A Cidade e as Serras - 13

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Não desilludi o meu Principe. E ambos subimos alegremente a escadaria do
casarão.


XI

No dia que seguiu estas largas caridades recolhi a Guiães. E, desde
então, tantas vezes trotei por aquellas tres legoas entre a nossa e a
velha alameda dos Jacinthos, que a minha egoa, quando a desviava d'essa
estrada familiar, conduzindo a uma cavallariça familiar, (onde ella
privava com o garrano do Melchior) relinchava de pura saudade. Até a tia
Vicencia se mostrava vagamente ciumenta d'aquella Tormes, para onde eu
sempre corria, d'aquelle Principe de quem incessantemente celebrava o
rejuvenescimento, a caridade, os piteus, e as chimeras agricolas. Já um
dia com um grão de sal e ironia,--o unico que cabia n'um coração todo
cheio d'innocencia,--ella me dissera, movendo com mais vivacidade as
agulhas da sua meia:
--Olha que te podes gabar! Até me tens feito curiosidade de conhecer
esse Jacintho... Traze cá essa maravilha, menino!
Eu rira:
--Socegue, tia Vicencia, que o trarei agora, para o dia dos meus annos,
a jantar... Damos uma festa, haverá um bailarico no pateo, e vem ahi
toda essa senhorama dos arredores. Talvez até se arranje uma noiva para
o Jacintho.
Eu, com effeito, já convidára o meu Principe para este «natalicio». E de
resto convinha que o senhor de Tormes conhecesse todos aquelles senhores
das boas casas da serra... Sobretudo, como eu lhe dizia rindo, convinha
que elle conhecesse algumas mulheres, algumas d'aquellas fortes
raparigas dos solares serranos, por que Tormes tinha uma solidão muito
monastica; e o homem, sem um pouco do Eterno Feminino, facilmente se
enrudece e ganha uma casca aspera como a das arvores, na solidão.
--E esta Tormes, Jacintho, esta tua reconciliação com a Natureza, e o
renunciamento ás mentiras da Civilisação é uma linda historia... Mas,
caramba, faltam mulheres!
Elle concordava, rindo, languidamente estendido na cadeira de vime:
--Com effeito, ha aqui falta de mulher, com M. grande. Mas essas
senhoras ahi das casas dos arredores... Não sei, estou pensando que se
devem parecer com legumes. Sans, nutritivas, excellentes para a
panella--mas, emfim, legumes. As mulheres que os poetas comparam ás
Flores são sempre as mulheres das Côrtes, das Capitaes, ás quaes,
invariavelmente, desde Hesiodo e de Horacio, se rendem os poetas... E
evidentemente não ha perfume, nem graça, nem elegancia, nem requinte,
n'uma cenoura ou n'uma couve... Não devem ser interessantes as senhoras
da minha serra.
--Eu te digo... A tua visinha mais chegada, a filha do D. Theotonio, com
effeito, salvo o respeito que se deve á casa illustre dos Barbedos, é um
mostrengo! A irmã dos Albergarias, da quinta da Loja, tambem não
tentaria nem mesmo o precisado Santo Antão. Sobretudo se se despisse,
por que é um espinafre infernal! Essa realmente é legume, e não dos
nutritivos.
--Tu o disseste: espinafre!
--Temos tambem a D. Beatriz Velloso... Essa é bonita... Mas, menino, que
horrivelmente bem fallante! Falla como as heroinas do Camillo. Tu nunca
leste o Camillo... E depois, um tom de voz que te não sei descrever, o
tom com que se falla em D. Maria, em peças de sentimento. Tu tambem
nunca viste o Theatro de D. Maria... Emfim, um horror! E perguntas
pavorosas. «V. Ex.^a. Snr. Doutor, não se delicia com Lamartine?» Já me
disse esta, a indecente!
--E tu?
