tornar uma lei universal, a lei propria da Vida; portanto lhe tira o
caracter pungente d'uma injustiça especial, commettida contra o
soffredor por um Destino inimigo e faccioso! Realmente o nosso mal
sobretudo nos amarga quando contemplamos ou imaginamos o bem do nosso
visinho:--porque nos sentimos escolhidos e destacados para a
infelicidade, podendo, como elle, ter nascido para a Fortuna. Quem se
queixaria de ser côxo--se toda a humanidade coxeasse? E quaes não seriam
os urros, e a furiosa revolta do homem envolto na neve e friagem e
borrasca d'um inverno especial, organisado nos ceus para o envolver a
elle unicamente--em quanto em redor, toda a Humanidade se movesse na
luminosa benignidade d'uma Primavera?
--Com effeito, murmurei eu, esse sujeito teria immensa razão para
urrar...
--E depois, clamava ainda o meu amigo, o Pessimismo é excellente para os
Inertes, por que lhes attenua o desgracioso delicto da Inercia. Se toda
a meta é um monte de Dor, onde a alma vae esbarrar, para que marchar
para a meta, atravez dos embaraços do mundo? E de resto todos os Lyricos
e Theoricos do Pessimismo, desde Salomão até o maligno Schopenhauer,
lançam o seu cantico ou a sua doutrina para disfarçar a humilhação das
suas miserias, subordinando-as todas a uma vasta lei de Vida, uma lei
Cosmica, e ornando assim com a aureola de uma origem quasi divina as
suas miudas desgraçazinhas de temperamento ou de Sorte. O bom
Schopenhauer formúla todo o seu schopenhauerismo, quando é um philosopho
sem editor, e um professor sem discipulos; e soffre horrendamente de
terrores e manias; e esconde o seu dinheiro debaixo do sobrado; e redige
as suas contas em grego nos perpetuos lamentos da desconfiança; e vive
nas adegas com o medo de incendios; e viaja com um copo de lata na
algibeira para não beber em vidro que beiços de leproso tivessem
contaminado!... Então Schopenhauer é sombriamente Schopenhauerista. Mas
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