--Eu! Arregalei os olhos... «Oh Lamartine!». Mas, coitada, é uma
excellente rapariga! Agora, por outro lado, temos as Rojões, as filhas
de João Rojão, duas flores, muito frescas, muito alegres, com um cheiro
e um brilho a sadio, e muito simples... A tia Vicencia morre por ellas.
Depois ha a mulher do Dr. Alypio, que é uma belleza. Oh! uma creatura
esplendida! Mas, emfim, é a mulher do Dr. Alypio, e tu renunciaste aos
deveres da Civilisação... Além disso, mulher muito séria, toda absorvida
nos seus dous pequenos, que parecem dous anjinhos de Murillo... E quem
mais? Já agora, quero completar a lista do pessoal feminino. Temos a
Mello Rebello, de Sandofim, muito engraçada, com cabello lindo... Borda
na perfeição, faz doces como uma freira do antigo Regimen... Havia
tambem uma Julia Lobo, muito linda, mas morreu... Agora não me lembro
mais. Mas falta a flôr da Serra, que é a minha prima Joanninha, da Flôr
da Malva! Essa é uma perfeição de rapariga.
--E tu, primo Zé, como tens tu resistido?
--Somos como irmãos, creados de pequeninos, mais acostumados e
familiares que tu e eu... A familiaridade esbate os sexos. A mãe d'ella
era a unica irmã da tia Vicencia, e morreu muito nova. A Joanninha,
quasi desde o berço que se creou em nossa casa, em Guiães. O pae é bom
homem, o tio Adrião. Erudito, antiquario, colleccionador... Collecciona
toda a sorte de cousas exquisitas, campainhas, esporas, sinetes,
fivellas... Tem uma collecção curiosa. Elle ha muito que deseja vir a
Tormes, para te visitar... Mas, coitado, soffre da bexiga, não póde
montar a cavallo. E a estrada da Flôr da Malva aqui é impossivel para
carruagens...
O meu Principe espreguiçára longamente os braços:
--Não, está claro! eu é que hei-de visitar teu tio, e a tia Vicencia...
Desejo conhecer os meus visinhos. Mas mais tarde, quando socegar. Agora
ando todo occupado com o meu povo.
E com effeito! Jacintho era agora como um Rei fundador d'um Reino, e
grande edificador. Por todo o seu dominio de Tormes andavam obras, para
o renovamento das casas dos rendeiros, umas que se concertavam, outras
mais velhas, que se derrubavam para se reconstruirem com uma larguesa
commoda. Pelos caminhos constantemente chiavam carros, carregados de
pedra, ou de madeiras cortadas nos pinheiraes.
Na taberna do Pedro, á entrada da freguezia, ia um desusado movimento,
de pedreiros e carpinteiros contractados para as obras;--e o Pedro, com
as mangas arregaçadas, por traz do balcão, não cessava de encher os
decilitros com uma vasta enfusa.
Jacintho, que tinha agora dous cavallos, todas as manhãs cedo percorria
as obras, com amor. Eu, inquieto, sentia outra vez, latejar e irromper
no meu Principe o seu velho, maniaco furor d'accumular Civilisação! O
plano primitivo das obras era incessantemente alargado, aperfeiçoado.
Nas janellas, que deviam ter apenas portadas, segundo o secular costume
da serra, decidira pôr vidraças, apezar do mestre d'obras lhe dizer
honradamente, que depois d'habitadas um mez, não haveria casa com um só
vidro. Para substituir as traves classicas queria estucar os tectos;--e
eu via bem claramente que elle se continha, se retesava dentro do
Bom-senso, para não dotar cada casa com campainhas electricas. Nem
sequer me espantei, quando elle uma manhã me declarou que a porcaria da
gente do campo provinha de elles não terem onde commodamente se lavar,
pelo que andava pensando em dotar cada casa com uma banheira. Desciamos
n'esse momento, com os cavallos á redea, por uma azinhaga precipitada e
escabrosa; um vento leve ramalhava nas arvores, um regato saltava
ruidosamente entre as pedras. Eu não me espantei--mas realmente me
pareceu que as pedras, o arroio, as ramagens e o vento, se riam
alegremente do meu Principe. E além d'estes confortos, a que o João,
mestre d'obras, com os olhos loucamente arregalados chamava «as
grandezas», Jacintho meditava o bem das almas. Já encommendára ao seu
architecto, em Paris, o plano perfeito d'uma escola, que elle queria
erguer, n'aquelle campo da Carriça, junto á capellinha que abrigava «os
ossos». Pouco a pouco, ahi crearia tambem uma bibliotheca, com livros
d'estampas, para entreter, aos domingos, os homens a quem já não era
possivel ensinar a lêr. Eu vergava os hombros, pensando:--«Ahi vem a
terrivel accumulação das Noções! Eis o livro invadindo a Serra!» Mas
outras idéas de Jacintho eram tocantes,--e eu mesmo me enthusiasmei, e
excitei o enthusiasmo da tia Vicencia com o seu plano d'uma Creche, onde
elle esperava ter manhãs muito divertidas vendo as creancinhas a
gatinhar, a correr tropegamente atraz d'uma bola. De resto, o nosso
boticario de Guiães estava já apalavrado para estabelecer uma pequena
pharmacia em Tormes, sob a direcção do seu praticante, um afilhado da
tia Vicencia, que tinha publicado um artigo sobre as festas populares do
Douro no _Almanach de Lembranças_. E já fôra offerecido o partido medico
de Tormes, com ordenado de 600$000 réis.
--Não te falta senão um Theatro! dizia eu, rindo.
--Um theatro não. Mas tenho a idéa d'uma sala, com projecções de
lanterna magica, para ensinar a esta pobre gente as cidades d'esse
mundo, e as cousas d'Africa, e um bocado de Historia.
E tambem me ensoberbeci com esta innovação!--E quando a contei ao tio
Adrião, o digno antiquario bateu, apezar do seu rheumatismo, uma palmada
tremenda na côxa. «Sim, senhor! Bella idéa! Assim se podia ensinar
áquella gente illetrada, vivamente, por imagens, a Historia Santa, a
Historia Romana, até a Historia de Portugal!...» E voltado para a prima
Joanninha, o tio Adrião declarou Jacintho um «homem de coração!»
E realmente pela Serra crescia a popularidade do meu Principe.
N'aquelle, «guarde-o Deus, meu senhor!» com que as mulheres ao passar o
saudavam, se voltavam para o vêr ainda, havia uma seriedade d'oração, o
bem sincero desejo de que Deus o guardasse sempre. As creanças a quem
elle distribuia tostões, farejavam de longe a sua passagem,--e era em
torno d'elle um escuro formigueiro de caritas trigueiras e sujas, com
grandes olhos arregalados, que se ainda tinham pasmo, já não tinham
medo. Como o cavallo de Jacintho uma tarde se chapára, ao desembocar da
alameda, n'umas grossas pedras que ahi deformavam a estrada, logo ao
outro dia um bando d'homens, sem que Jacintho o ordenasse, veio por
dedicação ensaibrar e alisar aquelle pedaço perigoso de caminho,
aterrados com o risco que correra o bom senhor. Já pela serra se
espalhava esse nome de «bom senhor». Os mais edosos da freguezia não o
encontravam sem exclamarem, uns com gravidade, outros com grandes risos
desdentados:--_Este é o nosso bemfeitor_! Por vezes, alguma velha corria
do fundo do eido, ou vinha á porta do casebre, ao avistal-o no caminho,
para gritar, com grandes gestos dos braços magros: «Ai que Deus o cubra
de bençãos! Que Deus o cubra de bençãos!»
Aos domingos, o padre José Maria, (bom amigo meu e grande caçador) vinha
de Sandofim, na sua egoa ruça, a Tormes, para celebrar a missa na
Capellinha. Jacintho assistia ao officio na sua tribuna, como os
Jacinthos d'outras eras, para que aquelles simples o não suppuzessem
estranho a Deus. Quasi sempre então elle recebia presentes, que as
filhas dos caseiros, ou os pequenos, vinham muito corados, trazer-lhe á
varanda, e eram vasos de manjaricão, ou um grosso ramalhete de cravos, e
por vezes um gordo pato. Havia então uma distribuição de cavacas e
merengues de Guiães, ás raparigas e ás creanças,--e, no pateo, para os
homens circulavam as infusas de vinho branco. O Silverio já sustentava
com espanto, e redobrado respeito, que o Snr. D. Jacintho em breve
disporia de mais votos nas eleições que o Dr. Alypio. E eu proprio me
impressionei, quando o Melchior me contou que o João Torrado, um velho
singular d'aquelles sitios, de grandes barbas brancas, hervanario,
vagamente alveitar, um pouco adivinho, morador mysterioso d'uma cova no
alto da serra, a todos affirmava que aquelle bom senhor era El-Rei D.
Sebastião, que voltára!


XII

Assim chegou Setembro, e com elle o meu natalicio, que era a 3 e n'um
Domingo. Toda essa semana a passára eu em Guiães, nos preparos da
vindima,--e de manhã cedo, n'esse Domingo illustre, me fui debruçar da
varanda do quarto do saudoso tio Affonso, vigiando a estrada, por onde
devia apparecer o meu Principe, que emfim visitava a casa do seu Zé
Fernandes. A tia Vicencia, desde a madrugada, andava atarefada pela
cosinha e pela copa, porque, desejando mostrar ao meu Principe «o
pessoal» da serra, convidára para jantar algumas familias amigas, dos
arredores, as que tinham carruagens ou carroções, e podiam, pelas
estradas mal seguras, recolher tarde, depois d'um bailarico campestre,
no pateo, já enfeitado para esse effeito de lanternas chinezas. Mas logo
ás dez horas me desesperei, ao receber, por um moço da Flôr da Malva,
uma carta da prima Joanninha, em que dizia «a pena de não poder vir
porque o Papá estava desde a vespera com um leicenço, e ella não o
queria abandonar.» Corri indignado á cosinha, onde a tia Vicencia
presidia a um violento bater de gemas d'ovos dentro d'uma immensa
terrina.
--A Joanninha não vem! Sempre assim! Diz que o pae tem um leicenço...
Aquelle tio Adrião escolhe sempre os grandes dias para ter leicenços, ou
para ter a pontada...
A boa face redondinha e corada da tia Vicencia enterneceu-se.
--Coitado! será em sitio que não se pudesse sentar na carruagem!
Coitado! Olha, se lhe escreveres, dize-lhe que ponha um emplastrosinho
de folhas d'alecrim. É com que teu tio se dava bem.
Eu gritei simplesmente para o moço, que dava de beber ao burro no pateo:
--Dize á Snr.^a D. Joanninha que sentimos muito... Que talvez eu lá
appareça ámanhã.
E voltei á janella, impaciente, por que o relogio do corredor, muito
atrazado, já cantára a meia hora depois das dez e o Principe tardava
para o almoço. Mas, mal eu me chegára á varanda, appareceu justamente na
volta da estrada Jacintho, de grande chapeu de palha, no seu cavallo,
seguido do Grillo que, tambem de chapeu de palha, e abrigado sob um
immenso guarda-sol verde, se escarranchava no albardão da velha egoa do
Melchior. Atraz, um moço com uma maleta á cabeça. E eu, na alegria de
avistar emfim o meu Principe trotando para a minha casa d'aldeia, no dia
dos meus trinta e seis annos, pensava n'outro natalicio, no d'elle, em
Paris, no 202, quando, entre todos os esplendores da Civilização, nós
bebemos tristemente _ad manes_, aos nossos mortos!
--_Salvè_! gritei da varanda. _Salvè, domine Jacinthi_!
E entoei, para o accolher, n'um alegre tarantantan, o hymno da carta!
--Isto por aqui tambem é lindo!--gritou elle de baixo. E o teu palacio
tem um soberbo ar... Por onde é a porta?
Mas eu já me precipitava para o pateo--onde Jacintho, apeando, contou
alegremente os tormentos do Grillo, que nunca montára a cavallo, e não
cessára de berrar ante os perigos d'aquella aventura.
E o digno preto, offegante, lustroso de suor, e livido sob o esplendor
da sua negrura, exclamava, apontando com a mão tremula para a pobre
egoa, que solta, de cabeça pensativa, parecia de pedra, sobre as patas
mais immoveis que marcos:
--Pois se o siô Fernandes visse! Uma fera, que nunca veiu quieta. Sempre
para a esquerda, sempre para a direita, pé aqui, pé além! Só para me
sacudir! Só para me sacudir!
E não resistiu. Com a ponta do guarda-sol atirou uma pontoada vingativa
contra a egoa, sobre o albardão.
Subindo a escadaria ligeira, penetrando no alegre corredor, com a sua
janella ao fundo engrinaldada de rosinhas, Jacintho louvava grandemente
a nossa casa, que o repousava das rijas muralhas, das grossas portas
feudaes de Tormes. E no seu quarto agradeceu os cuidados maternaes da
tia Vicencia, que enchera de flores os dois vasos da China sobre a
commoda, e adornára a cama com uma das nossas colxas da India mais
ricas, côr de canario, com grandes aves d'ouro. Eu sorria, enternecido.
Então estreitamos os ossos n'um grande abraço, pelo natalicio... «Trinta
e oito, hein, Zé Fernandes?»--«Trinta e quatro, animal!» E o meu
Principe abrindo a mala, sobria maleta de philosopho, offereceu os
«nobres presentes, que são devidos», como diz sempre o astuto Ulysses na
Odyssea. Era um alfinete de gravata, com uma saphira, uma cigarreira de
aro fosco, adornada de um florido ramo de macieira em delicado esmalte,
e uma faca para livros de velho lavor Chinez. Eu protestava contra a
prodigalidade.
--É tudo das malas de Paris... Mandei-as abrir hontem á noite. E tomei a
liberdade de trazer esta lembrança á tua tia Vicencia. Não vale nada...
É só por ter pertencido á princeza de Lamballe.
Era uma caldeirinha d'agoa benta, em prata lavrada, d'um gosto florido e
quasi galante.
--A tia Vicencia não sabe quem é a princeza de Lamballe, mas ficará
encantada! E é uma garantia, por que ella suspeita da tua religião, como
homem de Paris, da terra das impiedades... E agora, lavar, escovar, e ao
almoço!
A tia Vicencia pareceu toda surprehendida, e logo encantada com o meu
camarada, que ella suppuzera realmente um Principe, arrogante, escarpado
e difficil. Quando elle lhe offereceu a caldeirinha, com um delicado
pedido «para se lembrar d'elle nas suas orações», duas largas rosas,
mais roseas e frescas que as rosas que enchiam a mesa, cobriram as faces
redondas da boa senhora, que nunca recebera tão piedoso presente, com
tão linda palavra. Mas o que sobretudo a captivou foi o tremendo
appetite de Jacintho, a enthusiasmada convicção com que elle,
accumulando no prato montes de cabidella, depois altas serras d'arroz de
forno, depois bifes de numerosa cebolada, exaltava a nossa cosinha,
jurava nunca ter provado nada tão sublime. Ella resplandecia:
--Até faz gosto, até faz gosto!... Ora mais uma d'estas batatinhas
recheadas...
--Com certesa, minha senhora! até duas! As minhas rações, em mesas
d'estas, tão perfeitas, são sempre as de Gargantua.
--Não cites Rabelais, que a tia Vicencia não conhece os auctores
profanos! exclamava eu, tambem radiante. E prova esse vinho branco cá da
nossa lavra, e louva Deus que amadurece tal uva.
E o almoço foi muito alegre, muito intimo, muito conversado, sobre as
obras de Jacintho em Tormes, e a sua Creche, que enlevava a tia
Vicencia, e as esperanças da vindima, e a minha prima Joanninha, que
tinha o papá doente, e o pessimo estado dos caminhos. Mas o
enternecimento maior foi quando, ao servir o café, o creado poz ao lado
de Jacintho um pires com um pau de canella, o seu estranho e costumado
pau de canella. Não o esquecera a tia Vicencia! Ali tinha o seu pausinho
de canella!--Queria que elle, em Guiães, continuasse os seus habitos
como em Tormes... E aquelle pau de canella foi o symbolo de adopção do
meu Principe como novo sobrinho da tia Vicencia.
Ella em breve recolheu á cosinha, aos preparativos do banquete. Nós
fumamos um preguiçoso charuto no jardim, ao pé do repuxo, sob a
recolhida sombra do cedro. Depois, inexoravelmente, como proprietario,
mostrei ao meu Principe a propriedade toda, com desapiedada
minuciosidade, sem lhe perdoar uma leira, um regueiro, uma arvore, um pé
de vinha. Só quando a sua face começou a opar e a empallidecer, de
cançaço, e que do entendimento totalmente atordoado só lhe escorria um
vago--«muito bonito! bella terra!»--é que voltei os passos para casa,
tornejando ainda n'uma volta larga para lhe mostrar o lagar, uma
plantação d'espargos, e o sitio onde existira a ruina d'um velho castro
romano. Ao penetrarmos de novo, pelo jardim, na fresca sala, ainda o
empurrei, como uma rez, para a livraria do meu bom tio Affonso, para lhe
mostrar as preciosidades, uma magnifica chronica de D. João I por Fernão
Lopes, a primeira edição do _Imperador Clarimundo_, uma _Henriada_, com
a assignatura de Voltaire, foraes d'El-Rei D. Manoel, e outras
maravilhas. Elle respirava fechando o derradeiro pergaminho, quando eu o
arrastei á adega, para que admirasse a famosa pipa, que tinha, em
relevo, na madeira do tampo, as complicadas armas dos Sandes. Eram
quatro horas. O meu Principe tinha o ar esgaseado e livido. Cravando
n'elle os olhos inexoraveis, olhos em que eu mesmo sentia reluzir a
ferocidade, declarei «que iriamos agora vêr a tulha.» Mas então, com as
mãos nos rins, elle murmurou, humildemente, n'um murmurio de creança:
--Não se me dava de me sentar um poucochinho!
Tive então piedade, abri as garras, deixei que elle se arrastasse, atraz
de mim, para o seu quarto, onde freneticamente descalçou as botas, se
atirou para um fresco canapé forrado de ganga, murmurando n'um
abatimento profundo:--«Bella propriedade!»
Consenti generosamente que elle adormecesse,--e eu mesmo desci a
verificar se a Gertrudes dispusera bem as escovas, as toalhas de renda,
no quarto onde os convidados, em breve, ao chegar, lavariam as mãos,
escovariam a poeira da estrada. E justamente, uma caleche rodava no
pateo, a velha caleche do D. Theotonio, com a parelha ruça. Espreitando
da janella descobri, com prazer, que chegava só, de gravata branca, sob
o guarda-pó, sem a horrendissima filha. Corri alegremente ao quarto da
tia Vicencia, que, ajudada pela Catharina, abrochava á pressa as suas
pulseiras ricas de topazios.
--Tia Vicencia! chegou o D. Theotonio! Felizmente vem sem a filha... Não
se demore, os outros não tardam. O Manoel que esteja bem penteado, de
gravata bem teza!... Vamos a vêr como corre a festa!


XIII

Ai de mim! a festa no meu anniversario não se passou com brilho, nem com
alegria!
Quando o meu Principe entrou na sala, com uma elegancia, (onde eu senti
as malas de Paris, abertas na vespera)--uma rosa branca no jaquetão
preto, collete branco lavrado e trespassado, copiosa gravata de sêda
branca, tufando, e presa por uma perola negra,--já todos os convidados
estavam na sala,--o D. Theotonio, o Ricardo Velloso, o Dr. Alypio, o
gordo Mello Rebello, de Sandofim, os dois manos Albergarias, da quinta
da Loja--; todos de pé, n'um pellotão cerrado. Em torno do sophá onde a
tia Vicencia se installára, um magotesinho de cadeiras reunira as
senhoras,--a Beatriz Velloso, de cassa branca sobre sèda, que a tornava
mais aeria e magra, com a sua trunfa immensa de cabello riçado; as duas
Rojões, (com a tia Adelaide Rojão) vermelhinhas como camoezas, ambas de
branco; e a mulher do Dr. Alypio, de preto, esplendida como uma Venus
Rustica... E foi na sala, como se realmente entrasse um Principe,
d'esses paizes do Norte onde os Principes são magnificos, muito
distantes dos homens, e aterram as gentes. Um silencio, como se o tecto
de carvalho descesse, nos esmagava: e todos os olhos se enristaram
contra o meu desgraçado Jacintho, como n'uma caçada hindú, quando á orla
da floresta surge o Tigre Real. Debalde,--nas confusas, apressadas
apresentações, com que eu o levava atravez da sala,--os seus apertos de
mão, os sorrisos, o vago murmurio, «da sua honra, do seu prazer» foram
repassados de sympathia, de simplicidade. Todos os cavalheiros
permaneciam reservados, observando o Principe, que subira á serra: e as
senhoras mais se aconchegavam á sombra da tia Vicencia, como ovelhas á
volta do pastor, quando na altura assoma o lobo. Eu, já inquieto, lancei
o D. Theotonio, o mais ornamental d'aquelles cavalheiros.
--O Snr. D. Theotonio foi muito amavel em vir, Jacintho. Raras vezes sae
da sua linda casa da Abrujeira.
O digno D. Theotonio sorriu, cofiando os espessos bigodes brancos, de
velho brigadeiro:
--V. Ex.^a chegou directamente de Vienna?
Não! Jacintho viera directamente de Paris, com o amigo Zé Fernandes. D.
Theotonio insistiu:
--Mas certamente visita muitas vezes Vienna...
Jacintho sorria surprehendido:
--Vienna, porque?... Não. Ha mais de quinze annos que não vou a Vienna.
O fidalgo murmurou um lento _ah_! e ficou calado, de palpebras baixas,
como revolvendo analyses profundas, com as mãos cruzadas sob as abas da
longa sobrecasaca azul.
Eu então, vigilante, lancei o Dr. Alypio:
--O nosso Doutor, meu caro Jacintho, é o mais poderoso influente de todo
o districto.
O Doutor curvou a cabeça bem feita, com um bello cabello preto,
admiravelmente alisado e lustroso. Mas a tia Vicencia, que se erguera do
sofá, chamava o meu Principe, porque o Manoel annunciára o jantar,
mudamente, mostrando apenas, á porta da sala, a sua corpulenta
pessoa,--inteiriçado e vermelho.
Á mesa, onde os pudins, as travessas de doce d'ovos, os antigos vinhos
da Madeira e do Porto, nas suas pesadas garrafas de cristal lapidado,
fundiam com felicidade os seus tons ricos e quentes, Jacintho ficou
entre a tia Vicencia e uma das Rojões, a Luizinha, sua afilhada, que,
por costume velho, quando jantava em Guiães, sempre se collocava á
sombra da sua bôa madrinha. E a sôpa, que era de gallinha com macarrão,
foi comida n'um tão largo e pesado silencio que eu, na ancia de o
quebrar, exclamei, ao acaso, sem pensar que me achava em Guiães depois
de tanto tempo e em minha própria casa:
--Deliciosa, esta sopa!
Jacintho echoou:
--Divina!!
Mas como todos os convidados certamente estranharam este meu brado, e a
excessiva admiração de Jacintho, o silencio, carregado de cerimonia,
mais se carregou de embaraço. Felizmente a tia Vicencia, com aquelle seu
bom sorriso, observou que Jacintho parecia gostar da comida
portugueza... E eu, sempre no intuito d'animar a conversa, nem deixei
que o meu Principe confirmasse o seu amor da cosinha vernacula, e
gritei:
--Como gostar! Mas é que delira!... Pudera! Tanto tempo em Paris,
privado dos piteus lusitanos...
E como, ditosamente, me lembrára o prato de arroz doce preparado na
occasião do natalicio de Jacintho, pelo cosinheiro do 202, contei a
historia, profusamente, exaggerando, affirmando que esse arroz doce
continha _foie gras_, e que sobre a sua ornamentada pyramide fluctuava a
bandeira tricolor, por cima do busto do conde de Chambord! Mas o arroz
doce de Paris, assim estragado tão longe da Serra, não interessára
ninguem. Puxou apenas alguns sorrisos de polida condescendencia, quando
eu, alternadamente, me voltava para um cavalheiro, para uma senhora,
insistindo, exclamando:--Extraordinario, hein?
D. Theotonio observou, mysteriosamente, que o «cosinheiro sabia para
quem cosinhava.» E a bella mulher do Dr. Alypio ousou murmurar, corando:
--Havia de ser bonito prato, e talvez não fosse mau!
Eu, sempre na ancia de espiritualisar o banquete, de produzir
conversação, ataquei com desabrida alegria a Snr.^a D. Luiza, por ella
assim defender a profanação do nosso grande acepipe nacional! Mas, pobre
de mim! tão excessiva e ruidosamente interpellei a formosa senhora, que
ella se enconchou, emmudeceu, toda corada, e mais formosa assim. E outro
silencio se abatia sobre a mesa, como uma nevoa, quando a tia Vicencia,
providencial, se desculpou para com Jacintho de não ter peixe! Mas quê!
ali na Serra era impossivel, ainda a peso d'ouro, ter peixe, a não ser a
pescada salgada, ou o bacalhau. O excellente Rojão, com aquelle seu
modo, tão suave que cada syllaba para correr mais docemente parecia
lubrificada com oleos santos, lembrou que o Snr. D. Jacintho possuia uma
larga facha do rio Douro com privilegio para a pesca do savel. Jacintho
não sabia, nem imaginava que houvesse saveis... O Dr. Alypio não se
admirava por que essas pescas tinham sido vendidas ao Cunha brasileiro,
ha vinte annos, na mocidade do Snr. D. Jacintho. E hoje, segundo o D.
Theotonio, não valiam dois mil réis. Se já não ha saveis!... E a
proposito das antigas pescas do Douro se ia formando, em torno da mesa,
entre os homens mais visinhos, lentas cavaqueirinhas ruraes, que as
senhoras aproveitavam para cochichar, no desabafo d'aquelle silencio
cerimonioso, que viera pesando cada vez mais desde a sôpa até os frangos
guisados. Receoso de que essa orla de murmurios lentos, sem brilho e sem
alegria, se estabelecesse de novo, me abalancei (para animar), a
interpellar Jacintho, recordando a famosa aventura do peixe da Dalmacia
encalhado no ascensor.
--Isso foi uma das melhores historias que nos succederam em Paris! O
Jacintho, por causa d'um peixe muito raro, que lhe mandára o Grão-Duque
Casimiro, dava uma magnifica ceia, a que o Grão-Duque... o Grão-Duque
Casimiro, o irmão do Imperador...
Todos os olhos se desviaram para o meu Jacintho, que se servia de
ervilhas:--e o Mello Rebello quasi se engasgou, n'um sorvo precipitado
ao copo, para contemplar no meu amigo algum reflexo do Grão-Duque. E eu
contei, com profusão, o peixe encalhado, o Grão-Duque pescando, o anzol
feito com um gancho da Princeza de Carman, o duque de Marizac, cahindo
quasi no poço do elevador... Mas não se produziu um unico riso, e a
attenção mesma era dada com esforço, por cortezia. Debalde eu
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